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sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26158: Notas de leitura (1744): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Outubro de 2024:

Queridos amigos,
Confrontado com esta nova linguagem do Boletim Oficial da Província da Guiné que passou a ser omisso quanto à história política, económica e social, reduzindo-se à rotina burocrática, vi toda a vantagem em revisitar o acervo monumental organizado por Armando Tavares da Silva na sua gigantesca obra A Presença Portuguesa na Guiné, 1878-1926. No texto de hoje, são referidos os dois primeiros governadores, Agostinho Coelho e Pedro Ignacio de Gouveia, tiveram que apagar incêndios, sobretudo à volta de Geba e na região do Forreá, são notórios os lugares onde ainda não há presença portuguesa, as hostilidades sucedem-se, exigindo expedições, punições, perdões e tratados de paz, muitas destas iniciativas são pura fantasia, os insubmissos voltarão à carga. A França tudo vai fazendo tudo o que pode para pôr os Fulas revoltosos, aquela região sul ainda é para ela um grande atrativo, para juntar ao Futa-Djalon. Aqui fica o registo de duas governações dificílimas, há pouquíssimo dinheiro, os meios navais são frágeis e até há revoltas no Batalhão de Caçadores nº1, com os oficiais punidos.

Um abraço do
Mário



O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (2)

Mário Beja Santos

Estamos agora no Governo de Agostinho Coelho, ele é o 1.º Governador da Guiné como província independente de Cabo Verde, desembarca em Bolama a 20 de abril de 1879. Começa por mexer no dispositivo militar, constituiu o Conselho do Governo, a província da Guiné é dividida em quatro concelhos: Bolama, Bissau, Cacheu e Bolola, Bissau compreende a vila de S. José e o presídio de Geba, Cacheu inclui, além da praça deste nome, os presídios de Farim e Ziguinchor e as povoações de Mata, Bolor enquanto Bolola inclui Sta. Cruz de Buba e todos os mais pontos que venham a ocupar-se no Rio Grande, era esta a divisão administrativa da Guiné autónoma. É claro que havia porções do território ainda não ocupadas, outros com presença duvidosa, e esta situação irá perdurar por algumas dezenas de anos. A divisão administrativa levantou críticas e o Governador seguinte, Pedro Ignacio de Gouveia, fará alterações.

Melhorou o equipamento naval, havia a canhoneira Rio Lima, vai chegar o vapor Guiné, o Rio Lima regressará a Cabo Verde. O coronel Agostinho Coelho tinha à sua espera problemas que requeriam inadiável solução, era indispensável garantir um quadro de normalidade em Buba, os Futa-Fulas impunham tributos aos negociantes. O Governador procurou fazer tratados com régulos, havia pretensões territoriais francesas no sul, o Governador deixou um documento esclarecedor sobre a situação existente no Rio Grande:
“É uma das zonas mais produtivas da província; as suas margens são povoadas até muito para o interior por tribos laboriosas e agrícolas e convém a todo o custo dar-lhe segurança e proteção. Há nas margens deste rio 53 feitorias portuguesas e francesas, onde vão muitos navios à carga; porém, estes agricultores, têm vivido até hoje expostos aos vexames dos Futas, os quais, em diversas épocas do ano, percorriam os vários estabelecimentos e exigiam, mesmo à mão armada, o tributo a que eles chamam dacha. Cobravam a título de senhores do território um imposto de proximamente 12 mil pesos, e os cofres da província nada lucravam. Como medida de transição, determinei que a importância da dacha fosse paga pelos negociantes por uma comissão composta da autoridade militar de Buba e de três negociantes, competindo a esta comissão reunir, em determinado dia do ano, os principais chefes Fulas e Futas, a quem distribuiria com o simples caráter de presentes, alguns donativos em panos, armas, e bijutarias, uma parte do produto do imposto, entrando na Fazenda o resto, quando o houvesse.” E mais adiante dirá que houve resistência dos negociantes franceses que tentaram atrair os chefes indígenas para ações de descontentamento.

O Governador empregou esforços para a ocupação do Rio Grande, assinou em Buba o tratado de paz com os régulos de Biafadas e com o chefe principal do Forreá. O Governador informa Lisboa que com este tratado terminava uma guerra encarniçada entre etnias. Mas havia continuidade de problemas em Geba, encontravam-se em guerra Fulas-Pretos e Mandigas. Atenda-se a um parágrafo de um documento que Agostinho Coelho mandara ao Governo: “Geba era antigamente o principal centro de resgate do ouro e do marfim na Guiné; hoje do primeiro aparece muito escassa quantidade e do segundo nem a mínima partícula. Dirigi-me a Geba, e foi aí tal o espanto produzido pela aparição de um navio a vapor que muito do interior vieram inúmeras pessoas verificar tão assombroso facto. Esta romaria de visita ao Guiné durou nos 3 dias em que nos conservámos em Geba. Os Fulas-Pretos e Mandigas andavam em guerra, Agostinho Coelho reforçou a defesa de Geba. Dá-se a sublevação do Batalhão de Caçadores n.º 1. O capitão e o ajudante suscitavam comentários injuriosos acerca dos actos de Governo da província. Agostinho Coelho aplicou-lhes dois meses de prisão, houve tentativas de levantamento, o Governador respondeu mandando levantar autos do corpo de delito".

Tavares da Silva destaca a dimensão daquela Guiné com o propósito de degredados, estes, por sua vez, eram sujeitos a um tratamento vexatório, o Governador tomou providências para aquilo que hoje se designa reinserção social. Foram efetuados tratados, houve esforço para a pacificação do Forreá, que culminou com o tratado de paz com os régulos do Forreá e do Futa-Djalon. Mas a questão nevrálgica dava pela delimitação da Guiné, havia a presença estrangeira, particularmente a francesa, fazia-se uma enorme pressão para a ocupação de pontos onde a administração portuguesa não se encontrava estabelecida. O Governador pede a Lisboa recursos financeiros; se havia problemas no sul, surgiram novos problemas fronteiriços envolvendo o Senegal. O que se passava no sul era preocupante, o próprio governante comunica que naquele sul era débil o movimento comercial, muita gente a viver em condições miseráveis, o que inaceitável.

Assim se passaram dois anos é nomeado novo Governador, o 1.º Tenente da Armada Pedro Ignacio de Gouveia, toma posse do cargo em dezembro de 1881, após três semanas de permanência no território, manda uma exposição ao Governo, constata que os povos da região estão longe da civilização, fala sobre o cultivo da mancarra, o principal produto agrícola de exportação, manifesta dúvidas que em pouco tempo se faça a substituição desta cultura de um produto pobre como é a mancarra pela cana sacarina, algodão ou café e cacau. Manifestando a sua preocupação sobre as produções agrícolas da província, escreve:
“A árvore que dá borracha e que aqui é abundante também sofre umas incisões primitivas: se na América ainda não compreendem bem a maneira de obter-lhe o líquido sem prejuízo temporário da árvore, aqui o definhamento é quase completo e o produto que sai é perfeito.” Falando do elemento militar ao Governo, é profundamente crítico: “As autoridades subalternas não são sempre aquelas que coadjuvam melhor o magistrado superior da província: o elemento militar tem o seu lado bom e o seu lado mau. Quando o militar não é ilustrado, e que saiu unicamente da fileira, sem noções razoáveis de administração civil, colocado à frente do concelho, vê nos indivíduos que o rodeiam soldados ou, quanto muito, sargentos. Se este indivíduo, entregue aos próprios recursos naturais, e uns hábitos de vida que destoam completamente da sua educação militar, não é vigário a mando, principia a destemperar e, por fim, desproposita, estabelecendo completamente a desarmonia social.” Pede meios de transportes, recorda a dificuldade em obter o combustível apropriados para os navios a favor.

