terça-feira, 6 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6684: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (20): Liderança e voluntariado de mãos dadas na Mata dos Madeiros

1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 26 de Junho de 2010:

Meu caro e amigo Carlos Vinhal,
Cá estou de volta a dar-te algum trabalho.
É uma história simples. O seu significado está muito para além das palavras.

Dentro de dias irei abraçar alguns dos protagonistas aqui mencionados. Ao fim de 37 anos!

Para ti e para os nossos camaradas um abraço imenso,
José Câmara


Memórias e histórias minhas (20)

Liderança e voluntariado de mãos dadas na Mata dos Madeiros


A emboscada ao grupo da 26a. CCmds junto ao nosso acampamento na Mata dos Madeiros trouxe alterações significativas à nossa actuação. Entre elas tiveram significado especial o reforço das escoltas ao Bachile e ao grupo que, diariamente, juntava a lenha para a cozinha. Porém, o esforço maior adveio do começo da picagem da estrada e da protecção próxima das máquinas e dos trabalhadores em serviço na estrada. Esta nova missão, a nível de um grupo de combate, era protagonizada por um dos grupos regressados do mato, e prolongava-se até às seis horas da tarde. Os postos de sentinela noturnos já eram reforçados com três elementos. Outra consequência não menos significativa foi o facto dos grupos de combate nas saídas de vinte e quatro horas terem o seu quadro completo de graduados.

Como consequência de todo este reforço de trabalho, os nossos soldados sem dúvida os mais sacrificados, passaram a actuar quase continuamente. O seu esforço passou a ser compensado com 12 horas de descanso a cada 12 dias de trabalho contínuo. Os graduados eram mais felizardos nas noites passadas no acampamento porque só tinham que fazer uma ronda nocturna. Comum a todos os operacionais foi o reforço das rações de combate que passou de uma em cada 48 horas, para duas e meia em cada 72 horas.

A 28 de Abril de 1971 escrevi à minha madrinha de guerra o seguinte:

"Esta manhã voltei de uma operação (24 horas), para voltar ao mato durante o dia (12 horas). No regresso voltei a sair numa escolta aqui perto (o Bachile distava cerca de 10 Kms do primeiro acampamento). O trabalho está a ser durinho, mas vai-se cumprindo da melhor maneira. Amanhã vou novamente para o mato; depois de amanhã devo descansar para voltar a alinhar mais quatro dias seguidos para o mato."

A primeira destas quatro saídas aconteceu porque o Comandante da Companhia, Cap Mil Rogério Rebocho Alves pediu-me para substituir no 2.°Pel o Alf Mil Agostinho Barata Neves por impedimento deste. Integrar aquele pelotão não era problema. Comandá-lo era. Os furriéis João Cruz, Fernando Silva e Joaquim Fermento eram competentes e, qualquer um deles, à altura de comandar o grupo. A fim de evitar mal entendidos com os meus camaradas, pedi autorização para levar a minha secção completa. Era, julgo eu, a forma mais correcta de assumir, como graduado mais antigo, o comando de um grupo que não era o meu. O Comandante da Companhia compreendeu e anuíu.

Foi assim que a minha secção saiu 'voluntariamente' para o mato sem que o pessoal soubesse das razões. Durante os próximos quatro dias só regressávamos ao acampamento para abastecimento de água e ração de combate.

Quando regressámos da primeira das quatro saídas, o 1.º Cabo José Leonardes, um excelente homem e militar, aproximou-se e disse-me sensivelmente o seguinte:

- O pessoal da nossa secção não percebe porque teve que ir para o mato só porque o meu furriel se ofereceu como voluntário. Nós já estamos sobrecarregados com trabalho. Eu acho que eles têm razão.

Perante esta manifestação correcta de desacordo, respondi:

- Eu não fui voluntário. O nosso Capitão pediu-me que o fosse. Nesta companhia eu sou, talvez, o único que não pode tentar negar-se a um pedido dele. Quanto a vocês eu só posso acrescentar que vos treinei e sei o que cada um é capaz de fazer. Tens razão numa coisa: O meu problema não pode ser o vosso. Qualquer outra explicação sobre este assunto serão vocês que a terão que descobrir e compreender. A partir de hoje, sempre que eu tiver que alinhar fora do grupo, vocês não terão que me acompanhar.

Nunca saí para o mato sem a minha secção. Os meus homens compreenderam que eu estive sempre ao lado deles. Também compreenderam que eu, tal como eles, era um açoriano com alguma responsabilidade acrescentada.

Finda a conversa com o Leonardes, enquanto me preparava para regressar ao mato, desta vez com o meu grupo, o Comandante da Companhia informou-me que o Alf Mil Francisco João Magalhães, comandante do grupo, tinha adoecido e que eu teria que comandá-lo. Essa informação originou um diálogo que não esteve muito longe deste:

- Meu capitão, o grupo não deve sair desfalcado de um graduado.

- Vai ter que ser pois não tem ninguém preparado para te ajudar.

- Meu Capitão, temos um que eu sei estar sempre preparado para qualquer eventualidade.

