segunda-feira, 5 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6677: Controvérsias (90): Guerra colonial: os Garcez que (nunca) existiram (Belarmino Sardinha)

1. Mail de hoje, do Belarmino Sardinha (que, para quem não sabe,  trabalhou na Sociedade Portuguesa de Autores, instituição onde se presume tenha conhecido o Mário Cláudio):
 
Carlos,
Envio-te este texto por achar grande demais para comentário, se não for esse o entendimento dos editores, faz-me o favor de o remeteres para os comentários ou pura e simplesmente ignorá-lo.

Um abraço,
BSardinha



2. O ESCRITO QUE NÃO QUERIA TER ESCRITO
 

por Belarmino Sardinha

Vi no blogue, li e ponderei a leitura do belo texto apresentado por um amigo do escritor Mário Cláudio (*) e assinado por este, e é sobre esse texto que quero pronunciar-me.

Tenho pelo escritor Mário Cláudio uma forte admiração e reconheço-lhe a importância na vida de todos nós, trazida pela arte da palavra escrita ou dita através das representações teatrais das peças de que é autor.

Tenho pela pessoa de Rui Barbot Costa o respeito e admiração do ser humano que sempre me pareceu existir na pessoa com quem falei, poucas vezes, mas as suficientes para me aperceber da pessoa que tinha na minha frente. Nunca abordámos o serviço militar obrigatório ou a guerra, desconhecia mesmo que tivesse estado na Guiné.

Porém, o facto de o admirar enquanto escritor e ser humano, leva-me a não deixar passar a sua narrativa (de ficção), não despida de um sentimento generalizado de acontecimentos praticados, ou mandados praticar por um hipotético militar, não só por achar que não corresponde inteiramente à verdade -estando eu enganado e sendo real a sua dimensão carecem de uma melhor fundamentação-, mas por nos tornarem a todos indirectamente culpados.

Vi fotografias publicitadas pelo regime, tinha eu 11 ou 12 anos, onde as coisas aconteciam de forma generalizada mas em sentido contrário. Eram fotografias de interesse do regime para levarem à indignação e possibilitarem alimentar a guerra durante os anos que se seguiram, mas diziam respeito apenas e só a Angola. Não vi fotografias dessas vindas de Moçambique ou Guiné, antes ou durante os anos de guerra nestes locais.

Temos no blogue o relato de um ex-militar que serviu na Guiné, mas viu matarem-lhe um irmão deficiente e o pai. Voltamos a falar de Angola.

Existem fotografias com cabeças cortadas e espetadas em paus, tiradas por um ex-militar fotógrafo, em Angola, estão publicadas em livro e foram alvo de um artigo de imprensa.

O contrário também aconteceu, é certo, em menor número se não mesmo pontual ou selectivamente, mas uma vez mais em Angola. Embora não possa afirmar não ter havido, não conheço nenhuma referência a Moçambique ou Guiné, com excepção de um texto publicado no blogue onde foi descrito a morte dos guias. Não pondo em duvida, ninguém mais se pronunciou ou corroborou esta situação.

Estou em crer que o texto de ficção do escritor Mário Cláudio mais não pretende que alertar e a salientar os excessos que acontecem em qualquer guerra, quando o descontrole emocional e humano ressaltam em situações nem sempre possíveis de controlar, não quero acreditar que está a dar relevância a actos condenáveis cometidos por pessoas de má índole, não só porque é dar-lhes uma importância que não merecem como, uma vez mais, não foram/são, felizmente, a generalidade.

Não podemos ignorar que alimentámos uma ou três guerras durante 13 anos e que estas situações aconteceram nos anos iniciais. Após isso, pugnámos por um princípio generalizado de respeito, se é que existe respeito quando se prende, interroga, tortura e humilha fruto da guerra. Este aspecto dava para muitas outras extrapolações mesmo sem guerra.

Acredito que a narrativa ficcionada do escritor Mário Cláudio em nada faz eco com aqueles que, sem qualquer vivência ou conhecimento de causa não se coíbem de se pronunciarem apelidando de assassinos todos os que foram para a guerra cujo objectivo era só o de matarem e cortarem as cabeças aos pretos.

É bom separarmos as águas. O texto apresentado a frio, sem um conhecimento de quem o escreveu, a razão porque o escreveu ou o tipo de obra a que se destina pode levar a interpretações desajustadas.

Não me compete, nem é esse o meu propósito, fazer a defesa do autor que dela não necessita para nada, mas o meu conhecimento da pessoa custa-me compará-lo a um qualquer político de vão de escada em angariação de votos para uma qualquer eleição, muito mais quando ele próprio, em Bissau ou em outro qualquer lugar da Guiné fez também parte da guerra.