Ignacio de Gouveia lança uma nova expedição contra os Biafadas de Jabadá, a exposição acontece em janeiro de 1882, está ciente de que deu uma lição aos rebeldes, é feita a paz com o régulo de Jabadá, fará outros tratados de paz, é confrontado com novos atritos com os Fula-Forros de Bakar Quidali. Muitos anos mais tarde, no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, Fausto Duarte louva o documento enviado por Pedro Ignacio de Gouveia a Lisboa, dizendo a seu favor: “Espírito lúcido, observador arguto e com uma cultura digna de apreço […] Não faz literatura, nem procura servir-se de artifícios de linguagem para esconder ou mesmo diminuir certas deficiências da administração local. Num período incerto para a vida da província que adquirira a tão almejada autonomia política, mas se via a braços com toda a sorte de dificuldades, era preciso expor ao Governo de Sua Majestade em toda a sua crueza variadíssimas contrariedades que mantinham dentro de certos limites a ação do Governador.”

Mas ainda iremos falar adiante deste Governador, haverá acusações de alegada escravatura, novas desavenças em Geba e Buba, o alferes Marques Geraldes entra em cena, haverá perda do vapor Guiné, operações em Nhacra, a criação de escolas em Bissau e Bolama, dar-se-ão passos na organização administrativa e na ocupação do território.
1902, o Boletim Oficial passa por uma fase burocrática, não há conflitos, não há tensões políticas, é só rotina administrativa
Notícia da chegada de novo governador, em novembro de 1902, o 1º tenente da Armada Judice Biker
Pedro Ignacio de Gouveia
Imagem do que foi o último Palácio do Governador em Bolama

(continua)
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Notas do editor

Vd. post anterior de 8 de novembro de 2024 > 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26128: Notas de leitura (1742): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, até ao virar do século (1) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 11 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26141: Notas de leitura (1743): À descoberta do passado de África, por Basil Davidson (2) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26150: Historiografia da presença portuguesa em África (452): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, continuamos na companhia de Damasceno Isaac da Costa, 1886 (10) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Agosto de 2024:

Queridos amigos,
Impõe-se, antes demais, uma clarificação quanto a estas leituras que envolvem o médico Damasceno Isaac Costa. Tempos atrás, entrei na Biblioteca da Sociedade de Geografia e pedi à sua bibliotecária que verificasse na secção de Reservados se eu já tinha consultado algum documento envolvendo o nome de Damasceno Isaac Costa. E, de facto, descobri que o filho deste oferecera à Sociedade de Geografia documentação do pai, um conjunto de relatórios, começando por 1884. Fui verificar ao blogue e constatei que do relatório constante referente a 1884 fizera uma leitura um tanto abreviada. Ora, no Boletim Oficial, ano de 1886, inicia-se no mês de abril e prolonga-se até novembro, de forma intermitente, a publicação de extratos, perto do final do ano o médico começa a publicar o relatório de 1885. Tenho para mim que estas peças de Damasceno Isaac Costa, possuía o gosto da escrita, era observador com pendor para a etnografia e etnologia, que descreve minuciosamente localidades, neste caso Geba, é merecedor de uma publicação cultural, de fio a pavio de tudo quanto escreveu, é um cronista de mérito, não conheço nada de melhor referente a este período, há na sua arquitetura da escrita algo que lembra a literatura dos navegantes e viajantes que nos deixaram peças primorosas nos séculos XV, XVI e XVII. Dirijo-me a todos aqueles que têm responsabilidades nos estudos africanos de se encontrar uma forma de publicar Damasceno Isaac Costa, para que em Portugal e na Guiné-Bissau se conheça melhor o olhar clínico deste plumitivo tão arguto e entusiasta.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, continuamos na companhia de Damasceno Isaac da Costa, 1886 (10)

Mário Beja Santos

Já se disse ao leitor, e com pesar, que se esperava que o Boletim Official deste ano desse informação quanto à atividade política que iria levar à Convenção Luso-Francesa de 12 de maio desse ano, nem uma só palavra. A grande surpresa passa pela publicação de um espantoso relatório assinado pelo médico Damasceno Isaac da Costa, aparentemente com referência ao ano de 1884 e que extravasa, do princípio ao fim os problemas de saúde pública. Fala sobre a história da Guiné, da importância do rio Geba, descreve a vila e fortaleza de Bissau, é minucioso a descrever o presídio de Geba, as edificações, não conheço outra exposição sobre o presídio de Geba como esta, veja-se a minucia a que chega o médico:
Próxima à residência do chefe do presídio acha-se situada uma casa térrea com dois compartimentos dos quais um funciona de secretaria do chefado e o outro serve para a arrecadação de géneros, cujas condições higiénicas são as mesmas que as das mencionadas casas.
Se em paragens longínquas se exige dos funcionários do Estado de serviços aturados, é também equitativo que lhes seja proporcionada uma habitação, que possua todos os requisitos exigidos pela lei higiénica. O cargo do chefe do presídio, que quase sempre é exercido por um alferes do Batalhão de Caçadores n.º 1, acumula os cargos de administrador, juiz, comandante militar e de destacamento, delegado fiscal e do correio, subdelegado e às vezes de professor do ensino primário, sendo obrigado no desempenho desses variados cargos a decidir questões de ordinário assaz complicadas. O cargo do juiz de povo, ao qual competiam as mesmas funções que ao de Bissau, foi aqui extinto, sendo o mesmo substituído pelo de regedor, desaparecendo desta forma para sempre os vexames e prepotências que os indivíduos investidos das funções deste cargo exerciam contra todos os habitantes do presídio, sem distinção.

A ambulância do Estado, a única que ali existe, funciona numa casa particular, que além de ser húmida não é ventilada, contribuindo muito a falta destes dois elementos para a deterioração dos medicamentos. Para escrituração, possui a ambulância três livros, destinados, um para o registo das faturas de medicamentos do depósito geral, um para a venda pública e outro para os medicamentos fornecidos às praças. Todos estes livros começaram a ser escriturados em 1880, não possuem nem termo de abertura, nem de encerramento, nem rubrica nas respetivas folhas. Por esses factos, e porque se acham escriturados irregularmente, não tem eles valor algum.

A escola régia de instrução primária funcionou ao princípio num compartimento da casa do negociante Manuel António de Barros, oferecido gratuitamente ao professor da escola, o pároco da freguesia, sendo mais tarde as rendas custeadas pelos habitantes do presídio. Atualmente a escola funciona na secretaria do chefado do presídio.
Durante a regência do pároco da freguesia, a escola foi frequentada por mais de 50 alunos, tendo sido publicamente examinados e aprovados na administração do concelho de Bissau dez alunos, ato este que raríssimas vezes tem tido lugar na Guiné.

Abastecem a povoação muitas fontes; há, porém, uma só água potável e esta mesma está situada fora do presídio, a uma légua de distância. Esta fonte denomina-se Estabeiro, e diz-se que na sua proximidade existe uma mina de ferro.
Para os usos culinários, os habitantes servem-se da água do rio, a qual é doce desde Fá no verão, e de todo o rio desde Bissau até Geba no inverno. É tradição oral, que nas proximidades do presídio existem minas de ouro e que em época em que foi abolida a escravatura foram enterradas dentro da praça e no bairro denominado S. Cruz, 40 arrobas de ouro bruto por um negociante português, que perseguido pela justiça por se entregar ao tráfico da escravatura, se internara nos sertões da Guiné para se pôr a coberto da espada da justiça.

Na povoação não há feira nem açougue, mas de tempos a tempos abate-se uma cabeça de gado vacum, que é dividida em quinhões de 8 libras, que se vendem pelo valor de 480 réis.
Acima de Geba e a dez léguas de distância está situada uma aldeia importante, já pelo seu comércio, já pela sua população, denominada Bafatá. É habitada pelos Fulas e negociantes cristãos.
O comércio interno de Geba consiste em cera, couro, marfim, amêndoa de palma, borracha, ouro e outros produtos, que todos os dias à porfia são comprados e transportados para as praças de Bissau e Bolama.
Geba, pelas suas riquíssimas produções, que lhe proporciona o seu ubérrimo solo, concorre mais que nenhum outro ponto da Guiné, para levar aos grandes centros comerciais da Europa as mesmas produções.
A prosperidade de Geba, dependendo, pois, em grande parte do presídio de Geba, convém por todos os meios elevá-lo à categoria a que tem jus, pela importância comercial e industrial.

