sábado, 29 de maio de 2021

Guiné 63/74 – P22234: (Ex)citações (385): Recordando as minhas lavadeiras (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR da CART 3493/BART 3873)

Guiné > Região do Cacheu > Teixeira Pinto > Março de 1973 > As lavadeiras no lavadouro público
© Foto de Francisco Gamelas, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 3089 (Teixeira Pinto, 1971/73)


1. Mensagem do nosso camarada António Eduardo Ferreira (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CART 3493/BART 3873, MansamboFá Mandinga e Bissau, 1972/74) com data de 28 de Maio de 2021:

Amigo Carlos
Uma vez mais a conversa do costume, que te encontres de boa saúde. Que mais podemos nós desejar depois do tempo que já passou. Poder ambicionar mais podemos, mas nunca devemos esquecer que quando a saúde falta o resto pode ter pouco valor.

Recebe um abraço
António Eduardo Ferreira


Recordando as lavadeiras

Depois de muito ter ouvido falar acerca das lavadeiras que tínhamos na Guiné, nem sempre pelos mesmos motivos, hoje decidi falar das duas que tive durante o tempo que passei em Mansambo. A primeira foi a Califa, uma menina ainda muito nova. A esta distância no tempo já não me lembro como foi que ela apareceu como minha lavadeira, talvez já desempenhasse esse serviço para os condutores que nós fomos substituir, apesar da sua idade… era muito responsável. Passados alguns meses da nossa companhia estar naquele local, a Califa deixou Mansambo e foi casar com um homem bastante mais velho que ela. Foi mais um acontecimento que me causou algum espanto… o que era normal para quem não tinha nenhum conhecimento da vida e das tradições daquele povo, como era o meu caso… ver uma menina com tão pouca idade ir casar com um homem muito mais velho, que diziam… já ter mais algumas a quem ela se ia juntar!

Depois da partida da Califa… a minha lavadeira passou a ser outra de quem já não me recordo o nome, mas não esqueci que era alguém bela elegante e muito calma, sempre bem vestida mais parecia uma menina identificada com outro tempo!... Apesar de ainda nova já tinha um filho que trazia sempre consigo quando vinha buscar ou entregar a roupa. Pouco tempo antes da nossa saída de Mansambo para Cobumba, um dia estava eu sozinho no abrigo, como acontecia muitas vezes, quando ela lá apareceu levar-me a roupa com o seu menino ainda pequeno às costas, como era hábito das mães… andarem com os filhos, sentou-se na minha cama com o semblante carregado próprio de quem estava a sentir-se perturbada e disse-me, António estou grávida. Notava-se que tinha vontade de falar… não sei se seria com todas as pessoas… estivemos algum tempo a conversar em que foi ela quem mais falou, entre outras coisas, disse-me que o pai do seu filho e daquele que vinha a caminho… também era tropa e naquela altura estava em Bambadinca. Depois de termos estado algum tempo a falar, quando abalou as lágrimas bailavam-lhe nos olhos, o que me deixou por momentos algo perturbado. Das mulheres com quem tive oportunidade de falar e de ouvir durante o tempo que estive na Guiné, atendendo ao tempo que por lá andei não foram muitas… era aquela alguém diferente de todas as outras!...

Em Cobumba não tive lavadeira, nem ouvi falar que houvesse por lá alguém que tivesse. A roupa que eu lá trazia vestida também era pouca, apenas uns calções e nos pés uns chinelos de plástico sem peúgos. Só durante a noite quando estava de serviço, a fazer reforço, que fazia todas as noites, algumas vezes vestia o camuflado. A minha falta de jeito para lavar roupa, apesar de ser pouca a que tinha de lavar, ajudou a valorizar ainda mais o serviço das lavadeiras que tive em Mansambo. Espero que ainda por lá estejam… e que a vida lhe tenha corrido o melhor possível.

