Mostrar mensagens com a etiqueta Artur Augusto Silva. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Artur Augusto Silva. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25145: Blogues da Nossa Blogosfera (186): "Des Gens Intéréssants", de João Schwarz da Silva (Bruxelas, nosso grão-tabanqueiro n.º 768, desde 30/3/2018) - Parte I


João Schwarz da Silva
1. Mensagem do no amigo João Schwarz da Silvagrão-tabanqueiro, nº 768 (desde 39/3/2018); tem 17 referências no nosso blogue; vive presentemenente em Bruxelas: 

Data - 7 fev 2024 10:38
Assunto - O novo blogue "Des Gens Intéréssants"

Olá,  Luis

O meu site www.desgensinteressants.org acabou porque o software que eu usava (Sandvox) ja não é suportado,  o que significa que não é compatível com as últimas versões do
 IOS (pois ém  eu sou um utilizador de MAC). 
Tive portanto que efetuar uma migração para:

https://des-gens-interessants.blogspot.com

e aproveitei para alterar umas coisas e para acrescentar outras. 

De qualquer modo agradeço a dica sobre o Arquivo.pt. 


https://arquivo.pt/wayback/20230202034507/http://www.desgensinteressants.org/samuel-schwarz/index.html

Se tiveres comentários a fazer sobre esta nova página,  apita,  pois ainda estou a aprender a utilizar o Blogger.

Obrigado também pelo poste sobre as crianças austríacas (**) que,  se bem me lembro,  foram acolhidas em Portugal pela Caritas,  o que levou a abusos em série pois eles entregavam as crianças a pessoas que as exploravam. 

A minha mãe contava que em Alcobaça ela viu uma miúda loira que só falava alemão no stand de um vendedor de legumes. Ela queixava-se amargamente de maus tratos a tal ponto que a minha mãe a levou para casa onde pela primeira vez em Portugal tomou banho e conseguiu tirar a barriga de misérias. Tempos depois,  aparece lá em casa um padre enviado pela Caritas que acusou os meus pais de não terem capacidade para acolherem uma órfã. 

Nessa altura ja o meu pai tinha conta aberta na PIDE,  o que não correspondia aos critérios do Estado Novo. Moral da história, a miúda aos gritos teve que sair da nossa casa e a minha mãe ficou arrasada pois a miúda era muito gira e se sentia feliz em nossa casa.

Pouco tempo depois saímos de Alcobaça rumo à Guiné. Nota que há um filme sobre a história destas crianças, "Viagem ao Sol",  de Ansgar Schaefer e Susana de Sousa Dias. Ver o trailer aqui: 


2. Um blogue de histórias de vida de pessoas interessantes

Excerto do blogue do João Schwarz da Silva, agora alojado no Blogger (adaptado e traduzido do francês pelo nosso editor LG)

Segunda-feira, 8 de janeiro de 2024 > Porquê este blogue "Des Gens Intéressants?

(...) Há alguns anos, com a idade, quis reconstituir a vida e o contexto de vida de um certo número de pessoas da minha família que passaram por momentos difíceis ou emocionantes na sua exiostència Nenhum deles já está vivo. Um traço comum a todos elees, todos, é o facto de terem sido, em diferentes graus, vítimas das suas crenças, do seu posicionamento político ou simplesmente da sua sede de liberdade. Atravessaram o século e as guerras da época, e muitas vezes cruzaram continentes para p0oder encontrar um mundo melhor.
  • O meu bisavô Ysucher Szwarc  morreu em Zgierz durante a invasão nazi da Polónia em dezembro de 1939. 
  • O meu outro avô, Samuel Matusovitch Barbash, foi fuzilado  pelos bolcheviques durante a tomada de Odessa em 1920. Samuel teve dois filhos e duas filhas do seu casamento com Klara. 
  • Um de seus filhos,  Boris Barbash, foi para Xangai, na Chinba, onde morreu. 
  • O meu avô Samuel Schwarz foi alvo do forte anti-semitismo que reinava em Portugal (entre os anos 20 e 50)  e isso não o impediu de fazer descobertas sensacionais sobre a história e a herança judaica de Portugal. 
  • O meu pai,  Artur Augusto Silva  foi preso pelas suas ideias contrárias às do regime então vigente (o Estado Novo), cujos opositores que defendeu,  nomeadamente em Bissau, na antiga Guiné Portuguesa. Os membros da sua família, originários da Ilha da Madeira e expulsos para a Ilha Brava, Cabo Verde,  viveram numa época em que ter escravos ainda era normal. 
  • Seu irmão  Joao Augusto Silva foi um formidável fotógrafo, desenhador  e escritor. 
  • David Szwarc, filho de um irmão do meu avô Samuel, conseguiu escapar do gueto de Varsóvia enquanto a sua família permaneceu lá.
  • Um tio Alexandre Szwarc, irmão de Samuel, foi feito prisioneiro pelos russos em 1940,  e conseguiu escapar via Portugal e depois ir para o Canadá. 
  • Meu sogro, Jean Roger Chansel, que era piloto de correio aéreo, morreu num acidente no Monte Camarões, em 1953. 
  • Marek Szwarc, um dos irmãos do meu avô, judeu de nascimento, converteu-se ao catolicismo e tornou-se pintor e escultor da Escola de Paris. 
  • Tereska Torres, filha de Marek, teve que fugir de Paris na época da invasão e ocupação nazi da França em 1940 e foi uma das primeiras mulheres a juntar-se ao general De Gaule em Londres. 
  • O último (de outros que se hão de seguir) é o meu irmão Carlos ("Pepito") que, nascido em Bissau (em 1949) e aí tendo vivido toda a sua juventude, regressou à Guiné na época da independência para aí se fixar e contribuir para o novo mundo idealizado por  Amilcar Cabral.
À medida que eu tiver tempo para encontrar os documentos, fotos e outros pedaços de história,  outros personagens passarão a habitar este blogue. Para acompanhar este blog veja os seguintes links: Aqui ficam alguns vídeos realizados em momentos diferentes mas que têm como tema comum um dos membros da família ou um local (Belmonte ou Tomar) que se enquadra perfeitamente na vida de Samuel Schwarz (...)


(**) Vd. poste de 6 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25140: Capas da Vida Mundial Ilustrada (1941-1946) - Parte III: 45 crianças, refugiadas (e provavelmente judias), polacas, alemãs, austríacas e uma russa, embarcam em agosto de 1941 no "Mousinho" a caminho da América

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24436: Historiografia da presença portuguesa em África (374): Antes da literatura da guerra da Guiné, o quê? (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Novembro de 2022:

Queridos amigos,
É com uma certa nostalgia que vou passando os olhos pelos papéis que me restam ainda ler na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, manda a prudência que a seguir ponha ordem no caos que levo de umas boas centenas de páginas que, espero, venham a dar origem ao meu derradeiro livro sobre a Guiné, uma antologia dos textos essenciais desde Zurara até meados do século XX, quando a Guiné passou a estar no mapa como uma colónia administrada por portugueses, tenho já um título: Guiné, o Bilhete de Identidade.
É nestas leituras esparsas que acabo de ler um trabalho sobre a literatura guineense anterior à eclosão da luta armada. Julgo que as considerações deste autor devem ser articuladas com um trabalho da responsabilidade de Leopoldo Amado sobre a literatura guineense no período colonial, este malogrado historiador recorda figuras de significado que abordaram nas suas obras a Guiné, como foi o caso de Fernanda de Castro, Maria Archer ou Manuel Belchior. Acho que não perdemos completamente o tempo em ver a argumentação usada por João Tendeiro quanto à carência de escritores nativos da Guiné.

Um abraço do
Mário



Antes da literatura da guerra da Guiné, o quê?

Mário Beja Santos

Na publicação Estudos Ultramarinos, revista trimestral do então Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, 1959, n.º 3, dedicado à literatura e arte, insere-se um artigo intitulado “Aspetos marginais da literatura na Guiné portuguesa”, é seu autor João Tendeiro. Vejamos os aspetos essenciais do seu escrito. Abre dizendo que: “Somos forçados a reconhecer que não existe uma literatura com características guineenses. A Guiné não nos deu até agora um escritor nativo. No campo da ficção, as poucas obras de fundo têm sido escritas por europeus ou cabo-verdianos”.
E refere nomes como os de Fausto Duarte, o de Alexandre Barbosa, entre outros, refere contos e narrativas publicados no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.