Entre Geba e Farim existe fácil comunicação. Distanciado um presídio do outro em uma extensão de 20 léguas o trânsito de 8 é feito por terra, de Geba até o rio Tandegú e as restantes 12 em canoas, pelo rio de Farim até o mesmo rio Tandegú. Existe igualmente entre os dois presídios fácil comunicação por terra percorre-se esse trajeto em 48 horas, atravessando os territórios ocupados pelos Fulas e Biafadas. Para encurtar o trajeto fluvial de 60 léguas, que intermedeia entre Geba e Bissau, transita-se 20 por terra da praça de Geba até Fá, em 3 horas, as restantes 40 pelo rio, de Fá até Bissau, em 24 horas.

O alimento principal dos habitantes de Geba consiste em milho painço, arroz, fundo, baguexe e fruto de miséria. Os Grumetes de Geba, imitando os seus antepassados, amam a poligamia, pois a maioria deles casa-se com 7, 8 e 9 mulheres. Estas mulheres, como as dos Papéis de Bissau, são obrigadas a trabalhar incessantemente, não para sustentar, mas para auxiliar o homem e aumentar os seus haveres. É singular a forma que os Grumetes empregam nos seus casamentos. Quando um Grumete quer casar-se, pede em casamento a filha aos pais ou às mestras, e quando eles aceitam o pedido, o noivo envia-lhes 6 cabazes, contendo 60 garrafas de variadas bebidas alcoólicas, quase sempre ordinárias. Decorrido algum tempo, o noivo designa o dia em que deve ter lugar o casamento. O dia aprazado quase sempre ao obscurecer da noite, apresenta-se o noivo acompanhado de alguns convives nas proximidades da casa da noiva e aí pratica o rapto desta última auxiliado pelos ditos convives, que a conduzem para uma casa. Na ocasião em que tem lugar o rapto, o pai e os irmãos da noiva apresentam-se munidos de espingardas, espadas e cacetes para obstar ao rapto, e as mulheres e os demais parentes lamentam o facto em grandes alaridos e procuram a noiva por toda a parte com velas e archotes.

Os Fulas são destros em manejos bélicos e essa qualidade, tem-lhes feito conquistar extensos territórios, que dantes eram ocupados pelos Mandigas e Biafadas. Tanto o homem como mulheres amam excessivamente as bebidas alcoólicas. As mulheres amam tanto as moedas de prata, que longe de as trazerem ao mercado, guardam-nas em muitas dobras de pano, no fundo das suas caixas, que consistem em uns balaios de cana da Índia. As mulheres vestem panos pretos, que lhes cobrem desde a cintura até aos joelhos; trazem dependuradas nas orelhas argolas de latão ou cobre; em seus cabelos cuidadosamente entrançados trazem suspensos como um grande adorno moedas brasileiras ou francesas de 80, 120, 240, 480 e 900 réis; ainda com o mesmo fim, cingem a testa com missangas de variadas cores, e nas mãos e pés 8 a 10 manilhas de latão, e no pescoço enormes voltas de contas de âmbar.
"Para uma Fula casar-se é condição sine qua non provar pelo menos que já foi mãe três vezes, prova frisante de prodigiosa fecundidade, e por esta razão, à semelhança das raças Papel e Mandinga, a herança pela morte do pai passa aos sobrinhos maternos."

Contrato da Companhia de Cabo Verde e Cacheu pela venda de cento e quarenta e cinco escravos - documento do fundo documental do Conselho Ultramarino pertencente ao Arquivo Histórico Ultramarino.
Um pormenor de Bolama na atualidade, um passeio entre ruínas, fotografia de João Campos Rodrigues publicada no jornal Sol, em 2021, com a devida vénia
Uma fotografia de Bissau, século XIX

(continua)
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Notas do editor

Vd. post anterior de 6 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26121: Historiografia da presença portuguesa em África (450): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1886 (9) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 8 de novembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26126: Historiografia da presença portuguesa em África (451): o tecido económico da província em 1951, visto através dos anúncios publicados no suplemento, "dedicado ao Ultramar Português" (218 pp., no total), do "Diário Popular", de 20/10/1961

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26036: Notas de leitura (1734): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1879 a 1880) (24) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Junho de 2024:

Queridos amigos,
Não escondo a deceção de resultados, agora que cheguei ao final das referências do distrito da Guiné, no Boletim Official de Cabo Verde. A Guiné era um mundo à parte, financiava-se pelas alfândegas, não há qualquer menção a obras de desenvolvimento, tem juiz de comarca tardiamente, as menções mais ou menos periódicas são alusivas ao estado sanitário, a varíola e a febre amarela são os grandes problemas, estranhamente a doença do sono é pouco ou nada mencionada. Regista-se uma omissão total ao cerco francês e britânico; em 1880, a Guiné é província autónoma, tem capital em Bolama mas fica-se a saber que ainda está ligada organicamente a Cabo Verde; o mais estranho de tudo é estar a desenvolver-se um certo comércio até à escala internacional, vêm barcos buscar amendoim, borracha, couros, não há uma só alusão à criação de empresas. Na busca de uma certa chave explicativa, consultaram-se as histórias de Portugal, a de Veríssimo Serrão e a coordenada por Joel Serrão e Oliveira Marques, não trazem luz ou mais compreensão aos factos que fomos registando nestas peças, paciência, vamos continuar a investigar.

Um abraço do
Mário



Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1879 a 1880) (24)


Mário Beja Santos

Concluímos hoje a incursão ao Boletim Official do Governo Geral da Província de Cabo Verde e Costa da Guiné, não escondo o meu desapontamento com o tratamento menor que o Governo da Praia, ao longo de décadas, dava ao distrito da Guiné, ficamos a saber muito pouco, e mesmo esse muito pouco exige um tratamento “em grelha” com outros dados históricos e outras fontes. Vejamos as últimas referências que o Boletim dá da Guiné.
O Boletim n.º 12, de 22 de março de 1879, informa sobre o estado sanitário da Guiné: “Em Carabane não existe febre amarela; o último caso desta moléstia observado naquele território ocorreu a 13 de novembro do ano passado. Em Cacheu há alguns casos de febre maremáticas. As moléstias dos órgãos respiratórios que haviam avultado no mês antecedente decresceram em número. Em Geba apareceram alguns casos de varíola; o mesmo se diz ter acontecido em Selho. Em Bissau predominam as pirexias palustres e as úlceras fagedénicas.” Assina Custódio José Duarte, chefe do serviço de saúde.
Como se publicou no número anterior, este mesmo Boletim publica a notícia da morte do major Lobato de Faria.
O Boletim n.º 23, de 7 de junho, faz referência a uma carta enviada por E. Bertrand Bocandé ao ministro da Instrução Pública, propondo uma exposição permanente de etnografia africana no museu.

E chegamos a 1880, vamos ter uma grande surpresa, a Guiné é já uma província autónoma, mas continua ligada a Cabo Verde, como vamos ver.
No Boletim n.º 9, de 28 de fevereiro, o chefe do serviço de saúde em Bolama, António Vincula de Marciano Belles, comunica para a Praia que o resultado sanitário da ilha continua a ser regular e que em toda a província não consta ter aparecido moléstia alguma de caráter epidémico ou contagioso.
De igual teor é o que consta no Boletim n.º 21, de 22 de maio, o estado sanitário da ilha de Bolama continua a ser regular e nada de epidémico ou contagioso apareceu em toda a província.
Com o mesmo teor e palavrório diferente é o que é mencionado no Boletim n.º 43, de 23 de outubro, quem assina é o chefe do serviço de saúde, António Augusto Pereira Leite de Amorim, é regular o estado sanitário da ilha de Bolama e em ponto algum da província há que recear qualquer alteração de salubridade pública.
Um aspeto curioso é o que se insere no Boletim n.º 48, de 27 de novembro, assina o visconde S. Januário, vem tudo a propósito de que o Batalhão de Caçadores n.º 1 do Exército de África passasse a ter o seu quartel em Bolama transferindo-se as forças do regimento de infantaria do Ultramar para Cabo Verde. Ora nunca se chegara a mandar para Cabo Verde as forças do regimento de infantaria do Ultramar. Impunha-se a criação de uma força pública que em Cabo Verde coadjuvasse as ordens das autoridades. Delinearam-se duas companhias de polícia com mancebos do arquipélago de Cabo Verde. E apresentava-se a estrutura destas companhias de polícia.
Temos agora o Boletim n.º 52, com data de 25 de dezembro, o assunto é como nos casos anteriores o estado sanitário da ilha de Bolama, mas junta-se mais informação, o cônsul português em Goreia participara que em S. Luís tinham ocorrido casos de febre amarela nas praças da guarnição, achando-se interrompidas as comunicações entre S. Luís e Goreia. O mesmo cônsul dava conhecimento que o estado sanitário de S. Luís estava a melhorar e que a junta de saúde na Guiné estava a empregar medidas convenientes para impedir a propagação da febre amarela. Assina Leite de Amorim.