-Quem? - perguntou o comandante. Eu não respondi. O capitão encaminhou-se para a sua G3, pôs o cinturão com as cartucheiras, o cantil e duas granadas de mão. De seguida dirigiu-se ao depósito de géneros para recolher a sua ração de combate.

A 3 de Maio de 1971 escrevi à minha madrinha de guerra o seguinte:


"A saída de ontem teve um bom aliciante. O comandante da companhia resolveu acompanhar-nos pela primeira vez. Claro está que se andou um bocadinho mais que o normal. Tivemos interesse em que ele visse alguns aspectos da mata por onde andávamos. Rapazes novos tudo podem, como se costuma dizer, e como eu guiava a coluna no seu trajecto tentei fazê-lo tremer um bocadinho. Tudo saíu bem."

Foi assim, desta forma simples, que o comandante da CCaç 3327 recebeu o seu baptismo operacional na Mata dos Madeiros.

Para mim nunca foi importante que o comandante da companhia alinhasse no mato. Os bons líderes manifestam-se de muitas maneiras, entre elas a força do carácter e do trabalho.

O Cap Mil Art Rogério Rebocho Alves era um homem culto e humanista. Impunha disciplina com uma palavra amiga e compreensiva. Isso não o impedia de usar, em casos mais extremos, o RDM. Muito raramente o fez. Na sua missão principal fazia tudo o que lhe estava ao alcance para minimizar a miséria que era a nossa luta na Mata dos Madeiros.

A forma como ele fez a sua primeira saída para o mato dignificou o homem, o militar e o comandante.

José Câmara
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6484: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (19): Baptismo de fogo adiado

8 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro José,

Esta maneira que tens de contar as tuas histórias de guerra é de quem se dá bem com a sua memória. É de quem tem bem vincados princípios humanistas. E de quem procura compreender os outros tentanto colocar-se na sua pele.
A maldadezinha ao capitão, fazendo-o suar as estopinhas, está, certamente, perdoada!!!

Um abraço amigo do
Carlos

Anónimo disse...

... Cordeiro

Anónimo disse...

Caro José Câmara.

Revejo neste teu texto o meu GrComb. e o teu procedimento igual ao alferes que me comandava.

Fomos na minha Ccaç. os mais sacrificados pelo facto de termos o alferes como 2º Cmdt. , e como fomos infelizes com o “senhor” que comandava a Ccaç. porque era alérgico a saídas para o mato, resultava que muitas saídas eram impostas ao alferes Cmdt. do meu grupo, que podia sair com outro GrComb. que não o nosso, mas que sempre que tal sucedia, lá íamos nós.

Um dia, depois de mais um dia no mato, e ao chegarmos, nem deu para percebermos como, o alferes recebe mais uma ordem de saída, já uns bebiam a sua cerveja e outros iam ao banho, a ordem lá veio.

-Tá a preparar para sair, vamos a Farim!

E eu a pedido dos meus camaradas lá fui ter com o alferes, questionando o porquê de sermos nós a ter que ir, porque havia GrComb. que tinham descansado, e veio a resposta.

-Marinho, vocês têm razão, sou eu que tenho de ir, mas não saio para o mato a não ser com o meu GrComb., só tenho confiança em vocês!

E de facto nunca saiu sem nós, foi um excelente Comdt. de GrComb. e de certeza que tu também o foste, embora como furriel, e nas circunstâncias que a isso te obrigaram.

Tem um bom convívio com os teus camaradas.

Um grande abraço

Manuel Marinho

Anónimo disse...

Sacrifícios à parte, relevar a forma inteligente como resolveste o problema.
As reacçãoes emocionais que se seguem a momentos de decisões acertadas mas difíceis, serão depois digeridas pelos teus homens que te ficarão ( ficaram) a respeitar mais.
Um abraço,Camarada

Vasco A.R. da Gama

Anónimo disse...

José Da Camara

Será caso para dizer"para bom entendedor...meia palavra basta".Assim foi com o teu Capitão que, pelo relato, era um bom entendedor e um digno Comandante de homens.
Quanto ao excesso de trabalho que tinhas(eis),não sei porque te queixavas.Não era já verdade na altura que o trabalho dá saúde e ao ar livre muita mais?! Pois então,só te estavam a promover a dita.

Um abraço
Luis Faria

Anónimo disse...

Caro José Câmara

Mais uma vez aqui vai o meu aplauso por mais uma bela prosa das tuas andanças na Mata dos Madeiros e bem assim, pela tua sabedoria em contornares as dificuldades.

Grande abraço

Jorge Picado

Unknown disse...

Caro Zé
Nem todos tivemos a sorte de ter gente dessa à nossa beira.

Jorge Fontinha disse...

José.

É com agrado que te vejo com mais animo e vontade de voltar a escrever e sobretudo relembrar, o que é optimo.Parabens, pelo texto e em particular pela história que por ser real mais enobrece os intervenientes.É sempre um prazer enviar-te aquele abraço de amizade.

Jorge Fontinha