Invoca adiante Mário Pinto de Andrade, dizendo que se este quis inserir na sua Antologia de Poesia Negra de Expressão Portuguesa (Paris, 1958) uma produção poética representativa da Guiné, teve de recorrer a um poema de um jovem cabo-verdiano a residir na Guiné, Terêncio Casimiro Anahory Silva. E lembra-nos quem é civilizado, assimilado e nativo, e as respetivas incidências no uso da língua portuguesa. Segundo o censo de 1950, o português era falado por 1157 indígenas analfabetos e lido e escrito por 1153 - não se encontrou em conta a população que se exprime em crioulo. Quanto à população denominada “civilizada”, havia 7848 portugueses (1501 metropolitanos; 1103 cabo-verdianos e 4644 guineenses, bem como 366 estrangeiros, dos quais 297 libaneses).

Procurando analisar os diferentes porquês da pobreza de uma literatura de fundo guineense, recorda o que ele classifica como singularidades: o silêncio literário de Artur Augusto Silva, cujas preocupações parecem ter deixado o campo da poesia e da ficção para se lançarem em estudos de interpretação jurídico-social; e não esquece o nome de Eduíno Brito, autor de vários trabalhos de demografia e sociologia guineenses. E, de novo, volta a citar Mário Pinto de Andrade, regista-lhe a seguinte observação:
“A evidência histórica leva-nos a considerar que, das relações entre a Europa e a África, decorrente do conflito colonial, resultou a opressão das culturas negro-africanas, na medida em que os africanos foram regularmente desprovidos da estrutura social e política, dos quadros próprios em que evoluíam naturalmente as suas culturas, em que as línguas foram relegadas para o plano secundário dos falares intermediários em que essencialmente esses povos perderam as iniciativas de nestas sociedades que eram afinal as suas criações originais”.

E lança outro argumento para explicar as dificuldades numa literatura nativa. A expansão do islamismo em África acompanhou-se de uma difusão correspondente da escrita árabe. Quando transpostos para as línguas nativas, os documentos escritos têm, no entanto, um cunho acentuadamente esotérico e usam-se especialmente com fins religiosos e moralizantes sob a forma de poesia e provérbios relacionados com o Corão, o que não se enquadra na noção ocidental de literatura.

No entanto, prolifera na Guiné uma literatura oral variada, que se exprime por contos, provérbios e poesias declamadas. E recorda que há a recolha feita por Viriato Tadeu nos Contos do Caramô e os contos publicados no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa por António Carreira e Amadeu Nogueira, entre outros. Reconheça-se, no entanto, que esta contribuição oral, servida por uma linguagem colorida e variada, ultrapassa o campo literário e cai nos domínios da etnografia e do folclore. E há os tocadores de Korá, autênticos trovadores. E suscita uma nova questão, a problemática do crioulo. Entende que é uma linguagem auxiliar nas relações recíprocas entre as diferentes tribos, dizendo mesmo:
“Os crioulos portugueses escritos – seja o da Guiné, seja o das diversas ilhas de Cabo Verde – não constituem entidades filológicas independentes, mas sim transcrições dialetais fonéticas, em termos de português. O crioulo desempenha o papel de linguagem auxiliar nas relações recíprocas entre etnias. É uma linguagem franca. Enquanto em Cabo Verde o crioulo assumiu o caráter de uma linguagem substituta dos idiomas nativos primitivos, enfeudada à língua portuguesa oficial, na Guiné existe apenas o aspeto secundário da língua apreendida, desempenhando entre as populações locais um papel semelhante aos idiomas hoje utilizados nas relações internacionais”.

E depois de muito dissertar sobre o estado da educação na Guiné, João Tendeiro, já nos surpreendera com as citações de Mário Pinto de Andrade (já ao tempo uma figura destratada pelo Estado Novo, reconhecidamente dirigente do MPLA), não deixa de nos assombrar com as considerações que faz no termo do seu artigo:
“No que se refere aos indígenas, o problema passa muito além do campo da literatura, e relaciona-se antes com a premente necessidade de uma modificação basilar das estruturas legais e sociais dos nativos, indispensável à continuidade efetiva da presença portuguesa em África.”

Para bom entendedor…

____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24421: Historiografia da presença portuguesa em África (373): O problema dos transportes na Guiné, um olhar e sugestões de um engenheiro de pontes, princípio da década de 1950 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23708: Notas de leitura (1505): Uma escultura de renome mundial, a Nalu (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
Há por vezes a necessidade de lançar um apelo. No caso vertente, trata-se da arte Nalu, que é possível encontrar em museus de grande renome, é elemento construtivo das grandes coleções de arte africana. Não é novidade para ninguém que a arte Nalu e a arte Bijagó são admiráveis. É curioso como há estudos sobre a arte Bijagó e parece que ninguém escreve sobre a arte Nalu, por essa razão aqui se repesca um trabalho de Artur Augusto Silva publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, seguramente que há hoje mais elementos e reflexões sobre esta representatividade plástica, tão credora da nossa admiração. É facto que ainda não bati à porta do Museu Nacional de Etnologia, acontecerá um dia. O que eu pergunto aos meus confrades é se não têm a amabilidade de me informar de quaisquer outros estudos sobre uma escultura que põe a Guiné Bissau em tão conceituados museus.

Antecipadamente grato,
Mário



Uma escultura de renome mundial, a Nalu

Mário Beja Santos

Estava a ser uma manhã de leituras muito interessantes, voltei a folhear os dois cartapácios referentes aos Ecos da Guiné, tudo começou por uma edição da secção técnica de estatística, secção de publicidade, comércio da Guiné, publicação criada em 1949, na governação de Raimundo Serrão, passou depois a intitular-se Boletim de Informação e de Estatística, crónica mensal da colónia, foi aqui que Amílcar Cabral, enquanto responsável pela Granja de Pessubé, no âmbito da Direção-Geral dos Serviços Agrícolas dedicou um punhado de reflexões sobre a indispensável reforma agrícola.

Tinha saudades de aqui relembrar a arte Nalu, há um texto meu no blogue que data de há 10 anos. Bem procurei bibliografia na Sociedade de Geografia sobre esta corrente plástica, nada encontrei, é muito provável que tenha de bater à porta do Museu Nacional de Etnologia, pode ser que tenha mais sorte. Assim, voltei a pegar no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, vol. XI, nº44, outubro de 1956, deu-me imenso prazer voltar a ler o artigo escrito por Artur Augusto Silva sobre a arte Nalu, ainda é possível encontrar nos alfarrabistas uma separata deste curioso texto. A que se propõe este investigador? Responde logo no início do seu trabalho: “Procuraremos surpreender as suas determinantes, as relações da sua arte com a necessidade de exprimir as preocupações dominantes do agregado social e ainda demonstrar que o meio ambiente condicionou o modo de vida, a sua organização económica e, como resultado desta organização, todas as superestruturas daí derivadas”. Recorda que a etnia Nalu não está circunscrita à colónia da Guiné portuguesa, também tem alguma importância na Guiné francesa, no caso da Guiné portuguesa habitavam as regiões da circunscrição de Catió, Cacine e Bedanda e pontos isolados do Cubisseco (região de Fulacunda).

O autor estima a população Nalu na colónia em perto de 4 mil habitantes. Dedicavam-se à orizicultura, às culturas da cola, banana, laranja e ananases. Habitam só solo continental. Não possuem escrita e só conheciam a literatura oral, o verosímil e o inverosímil andam de mãos dadas, são prolongamentos da mesma realidade. Os Nalus, habitantes de floresta eram, ainda há 40 anos, um dos povos mais primitivos de toda a África. Seguiram-se os contactos com os muçulmanos, tudo começou por aspetos comerciais dado que estes são grandes consumidores de cola, iniciou-se depois a islamização dos mais jovens, a arte Nalu passou a desinteressar as novas gerações, crescentemente islamizadas [esta apreciação de Artur Augusto Silva não se veio a revelar definitiva, a arte Nalu continua a ter grande projeção não só no artesanato guineense, muitos espécimenes são disputados por colecionadores e museus, algumas das maiores leiloeiras internacionais quando fazem leilões de arte africana não é incomum porem à venda arte Nalu e arte Bijagó].

A espiritualidade destes animistas baseia-se na crença das energias, as forças, são estes elementos o que dominam a representatividade plástica Nalu. Nas máscaras refugia-se a energia. A serpente é em toda a zoolatria Nalu um animal de maior prestígio. As máscaras são a síntese de todas as forças vivas. O autor chama a atenção para algo que é a aculturação animista, neste caso os Nalus praticam a circuncisão.

O artista Nalu procura construir unicamente moradas para as forças que animam o seu mundo sobrenatural. É de notar que as máscaras e tambores destinados a folguedos são usados por Nalus e Sossos. O autor avisa-nos que não pôde confirmar se os Bagas também participam deste processo estético.