Dada a exiguidade de informações de valor socioeconómico e cultural e político, achei por bem consultar duas histórias de Portugal. Na da responsabilidade de Joaquim Veríssimo de Serrão, no seu volume IX (1851-1890), com o título O Terceiro Liberalismo, Editorial Verbo, parece-me útil reter o seguinte: “Uma das medidas da Regeneração, no tocante à Guiné, foi a de criar um lugar de governador para todas as parcelas da mesma região, o qual ficaria sujeito ao Governador Geral de Cabo Verde. Aquele funcionário teria residência em Bissau, cabendo-lhe também visitar as praças de Cacheu duas vezes por ano. Por sentença arbitral de Ulysses Grant, Presidente dos EUA, Bolama foi restituída à soberania portuguesa, e depois passou a gozar de condições especiais para o seu comércio o que levou o Governo a rever as pautas alfandegárias da Guiné, concluíra-se que o regime exageradamente fiscal e protetor de Bolama conduziria à estagnação do comércio nos outros portos.

A situação geográfica e o surto económico permitiam considerar Bolama como a verdadeira capital da Guiné. O território passou a constituir em 1879 uma província ultramarina, independente de Cabo Verde e em igualdade de “considerações e atribuições” do Governo da Província de S. Tomé e Príncipe.

Mudando de obra, faz-se agora referência a Nova História da Expansão Portuguesa, direção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques, o título é “Império Africano, 1825-1840”, coordenação de Valentim Alexandre e Gill Dias, Editorial Estampa. O autor do capítulo sobre a Guiné é Joel Frederico Silveira que nos dá extenso e interessante súmula dos factos numa análise histórica da presença portuguesa durante o século XIX, começando pelos tratados de 1810 e 1815 entre Portugal e a Grã-Bretanha, com a interdição do tráfico de escravos e a tentativa de reconversão económica, daí decorrendo um processo de se querer edificar um espaço colonial e afirmar a soberania portuguesa, todo o século XIX é acompanhado do desafio da constituição de uma aparelho de Estado colonial. Nesta obra disserta-se sobre a região geográfica, as etnias, a longa história da presença portuguesa nas praças e presídios, menciona-se a incapacidade de a Fazenda Nacional satisfazer os encargos com os elementos do parco funcionalismo e guarnição militar e daí a opção pelo arrendamento das alfândegas da Guiné; menciona-se a escravatura, a determinante ação de Honório Pereira Barreto, como se foi manifestando a nova economia pós-esclavagismo, como se deu a intervenção das marinhas da França e da Grã-Bretanha, o capítulo termina dando conta do problema da delimitação das fronteiras na sequência da Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886.

Por curiosidade, fui consultar o Boletim Oficial do Governo de Cabo Verde em 1881, verifiquei que não há qualquer menção à Guiné, vou agora voltar-me para o Boletim Oficial da Guiné Portuguesa a partir de 1880.
Para se entender melhor o que ganhámos e perdemos com a assinatura da Convenção Luso-Francesa de 12 de maio de 1886


sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26010: Notas de leitura (1732): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1877 a 1880) (23) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Junho de 2024:

Queridos amigos,
Não consigo encontrar explicação para as graves omissões sobre os factos políticos que vão ocorrendo neste período, ainda por cima nos relatórios do Governador do distrito da Guiné diz-se sempre que se vive na mais completa serenidade, as preocupações ficam-se na varíola e na febre amarela. Como o leitor terá oportunidade de ver, chega-se ao cúmulo do Governador Geral de Cabo Verde louvar o seu secretário-geral por ter feito um relatório circunstanciado sobre as "ocorrências" de Bolor, das mesmas nunca se fala; este período que vai de 1877 a 1880 é, pois, tempo de gravosos silêncios, é um Boletim Oficial preenchido de formalidades e da burocracia, aqui e acolá artigos de divulgação, já estamos em 1880 e deve ter faltado dinheiro e legislação apropriada para criar a província da Guiné, os destinos da colónia ainda são decididos na cidade da Praia. Ao aproximarmo-nos do final desta incursão, estou em crer que há vantagem em se consultarem algumas Histórias de Portugal para conferir o que nelas se refere sobre este período - haverá seguramente grandes surpresas.

Um abraço do
Mário



Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1877 a 1880) (23)

Mário Beja Santos

Mantém-se este meu estado de incredulidade quanto às graves omissões sobre a real situação do distrito da Guiné neste período, o Boletim Official vai despachando formalidades, nomeações, exonerações, chegadas de degredados, aparecimento de juiz, transferência de farmacêutico, um ou outro louvor, lá se vão publicando sínteses mensais em que tudo parece normal, nem uma palavra sobre o desastre de Bolor mas louva-se quem produziu o relatório; é um quase discreto silêncio o que não se regista neste período e para minha surpresa, e certamente para o leitor, a Guiné é autónoma desde 1879, mas é ainda a partir da Praia que se comanda o seu destino. Vamos aos factos, estamos no ano de 1877.

No Boletim n.º 11, de 17 de março, chegou um juiz à Guiné, como assina o ministro João Andrade Corvo: “Atendendo ao merecimento e mais circunstâncias que concorrem no bacharel formado em Direito Francisco António Duarte de Vasconcelos, advogado nos auditórios de Lisboa: hei por bem, segundo disposto no decreto com força de lei de 28 de dezembro de 1876, nomeá-lo juiz de direito da comarca da Guiné Portuguesa.” No mesmo Boletim anuncia-se a promoção a coronel do governador do distrito da Guiné, António José Cabral Viana. Folheando estes números, também se vai tomando nota de que os casos de varíola são muito intensos, sobretudo em Cabo Verde. Da varíola se fala no Boletim n.º 17, 28 de abril:
“As últimas notícias da Guiné, trazidos a esta cidade pelo cutter Cabo Verde tem a data de 15 deste mês. Não era ali satisfatório o estado sanitário, por isso a epidemia da varíola continuava a fazer estragos, não só no concelho de Bissau, mas também no de Bolama, onde grassava com intensidade. Era regular o estado alimentício e o comércio conserva a sua normal animação. Chegara a notícia de que no chão dos Nalus haviam aparecido casos de uma febre de mau carácter, que alguns supunham ser a febre amarela. Mas os pormenores de que há conhecimento tiram todo o valor a semelhante suposição e fazem crer que tal doença é de outra natureza e tem provavelmente por causa o modo vicioso e até anti-higiénico por que naquele ponto se fazem os internamentos dos gentios. No dia 8 do corrente naufragou no banco denominado Bissássema, no Rio Grande, a barca francesa Pierre, da Praça de Marselha. Havia saído de Bolama no dia anterior com um carregamento de géneros e destinava-se a Marselha. Salvou-se a tripulação e as bagagens, mas a carga reputava-se perdida.”

No Boletim n.º 25, de 23 de junho, de novo más notícias para naufrágios: “Em conformidade com o disposto no código comercial português se faz saber que no dia 14 de maio último naufragara na ponta do oeste na ilha de Bolama na Guiné Portuguesa a barca italiana Meeting, capitão G. Cavassa, propriedade de Jerónimo Jechiofuro, a qual havia saído do porto de Bolama e se destinava a Dunquerque com um carregamento de 33:481 buscheles de mancarra, salvou-se toda a tripulação e respetivas bagagens e tratava-se da salvação da carga.” E para meu pasmo o Boletim Official não volta a falar da Guiné nesse ano.