António Eduardo Ferreira
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE MAIO DE 2021 > Guiné 63/74 – P22219: (Ex)citações (384): As crianças de Mansambo e de Cobumba - Que jamais esquecerei (António Eduardo Ferreira, ex-1.º Cabo CAR da CART 3493/BART 3873)

Guiné 61/74 - P22233: Os nossos seres, saberes e lazeres (453): A estação de Metro dos Anjos, Maria Keil intemporal, a obra como ela a deixou (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Abril de 2021:

Queridos amigos,
Dentre a variedade de gostos com que cada um de nós é dotado, confesso publicamente o meu fascínio por azulejo, foi-me inculcado por uma tia que igualmente reparava e colecionava leques, habituou-me a olhar as artes decorativas não como uma subalternidade ou uma menoridade face às artes plásticas mas como um qualquer rasgo de génio já que a própria palavra decoração tem o valor amplo de que qualquer manifestação artística não prescinde. E por isso me passeio nas estações de Entrecampos, Colégio Militar ou Alameda, com a mesmíssima devoção com que contemplo o trabalho maravilhoso de Maria Keil, que chegou às artes do Metro depois de um longo percurso pela publicidade e outras artes gráficas, conhecedora da pintura e sua praticante (mas que cedo descobriu no seu lampejo modernista era um registo equivalente a tantos outros e por isso parou), habituando-se a ligar o azulejo à arquitetura.
Na homenagem que o Museu Nacional do Azulejo lhe prestou em 1989 começa por dar a interpretação do que é para ela o azulejo: "É essencialmente uma presença, um brilho. Liso ou trabalhado, de extrema simplicidade ou de extrema riqueza, é sempre perturbante. Para mim, o bom azulejo é uma grande arte difícil". Trabalhou no Metro a partir de 1958, contou com a Fábrica Viúva Lamego e com a ajuda de um grande artista, Jorge Barradas. Sabia que não podia socorrer-se da figuração, no seu lastro de experiência usara sobrearticulações e explorações geométricas, irá aplicá-las metodicamente, todas as estações serão diferentes umas das outras. Destruíram-se os seus azulejos em duas estações de Metro, Saldanha e São Sebastião. No final da entrevista, diz algo de muito belo: "Um viajante do século XVIII que passou por Lisboa, escreveu nas suas memórias de viagem que Lisboa era uma cidade onde havia casas de loiça. Gostei muito da imagem".

Um abraço do
Mário


A estação de Metro dos Anjos, Maria Keil intemporal, a obra como ela a deixou

Mário Beja Santos

Ainda no século passado (1996), o Metropolitano de Lisboa homenageou a artista que de 1959 a 1972 azulejou as estações do Metro então existentes. Foi então entendido que a estação Anjos devia ser integralmente preservada, ficaria ali a memória de uma época. Foi durante aquele período de 1959 a 1972 que se tomou a decisão de revestir as paredes das estações com azulejos decorativos. No leme do projeto arquitetónico estava Francisco Keil do Amaral e escolheu-se Maria Keil que já tinha vasto currículo no desenho publicitário, nas artes gráficas, na ilustração e que ao longo da década de 1950 se iria notabilizar na azulejaria como forma de arte urbana. Os seus estudiosos ainda hoje pasmam como ela obteve um tão constante equilíbrio entre a tradição e a modernidade. O grande segredo talvez resida no recurso a uma enorme variedade de tonalidades, ao jogo de círculos e formas polifacetadas com a incorporação de padrões plurais, gerando sinuosidades e a ilusão de planos avançados e recuados. Foi sempre diferente nas 19 estações que decorou. Ficou ligada ao primeiro ciclo de construção do Metropolitano de Lisboa e à valorização plástica de todo o espaço público do transporte urbano mais frequentado da capital. A estação Anjos foi a 15.ª a ser construída, inaugurada em 1966 quando o comprimento da linha foi ampliado para 8,5 quilómetros, a partir dos 7 quilómetros que tinha, quando atingiu a estação Rossio. A estação não escapou à regra até então seguida de pequenos átrios nas duas extremidades do cais, estações construídas a profundidades relativamente reduzidas. A estação Anjos tem cerca de 200 metros de comprimento total. Houve depois uma segunda fase de obras em que colaborou outro artista, Rogério Ribeiro, em 1976.
Autorretrato
Capa de Maria Keil para uma publicação do SNI
Os Pastores, Maria Keil, Museu Nacional do Azulejo
Painel da Avenida Infante Santo, Maria Keil