Em jeito de síntese, Artur Augusto Silva observa que a escultura Nalu nasceu da necessidade de representar as forças a que nós chamamos religiosidade, em termos plásticos escultóricos estas forças prendem-se com a necessidade de ter uma residência porque quando não há lugar qualquer força é inoperante, a pessoa fica à deriva, sem comunicação com o transcendente.

As esculturas são feitas em madeira de poilão ou em mancone. Os Nalus usam uma enxó para desbastar a madeira e um canivete para os trabalhos de pormenor. As tintas usadas: preta, branca, vermelha e verde. Conseguem a tinta branca através da trituração da casca de ostras.

Chegou a hora de bater a outras portas para saber mais sobre a arte Nalu. Será que os nossos amigos guineenses não nos poderão ajudar?

Ninte-Kamatchol, escultura Nalu, Museu Afro-Brasil
Máscara Nalu, Instituto de Arte de Chicago
Máscara Nalu, coleção da Sociedade de Geografia de Lisboa
Arte Nalu, Arquivo Histórico Ultramarino
Povos da Guiné-Bissau, painel de Augusto Trigo
____________

Nota do editor

Último poste da série de 10 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23690: Notas de leitura (1504): "Deixei o meu Coração em África", por Manuel Arouca; Oficina do Livro, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22951: Antologia (83): O Cativeiro dos Bichos, conto de Artur Augusto Silva (Cabo Verde, 1912 - Guiné-Bissau, 1983), escrito na Prisão de Caxias, em 1966, e que era uma fabulosa fábula que tinha também uma contundente crítica, implícita, à hipócrita política colonial do Governo Português da época


Portugal > Alcobaça > São Martinho do Porto > Estrada do Facho > Casa do Cruzeiro > c. 1957 > O pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), com os filhos, da esquerda para a direita, João, Iko (já falecido) e Carlos (1949-2014). Cortesia de João Schwarz da Silva, que nos diz que a data deve ser "provavelmente 1957"... Teria então o Pepito (, nascido em Bissau, em 1949) os seus oito anos... Esta casa será durante alguns anos, até à morte do Pepito, a sede da Tabanca de São Martinho do Porto...

Foto (e legenda): © João Schwarz da Silva (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné-Bissau > Bissau > Contracapa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, O Cativeiro dos Bichos  (edição de autor, Bissau, 2006 ).  Na realidade, tratou-se de uma edição dos três filhos do autor (Henrique, João e Carlos Schwarz, em homenagem à memória, ao talento e ao exmplo cívico do seu pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), que viveu na Guiné-Bissau, de 1949 a 1966, e depois, de 1976 até à data da sua morte.
 

1. Porque muitos dos nossos leitores mais recentes, nunca ouviram falar sequer do seu nome, aqui vai um pequeno apontamento biográfico sobre o autor deste livro de contos, Artur Augusto Silva (1912-1983) (, que tem 32 referências no nosso blogue). 

Para quem quiser ter uma informação mais detalhada e contextualizada, ver aqui a sua biografia, profusamente ilustrada, da autoria do seu filho João Schwarz da Silva, na sua página, Des Gents Intéressants" (em francês e em português).

Artur Augusto Silva


(i) Nasceu a 14 de Outubro de 1912, em Cabo Verde, na Ilha da Brava, "a ilha dos poetas, das flores e das mulheres bonitas", a ilha que foi também po berço do grande poeta Eugénio Tavares (1867-1930);

(ii) ainda estudante, foi director da revista Momento, revista que pretendia ser a réplica lisboeta da Presença, de Coimbra, e onde se propunha abrir uma Tribuna Livre com outros jovens escritores e intelectuais, "em que livremente se discutisse e todos pudessem falar";

(iii) na Metrópole (como então se dizia), "publicou vários artigos, fez reportagens, dirigiu saraus literários, organizou exposições de arte moderna, promoveu conferências culturais na Casa da Imprensa, na Sociedade Nacional de Belas Artes e em vários outros locais de Portugal";

(iv) licenciou-se em Direito em 1938, pela Universidade de Lisboa;

(v) em 1939, partiu para Angola onde trabalhou como Secretário do Governador Geral;

(vi) de 1941 a 1949 exerceu advocacia em Lisboa, em Alcobaça e em Porto de Mós, na região da Estremadura: dessa experiência, humana e profissional, colheu o autor matéria-prima para alguns dos seus contos, publicados no livro "O Cativeiro dos Bichos", como o Zé Faneca, pescador da Nazaré;

(vii) em 1949, partiu para a Guiné onde foi advogado, notário e substituto do Delegado do Procurador da República;

(viii) foi também Membro do Centro de Estudos da Guiné, juntamente com António Carneiro mas também com  Amílcar Cabral (de quem era grande amigo e com quem viajou várias vezes);

(ix) participou, em 1949, na criação do Colégio-Liceu de Bissau, onde a sua esposa, dra. Clara Schwarz da Silva, foi professora;

(x) visitou vários países africanos, recolhendo elementos que mais tarde lhe serviriam para escrever, entre outros livros, Os Usos e Costumes Jurídicos dos Fulas, tendo-se tornado um especialista em direito consuetudinário;

(xi) cidadão empenhado, africano nacionalista, jurista corajoso, fez questão de defender presos políticos guineenses, muitos deles seus amigos "ou que passaram a sê-lo, acusados de sedição pela potência colonial"; mais concretamente, "foi defensor em 61 julgamentos, um deles com 23 réus, tendo tido apenas duas condenações";

(xii) em 26 de agosto de 1966,  foi preso pela PIDE, ao chegar ao aeroporto de Lisboa, situção violenta e arbitrária que ele recordará sempre  "com dor e revolta";

(xiii) esteve preso em Caxias, durante 4 meses, sem culpa formada;

(xiii) em 23 de dezembro de 1966, "por intervenção de Marcelo Caetano e de outros responsáveis políticos, que embora discordassem das suas ideias políticas o admiravam como homem de carácter, foi libertado, mas proibiram-lhe que regressasse à Guiné, sendo-lhe fixada residência em Lisboa";

(xiv) em 1967, "Marcelo Caetano, convidou-o para ir trabalhar como advogado na Companhia de Seguros Bonança. Também Adriano Moreira o convidou para leccionar no Instituto de Ciências Ultramarinas, o que ele recusou, fazendo ver ao portador do convite a incoerência de o terem prendido pelas suas ideias sobre o colonialismo português e depois o convidarem para leccionar matérias relacionadas com Africa".

(xv) em 1976, de visita à nova República da Guiné-Bissau, foi convidado pelo então Presidente Luís Cabral para trabalhar como juiz no Supremo Tribunal de Justiça;

(xvi) foi professor de Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau;

(xvii) faleceu em Bissau, a 11 de Julho de 1983, com 70 anos.


2. Em homenagem ao autor, à sua esposa, Clara Schwarz (1915-2016) (que foi durante anos a decana da Tabanca Grande), e aos filhos de ambos,  Iko, já falecido, João Schwarz da Silva (que vive em Paris, e é também nosso grã-tabanqueiro) e  Carlos Schwarz da Silva, Bissau, 1949 - Lisboa, 2012), o nosso querido e saudoso Pepito (cofundador e histórico líder da AD - Acção para o Desenvolvimento), republicamos aquele que é um dos contos que mais gostamos deste livro de contos, e que deu o título à obra, "o Cativeiro dos Bichos" (pp. 57/63).

Trata-se uma fabulosa fábula (, se nos é permitido  o pleonasmo) do tempo em que os animais falavam, e que, escrito em 1966, na Prisão de Caxias, tinha também uma contundente crítica,  implícita,   ao sistema colonial, à sua política e à sua justiça; recorde-se que na época era governador (e comandante-chefe) da Guiné o General Arnaldo Schulz, o mesmo que o expulsou da sua tão amada terra de adopção,  e que o mandou prender, à chegada a Lisboa, através do longo braço armado da PIDE, e que se depois se opôs ao seu regresso à Guiné: em ofício da subedelegação da PIDE de Bissau, de 19/12/1966, é transmitida ao Diretor-Geral da PIDE a opinião do Governador de que "aquele Senhor não deve voltar à Guiné, pelo menos enquanto se mantiver o terrorismo" (sic).

A propósito das "fábulas guineenses", veja-se também a série que temos estado a reproduzir, a partir do livro  "Lendas e contos da Guiné-Bissau", da autoria de J. Carlos M. Fortunato ("Lendas e contos da Guiné-Bissau / J. Carlos M. Fortunato ; il. Augusto Trigo... [et al.],  s/l, Ajuda Amiga : MIL Movimento Internacional Lusófono : DG Edições, 2017,  102 pp,  ISBN 978-989-8661-68-5 (*`*)

Recorde-se que na cultura dos mais diversos povos as fábulas  (, contos populares,) são também uma forma, indireta, de denunciar e criticar  os abusos do poder dos mais fortes.   Muitas delas, incluindo as  fábulas guineenses,  encerram lições segundo  as quais os animais mais fortes, como o leão ou o "lobo" (hiena), podem ser  vencidos pela "audácia", "coragem",  "inteligência" e "cooperação" dos mais fracos. 