No Boletim Oficial n.º 30, de 27 de julho de 1878, publica-se um despacho do Governador Geral de Cabo Verde e da Costa da Guiné, António do Nascimento Pereira Sampaio, há que lhe reconhecer interesse:
“Considerando que o distrito da Guiné Portuguesa, pelas condições gerais em que se acha, e pelos vantajosos resultados que do seu melhor e mais rápido desenvolvimento se devem esperar, representa hoje um dos pontos mais importantes desta província, merecendo que por parte dos poderes públicos se lhe preste a mais séria atenção;
Cumprindo a este Governo Geral, não só em execução de determinações do Governo da metrópole, mais ainda no intuito de concorrer pelo modo mais profícuo para a mais breve realização dos veementes desejos que animam o Governo de Sua Majestade, promover os meios mais adequados para se conseguir o fim que se tem em vista, qual o de se dar o melhor, mais rápido e completo desenvolvimento aos interesses da Guiné Portuguesa, etc. etc.:
Hei por conveniente nomear uma comissão
(aparecem claramente referenciados os nomes) que estudará os assuntos relativos à Guiné Portuguesa, em harmonia com o questionário que lhe será dirigido por este Governo Geral e me apresentará um relatório dos seus trabalhos, indicando a opinião que tenha por melhor sobre os vários pontos do questionário e ainda quaisquer considerações que julgo de utilidade no assunto importante que se trata. As autoridades e mais pessoas a quem o conhecimento e execução da presente competir, assim o tenham entendido e cumpram.”

No Boletim n.º 34, de 24 de agosto, voltamos às informações de saúde pública, quem assina é António José Cabral Vieira, Governador do distrito da Guiné: “O estado sanitário deste distrito do meu governo é bom, relativamente aos outros anos da igual estação. As águas têm caído abundantes e quase sem interrupção desde o princípio do mês passado, alagando os campos. Por isso os pântanos, lavados diariamente por fortes correntes, não têm influído contra a saúde pública. O estado alimentício é mau, mas breve começará a abundância com a próxima colheita de milho.” E nada mais a assinalar deste ano.

No Boletim n.º 6, de 28 de fevereiro, somos informados da suspensão de funções do Governador da Guiné, Cabral Vieira, e nomeado provisoriamente para o substituir o major Joaquim José Lobato de Faria. Será ele a assinar a informação sobre o estado do distrito que vem publicado no mesmo Boletim: “Cabe-me a honra de dizer-lhe que tanto o estado sanitário como o alimentício são regulares, reinando perfeita tranquilidade, e que apenas se nota a escassez dos géneros da Europa, devido à falta de comunicação com os navios que de diferentes pontos têm afluído a este porto, e se acham de quarentena de observação, por haverem tocado por escala nas possessões estrangeiras, onde grassou a epidemia da febre amarela. De Cacheu, cujas notícias alcançam a 7 do corrente, informa o respetivo administrador do concelho que são regulares o estado sanitário e alimentício, e inalterável o sossego público, e que só no presídio de Ziguinchor tiveram lugar, a 31 de janeiro último, o falecimento de uma mulher com varíola, vinda havia dias da praça de Selho.”

No Boletim n.º 9, de 1 de março, consta o despacho do Governador Geral: “Tendo o secretário-geral deste Governo Geral, António Maria de Castilho Barreto, sido encarregado em portaria do mesmo Governo no n.º 15, de 18 de janeiro último, de seguir para a Guiné Portuguesa, a fim de se indicar de tudo quanto se prende ou os factos que motivaram as ocorrências de Bolor, e havendo aquele funcionário regressado a esta cidade e feito subir à minha presença o processo da sindicância e circunstanciado relatório sobre o resultado final da sua comissão, que muito bem desempenhou; hei por conveniente louvar este secretário-geral pela maneira por que cumpriu todos os artigos das instruções que lhe foram dadas.”

Fiquemos agora por aqui, é grande o pasmo de se falar do relatório acerca do chamado desastre de Bolor e não haver uma palavra antes nem depois sobre uma tragédia que levou o Governo de Lisboa a desafetar a Guiné de Cabo Verde.

Notícia da morte do major Lobato de Faria, Boletim Oficial nº12, 22 de março de 1879
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Notas do editor

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quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26001: Historiografia da presença portuguesa em África (445): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, últimos meses de 1883 (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de julho de 2024:

Queridos amigos,
O Governador Pedro Ignácio de Gouveia pautou-se pela firmeza, pelo diálogo, fora-lhe aparecendo colaboradores competentes, os acontecimentos bélicos no Forreá perderam intensidade, dir-se-á que o governador teve sorte, mas também fez por isso. Obstinou-se junto do Governo de Lisboa para haver uma nova divisão concelhia, esta, que vem totalmente referida no texto que se junta, merece ser refletida, temos aqui uma forma rigorosa de avaliar o que era a presença portuguesa na Guiné, a redação do documento é cuidadosa referindo sem prazos nem meios que poderá haver estabelecimentos a fundar-se, outros pontos a ocupar, ainda não havia fronteiras, era tudo uma nebulosa, à cautela fala-se da nossa presença no Casamansa, não há uma só palavra sobre a Península do Cacine. Não deixa de ser tocante a peça de teatro que entusiasmou a população de Buba, a propósito do dia natalício de sua alteza o Príncipe Real. E a solidariedade não era palavra vã, como se viu a recolha de dádivas para socorrer as vítimas da estiagem em Cabo Verde.

Um abraço do
Mário



A Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, últimos meses de 1883 (4)


Mário Beja Santos

Ao longo deste ano, como se referiu anteriormente, foram sendo introduzidas alterações de monta na vida organizativa da província, um caudal de regulamentos e regimentos, e pelo Boletim Oficial n.º 34, de 25 de agosto, surge a divisão concelhia da Guiné, quatro circunscrições com a denominação de concelhos: - Bolama, com sede na ilha do mesmo nome, compreendendo a denominação denominada Colónia, ilha de Orango, todos os pontos ocupados na margem esquerda do Rio Grande, desde a feitoria D. Amélia até ao fim dos domínios de Portugal, fronteiro ao arquipélago dos Bijagós, e bem assim tofos os estabelecimentos vierem a fundar-se no dito arquipélago; - Concelho de Bissau, compreendendo a vila de S. José, o presídio de Geba, Fá e S. Belchior e todos os demais pontos ocupados ou a ocupar nas margens dos rios de Bissau, do Corubal e do Geba; - Concelho de Cacheu, com sede em Cacheu, formado pela praça do mesmo nome, pelos presídios de Farim e Ziguinchor, pelas povoações de Mata e Bolor, e por todos os pontos ocupados, ou que de futuro vierem a ser ocupados nas margens dos rios de Farim e de S. Domingos; - Concelho de Bolola, com sede na povoação deste nome, compreendendo Sta. Cruz de Buba e todos os pontos que de futuro forem ocupados na margem direita do Rio Grande.

Temos procurado não ser repetitivos quanto à descrição de nomeações e exonerações, autorizações para férias, movimento criminal, chegadas e partidas de navios, receitas alfandegárias, quadros de situação locais, em que se fala do estado sanitário, alimentício, comercial, sossego público, obras públicas e municipais, agricultura e ocorrências policiais. Mas não deixa de ser bastante curioso o boletim de informação referente ao mês de agosto de 1883, constante do Boletim n.º 38, de 22 de setembro, assina o administrador do concelho de Bissau, que também já vimos como comandante militar, Carlos Maria de Sousa Ferreira Simões:
“O comércio tem corrido pouco animado, o que não é para estranhar por não ser esta a estação própria. As chuvas, que têm sido torrenciais, têm causado algum atraso à agricultura. Há sossego em todo o concelho, exceto nas imediações de Geba, onde ainda se conservam os Fula-Forros, capitaneados por Bakar Kidaly, auxiliando os Biafadas contra os Fula-Pretos. Bakar Kidaly enviou emissários ao régulo Dembel e ao seu chefe de guerra – Mussá, Fula-Preto, propondo-lhe paz. Supõe-se que estra proposta será aceite.