Em 1989, o Museu Nacional do Azulejo apresentou uma exposição sobre os azulejos de Maria Keil. Na introdução do catálogo refere-se que a artista se estreou nas artes gráficas em 1936, colaborou com outros artistas como Fred Kradolfer e Cândido Costa Pinto, assim foi descobrindo a economia dos elementos utilizados, a ausência de retórica, a procura da leitura direta. Não é difícil encontrar nestes seus primeiros projetos de artes gráficas uma das matrizes da sua arte azulejar, é o caso da sobrearticulação de planos e a exploração de efeitos de num espaço aparentemente monótono introduzir uma variante. Foi indiscutivelmente uma artista polifacetada, compôs cenários, aventurou-se na arte do mobiliário, foi pintora durante algum tempo. O seu autorretrato mereceu o Prémio Sousa Cardoso.
No catálogo da exposição em sua homenagem, escreve algo que abona para o currículo da futura decoradora do Metropolitano. Fala-se nas primeiras tentativas de renovação do azulejo português na década de 1930 a que estiveram ligados artistas como Bernardo Marques, Carlos Botelho, Fred Kradolfer, Paulo Ferreira e Tom e mais tarde Jorge Barradas. É neste meio que Maria Keil emerge na produção de azulejaria moderna. Começa pelo uso da figura e a sua articulação com o padrão, nasce o sentido da geometria, da organização reticular e a sobreposição é evidente no seu painel de azulejo Os Pastores, datado de 1955. Amadureceu, parece que subtraiu o azulejo aos processos da pintura e da estilização de formulários antigos, encontrou sentido para uma nova dimensão ótica e espacial, que permite passear o olhar entre a figura e o padrão. Está, pois, preparada para enfrentar a tarefa de dar pele às paredes do Metro.
Em 1956 encontra uma solução espantosa para revestir uma das paredes escadeadas de um bloco habitacional, projeto do arquiteto Alberto Pessoa, na Avenida Infante Santo, em Lisboa. É sem margem para dúvidas uma obra-maior do azulejo contemporâneo. Está tudo pronto para a multiplicação de revestimentos azulejares, encontrar soluções cenográficas simples nas dinâmicas, em função dos ritmos de utilização, ascendente e descendente, dos lances das escadas, do revestimento dos átrios, superando habilmente os tons quase monocromos, suscitando uma intensa animação de retalhos, incorporando cartelas. Daí os contrastes de várias dimensões de um mesmo padrão, ruturas com estilizações modernizantes de motivos antigos. E não me coíbo de uma citação: “Na estação Anjos, as barras de arremate dos prédios do início do século são deslocadas para uma notável ação de mobilidade entre os círculos da padronagem, como se arrastados no rodopio imparável de uma estrela cadente, até desaparecerem no humor de uma linha, visível quando o passageiro dá os primeiros passos na plataforma da estação”.
Numa conversa com uma programadora da exposição, explicou as técnicas que utilizou: “O ostracismo a que o azulejo tinha sido votado no século XIX tinha arrastado consigo algumas técnicas e usos tradicionais. Diante daquelas possibilidades de criar novos padrões para as estações do Metro, surgiu a possibilidade de também recuperar algumas técnicas. Os dirigentes da Fábrica Viúva Lamego puseram nisso os seus conhecimentos, o seu entusiasmo, ensinaram-me, ajudaram-me. Assim, na estação Intendente, foi usada a técnica da corda seca; na estação Anjos reviveram-se as barras que decoram os prédios do princípio do século; nos Restauradores fez-se uma ligação de motivos do século XVIII com um padrão moderno…”. E dirá mais adiante: “Eu só fiz parte de um movimento que começava. Estava-se num tempo de reconquista. Isto é, da tal reabilitação”.
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22218: Os nossos seres, saberes e lazeres (452): Lembranças para Gonçalo Ribeiro Telles (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P22232: Antologia (78): Estereótipos coloniais: os fulas, "maus criadores de gado e piores agricultores"... (excerto de Geografia Económica de Portugal: Guiné / coordenado por Dragomir Knapic. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa, 1966, 44 pp)


Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12 (1969/71) > 
Destacamento da Ponte do Rio Udunduma > Uma manada de vacas, cambando o Rio Udunduma... Possivelmente pertencentes a um notável fula da região (Amedalai, por exemplo, que era a tabanca mais perto)... Só com muita relutância os fulas vendiam cabeças de gado à tropa... O gado era, tradicionalmente, um "sinal exterior de riqueza", um símbolo de "status" social, dizia a ideologia da "psico"...







Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Já aqui temos utilizado algumas estatísticas económicas relevantes para a compreensão do passado colonial da Guiné-Bissau, extraídas de uma das famosas sebentas de  Dragomir Knapic (1926-2006):

Geografia económica de Portugal : Guiné / coordenado por Dragomir Knapic. - Lisboa : Instituto Comercial de Lisboa, 1966, 44 pp., brochura policopiada.

Trata-se de uma "sebetenta", para uso dos seus alunos do Instituto Comercial de Lisboa, baseada na conpilação de fontes primárias, com algumas citações mas sem referências bibliográficas. Não sabemos se o autor, geógrafo, pedagogo, grande divulgador da geografia económica de Portugal, "continental, insular e ultramarino", alguma visitou a  Guiné ou outros territórios como Angola. 

Nesta brochura, o autor deve ter utilizado, como fontes, além das estatísticas económicas, os relatos dos etnógrafos coloniais. Embora em 1966 já estivesse ao rubro a guerra colonial ou guerra do ultramar, o autor (ou compilador dos dados), é parco em referências ao conflito que teve efeitos negativos na demografia e na economia do território. 

Talvez por autocensura, nunca refere também os efeitos perversos das culturas comerciais impostas às populações locais pelos europeus, como era o caso da "mancarra" e outras oleaginosas. Bem pelo contrário, já defendia a extensão da cultura do caju: " O caju poderá vir  a assumir no futuro um papel de primeiro plano no desenvolvimento agrícola e industrial da Província" (p. 28).

A descrição, que se segue (*),  deve ser devidamente contextualizada e lida com olhar crítico. Não tem qualquer intenção polémica.  Há, obviamente, "estereótipos coloniais" neste retrato do fula enquanto "homo oeconomicus", estereótipos que eram também partilhados e replicados, com muita ligeireza, na caracterização socioeconómica feita nas nossas Histórias da Unidade, e pelos militares da "psico"... Se por um lado os fulas eram aliados, "tradicionais e leais", das autoridades portuguesas da época na luta contra o PAIGC, o fula saia sempre mal na comparação das "qualidades de trabalho" com outros grupos étnicos como os balantas, por exemplo. Os balantas eram orizicultores, por excelência, com técnicas agrícolas mais avançadas que os fulas. Mas a sociedade fula era mais compleza e hierarquizada. Sabemos que o Amílcar Cabral não morria de amores pelos fulas, e via no balanta o "bom selvagem"... Em c0ntrapartida, os spinolistas  viam  os fulas sobretudo como "místicos e guerreiros"... Enfim, estereótipos sociais...

Esperamos que o texto possa ser enriquecido com os comentários dos nossos leitores, e nomeadamente dos nossos amigos e camaradas de origem fula, como Cherno Baldé (**), bem como por aqueles que, no TO da Guiné, lidaram com as comunidades fulas entre 1961 e 1974.

Sobre os fulas temos cerca de 180 referências no nosso blogue, Sobre os balantas temos uma centena.. Relativamente aos dados de 1950, os balantas eram o grupo mais populoso (31,4%), seguido dos fulas (21,2%), os manjacos (14,0%), os mandingas (12,5%) ... Estes quatro grupos étnicos  representavam cerca de 80% do total da populaçao que era de 510 777 (em 1950).

2. Dragomir Knapic > Notas biográficas
Dragomir Knapic (1926-2006).
Foto: cortesia de
FCSH/NOVA 



(i) Dragomir Janko Edvard Torres Pereira Rodrigues de Lima e Knapič nasceu em Lisboa a 3 de Dezembro de 1925 e faleceu na mesma cidade, a 16 de Outubro de 2006.

(ii) Apesar de, em parte, ter origens familiares eslovenas, Dragomir Knapič viveu quase toda a sua vida em Lisboa, embora na juventude tivesse estado algum tempo na Alemanha, tendo estudado no colégio jesuíta de Koenigswinter, entre 1932 e 1939. 

(iii) No ano seguinte, regressou a Lisboa, onde completou os estudos liceais no Liceu Pedro Nunes, ingressando depois na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em 1951. Ali cursou Ciências Geográficas, formando-se em 1955, tendo iniciado, em seguida, a carreira docente, que foi a sua actividade principal, ao longo de meio século. 

(iv) Leccionou História e Geografia, no Colégio da Bafureira, Geografia Económica, no Instituto Comercial de Lisboa e Geografia Turística, no Instituto de Novas Profissões, também em Lisboa-

(v)  O ensino foi a sua vocação, encarando a investigação e os estudos que desenvolvia na sua área como meios para ampliar conhecimentos que se destinavam a ser levados por si aos seus alunos.