Este é mesmo o escrito que não queria ter escrito, mas de acordo com as disposições e interesses do blogue "Luís Graça e Camaradas da Guiné", devemos contar as nossas vivências e dar a nossa opinião, para memória futura, deixando aos historiadores a recolha do que interessa efectivamente para que possam dar-lhe forma, corpo e vida.

Um abraço
Belarmino Sardinha


[ Revisão / fixação de texto / título: L.G.] (**)
___________________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de  4 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6672: Para o livro de ouro do Capitão Garcez, um inédito de Mário Cláudio

(...) Chega-me a mensagem de um que andou com o Capitão Garcez nas lutas africanas, e transcrevo dele este bocado, “Há muitíssima confusão, o que favoreceu o mito. Vamos pensar. Mas eu não pretendo branquear-lhe a memória, muita atenção, o tipo era um homicida que descobriu, na guerra colonial, a sua coutada, e que se realizou na tortura, no massacre e na matança. A prova está em que nenhum de nós confraternizava com ele, e havia um como que acordo tácito, entre a malta, nesse sentido. Estou a avistá-lo, ainda, sempre isolado, absorvido nas bolinhas de fumo, que atirava para o ar, com aquele rosto de querubim, mas que, se analisado à lupa, apresentava-se destituído de qualquer sentimento. Por que haveria eu de o desculpar? Mas o que ninguém negará é que as cabeçorras dos pretos, espetadas nos paus, a bordejar a picada, funcionavam como um truque da psico, para demonstrar aos rebeldes, convencidos, pelas igrejas evangélicas, de que Deus os conservava invulneráveis às balas, que não beneficiavam do dom da imortalidade e que não eram menos mortais do que nós. Se isto não escusa as atrocidades, é natural que lhes dê, no entanto, uma certa razão, e uma razão patriótica, que constituia aquilo que, na circunstância, se desejava do sujeito. Quem se adiantaria, se não o Garcez, para executar o trabalho sujo, desempenhado sem luvas, e a que não se furtava, por o considerar imprescindível, talvez, e não tanto porque lhe apetecesse?” (...)

6 comentários:

Anónimo disse...

Caro Belarmino:só agora li o 6677. Quem espera sempre alcança? A espera foi infrutífera ou,e ainda,esperemos...
Quem ler isto pensa que algo vai mal no "reino da sanidade mental". Assumo que sim e disso tomo a responsabilidade. Há textos escritos que não o queriam ser e comentários que aparecem por acaso,por ventura, quiçá, como não existências...
Um abraço do Torcato

Luís Graça disse...

Militares como o Alferes Robles que se evidenciaram em Angola, em 1961, ou o Alferes Saraiva, na Guiné, em 1965/66, ainda hoje são figuras altamente controversas, endeusadas por uns, diabolizadas por outros...

Sobre o Alferes Saraiva já aqui pudemos ler alguns excertos, das memórias do Amadu Djaló (que foi seu soldado)...

Sobre o Alferes Robles, leia-se a histórica reportagem do jornalista João Azevedo

Azevedo, João: A Pequena coluna militar comandada pelo moço alferes Robles / João Azevedo. - Reportagem publicada no jornal «O Comércio», de 24 de Março de 1961. Contém fotografia.

In: Angola Mártir / Agência Geral do Ultramar, Câmara Municipal de Luanda; coord. Almeida Santos. - Lisboa : Bertrand (Irmãos) Lda, 1961. - p. 13-14

Falta-nos, no entanto, uma abordagem, menos imediatista, menos datada, mais distanciada e crítica (diria: não hagiográfica) do "herói dos Dembos"...

Esse excerto está disponível no sítio Macua -Moçambique para Todos: http://www.macua.org/livros/sanguecapim.html

Luís Graça disse...

Por razões de ética, que são as nossas, estamos impossibilitados de fazer "juízos de valor" sobre o comportamento operacional, militar e humano de "camaradas nossos"(sic), ou seja, combatentes, individualizados...

No calor das polémicas, temo-nos (a começar por mim) esquecido, às vezes, desta regra básica...Isso não nos impede de relatar, com objectividade, o que vimos e ouvimos lá na Guiné (excepcionalmente, o que ouvimos dizer ou que o lemos, desde que as fontes sejam credíveis)...

Naturalmente, que uma coisa é analisar a decisão A, B ou C dos nossos "comandantes" (digamos, de oficial superior, de major para cima, até ao Com-Chefe), outra coisa é o comportamento individual do militar tal ou tal, combatente (da patente de capitão para baixo)...

Evitaremos expressões como "cobarde", "herói", "assassino", "criminoso de guerra"...
Interessa-nos os factos, as situações, os episódios, e não concretamente o actor A, B ou C... Interessam-nos as tipologias, não o fulano A, B ou C... Interessam-nos os combatentes como personagens, de um lado e do outro... Os da História com H grande, mas também os da história com h pequeno...