Os mouros principais de Begine foram expressamente a Geba visitar o chefe daquele presídio, o alferes Marques Geraldes, e agradeceram-lhe a proteção que ele tem dispensado, dentro da praça, aos indivíduos daquela raça que lá vão negociar.
A última guerra contra os Balantas está produzindo os efeitos desejados.

Há dias, um soldado do destacamento, movido pela embriaguez, furtou um pano a um Balanta de Oco. O gentio, sem dizer uma só palavra ao soldado, dirigiu-se à secretaria da administração do concelho e queixou-se; mandei indagar que soldado tinha sido e na presença do próprio gentio o mandei prender e dei ao Balanta um pano novo na substituição do roubado, que era muito velho. Na tarde do dia imediato voltou o mesmo Balanta à administração, então acompanhado de outros indivíduos da sua raça e disse que me vinha pedir para que eu fosse à sua terra porque desejava que todos lá me conhecessem, e que eu havia de ser seu hóspede. Respondi-lhe que lá iria passando a estação invernosa.
Registo este facto por ser mais uma prova além das muitas que já tenho de que estes homens, apesar de verdadeiros selvagens, conhecem bem quando com eles se procede com justiça e imparcialidade.”


No Boletim n.º 44, de 3 de novembro, consta uma circular difundida pela Secretaria Geral do Governo, que foi também difundida pelos comandantes militares de Cacheu e Buba e chefes de presídios:
“Sua Excelência, o Governador, encarrega-me de dizer a vossas Senhorias, para os devidos efeitos, que não se dê nunca preferência a uma raça gentílica sobre outra, salvo quando elas se diferenciarem nas melhores ou piores relações com o Governo pu pelo seu procedimento para com o comércio da província. A proteção do Governo é igual para todos sem distinção de tribos de nações ou raças, enquanto dela não desmereçam.”

Voltando um pouco atrás, ao Boletim n º 40, de 6 de outubro, da administração do concelho de Buba, assinado pelo administrador Ventura Duarte Barros da Fonseca, reserva estes parágrafos, guardam a sua eloquência:
“No dia 28, natalício de sua alteza o Príncipe Real, e da última vitória de guerra contra os Fulas teve lugar pelas 20h30 uma récita dada pelos oficiais interiores do destacamento, sendo grátis a entrada.
Constando que o 1.º sargento, Policarpo Augusto da Silva, pretendia abrir um pequeno teatro, não pude deixar de o animar, não só por ser instrutivo divertimento, mas porque atos públicos moralizadores civilizam.
À hora indicada, entrei no dito teatro e foi para mim muito agradável ter aproximadamente 50 pessoas de ambos os sexos na plateia, bem-trajadas, no maior silêncio, admirando a casa com muito apuro condecorada, e como que ansiosos por o correr do pano.
Sentando-me no lugar que me estava destinado, junto do palco, como comandante-militar, logo se deu o sinal para correr o pano e seguiu-se a representação de cenas cómicas e poesias, que durou até à meia-noite; correndo tudo na melhor ordem, prestando-se todo o entusiasmo e atenção tanta, que pessoa alguma saiu para aproveitar os intervalos.
Assistiram alguns habitantes das pontas, o rei dos Mandingas, o qual esteve sempre em pasmo, dizendo-me por fim que desejava que eu o convidasse para as outras récitas.”


Aproximamo-nos do fim do ano, retenho que o seu indiscutível interesse do Boletim n.º 49, de 1 de dezembro, o ofício do comandante militar de Buba, tenente Bernardo Francisco Luís da Cruz, ele acabara recentemente de ser nomeado administrador e comandante-militar do concelho. E tece algumas considerações:
“A decadência do tráfico mercantil ocasionada pelas últimas guerras feridas no Forreá vai desaparecendo, tendo atualmente o concelho um novo aspeto, concorrendo a ele muitos Fulas que vêm comerciar vários géneros coloniais, como arroz, manteiga, gado vacum, couros, cera e borracha, permutando-os por fazendas, tabaco, aguardente, etc. etc., com as casas comerciais Blanchard & Cª e outras. A principal agricultura do concelho é a da mancarra e milho fino.
Tratando do estado da praça, sou de dizer a Vossa Excelência que a paliçada está em bom estado, ficando o material de guerra armazenado em casa do comandante-militar, por ser de maior segurança. Torna-se de urgente necessidade que seja construído um aquartelamento para 60 praças e vários consertos no aquartelamento que hoje existe; bem como uma enfermaria com a competente cozinha e utensílios correspondentes.
As casernas acham-se totalmente arruinadas, aquartelando-se as praças em grupos de três em pequenas cubatas fabricadas pelos soldados, no recinto do aquartelamento.”


E assim termina o ano de 1883, neste volume consta um documento de precioso valor moral intitulado A Fraternidade da Guiné a Cabo Verde, foi-lhe dedicada a socorrer as vítimas da estiagem da província cabo-verdiana, é número único, tem uma tiragem de dez mil exemplares, data de Bolama, 31 de outubro. A solidariedade praticava-se.

Pedro Ignácio de Gouveia, distintíssimo oficial da Armada, sucede a Agostinho Coelho como Governador da Guiné (será Governador entre 1881 e 1884). A primeira vez que me confrontei com a sua prosa, e que muito me impressionou, foi a carta que ele dirigiu ao ministro da Marinha e Ultramar referindo a viagem do alferes Marques Geraldes até Selho (hoje no Senegal), para ir buscar mulheres raptadas de um parente do régulo local, é um belíssimo documento.
Estabelecimentos portugueses em Buba, no Rio Grande, profundamente afetados pela guerra do Forreá
A canhoneira Guiné, 1879-1883
Bafatá, avenida principal com igreja matriz reformulada por Eurico Pinto Lopes/GUC, 1950.
Foto de Ana Vaz Milheiro, 2011, com a devida vénia
Edifício do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, imagem postal da época colonial.
Bilhete Postal, Coleção “Guiné Portuguesa, 143”
Edifício do Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau (na atualidade)
A fonte pública de Bafatá, 1918. Imagem conservada no nosso blogue

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 25 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25980: Historiografia da presença portuguesa em África (444): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, inícios de 1883 (3) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25988: Notas de leitura (1730): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1876) (22) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Junho de 2024:

Queridos amigos,
O que há de mais significativo neste ano de 1876 são as continuadas guerras interétnicas que abarcam Cacheu e Farim, há uma permanente instabilidade à volta do presídio de Geba, o quadro sanitário conhece altos e baixos, não fica claro quais as razões que impedem a vacinação, o médico de saúde pública diz que os chefes de família terão temores ou preconceitos. O Governador da Guiné, Cabral Vieira, tem sido pendular em enviar os seus relatórios para a cidade da Praia. Deverá pretender tranquilizar o Governador de Cabo Verde, fala repetidamente na tranquilidade pública em todo o território, isto a despeito de hostilidades que também ocorrem na Península de Bissau. Estranha-se o silêncio sobre tudo quanto se podia estar a passar em Bolama e não há uma só palavra quanto à questão do Casamansa, para quem folheia estes números do Boletim Oficial (não é demais referir que as coleções não estão completas) é um enigma sem solução, mesmo que se publiquem notícias sobre o movimento marítimo, nomeações para as alfândegas ou chegadas e partidas militares e até as receitas decorrentes das alfândegas, Bolama já tem algum peso. Como é evidente, um Boletim Oficial vale pelo que vale, é uma fonte documental entre outras, só o seu cruzamento é que permite uma clara iluminação dos factos em presença.