(vi) Assim, numa outra vertente pedagógica, destacou-se como autor de manuais escolares de Geografia, Ecologia, Biologia e Ciências Sociais, adoptados nos anos 60, 70 e 80 e ainda de outras obras de temáticas afins. 

(vii) "As costeiras de Lisboa : elementos para o estudo da morfologia da região de Lisboa! (1955), foi a sua dissertação de licenciatura e publicou também "Considerações sobre o Comportamento Morfoclimático do Maciço Eruptivo de Sintra" (1965),"Apontamentos de Geografia Turística" (1990), entre outros trabalhos.

(viii) Muito estimado por todos os alunos que passaram nas suas aulas e reconhecido pelos seus pares, foi por isso homenageado três vezes em escolas a que esteve ligado: em 1965, foi-lhe prestada homenagem pelos Alunos do ISCAL, pela sua dedicação ao ensino da Geografia; em 1992, o Instituto de Novas Profissões celebrou os 28 anos da sua actividade ali desenvolvida e o mesmo em 2004, comemorando, desta feita, os 40 anos de ensino nessa Instituição que, à altura, se designava Instituto Superior de Novas Profissões. 

Fonte: Adapt de Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa > BMSC - Biblioteca Mário Sottomayor Cardia > Doação Knapic

PS - Era cunhado do nosso camarada Mário Beja Santos (, sendo casado com uma irmã), e foi este  nosso camarada e colaborador permanente do blogue,  quem ofereceu esta brochura à biblioteca da Tabanca Grande. O livrinho tem informações preciosas sobre a Guiné dos anos 60: (i) condições naturais; (ii) população; (iii) agricultura; (iv) pesca e indústria; e (v) comércio e circulação.

O Instituto Comercial de Lisboa (1918-1976) foi o antecessor do atual ISCAL - Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa, hoje integrado no ensino superior politécnico.

3. Antologia> Os Fulas, por Dragomir Knapic

A área ocupada pelos Fulas é constituída pela zona  mais interior  que se caracteriza sobretudo pelo domínio da savana arbustiva.

Tem-se falado muito nos Fulas como pastores nómadas, mas eles não são verdadeiros criadores de gado. Os bois quase  não lhes servem para nada. Nem sequer são um símbolo de riqueza. O boi não é animal de carga, nem de tracção. Não fornece carne para a alimentação.

O Fula não sabe curtir devidamente as peles. Utiliza o leite, fresco ou “dormido” (coalhado), este com papel importante na alimentação, mas não sabe mungir bem. Não sabe também  desmamar convenientemente os vitelos. Não faz selecção de certas variedades  de vacas Ndama excepcionalmente leiteiras.

Quando castra os vitelos fá-lo de maneira bárbara. Não abriga convenientemente os animais. Na época seca  por falta de pastos a mortalidade entre os animais novos é elevada, tanto mais que  as manadas fulas  estão cheias de vacas velhas que constituem  um peso morto.

O Fula recorre à queimada para renovar os pastos, mas sem qualquer controlo. Assim destrói cada vez mais a vegetação e os solos. “Sinal de nobreza, parece que o boi goza dos próprios privilégios do nobre; nenhum esforço,  nenhum fim utilitário”. Trata-se de uma autêntica bovimania.

Quando se sedentarizaram, os Fulas, que já eram medíocres pastores, tornaram-se maus agricultores. Começaram por pôr os cativos a lavrar  e tiveram eles próprios de o fazer quando se deu a ocupação europeia qur arruinou o feudalismo fula. Esta mudança obrigou-os a trabalhar, quer para  se alimentarem, quer para arranjarem  o dinheiro necessário às suas compras e ao pagamento do imposto.

A ruina em que se encontra o Futa-Jalão, incluindo o Boé,  é atribuída ao primitivismo agrícola dos Fulas, a floresta é derrubada para no seu lugar se fazerem culturas de arroz de sequeiro.

O esgotamento sucessivo leva ao emprego de outras culturas menos exigentes, no final recorre-se ao  fundo (Digitaria exilis) que acaba por deixar o solo arrasado, mas ainda se tenta aproveitar os últimos restos de fertilidade. Faz-se uma monda de todo o capim que é reunido em pequenos montes, aos quais se junta bosta de vaca.  Pega-se-lhes então fogo e espalham-se as cinzas pelo terreno empobrecido. Faz-se assim um sementeira final de arroz de sequeiro.