O Cativeiro dos Bichos (pp. 57-63)

por Artur Augusto Silva  (*)


A história que ides ler foi-me contada na tabanca de Quebo, no sertão da terra dos fulas, por um homem chamado Umarú Só, velho para além de toda a idade e que por ser velho e sábio conhecia os segredos do mundo e as suas maravilhas.

Vou narrá-la por palavras minhas, porque sei que não me perdoariam o uso daquele estilo floreado, exuberante, por vezes difuso mas sempre poético que os fulas usam para contar uma história.

Houve um tempo em que todos os seres viviam na mais foi perfeita harmonia e a paz reinava por toda a parte. Isto passou-se antes de ter nascido uma garça chamada Macute e que ficará para sempre como o anjo mau que perverteu o mundo.

Foi o caso que numa manhã de sol, quando as manadas de búfalos pastavam nas lalas verdejantes de Bambadinca, uma garça ainda nova e inexperiente, ao esburgar com o bico as carraças de um búfalo, picou-o profundamente, o que o levou a dar um sacão com a cauda, sacão que apanhou a garça e a fez cair !

As coisas teriam ficado por aqui se não fora a garça Macute que, de longe, presenciou o caso e porque queria tornar-se raínha das aves, logo engendrou um plano que a conduzisse à satisfação dos seus desejos.

Andou de terra em terra convocando uma grande reunião de todos os bichos que voam para tomarem conhecimento da maior afronta que jamais fora praticada sobre um ser vivente.

Chegado o dia da reunião, ali se encontrou toda a bicharada que povoa os ares, 
desde a águia-real, de peito branco e palavra e bico adunco, até ao colibri que é mais pequeno que a pequena flor. Vieram os papagaios vestidos de cinzento e peitilho vermelho, vieram todos os patos, desde o marreco ao ferrão, vieram as galinhas, incluindo as perdizes e as galinhas da Guiné todas louçãs na sua vestimenta preta de bolas brancas, vieram os mergulhões de longo bico plumagem verde, azul, preta e branca, veio toda a casta de pardalada que enxameia os céus, vieram as abetardas no seu voo lento e majestoso e, por fim, chegaram as borboletas no seu voo saltitante e colorido.

Reunidos todos, a garça Macute declarou que era necessário escolher um presidente que dirigisse os trabalhos mas, quando esperava ser investida no cargo, teve a desilusão de ver que optavam pela águia-real.

A águia-real soltou três assobios e declarou aberta a assembleia.

Logo a garça Macute levantou uma questão prévia:
– Vejo aqui as nossas boas amigas, as avestruzes, mas afigura-se-me que elas não são aves. Com efeito, desde que que o mundo é mundo, não há notícia de que uma avestruz tenha voado. Elas fazem parte dos bichos que andam e, por isso, não devem tomar parte da nossa reunião.

Todas as garças grasnaram em sinal de assentimento e estabeleceu-se um certo burburinho, prontamente reprimido pelo presidente que declarou ir pôr po caso à votação.

A coruja, sábia reconhecida por todos, pediu a palavra e disse:
– O problema posto pela nossa companheira, a garça, não é novo e muitas têm sido as opiniões ventiladas sem que se chegue a qualquer conclusão. Se é verdade que a avestruz tem asas, não é menos certo que nunca se serve delas para voar. Em minha opinião, devem ser classificadas entre os bichos que andam e não entre os que voam.

Como, após tão sábio resumo, ninguém quisesse usar da palavra, a águia pôs o caso à votação, e por maioria esmagadora foi decidido que as avestruzes não eram aves, mas sim bichos que andam.

Então a águia convidou a garça a dizer do motivo da reunião, e Macute começou:
– As aves são neste mundo em que vivemos, os animais mais nobres e mais valentes. Nunca uma de nós sofreu qualquer vexame ou insulto sem que imediatamente respondesse. Ora, devo dizer-vos que é com o coração oprimido de indignação e raiva que vos vou contar que há dias, na bolanha de Bambadinca, uma de nós, precisamente uma garça, foi vítima de agressão por parte de um búfalo. Devo acrescentar que o caso não pode ficar assim e por isso proponho que se declare guerra sem quartel a todos os bichos que andam.

Uma vozearia infernal atroou os ares e os abutres eram, de entre todas as aves, quem mais grita fazia, apoiando tão dignos sentimentos.

Um pardalito que estava presente, voltou-se para um jagudi que mostras de grande contentamento e ainda disse:
– O que vocês querem é que haja guerra para poderem comer a carne dos que morrem.

Logo o jagudi, gritando traidor, deu-lhe uma sapatada em três tempos o engoliu.
- Calma! Calma! - gritava a águia-real, receosa de não ter mão na assembleia.

Serenados um pouco os espíritos, a águia deu a palavra ao primeiro orador inscrito, o periquito. Este começou por dizer que a afronta fora grave mas, em seu entender, deveria averiguar-se primeiro se as coisas se tinham passado conforme o relato da garça, porque não via razão para que um búfalo magoasse uma garça, sem qualquer razão. Propunha, pois, uma comissão de inquérito.

O papagaio, segundo orador, citou alguns precedentes em que o comportamento dos bichos que andavam para com os bichos que voam demosntrava crueldade e propôs que o caso fosse levado ao conhecimento do bicho homem que possui discernimento mais do que suficiente para resolver o conflito.

As corujas apoiaram e depois de muitos oradores terem falado, foi resolvido levar o caso ao bicho homem. Formada a comissão que se avistaria com o bicho homem, dissolveu-se a assembleia, no meio de grande excitação.

O papagaio, como falador de grandes conhecimentos, presidia à comissão de queixa, a qual se dirigiu ao bicho homem para fazer as suas lamúrias.

Ouviu o bicho homem as mágoas da passarada e ali jurou que iria investigar, para que se fizesse inteira e completa justiça. Voltassem daí a sete dias, para ouvir a sua resolução.

A passarada retirou-se em boa ordem e o bicho homem ficou a esfregar as mãos de contente porque em sua cabeça surgira um plano.

Mandou o bicho homem chamar o rei dos bichos que andam e que é, contra o que se pensa, o elefante.

Veio este acompanhado de numeroso séquito do qual fazia parte o seu melhor conselheiro, o macaco.

Exposto o motivo da convocação, logo ali declarou o elefante que as intenções da bicharada que anda eram pacíficas e que nunca, até aquele momento, qualquer dos seus súbditos fizera mal a outrem, facto que devia ser do conhecimento do bicho homem que tudo sabe.
– Na verdade, na verdade – retorquiu o homem. 
– Mas há uma queixa e é necessário saber quem tem razão. Parece-me que seria melhor que os bichos que andam nomeassem um delegado e os que voam, outro, para trazerem a minha presença, as alegações de cada parte e as provas a produzir...

Todos concordaram e ficou estabelecido que daí a sete dias e se realizaria o julgamento do caso.

Sete dias passados e à hora marcada, reuniu-se a grande assembleia e o bicho homem, dizendo que ambas as partes lhe mereciam o maior respeito e consideração e que, assim, não podia dar a direita a um e a esquerda a outro, propõs que o representantre de cada parte ocupasse a direita durante meia hora e que a primeira posição fosse tirada à sorte.

Constituído o Tribunal, entraram o macaco como advogado, dos bichos que andam e mais vinte e sete testemunhas, logo seguido pelo papagaio, representante dos bichos que voam, com vinte e cinco testemunhas.

Historiou o homem o diferendo em poucas palavras e pediu ao papagaio, como advogado da parte acusadora, que dissesse da sua justiça.

Falou o papagaio com perfeita dicção e clareza, citando vários confrades seus e algumas palavras que ouvira aos homens, o que lhe valeu aplausos até dos bichos que andam. 

Empertigou-se o macaco, abriu os braços como já vira em comícios do bicho homem e analisou, um por um, os argumentos do papagaio e a sua queixa. Falou no amor, na justiça piedade, em todos os sentimentos nobres e a tal ponto comoveu a bicharada que voa, fez chorar um pardal estouvado e brincalhão como todos os pardais.

Exposta a questão, iniciou o bicho homem a audição das testemunhas e quer as de acusação, quer as de defesa, declararam nada saber do assunto.