Um abraço do
Mário



Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1876) (22)


Mário Beja Santos

Estamos em meados do ano de 1876, temos novo Governador Geral de Cabo Verde e da Costa da Guiné, o senhor Conselheiro Guilherme Quintino Lopes de Macedo, é ele a quem agora o Governador da Guiné Cabral Vieira se dirige, tudo isto é matéria do Boletim Official de 17 de junho, o governador Cabral Vieira dirige-se assim para quem governa na cidade da Praia:
“Tenho a honra de participar a V.ª Ex.ª que à saída do cutter Cabo Verde deste porto para a cidade da Praia, é regular o estado alimentício, bem como o comercial, sendo anormal o estado sanitário em consequência da epidemia varíola que se tornou extensiva a todos os três concelhos de que se compõe o distrito. A tranquilidade pública não tem sido alterada, apesar de continuarem as guerras entre os gentios. No dia 26 de maio deu-se um caso de desordem entre dois gentios Papéis que brigavam nesta vila e os soldados de patrulha que os pretendia apartar. Aqueles, desobedecendo à voz de prisão, insultaram e bateram nos soldados e estes indignados lhes aplicaram pranchadas com as espadas baionetas de que se achavam armados. Em resultado, são feridos três soldados, não só pelos gentios desordeiros, mas por outros que se aglomeraram no local da desordem, arremessando pedradas contra os mesmos soldados, bem como três gentios, mas creio que sem perigo de vida. Os soldados vão responder a conselho para ilibarem a sua conduta; e quanto aos gentios feridos nem sequer pôde conseguir que levantasse o auto de exame e corpo de delito, por isso se invadiram com receio talvez de serem presos.
Para prevenir que não houvesse interrupção de relações para os gentios, mandei chamar o respetivo régulo, fazendo-lhe ver quanto andara mal a sua gente, e a conveniência de serem reprimidos e castigados os delinquentes, no que concordou, e se despediu, prometendo fazer justiça, e assegurando que por esse facto não suspenderia as relações de amizade com o Governo.
Em Cacheu houve no dia 12 deste mês princípio de incêndio no quartel do destacamento, que felizmente foi extinto pelos habitantes da Praça, que voluntariamente ali se aglomeraram, não deixando prejuízo a lamentar.”


O Boletim Official n.º 32, de 5 de agosto, traz informação sobre o estado do distrito:
“É regular o estado comercial e sofrível o alimentício, havendo, todavia, escassez de mantimentos nos mercados, em consequência de se acharem os gentios entretidos no serviço das sementeiras. Não é ainda lisonjeiro o estado sanitário por se darem ainda alguns casos de varíola.
A tranquilidade pública conserva-se inalterada, continuando, contudo, as guerras entre os Fulas e Mouros ou Mandigas. As chuvas têm caído regularmente durante o mês. O administrador do concelho de Cacheu, em seu ofício de 14 deste mês, diz que se achava paralisada a guerra dos gentios limítrofes, em consequência da grande derrota que sofreu uma das partes beligerantes, os Mouros.”


O Boletim Official n.º 39, de 23 de setembro, comporta informações do Governador da Guiné, continua a ser Cabral Vieira, e do delegado de saúde em Bissau, Pedro Nicolau da Câmara Santa Rita. Assim começa o governador a sua informação:
“Saindo deste porto com destino ao da cidade da Praia o cutter Cabo Verde, tenho a honra de participar a V.ª Ex.ª que continuam infecionados de varíola os pontos deste distrito. O estado comercial é regular, e sofrível o alimentício, havendo, contudo, alguma escassez de mantimentos nesta vila. A tranquilidade pública continua em todo o distrito, achando-se paralisadas as guerras gentílicas.
Houve em Cacheu um roubo na loja de José António Rodrigues Tavares, no valor de 500$000 réis, aproximadamente. Descobriu-se que o autor do mesmo roubo foi um súbdito inglês que foi preso e entregue ao poder judicial. As chuvas continuam com regularidade, havendo esperanças de uma abundante colheita. Junto encontrará V.ª Ex.ª o boletim sanitário desta vila em referência ao mês de julho findo.”


E efetivamente segue-se o boletim sanitário:
“Varíola – esta epidemia continuou a desenvolver-se nesta vila até ao dia 26 do corrente, e depois começou a declinar, não se tendo dado mais caso algum até o último mês; no chão do gentio Papéis continua a epidemia a reinar, e na povoação dos Grumetes desapareceu completamente. As febres palustres continuam a desenvolver-se de carácter benigno, não se tendo manifestado caso algum de febre biliosa hematúrica; na clínica civil houve alguns ferimentos de pequena importância que foram convenientemente atendidos por esta delegação de saúde.
Vacinação – apenas foram vacinados durante este mês 22 indivíduos de ambos os sexos e diferentes idades, e maior número podia ter recebido a vacinação se os chefes de família apresentassem os seus filhos para este fim, mas é sempre com grande dificuldade que se pode passar a vacina de braço a braço, porque ocultam o seu desenvolvimento só para não transmitir a linfa vacínica aos outros indivíduos.
Doenças tratadas e observadas no hospital militar: bobão inguinal, cardialgia, conjuntivite aguda, edema das extremidades inferiores, febre intermitente quotidiana, bronquite crónica, disenteria, pneumonia aguda, ingurgitamento do baço e fígado, reumatismo articular…”


Caminhamos para o fim do ano. No Boletim Official n.º 50, de 9 de dezembro, o governador Cabral Vieira envia pela escuna Senhora Argot informações para a Praia:
"É regular o estado comercial do distrito, bem como o alimentício; o estado sanitário é sofrível; conta apenas que se dão alguns casos de varíola nas povoações nos gentios vizinhos. Por participação do administrador do concelho de Cacheu, consta que se realizou a paz entre os Fulas e Mandigas limítrofes de Farim – oxalá que seja verdadeira e não fantástica a mesma paz que há muito se deseja. Para os lados de Geba acontece, porém, o contrário, a guerra ateia-se cada vez mais, estando preparado entre os Fulas e Mandigas-Mouros nas imediações daquele presidio, segundo me participou o respetivo chefe, um grande e extraordinário combate".

O Boletim Official n.º 53, de 30 de dezembro, é expedido ao cuidado de Boa Ventura Martins, o secretário-geral da província de Cabo Verde, "comunica-se que se agravou o estado sanitário do distrito, pois reapareceu um caso de varíola. O estado alimentício é satisfatório e o comercial vai tomando incremento com a chegada de alguns navios internacionais e estrangeiros com mercadoria. Continuam as guerras entre os gentios, nas proximidades de Geba.”
Planta da Praça de Bissau, por Bernardino António d’Andrade, 1796

(continua)

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Notas do editor

Vd. post de 20 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25961: Notas de leitura (1728): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, ano de 1875 e 1876) (21) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 23 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25973: Notas de leitura (1729): "A Guerra Colonial: realidade e ficção" (livro de actas do I Congresso Internacional), organização do professor universitário e escritor Rui de Azevedo Teixeira; Editorial Notícias, 2001, com o apoio da Universidade Aberta e do Instituto de Defesa Nacional (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25980: Historiografia da presença portuguesa em África (444): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, inícios de 1883 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de julho de 2024:

Queridos amigos,
Estamos em 1883, o Governador Pedro Ignácio de Gouveia revela-se um homem de mão cheia, continua o programa de concessões de terreno, o exemplo que aqui se cita vem do chão manjaco, chovem os regulamentos e os regimentos, pretende-se instituir uma biblioteca, o governador tem mão pesada para capitães delituoso, pensa-se no embelezamento e na higiene de Bolama e arredores, o comandante militar de Bissau vai até à ilha de Jeta celebrar tratado com o régulo das Ilhetas, é um documento de grande valor, de que aqui se deixa uma citação, e o alferes Francisco Marques Geraldes, comandante do presídio de Geba, face ao rapto de umas bajudas em S. Belchior, mete-se ao caminho com civis até ao Indornal, estamos em 1883, vamos vê-lo percorrer a região do Casamansa, passou por terras onde lhe pediram para ele se despir, nunca tinham visto um ser humano de pele branca. É texto que já publicámos no blogue, bem como a sua sequência, um texto não menos notável de Pedro Ignácio de Gouveia para o Ministro da Marinha e do Ultramar.