Ainda que sedentarizado, o Fula denota no seu povoamento um carácter menos estável do que as populações do litoral. São numerosas as designações de Sinchã ou povoação nova, a palhota  é circular, de paredes de terra. Várias constituem a morança familiar. Estas distribuem-se de modo irregular, confinando pelas sebes que as rodeiam. Os  arruamentos  são reduzidos, conduzindo todos à mesquita ou ao suntura, local de reunião.


Fonte: Adapt. de Dragomir Knapic - Geografia económica de Portugal: Guiné. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa, 1996, policopiado, pp. 18/19.

Seleção, transcrição, revisão e fixação de texto, incluindo o título do poste, para efeitos de edição neste blogue: LG
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Notas do editor:

(**) Vd. poste de 10 de março de 2021 > Guiné 61/74 - P21992: (Ex)citações (393): por que razão é que os fulas não gostavam de vender as suas vacas à tropa (Cherno Baldé, Bissau)

(...) É verdade que os camponeses fulas não gostavam de vender o seu gado e a razão é muito simples, era e continua a ser a única riqueza que têm e com a qual podem contar para se socorrer em casos de necessidade da família e da comunidade ou ainda em casos de calamidades naturais ligadas as suas actividades de sobrevivência.

Só quem (sobre)vive da terra, da agricultura, percebe as dificuldades e incertezas com que se deparam e num pais onde não existem nem subsídios, nem financiamentos ao agricultor.

Para nós, na tabanca, tirar uma galinha já representa um grande sacrifício. E de mais a mais, as manadas representam uma propriedade colectiva onde crianças, mulheres e homens adultos, cada um tem a sua vaquinha para seu sustento (ordenha do leite) e a sua poupança para o futuro a titulo individual e colectivo.(...) 

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22231: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (54): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Maio de 2021:

Queridos amigos,
Chegaram novos intérpretes a Bruxelas, a União Europeia cresceu, vêm do Mar Báltico e também do Mediterrâneo e dos Balcãs. O coordenador destes intérpretes organizou um itinerário turístico no Monte das Artes, o ponto de ligação entre a parte alta e a Baixa de Bruxelas. E Annette conta a Paulo o que visitaram, sabendo que ele conhece todos estes lugares mas que os revisitará de bom grado, seja em que ocasião for. Annette está feliz, Paulo virá duas vezes em junho, num caso será visita de médico, foi convidado a fazer uma comunicação sobre a presença portuguesa na Bélgica, desde a Borgonha em Portugal, inevitavelmente que os Saxe-Coburgo-Gota serão referenciados, até vai aparecer Almeida Garrett na corte do primeiro rei da Bélgica; e depois partirão, o pretexto é visitar cemitérios na Bélgica e em França, para referenciar campas, a pedido de um amigo de Paulo. Há quatro anos, praticamente, que este relacionamento amadureceu, sente-se que ambos procuram renovar os muitos anos que faltam para poderem viver permanentemente juntos, felizmente que Paulo tem condições para por ali andarilhar, Annette aceita de bom grado viver em Lisboa aquele mês em que também há férias nas instituições europeias.

Um abraço do
Mário


Rua do Eclipse (54): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Cher Paulo, infiniment adoré, agora é a minha vez de te surpreender com o relato de um passeio que dei num lugar do centro de Bruxelas que tu tanto aprecias, o Monte das Artes, como tu dizes a Albertina. Vai para duas semanas, o nosso coordenador de interpretação informou-nos que iria preparar uma visita turística com as intérpretes que vêm de alguns dos novos países que entrarão na União Europeia em 2004, concretamente alguns dos colegas de Malta, Croácia, Roménia, Bulgária e Países Bálticos. O senhor Patrick de Rynck confessou que tivera instintos megalómanos, queria que o passeio começasse junto da estátua do Rei Alberto I, houvesse uma visita muito sumária Biblioteca Real, subíssemos até junto do Hotel Ravenstein, aqui haveria uma apresentação do Monte das Artes e a sua história, seguiríamos para a Praça Real, outra visita sumária ao Museu de Belas-Artes, far-se-ia uma pausa para uma refeição ligeira, depois o Palácio das Belas-Artes, o Palácio de Carlos de Lorena e desceríamos pela Galeria Ravenstein até ao centro, acabando o passeio na Grand-Place com a apresentação de todos os belos edifícios que a constituem. Descobriu que iria empanturrar as pessoas de referências, ao fim da tarde estariam todos com os pés a ferver. E moderou-se, abreviou o passeio, encontrou dois bons guias que prometeram um programa conciso entre as nove e a uma da tarde, com um café de premeio.

