1. Mensagem de José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 26 de Junho de 2010:
Meu caro e amigo Carlos Vinhal,
Cá estou de volta a dar-te algum trabalho.
É uma história simples. O seu significado está muito para além das palavras.
Dentro de dias irei abraçar alguns dos protagonistas aqui mencionados. Ao fim de 37 anos!
Para ti e para os nossos camaradas um abraço imenso,
José Câmara
Memórias e histórias minhas (20)
Liderança e voluntariado de mãos dadas na Mata dos Madeiros
A emboscada ao grupo da 26a. CCmds junto ao nosso acampamento na Mata dos Madeiros trouxe alterações significativas à nossa actuação. Entre elas tiveram significado especial o reforço das escoltas ao Bachile e ao grupo que, diariamente, juntava a lenha para a cozinha. Porém, o esforço maior adveio do começo da picagem da estrada e da protecção próxima das máquinas e dos trabalhadores em serviço na estrada. Esta nova missão, a nível de um grupo de combate, era protagonizada por um dos grupos regressados do mato, e prolongava-se até às seis horas da tarde. Os postos de sentinela noturnos já eram reforçados com três elementos. Outra consequência não menos significativa foi o facto dos grupos de combate nas saídas de vinte e quatro horas terem o seu quadro completo de graduados.
Como consequência de todo este reforço de trabalho, os nossos soldados sem dúvida os mais sacrificados, passaram a actuar quase continuamente. O seu esforço passou a ser compensado com 12 horas de descanso a cada 12 dias de trabalho contínuo. Os graduados eram mais felizardos nas noites passadas no acampamento porque só tinham que fazer uma ronda nocturna. Comum a todos os operacionais foi o reforço das rações de combate que passou de uma em cada 48 horas, para duas e meia em cada 72 horas.
A 28 de Abril de 1971 escrevi à minha madrinha de guerra o seguinte:
"Esta manhã voltei de uma operação (24 horas), para voltar ao mato durante o dia (12 horas). No regresso voltei a sair numa escolta aqui perto (o Bachile distava cerca de 10 Kms do primeiro acampamento). O trabalho está a ser durinho, mas vai-se cumprindo da melhor maneira. Amanhã vou novamente para o mato; depois de amanhã devo descansar para voltar a alinhar mais quatro dias seguidos para o mato."
A primeira destas quatro saídas aconteceu porque o Comandante da Companhia, Cap Mil Rogério Rebocho Alves pediu-me para substituir no 2.°Pel o Alf Mil Agostinho Barata Neves por impedimento deste. Integrar aquele pelotão não era problema. Comandá-lo era. Os furriéis João Cruz, Fernando Silva e Joaquim Fermento eram competentes e, qualquer um deles, à altura de comandar o grupo. A fim de evitar mal entendidos com os meus camaradas, pedi autorização para levar a minha secção completa. Era, julgo eu, a forma mais correcta de assumir, como graduado mais antigo, o comando de um grupo que não era o meu. O Comandante da Companhia compreendeu e anuíu.
Foi assim que a minha secção saiu 'voluntariamente' para o mato sem que o pessoal soubesse das razões. Durante os próximos quatro dias só regressávamos ao acampamento para abastecimento de água e ração de combate.
Quando regressámos da primeira das quatro saídas, o 1.º Cabo José Leonardes, um excelente homem e militar, aproximou-se e disse-me sensivelmente o seguinte:
- O pessoal da nossa secção não percebe porque teve que ir para o mato só porque o meu furriel se ofereceu como voluntário. Nós já estamos sobrecarregados com trabalho. Eu acho que eles têm razão.
Perante esta manifestação correcta de desacordo, respondi:
- Eu não fui voluntário. O nosso Capitão pediu-me que o fosse. Nesta companhia eu sou, talvez, o único que não pode tentar negar-se a um pedido dele. Quanto a vocês eu só posso acrescentar que vos treinei e sei o que cada um é capaz de fazer. Tens razão numa coisa: O meu problema não pode ser o vosso. Qualquer outra explicação sobre este assunto serão vocês que a terão que descobrir e compreender. A partir de hoje, sempre que eu tiver que alinhar fora do grupo, vocês não terão que me acompanhar.
Nunca saí para o mato sem a minha secção. Os meus homens compreenderam que eu estive sempre ao lado deles. Também compreenderam que eu, tal como eles, era um açoriano com alguma responsabilidade acrescentada.
Finda a conversa com o Leonardes, enquanto me preparava para regressar ao mato, desta vez com o meu grupo, o Comandante da Companhia informou-me que o Alf Mil Francisco João Magalhães, comandante do grupo, tinha adoecido e que eu teria que comandá-lo. Essa informação originou um diálogo que não esteve muito longe deste:
- Meu capitão, o grupo não deve sair desfalcado de um graduado.
- Vai ter que ser pois não tem ninguém preparado para te ajudar.