Um abraço do
Mário



A Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, inícios de 1883 (3)


Mário Beja Santos

1883 revela-se um ano de profusa legislação, como se exemplifica: regulamento das alfândegas da província da Guiné Portuguesa; regimento para as delegações da junta da Fazenda da província da Guiné; regulamente para o serviço marítimo da Guiné Portuguesa; regulamento do Ministério Público nos tribunais militares. O Governador é Pedro Ignácio de Gouveia, logo no Boletim Oficial n.º 1, de 6 de janeiro, chama a atenção a Nota do degredado chegado a esta província em 17 de dezembro de 1882, vindo da província de Cabo Verde no vapor Angola: Lourenço Rodrigues d’Almeida, condenado a trabalhos públicos por toda a vida, por acórdão da Relação de Lisboa por crime de homicídio voluntário. No Boletim seguinte, de 13 de janeiro, chama a atenção o pedido de conceção no rio denominado Mampatas, no território manjaco e o Governador “hei por conveniente, com o voto do Conselho do Governo, conceder 500 hectares de terreno a Ernesto Gourdau em cada um dos pontos seguintes: Pelundo, Babaque, Padim, Tamé, Canhobé, Mata dos Elefantes, Cajegut, Tumatte e Palufe, sendo a última na embocadura do rio dos Brames".

Não menos curiosa é a publicação neste mesmo Boletim Oficial n.º 2 a necessidade de criar uma biblioteca, o texto de Pedro Ignácio de Gouveia é de uma enorme elegância:
“Sendo de reconhecida vantagem e conveniência a instituição de uma biblioteca, para desenvolvimento intelectual de todos, e em que cada um possa compulsar os diferentes autores para aumentar os seus conhecimentos, desenvolvendo a sua instrução.
Sendo certo que a prosperidade, riqueza e bem-estar social é função de estado intelectual dos seus habitantes; e tendo em vista, que na classe civilizada dos habitantes da província, se encontra, em regra, o gérmen da aplicação que apesar dos poucos recursos que alguns dispõe procuram cultivar o espírito nas horas de ócio que as suas ocupações lhes deixam;
Considerando que se pode assim mais facilmente desenvolver o estudo, esse campo vasto onde a inteligência não encontra limites tangíveis, e pelo qual o homem pode crer na sua proficuidade, pela utilidade de que é alvo, e pelos benefícios que a seus concidadãos pode prestar, pelo derramamento de luz que só a cultura intelectual pode dar, etc. etc. Hei por conveniente nomear uma comissão para ver qual a maneira possível de instituir uma biblioteca.”
Nesta composição figurava o vigário-geral da Guiné Marcelino Marques de Barros.

Era visível que o novo Governador vinha disposto a cortar a direito, no despacho n.º 1 emitido no quartel-geral em Bolama, em 13 de janeiro, dava-se a saber que foram considerados presos para conselho de guerra os capitães Pedro Moreira da Fonseca e Boaventura Ribeiro da Fonseca. Falece em Buba na noite de 13 o tenente do batalhão de caçadores n.º 1 José Joaquim Sertório de Almeida, seguia-se uma alocução falando num crime hediondo, o tenente fora assassinado quando rondava as sentinelas postadas na praça de Buba, assassinado por um soldado, caso que enodoava o Exército; fora exonerado o capitão Caetano Filipe de Sousa, que era comandante militar e administrador do concelho de Buba; e quanto à prisão dos dois capitães, dizia-se que não tinham recebido a prisão imposta com respeito e acatamento devido, cantando até depois de recolher ao quarto que lhes servia de prisão, pelo que lhe fora agravada a pena com a proibição de receber visitas, sofreram uma prisão rigorosa de 30 dias.

No Boletim n.º 19, de 12 de maio, nova medida enérgica: “Tendo chegado ao meu conhecimento um ofício do comandante militar de Cacheu em que participa que o chefe do presídio de Farim, Luiz Xavier Monteiro tem praticado actos que podem considerar-se criminosos, a serem verdadeiros; hei por conveniente, em harmonia com o código administrativo suspender do exercício de funções e vencimentos ao mencionado chefe, devendo permanecer em Cacheu sob a vigilância da autoridade local enquanto se procede à sindicância que nesta data lhe é mandada instaurar.”

Passando agora para o Boletim n.º 22, de 2 de junho, vem publicado um interessantíssimo relatório assinado pelo comandante militar de Bissau, Carlos Maria de Souza Ferreira Simões, que foi celebrar um tratado de paz com um régulo das Ilhetas, ilha de Jeta, Adju Pumol. É texto extenso, aqui fica uma passagem:
“Disse finalmente o régulo Adju Pumol que as provas de confiança e consideração que acabava de receber do Governo português enviando aos seus domínios um delegado seu para tratar com ele e com o seu povo, lhe impunha o dever de ser sempre grato e leal aos portugueses e de lhes prestar todo o auxílio de que pode expor sempre que lhe por qualquer forma se ofereça para isso ocasião. Terminado o discurso, convidei o régulo para ir connosco a bordo da canhoneira Guiné, convite que ele aceitou sem hesitação, a despeito de algumas manifestações em contrário que involuntariamente deixaram perceber dois ou três dos seus grandes, e principalmente uma das suas mulheres, que chegou a segurá-lo por um dos braços para o não deixar ir, e à qual ele disse que ia porque tinha confiança nos portugueses e se morresse era apenas uma vida que se perdia. Acompanharam-no um filho mais velho e um dos grandes.

Chegado a bordo, o comandante foi mostrar-lhe o navio, pelo que ele se sentiu muito reconhecido, examinando tudo com muita atenção e fazendo algumas perguntas. Ceou connosco, e quando depois da ceia lhe perguntámos se queria ir para terra ou ficar a bordo, respondeu que preferia ficar a bordo, e ir para terra de madrugada. Dormiu sossegadamente num dos almofadões da câmara do navio.”

No Boletim n.º 81, de 4 de agosto, consta o relatório apresentado pelo chefe do presídio de Geba acerca da sua viagem ao Indornal, há alguns anos publicou-se no blogue este notável documento assinado pelo alferes Francisco Marques Geraldes e qual a informação dada por Pedro Ignácio de Gouveia ao Governo em Lisboa.

Voltando um pouco atrás, e dentro daquele vasto plano de regulamentações de que inicialmente se fez menção, penso que é útil referir que no Boletim n.º 13, de 31 de março, o Governo reconhece a grande vantagem e conveniência para a regularidade e embelezamento da capital da província e de outras terras secundárias, estabelecer-se um plano definitivo de edificações em que se atendam às condições de higiene, ventilação, perspetiva e outras. E assim fora adotado com o voto unânime do Conselho do Governo o plano de edificações e reedificações em Bolama. O seu artigo primeiro anuncia que o Governo mandará imediatamente proceder a um plano geral dos melhoramentos da capital, atendendo neles ao das suas praças, jardins e edificações existentes, e à construção e abertura de novas ruas, praças, jardins e edificações com as condições de higiene, decoração, cómodo alojamento e livre-trânsito do público. Esse plano seria elaborado pela comissão composta do diretor de obras públicas, um vogal proposto pela Câmara Municipal e um vogal da Junta de Saúde Pública. Texto minucioso em que se chega ao cuidado de referir a altura das edificações determinada pela largura das ruas.

Pedro Ignácio de Gouveia, distintíssimo oficial da Armada, sucede a Agostinho Coelho como Governador da Guiné (será Governador entre 1881 e 1884). A primeira vez que me confrontei com a sua prosa, e que muito me impressionou, foi a carta que ele dirigiu ao ministro da Marinha e Ultramar referindo a viagem do alferes Marques Geraldes até Selho (hoje no Senegal), para ir buscar mulheres raptadas de um parente do régulo local, é um belíssimo documento.
Estabelecimentos portugueses em Buba, no Rio Grande, profundamente afetados pela guerra do Forreá
A canhoneira Guiné, 1879-1883
Igreja católica na Guiné Portuguesa, imagem muito antiga retirada do site da Casa Comum
Bajudas Fulas lavrando a bolanha, imagem antiga retirada do site Casa Comum

(continua)
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Notas de editor

Vd. post de 18 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25954: Historiografia da presença portuguesa em África (442): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1881 até 1882 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 18 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25955: Historiografia da Presença Portuguesa em África (443): a história (atribulada) de Bolama, segundo o Padre J.A.V (1938)