Concedida novamente a palavra aos advogados, estes excederam-se em citações: foram épicos, heróicos, patéticos, fizeram chorar a assembleia e, logo a seguir fizeram-na rir desabridamente e foi numa das suas tiradas mais sublimes que o macaco, demonstrando rara intuição científica, classificou o homem de seu primo. O Chimpanzé que estava seguindo a peroração nos menores detalhes, comentou em à parte: primo, mas degenerado.

Depois desta afirmação solene do macaco, os jornais e revistas que o bicho homem publica, começaram-na citando obstinadamente, pelo que hoje é ponto assente a existência de tal parentesco.

O bicho homem suspendeu a sessão por uma hora, ao cabo da qual reentrou para ler a sentença. Era uma longa peça de considerandos e que começava por afirmar que "em virtude de se não ter provado a queixa dos bichos que voam, mas convindo fazer justiça, profiro a seguinte sentença: Julgo a acusação improcedente mas, tendo em atençao que a paz é um dever indeclinável de todos os espíritos sãos, e para poder reservá-la, determino que me sejam entregues como reféns e para garantia da paz futura, um animal de cada uma das espécies que voam que andam".

Eliminava magnanimamente custas, dada e manifesta pobreza das partes.

Todos animais, tanto os que voam como os que andam, aplaudiram delirantemente tão sagaz decisão e só o macaco, fiado no parentesco com o bicho homem, quis recorrer da decisão, alegando que "começara a escravatura".

Ninguém o quis ouvir, a decisão ficou sem recurso (recurso para quem? perguntava o papagaio) e o bicho homem começou encaminhando a bicharada para currais e capoeiras previamente instalados por sua indústria.

A verdade é que com o correr dos anos as palavras do macaco tiveram plena comprovação, pois o bicho homem nunca mais soltou nenhum dos reféns e porque estes se reproduziam e o bicho homem não tinha com que alimentá-los, passou a comer deles cada vez com mais apetite.

Se acontecia alguém perguntar ao homem a razão de tão prolongado cativeiro, respondia: como querem que eu os liberte se ainda ontem vi um milhafre pilhar um rato e comê-lo em três tempos? É com sacrifício, com muito grande sacrifício que dou de comer à bicharada, mas mesmo com sacrifício devo manter a minha palavra honrada e a minha justiça proverbial.

É certo que ensinei os bois a trabalhar para mim; é certo que como a carne dos bichos e uso das suas penas e da sua pele em utensílios que fabrico, mas não é menos verdade que todos devem conhecer a minha isenção. Estou esperando que os bichos consigam uma promoção social que os habilite a entrar no concerto dos seres civilizados para, então, lhes dar a liberdade que eu desejo mais do que eles.

Se a história é verdadeira, não posso assegurá-lo pois que os factos passaram-se há muitos anos e não conheci o bicho homem que fez tal justiça; mas, porque Umarú Só é pessoa séria, incapaz de inventar, estou em crer que eles se verificaram conforme a narrativa.

(Prisão de Caxias, 1966) (***)

 [Revisão / fixação de texto, incluindo negritos,  para efeitos de publicação deste poste: LG, com a devida vénia ]



Arbitrariamente detido pelo PIDE em 26 de agosto de 1966, ao chegar ao aeroporto de Lisboa, acusado de "exercer actividades contra a segurança do Estado" (sic),  esteve preso em Caxias 4 meses, sem culpa fomada. Foi solto em 26 de dezembro, sem julgamento, por ordem do subdiretor da PIDE, José Barreto Sacchetti.  Repare-se no primeiro documento acima, a assinatura, perfeitamente legível, do agente da PIDE que deteve o advogado Artur Augusto Silva: Benedito Pereira André (que em 1974 era chefe de brigada; terá morrido recentemente, aos 89 anos).


___________

Notas do edtor:

(*) Vd. poste de 20 de maio de  2006 > Guiné 63/74 - P775: Antologia (38): O cativeiro dos bichos de Artur Augusto Silva (Luís Graça)


quarta-feira, 3 de março de 2021

Guiné 61/74 - P21963: Antologia (76): Os Homens Lobos, um conto por Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912 - Bissau, 1983), da coletânea "O Cativeiro dos Bichos" (cortesia de João Scharz da Silva)



Guiné-Bissau > Bissau > Capa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, "O Cativeiro dos Bichos", Bissau, 2006 (Edição de autor).


Trata-se de uma  colectânea de 25 contos, seleccionados pelos seus filhos (Henrique, João e Carlos Schwarz), alguns dos quais escritos na prisão de Caxias, em 1966, outros em Lisboa, entre essa data e 1973.

Preso em 26 de agosto de 1966, à chegada ao aeroporto de Lisboa, por motivos políticos ["actividades contra a segurança do Estado"], libertado quatro meses depois, sem culpa formada, foi-lhe fixada residência em Lisboa, ficando assim impedido de voltar à Guiné onde residia e exercia a advocacia desde 1948 e onde a esposa era professora do ensino liceal. A decisão só foi revogada em 1970, por ordem de Marcelo Caetano, seu antigo professor. Montou escritório de advogado na baixa lisboeta, e só voltou à Guiné-Bissau em 1977. 

Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912- Bissau, 1983) foi um homem de leis e de cultura, amante da justiça e da liberdade. Falava as línguas fulas e mandinga. Era casado com Clara Schwarz da Silva (1915-2016). descendente de judeus polacos, e durante largos anos a decana da  nossaTabanca Grande. De entre os seus filhos, Pepito e João são membros da nossa Tabanca Grande. O Pepito, infelizmente, também já falecido, em 18 de fevereiro de 2014. Teria hoje 72 anos, se fosse vivo.

A esta colectânea de contos pertence este, "Os Homenns Lobos", que vamos  agora reproduzir,  por cortesia do filho João Schwarz da Silva. Outros dois já aqui foram divulgados em tempos no nosso blogue (*)

1. Mensagem, com data de ontem, 2 de março, 10:58,  de João Schwarz da Silva, membro da nossa Tabanca Grande, desde 2018, irmão do nosso querido e saudoso amigo Pepito, que nos deixou no dia 18 de fevereiro de 2014, prematuramente aos 63 anos:
Olá, Luís:

Espero que esteja tudo bem consigo e que tenha conseguido superar a Covid. Junto envio um pequeno conto que o meu pai escreveu em Maio de 1973 e que relata as desventuras de um homem num tribunal de Bissau. Pode publicá-lo se achar que ele se enquadra no seu site.

Um grande abraço

Joao Schwarz da silva

Os Homens Lobos, 

por Artur Augusto silva

(Maio 1973)

PRIMEIRO QUADRO

O juiz ordenou:

— Senhor oficial, recolha as testemunhas !

E o oficial de diligências começou encaminhando-as para a sala contígua à dos julgamentos, com certa dificuldade.

As testemunhas, incluindo o réu e o ofendido, eram da raça balanta e no seu ar bisonho e desconfiado denotavam logo pouco convívio com o branco.

— Levante-se o réu — disse o juiz — e o intérprete traduziu, o que provocou por parte do arguido um salto brusco, não fosse o branco pensar que não queria obedecer.

— Nome?

— Uaná Nhante.

— Casado ou solteiro?

— Tem mulher.

— Em que se emprega? Em que trabalha?

— Lavrador.

— Nome dos pais?

— Bidjane e Najá.

— Já alguma vez respondeu ou esteve preso?

— Esteve preso na Administração de Mansoa, por ter morto um homem.

— Há quantos anos?

— Não sabe.

—Então não sabe há quantos anos esteve preso?

Aqui o homem embaraçou-se, começou contando pelos dedos, repartia três de uma das mãos e três da outra e ia falando para o intérprete que, a espaços, aprovava com um aceno de cabeça.
Por fim traduziu:

— Ele diz que há mais de seis chuvas.

O juiz, voltando-se para o delegado, observou:

— Não consta do certificado...

O agente do Ministério Público depois de uma leve hesitação, explicou :

— Dantes, as administrações não mandavam os boletins. A justiça lá feita lá morria.

Dirigindo-se ao intérprete. o juiz informou:

— Diga-lhe que até aqui ele era obrigado a responder sob pena de desobediência. Daqui por diante só responde se quiser. Pode delegar a defesa no seu advogado oficioso. Quer responder?

— Quer.

— É verdade que ele quis matar o irmão com uma catana?

— É verdade.

— É porque estava bêbado?

— Não, não estava bêbado.

— Então, porquê?

Repetida a pergunta ao réu, este falou, fazendo gestos estranhos, avançando com os braços estendidos e as mãos encurvadas, agachando-se e abrindo os olhos desmedidamente, emitindonsons guturais, como se estivesse representando uma pantomima.