Em resumo: o Capitão Garcez nunca existiu, é uma criação literária... Nunca existiu e existiu: ninguém me/nos convence que seja uma criação "ex-nihilo", isto é, a partir do nada. Se calhar, cruzámo-nos com algum Garcez na 5ª Rep...(como eu costumo dizer, com ironia, "em Bissau, longe do Vietname")...

De qualquer modo, nem eu nem ninguém, felizmente, pode impedir que o Rui Barbot Costa, aliás Mário Cláudio, ou o Armor Pires Mota, ou o Álvaro Guerra, ou o Mário Beja Santos, ou o Barão da Cunha, ou o José Brás, ou o António Graça de Abreu, ou o Zé Teixeira, ou o Jorge Cabral, ou o J. Mexia Alves ou qualquer ex-camarada que tenha passado pelo TO da Guiné, escreva sobre a guerra, em prosa ou em verso, em registo heróico, dramático, humorístico ou burlesco... Aliás, essa é uma das funções essenciais do nosso blogue...

Não me interessa se o escritor (ou o escriba...) esteve na frente ou rectaguarda, no "front office" ou no "back office", na Amura ou enm Buruntuma, se foi operacional ou contabilista, transmissões ou informações, capelão ou caixeiro, enfermeiro ou padeiro... Todos pertencemos ao mesmo exército, independentemente do "curriculo militar" ou até do "chumbo" que levámos no corpo...

Ninguém tem o monopólio do conhecimento da "guerra colonial na Guiné", realidade multifacetada e multidimensional que não se esgota na actividade operacional...

E, se calhar, os melhores romances de guerra até nem foram escritos por grandes combatentes... Se assim fosse, unidades de elite como os comandos, os páras ou os fuzos (para não falar dos nossos pilotos e especialistas da FAP...) já teriam produzido alguns grandes escritores de guerra... O talento para conduzir a guerra ou combater é de natureza diferente do talento literário...

Anónimo disse...

Não há nada como ouvir Chernos, Camarás, Baldés, Jankas...etc., para saber o que se passou na realidade.

E a realidade está toda memorizada, relatada, documentada, até os abusos sobre bajudas, lavadeiras etc., os desterros para a ilha das Galinhas, e a atuação da PIDE, é conhecida e divulgadíssima em toda a Guiné.

Passei anos a ouvir histórias contadas por centenas (milhares?) de operários em obras enormes em que trabalhei em toda a Guiné.

Fui cabo milº/furriel, contemporâneo de Alferes Robles, Manuel Alegre, e fiz os mesmos caminhos, e como civil fui contemporâneo de Lobo Antunes e andei por lá (sem armas nem protecção)era tudo relatado sem segredos, como foi WIRIAMU, para radio Argel, Radio Brazaville, radio France Internacional, Praga, Tirana, Moscovo, Pequim...em horários para Portugal e Africa e em horários para as Américas (brasileiro).

Mas tambem li livros de Eric Maria Remarc, vi o Stalone no Vietnam, e vi as declarações de Lobo Antunes, assisto à guerra semanal de Joaquim Furtado...

E chego à conclusão que continua a haver interesses (não sei quais), em Portugal, para a história nunca ser contada aos portugueses, em toda a sua envolvência.

Em Angola e na Guiné tambem há a história oficial do MPLA e PAIGC, e o povo (que vai morrendo)tem a sua própria.

Antº Rosinha

Anónimo disse...

(...e ainda há quem não saiba parar o leitor de cassettes? Hoje, sem que isso constitua avanço ou denúncia, nem no plano político, nem no plano filosófico)

http://www.youtube.com/watch?v=elbzE7Y0Tc0

http://mnjardim.multiply.com/video/item/105/Norte_de_Angola_1961_Massacres_da_UPA_impressionante_video

(e ainda há quem se ponha a apadrinhar -ou a condenar- um lado ou outro sabendo que as guerras revolucionárias eram então lançadas com massacres e outros actos intimidatórios e radicalizantes e inicialmente reprimidas com a mesma medida? Os intuitos eram objectivos, do manual...
há que notar que 'os começos remotos' mais conhecidos, as mortandades do Pidjiguiti, de Mueda e da Baixa do Cassange, podem ser vistos como acções catalizadoras do que se pretende seguidamente - separar pelo trauma e pelo ódio e afugentar a população branca)

SNogueira

(Lamento estar a reiterar o já sabido; afinal é atitude idêntica à que denuncio)

Anónimo disse...

http://mnjardim.multiply.com/video/

item/105/Norte_de_Angola_1961

_Massacres_da_UPA_impressionante_vi

deo