- Meu Capitão, temos um que eu sei estar sempre preparado para qualquer eventualidade.
-Quem? - perguntou o comandante. Eu não respondi. O capitão encaminhou-se para a sua G3, pôs o cinturão com as cartucheiras, o cantil e duas granadas de mão. De seguida dirigiu-se ao depósito de géneros para recolher a sua ração de combate.
A 3 de Maio de 1971 escrevi à minha madrinha de guerra o seguinte:
"A saída de ontem teve um bom aliciante. O comandante da companhia resolveu acompanhar-nos pela primeira vez. Claro está que se andou um bocadinho mais que o normal. Tivemos interesse em que ele visse alguns aspectos da mata por onde andávamos. Rapazes novos tudo podem, como se costuma dizer, e como eu guiava a coluna no seu trajecto tentei fazê-lo tremer um bocadinho. Tudo saíu bem."
Foi assim, desta forma simples, que o comandante da CCaç 3327 recebeu o seu baptismo operacional na Mata dos Madeiros.
Para mim nunca foi importante que o comandante da companhia alinhasse no mato. Os bons líderes manifestam-se de muitas maneiras, entre elas a força do carácter e do trabalho.
O Cap Mil Art Rogério Rebocho Alves era um homem culto e humanista. Impunha disciplina com uma palavra amiga e compreensiva. Isso não o impedia de usar, em casos mais extremos, o RDM. Muito raramente o fez. Na sua missão principal fazia tudo o que lhe estava ao alcance para minimizar a miséria que era a nossa luta na Mata dos Madeiros.
A forma como ele fez a sua primeira saída para o mato dignificou o homem, o militar e o comandante.
José Câmara
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 28 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6484: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (19): Baptismo de fogo adiado
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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8 comentários:
Meu caro José,
Esta maneira que tens de contar as tuas histórias de guerra é de quem se dá bem com a sua memória. É de quem tem bem vincados princípios humanistas. E de quem procura compreender os outros tentanto colocar-se na sua pele.
A maldadezinha ao capitão, fazendo-o suar as estopinhas, está, certamente, perdoada!!!
Um abraço amigo do
Carlos
... Cordeiro
Caro José Câmara.
Revejo neste teu texto o meu GrComb. e o teu procedimento igual ao alferes que me comandava.
Fomos na minha Ccaç. os mais sacrificados pelo facto de termos o alferes como 2º Cmdt. , e como fomos infelizes com o “senhor” que comandava a Ccaç. porque era alérgico a saídas para o mato, resultava que muitas saídas eram impostas ao alferes Cmdt. do meu grupo, que podia sair com outro GrComb. que não o nosso, mas que sempre que tal sucedia, lá íamos nós.
Um dia, depois de mais um dia no mato, e ao chegarmos, nem deu para percebermos como, o alferes recebe mais uma ordem de saída, já uns bebiam a sua cerveja e outros iam ao banho, a ordem lá veio.
-Tá a preparar para sair, vamos a Farim!
E eu a pedido dos meus camaradas lá fui ter com o alferes, questionando o porquê de sermos nós a ter que ir, porque havia GrComb. que tinham descansado, e veio a resposta.
-Marinho, vocês têm razão, sou eu que tenho de ir, mas não saio para o mato a não ser com o meu GrComb., só tenho confiança em vocês!
E de facto nunca saiu sem nós, foi um excelente Comdt. de GrComb. e de certeza que tu também o foste, embora como furriel, e nas circunstâncias que a isso te obrigaram.
Tem um bom convívio com os teus camaradas.
Um grande abraço
Manuel Marinho
Sacrifícios à parte, relevar a forma inteligente como resolveste o problema.
As reacçãoes emocionais que se seguem a momentos de decisões acertadas mas difíceis, serão depois digeridas pelos teus homens que te ficarão ( ficaram) a respeitar mais.
Um abraço,Camarada
Vasco A.R. da Gama
José Da Camara
Será caso para dizer"para bom entendedor...meia palavra basta".Assim foi com o teu Capitão que, pelo relato, era um bom entendedor e um digno Comandante de homens.
Quanto ao excesso de trabalho que tinhas(eis),não sei porque te queixavas.Não era já verdade na altura que o trabalho dá saúde e ao ar livre muita mais?! Pois então,só te estavam a promover a dita.
Um abraço
Luis Faria
Caro José Câmara
Mais uma vez aqui vai o meu aplauso por mais uma bela prosa das tuas andanças na Mata dos Madeiros e bem assim, pela tua sabedoria em contornares as dificuldades.
Grande abraço
Jorge Picado
Caro Zé
Nem todos tivemos a sorte de ter gente dessa à nossa beira.
José.
É com agrado que te vejo com mais animo e vontade de voltar a escrever e sobretudo relembrar, o que é optimo.Parabens, pelo texto e em particular pela história que por ser real mais enobrece os intervenientes.É sempre um prazer enviar-te aquele abraço de amizade.
Jorge Fontinha
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