No final da cena, o intérprete explicou:

— Ele diz que o irmão, ao anoitecer, se vira em lobo e vem perseguir as pessoas da tabanca que se atrasam nos trabalhos do campo.

O juiz deu um salto na cadeira e, com ar severo, de quem não admite graças, disse:

— Advirta o réu de que neste tribunal não se brinca.

Nessa altura o advogado oficioso, mais filósofo do que advogado e que a filosofia levara a exilar-se em Africa havia mais de vinte anos, pediu a palavra para explicar que não havia, por parte do réu a mais pequena intenção de falta de respeito ao tribunal. Era assim: ele acreditava e todos os nativos acreditavam. Desconhecia S. Exa que nas aldeias, lá na Metrópole, o povo também acreditava em lobisomens?

O juiz, mais sereno, só comentava:

—É estranho! É estranho ! E isto em pleno século vinte! !...

— E tem V. Exa, Sr. Dr. Juiz, a certeza de que um homem não se pode transformar em lobo?!

— Mas há quaisquer dúvidas a esse respeito? — inquiriu o juiz, pasmado.

— Tenho-as eu, e grandes mas são contos largos que não vêm ao caso... Se V. Exa perguntar lá no seu íntimo o que é a realidade, talvez encontre um princípio de resposta para esta questão.

— Então o Sr. Dr. acredita...?

— Eu não disse que acreditava; eu conjecturei, quando muito.

— É o mesmo!

— Talvez...

E o advogado filósofo sorria, com um sorriso miudinho que mal lhe aflorava ao canto dos lábios, e parecia conferir-lhe um ar de superioridade e desdém.

O juiz suspendeu a audiência por um quarto de hora e, já no seu gabinete, mandou chamar o advogado. Este apareceu, ainda de toga, uma toga velha, a tornar-se ruça, atestando idade e má qualidade da fazenda. Sem mais preâmbulos, abertamente, o magistrado disse-lhe,

— Sou novato nestes casos de África. Estive quatro anos, como delegado, em Luanda, e lá, mal contactamos com os indígenas. Nunca vi nem ouvi falar destas superstições. O que mais me espanta é que o doutor, com a sólida cultura que me dizem ter, acredite nestas balelas populares...

Ia a continuar, mas o filósofo interrompeu-o:

—Perdão, Sr. Dr. Juiz. Eu não disse que acreditava. Pois, se nunca sei em que hei-de acreditar; se não consegui uma revelação que me afirme «isto é», como posso acreditar? Aceito as coisas, procuro encontrar a sua razão profunda e, até hoje, não a encontrei. O que existe é tudo o que vemos, sentimos e cheiramos, e só isso, ou antes: o que vemos, sentimos e cheiramos, não será uma ilusão dos nossos sentidos? A ciência com «c» pequeno. Bom arrimo para os que só gostam de trilhar os caminhos já percorridos...

E voltando-se de frente para o juiz:

— O que interessa neste caso é sabermos se o réu acreditava ou não que seu irmão se transformava em lobo e vinha comer as pessoas da tabanca. Se isso era uma realidade para ele,
tão real como a sua presença neste julgamento. Se, psicologicamente, ele agiu nessa convicção,
agiu em legitima defesa própria e colectiva ou então é juridicamente um inimputável: um caso de psicopatia a definir pelos médicos.

E acrescentou:

— Sr. Dr. Juiz: para mim, neste caso interessa a certeza da verdade do réu, desde que ela coincida com a certeza da verdade das testemunhas.

— Mas, então, vamos comtemporizar com a barbária?

—Dois mundos paralelos que, por mais que se prolonguem, não se encontram. — comentou o filósofo.

A audiência reiniciou-se passados momentos, com a audição do ofendido. Este explicou que
havia muitos anos, já, seu irmão o via com maus olhos, que o mataria porque era feiticeiro. Que o homem que o irmão matara fora grande amigo e companheiro dele, ofendido. Que não existia qualquer razão de inimizade entre ambos.

As testemunhas afinaram pelo mesmo diapasão, acrescentando que o réu era pacato, bom pai
de família e trabalhador. Matara um homem há anos, mas esse homem transformava-se em lobo e fazia mal à tabanca.

A instâncias do advogado declararam, ainda, que não havia dúvida de que o homem que ele
matara se transformava em lobo. Quanto ao irmão, não podiam afirmar, mas era voz corrente que também se transformava em lobo. Um pouco mais apertadas, vieram a confessar que toda a gente sabia que o homem se transformava em lobo e era um elemento perigoso na povoação.

Perguntados como é que um homem se podia transformar em lobo, foram unânimes em dizer
que bastava que ele fosse inteligente e tivesse nascido no primeiro tornado depois da primeira
chuva do ano.

O delegado e o advogado limitaram-se a pedir justiça. Um porque “crime era evidente”, outro,
porque era impossível refazer as consciências. O réu foi condenado em três anos de prisão maior.


SEGUNDO QUADRO

Na tabanca, à hora em que o Sol se esconde no horizonte e as pessoas velhas, de autoridade e
conselho, se reúnem para comentar os acontecimentos do dia. E nesse dia havia acontecimentos graves a comentar, porque tinham regressado as testemunhas do julgamento do Uaná. Mesmo aqueles mais velhos, que pela sua extrema idade já mal andavam, tinham vindo para se inteirarem de como tudo correra e saber da justiça do branco.

Taná, que fora como testemunha e, no consenso geral, era o mais avisado dos presentes, encarregou-se de contar o feito. Taná preparou o ambiente, mandando que os circunstantes se sentassem em círculo, por forma a que, no meio, pudesse falar para todos. Acenderam-se uns molhos de palha sobre os quais puseram uns troncos de árvores e Taná começou:

— Casa onde branco faz justiça é grande e bonita. Tem muitos bancos mas ninguém se senta neles. Numa mesa veio sentar-se um branco velho, de boa cara, mas vestia um fato com saias, como as mulheres deles, e pôs-se a escrever. Depois entraram dois brancos — com uma capa preta e logo a seguir outros dois brancos novos, também com saias de mulher. Todos se
levantaram : um deles era o dono da justiça dos brancos. O dono da justiça falou e nós fomos
levados para outra casa. Eu fui o primeiro a sair dessa casa e a voltar para onde estava Uaná. O
dono da justiça falava para um balanta que eles lá tinham e este perguntava-nos o que ele queria. Nós respondíamos. O dono da justiça não acreditava que um homem se pudesse transformar em lobo e perguntou-me multas vezes se era verdade. O tal branco que entrou primeiro, esse acreditava. Perguntou-me como era e eu dei uma resposta qualquer. Depois vi que o branco falava balanta — falava mal, mas eu percebi-o. O diabo até conhecia a nossa tabanca. Disse-me que já caçara um cavalo marinho na bolanha das palmeiras. Vocês lembram-se?

Houve uma pausa e um velho recordou que há muito tempo estivera ali um branco a caçar. Assim alto e forte, com uns vidros no nariz, até lhes tinha dado a carne do cavalo marinho...

— Já me lembro, já me lembro! — comentaram diversas vozes.

— Pois devia ser esse — aquiesceu Taná, que continuou contando as diversas cenas do julgamento, procurando imitar a voz e os gestos das pessoas.

Por fim, contou que Uaná, iria ficar preso durante três anos. Fez-se um silêncio geral em que se poderia ouvir um zumbido de um mosquito. Então o mais velho dos presentes comentou:

— Estes brancos são pessoas crescidas, mas têm coisas de meninos... Então o dono da justiça dos brancos não sabia que Uaná tinha razão?

E a pergunta ficou em suspenso porque ninguém podia imaginar o que o dono da justiça dos
brancos pensava.

Artur Augusto Silva (***)

[Originalmente publicado na separata Artes e Letras do "Diário de Noticias", de 24 de Maio de 1973: Sobre o autor, ver aqui a belíssima e exaustiva evocação feita pelo seu filho, João Schwarz da Silva, no seu sítio, Des Gens Intéressants]

2. Relembrando o Pepito (Bissau, 1949 - Lisboa, 2012)

Lisboa, campus da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade NOVA de Lisboa > 7 de setembro de 2007 > 

Neste rosto luminoso e fraterno, havia carisma, afabilidade, determinação, coragem física e moral, visão estratégica e capacidade de liderança, seis qualidades pessoais que eu identificava e admirava no engº agrº Carlos Schwarz da Silva (1949-2014), mais conhecido por Pepito ("nickname" que vem dos tempos da meninice: segundo o irmão João, o Carlos tinha um herói, uma das figuras de banda desenhada do "Cavaleiro Andante", o Agapito, um nome com 4 sílabas, difíceis de pronunciar por uma criança, e que ele abreviava, chamando-lhe "Pepito"). A foto foi tirada em 2006, sob uma pequena palmeira, que foi crescendo junto à fachada do edifício da Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa, na Av Padre Cruz, onde então trabalhava.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Lisboa > Campus da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade NOVA de Lisboa > 18 de fevereiro de 2016 > 

A palmeira cresceu, cresceu até gaklgar o segundo piso, estava vigorosa, contrariamente a muitas que na zona foram atacadas pelo escaravelho da palmeira (Rhynchophorus ferrugineus Olivier) e morreram... 

Sempre que passava por ela, lembrava-me do Pepito e da sua face luminosa, e continuava a sentir o vazio da sua ausência. Há uns meses atrás, em plena pandemia de  Coiviod-19, voltei lá e, para grande desgosto meu, tinham cortado a palmeira, possivelmente com o argumento de que, quando foi desenhado o edifício (pelo arquiteto Pardal Monteiro), ele não quis lá pôr nenhuma palmeira. 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

O Edifício da Escola Nacional de Saúde Pública, integrado no conjunto das instalações do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge. 

O projecto do edifício inicial foi desenvolvido pelo Arq António Pardal Monteiro e ficou concluído em 1972. Teve uma ampliação em 1985. Como se vê não há nemhuma palmeira. Foto s/d.

Foto: cortesia do sítio Pardal Monteiro Arquitectos



Portugal > Alcobaça > São Martinho do Porto > Estrada do Facho > Casa do Cruzeiro > c. 1957 > O pai, Artur Augusto Silva (1912-1983), com os filhos, da esquerda para a direita, João, Iko (já falecido)  e Carlos (1949-2014). Cortesia de João Schwarz da Silva, que nos diz que a data deve ser "provavelmente 1957"... Teria então o Pepito (, nascido em Bissau, em 1949) os seus oito anos...

Foto (e legenda): © João Schwarz da Silva (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
___________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:



(***) Último poste da série > 5 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9000: Antologia (75): Tarrafo, crónica de guerra, de Armor Pires Mota, 1ª ed, 1965 (8): Ilha do Como, 15 de Março de 1964: E Deus desceu à guerra para a paz (Último episódio)...

quarta-feira, 28 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18463: História de vida (44): O meu saudoso mano mais novo, Carlos Schwarz da Silva, "Pepito" (1949-2014) (João Schwarz da Silva) - Parte I


Lisboa > São Sebastião da Pedreira (ou S. Martinho do Porto?) > 1950 > Em primeiro plano, o Carlos, ainda bebé de meses,  mais os irmãos Henrique (Iko) e João.  Foto do amigo de família, António Lopes. (*)

Foto: © António Lopes (2009). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Portugal >  Lisboa >  s/d > Anos 50 > Clara Schwarz com os filhos, da esquerda para a direita, João, Carlos (1949-2014) (**) e Iko [Henrique] , também já falecido recentemente. (**)

Foto: © João Schwarz da Silva (2015). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 



Guiné-Bissau > Bissau > Quelelé > Campo polivalente do Quelelé > 18 de março de 2014 > Homenagem da ONGD AD - Acção para o Desenvolvimento ao Pepito > Homenagem ao Pepito, Carlos Augusto Schwarz da Silva (Bissau, 1949-Lisboa, 2014), por parte dos funcionários e parceiros da AD, bem como dos seus muitos amigos e admiradores. É no bairro do Quelelé que fica a sede da AD e a casa do Pepito e da Isabel bem como de outros amigos próximos (por ex., o Nelson Gomes).. Na foto, da esquerda para a direita, a filha mais velha, Cristina ("Pepas), a outra filha,  Catarina, a  viúva, Isabel Levy Ribeiro e o Henrique Schwarz da Silva, o irmão mais velho do Pepito.


Guiné-Bissau > Bissau > Quelelé > Campo polivalente do Quelelé > 18 de março de 2014 > Homenagem da ONGD AD - Acção para o Desenvolvimento ao Pepito > Em primeiro plano, o irmão, Henrique Schwarz  da Silva, o Ika (que vivia em Lisboa, enquanto o irmão João vivia e vive em Paris). O Ika, infelizmente, também já nos deixou o ano passado,

Fotos da AD - Acção para o Desenvolvimento, Bissau (2014).[Edição e legendagem; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]  (***)


Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1 de Março de 2008 > Visita ao antigo aquartelamento e tabanca de Guileje, no âmbito do Seminário Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008) > Pepito, um dos fundadores e então director executivo da AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau. Integrou a Tabanca Grande em finais de 2005. Era o único dos três irmãos que ficara a trabalhar em Bissau. Tinha apenas a nacionalidade guineense e vinha regularmente a Lisboa.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Luís Graça, com data de 5 do corrente, enviada ao João Schwarz da Silva, que vive em Paris, e administra e edita a página Des Gens Intéressants [, em francês, Pessoas Interessantes ou Notáveis].

Só agora li o seu depoimento sobre o Carlos, na página, que tem vindo a construir com tanta ternura, cumplicidade, labor, rigor e saudade... 

E confesso que me emocionei... Conheço mal o João, passei a conhecê-lo um pouco melhor... E gostei de ler o seu escrito, as suas (in)confidências sobre a vossa relação de uma vida, com todos os pequenos grandes problemas que há em todas as famílias do mundo...

Eu tive o privilégio de ser amigo (infelizmente, da 23ª hora...) do seu mano e da sua mãe, dois seres humanos de eleição, daqueles que precisamos de ter e manter no olimpo dos deuses, porque são mais do que homens, menos do que deuses... Quero eu dizer: precisamos dos seus exemplos, das suas histórias de vida, as suas memórias... 

Conhecemo-nos em 2006, como sabe, e a Guiné foi o nosso traço de união... Tornámo-nos bons amigos, nós e as nossas famílias.

O Carlos tem mais amigos e admiradores no nosso blogue da Tabanca Grande... E eu gostaria de poder partilhar com eles (e com um público mais vasto: o nosso blogue tem cerca de um milhão de visualizações de página por ano) a "petite histoire de vida" do Carlos, contada pelo mano João. 

Como podemos fazê-lo ? Através de um simples link para a sua página ? Ou da reprodução de alguns excertos, ao meu critério ?

O João logo me dirá o que é mais confortável para si e para a memória da família que eu prezo acima de tudo.

Uma boa noite, um "alfabravo" (ABraço) do Luís.

2. Amável resposta do João Schwarz da Silva, com data de 6 do corrente:

Caro Luís,

Obrigado pelos comentários. Utilize como bem entender o conteúdo do meu site. Não tenho preferências nenhumas. Tudo que possa contribuir para manter a memória do Pipito será sempre bem-vindo.

Um grande abraço, João


3. Damos início à reprodução do texto do João Schwarz da Silva sobre o seu malogrado mano mais novo, membro da nossa Tabanca Grande, e que tem por título Carlos Schwarz (Pipito), que nos deixou há 4 anos atrás.

Revisão / Fixação de texto / Subtítulos / Fotos: LG (****)


O meu  saudoso mano mais novo, Carlos Schwarz da Silva, "Pepito" (1949-2014)  (João Schwarz da Silva) - Parte I


O nascimento do Carlos Schwarz da Silva 
 em 1 de dezembro de 1949


Não me lembro bem que horas eram, mas sei que foi no dia 1 de Dezembro de 1949, à noite pois tanto o Ica como eu estávamos a dormir, quando o nosso pai Artur, nos acordou para anunciar com muita satisfação o nascimento do novo irmão. Tinha eu nessa altura 5 anos feitos e o meu irmão Ica (Henrique) 8.

Perguntei como se chamava, Carlos disse o meu pai que nos deixou voltar a dormir. Vivíamos nessa altura numa casa alugada na actual rua Marien N’Gouabi [, em Bissau,] que tinha a particularidade de ter uma enorme varanda que partilhávamos com os nossos vizinhos Osório e Isilda Flamengo, os pais do Fananeca que viria a ser grande amigo do Carlos.

Da varanda da casa podíamos ver do outro lado da rua, um descampado com um enorme poilão. À esquerda desse descampado havia uma casa que devia estar alugada a uma associação de músicos que se reuniam regularmente, penso eu, aos sábados para tocar musica. Para nós era uma atracção enorme pois eles conseguiam fazer uma barulheira incrível com trombetas e saxofones.

Depois do nascimento do Carlos, ficamos em Bissau mais uns meses pois entretanto a nossa avó Agatha tinha morrido em Lisboa em Agosto de 1950.

Clara, a nossa mãe, que adorava o pai Samuel, quando da morte de Ágata, não quis deixar o pai sozinho e pensou que seria uma boa ideia mandar-me a mim e ao Ica para Lisboa onde o avô Samuel se encarregaria da nossa educação. O Carlos ficou a viver em Bissau por ser pequeno demais e só voltamos a viver juntos depois da morte de Samuel que teve lugar em Junho de 1953.

No entanto nas férias do verão de 1951, os nossos pais vieram até Lisboa. Enquanto eu andava na escola primária ali mesmo, ao lado, na qual fiz a segunda e terceira classe, o Ica entrou para o Liceu Camões onde foi até ao 2° ano do liceu (terminou o primeiro ciclo).

Lembro-me particularmente do meu pai trazer latas de chocolate Cadbury-Mackintosh que tinha quilos de bombons que infelizmente tínhamos que partilhar com a numerosa primalhada que aparecia em casa do meu avô.

Em Lisboa vivíamos no 118, 1°,  na Av António Augusto Aguiar em frente ao que é hoje o Corte Inglês. Era um apartamento enorme com um corredor todo à volta e com tantos quartos que alguns estavam sempre fechados. Havia também uma sala dedicada à biblioteca do meu avô na qual se entrava em silêncio.


Lisboa, c. 1920 > Clara Schwarz (1915-2016), com os pais, Samuel e Ágata. 
Foto: cortesia de João Schwarz

A origem do 'nick-name', Pepito 
[ou Pipito]

Depois da morte de Samuel, em princípios de Outubro de 1953, regressamos a Bissau no navio Ana Mafalda que tinha algumas cabines de passageiros. A viagem durava sete dias e passamos pela Madeira e por Cabo Verde. A chegada a Bissau, como não havia ainda uma ponte cais, o navio ancorava no meio do rio e os passageiros iam para terra num barco a motor. O Ica tinha entretanto ido para Montreal no Canadá onde passou um ano em casa do tio Oles e da tia Sónia.

De regresso a Bissau em 1953, fui para a escola primária que nessa altura estava mesmo atrás do tribunal e lá fiz a quarta classe. Numa carta que escrevi ao Ica em Fevereiro de 1954 queixava-me de não ter ninguém com quem brincar pois o Pepito só queria andar de triciclo. Lembro-me que nessa altura tínhamos uma empregada doméstica, a Vitoria (Toia), que levava o Carlos a passear até à ponte cais do Pidgiguiti. Passando um dia em frente do tribunal, tentei explicar ao Carlos que era ali que o nosso pai trabalhava

As únicas revistas de banda desenhada para jovens que se podiam comprar em Bissau eram o Mundo de Aventuras e o Cavaleiro Andante que apresentavam heróis como o Sitting Bull, o Beau Geste ou o capitão Hadock. Numa das múltiplas histórias contadas no Cavaleiro Andante aparecia um herói que se chamava Agapito. Não sei porque razão pensei em atribuir ao Carlos o nome de Agapito, o facto é que ele não conseguia dizer Agapito e dizia em vez Pipito. Ficou-lhe o nome para a vida inteira, pelo menos na Guiné.

Continuamos a viver na mesma casa com o Fananeca ao lado. O Pipito durante esse tempo mostrou-se sempre extremamente irrequieto, passando a vida a aparecer debaixo das cadeiras ou surgindo debaixo da mesa, a tal ponto que usávamos a expressão “lagartixa eléctrica” para nos referirmos a ele.

Frequência do liceu Honório Barreto 
e férias em Varela


Entrei para o primeiro ano do liceu, na altura colégio-liceu Honório Barreto, no Outono de 1954. Situado na praça do Império à direita do palácio do governador, era um liceu muito pequeno com um número muito reduzido de alunos, que mais tarde foi convertido em museu. Fiz neste edifício o primeiro ciclo.

Durante a minha estadia na Guiné, de Outubro 1953 ao verão de 1962, íamos todos os anos pelos menos na altura do Natal e na Páscoa até Varela, onde ficávamos hospedados no hotel do Sr. Pireza. Nos primeiros tempos a ida de Bissau para Varela era uma verdadeira expedição que levava quase 8 horas com a travessia de dois rios (e duas jangadas) e com múltiplos percalços no percurso (pontes de madeira sem traves, vacas a passear, jiboias a atravessar a estrada) passando por Mansoa, Bissorã, Barro, Ingoré, Sedengal, São Domingos , Susana e finalmente Varela.

Em Varela, o Pipito quando não íamos à praia, passava o tempo a jogar pingue-pongue com os amigos, e a brincar com o chimpanzé do Sr. Pireza que passeava em liberdade pelo restaurante no terraço a pique sobre o mar.

Ao fim de um certo tempo o meu pai decidiu mandar fazer uma casa que hoje é uma ruína.

A diferença de idades entre o Pipito e os irmãos mais velhos (8 anos e 5 anos) levou a que ele fosse sempre tratado pelos irmãos com uma certa condescendência. Aproveitávamos o facto de sermos mais velhos para lhe dar ordens, às vezes com atitudes muito despóticas. Uma vez em Bissau consegui levar o Pipito a tal extremidade de desespero que ele me atirou uma faca de cozinha que veio a voar até se espetar na porta que eu tive tempo de fechar.

Em Lisboa no apartamento da rua Augusto Gil, alugado pelos meus pais (Setembro 1961) em preparação da nossa vinda para a universidade, lembro-me de duas histórias que levavam o Pipito ao auge da revolta contra o despotismo. Uma delas fazia alusão ao facto de a certa altura o Pipito ter engordado mais do que seria de esperar. Deveria ter ele 11 ou 12 anos. O meu irmão Ica começava o gozo com um anúncio radiofónico da extracção da lotaria Santa Casa da Misericórdia. O Ica ia dando os números sorteados e eu respondia, 10 contos, 20 contos etc., e o Pipito começava a espumar. O anúncio dos números sorteados continuava até que finalmente saía o primeiro prémio. Nessa altura o locutor da Santa Casa gritava que nem um possesso “Saiu a Gorda” e o Pipito entrava em transe pois o Ica e eu começávamos a dançar à volta dele uivando “A Gorda”, “A Gorda”.

Mais tarde e não sei porque razão se não a de colocar o Pipito em transe, uma nova história foi inventada. Dizia o Ica num tom muito solene “O general saiu a dar o seu passeio matinal, selem o minhoca” . Nessa altura eu obrigava o Pipito a agachar-se para que o general pudesse montar a cavalo. O Ica exibia uma chibata fictícia para acelerar o processo e o Pipito perdia totalmente as estribeiras.

Talvez tenha sido por este motivos que o Pipito durante toda a vida deu provas de irritação quando confrontado com o abuso de poder. Manifestava uma aversão total em relação à arrogância de uns, ao despotismo de outros e à imbecilidade de muitos.  Neste último caso reagia contra, com um humor acérrimo herdado do pai,  o que penso deve ter contribuído para um certo número de inimizades.

No verão vínhamos quase sempre a Portugal e passávamos as férias em São Martinho do Porto, com toda a primalhada. No verão de 1958, fomos todos, em dois carros, até Bruxelas para ver a Exposição Universal. Quatro anos mais tarde fomos a Marrocos de carro,  passando por Algeciras, Ceuta Tetuão e Tânger.

(Continua)

___________

Nota do editor - Leituras adicionais: vd. página de João Schwarz:

(i) Sobre o avô materno Samuel Schwarz (Zgierz, Polónia, 1880 - Lisboa, 1953) > Des Gents Intéressants > Samuel Schwarz (em francês);

(ii) Sobre o avô paterno Artor Augusto da Silva (Nova Sintra, Ilha da Brava, Cabo Verde, 1912 . Bissau, 1983) > Des Gents Intéressants > Artur Augusto Silva

(iii) Vd. também, no nosso blogue, o texto autobiográfico do Pepito > 31 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3101: História de vida (13): Desistir é perder, recomeçar é vencer (Carlos Schwarz, 'Pepito', para os amigos)

(***) 27 de março de 2014 > Guiné 63/74 - P12904: Notícias dos nossos amigos da AD - Bissau (35): Grande e sentida homenagem ao Pepito (1949-2014), no bairro do Quelelé, em Bissau, onde fica a sede da ONDG e a casa de família

(****) Último poste da série > 4 de dezembro de 2015 >  Guiné 63/74 - P15445: História de vida (43): Anda(va) meio mundo a enganar o outro... Ou o conto do vigário em que caiu a minha pobre mãe quando eu estava em Galomaro e lhe apareceu à porta de casa um falso camarada meu... (Juvenal Amado, autor de "A tropa vai fazer de ti um homem", Lisboa, Chiado, Editora, 2015, 308 pp.)