Foi um sábado maravilhoso, uma temperatura amena, uma manhã cheia de sol. O primeiro guia, Thierry Timmerans, mesmo junto à estátua de Alberto I, e sem referir o historial deste rei-soldado, descreveu que lá em baixo corria o rio Senne, hoje escondido do público, está perfeitamente abobadado, custou a destruição da área medieval para dar lugar aos grandes boulevards que correm ali ao pé da Grand Place. Falou dos sonhos régios de fazer desta região que ascende até à Praça Real um lugar de Artes. Um tanto a despropósito disse que Bruxelas estava intimamente ligada à sua posição de zona de contato estratégico decorrente do desmantelamento do império de Carlos Magno. Há pouco mais de mil anos, e sublinhou que era segundo a tradição, o Duque da Baixa Lotaríngia escolhera Bruxelas como centro dos seus Estados. Depois falou do crescimento económico e demográfico que se deu na região a partir do século XIV e das trocas comerciais com a Inglaterra. As famílias prósperas começaram a viver neste local do Brabante que iria ganhar preponderância a Lovaina e concorrer com Bruges e Gand. É uma época de grandes construções como o edifício da Câmara, a Igreja do Sablon, a Igreja de Santa Gudula e também a Igreja de Nossa Senhora da Capela. Num ponto ali próximo situava-se o palácio ducal de Coudenberg. O esplendor de Bruxelas será atingido no reinado de D. Carlos V, segue-se um período de revoltas contra Filipe II, que termina com execuções. Vieram depois os arquiduques Alberto e Isabel, Bruxelas é então a capital dos Países Baixos meridionais católicos. Tudo mudará no fim do século XVII, Luís XIV manda bombardear Bruxelas. E mais disse que o governador Carlos de Lorena, em 1776, mandou desenhar a Praça Real. Continuou a sua breve narrativa falando das tropas revolucionárias francesas em Bruxelas, as consequências da batalha de Waterloo, a independência da Bélgica e como Bruxelas se afirmou como uma terra de acolhimento aos olhos dos refugiados. Com a independência, e tendo o rei meios, Leopoldo II aspirou e conseguiu dar a Bruxelas as dimensões de capital. Passou em revista as urbanizações deste rei e período áureo da Bélgica industrial, estamos no início do século XX. E acabou a sua apresentação falando de Arte Nova, dos grandes boulevards, das construções megalómanas como o Palácio da Justiça, e como todo este centro histórico iria ser profundamente abalado pela criação da Comunidade Económica Europeia, chegando-se à desertificação do centro ocupado pelos estabelecimentos comerciais, escritórios e zonas habitacionais de imigrantes, sobretudo. Fomos subindo para os belos jardins do Monte das Artes, referenciada a Biblioteca Real de um lado e o Palácio dos Congressos do outro. Monte das Artes por ser o sonho de Leopoldo II de aqui postar academias, que efetivamente não aconteceu, aqui se implantou a maior biblioteca do país, o Museu de Instrumentos Musicais e bem perto está o Museu do Cinema e a pintura e a escultura também estão perto do Museu de Belas-Artes e num museu que será dedicado a Magritte.

Meu adorado Paulo, nada do que podes agora ver nas imagens tem algo de novo, sei muito bem que percorreste todos estes lugares ao milímetro, que conheces tanto a Biblioteca Municipal como o Museu do Cinema, que percorres as livrarias e as discotecas, que visitaste amiudadas vezes a Galeria Tempera, de Chantal Elsouth, onde compraste várias obras, vi em tua casa.

A visita terminou com uma passagem rápida pelo palácio de Carlos de Lorena, que governou os Países Baixos em meados do século XVIII, a decoração interior é riquíssima, sumptuosa, regista a história das Artes e das Ciências na Idade das Luzes nos Países Baixos Austríacos.

Os dois guias deploraram que não se continuasse a visita pelos vários museus, lembrou a arte flamenga esplendorosa dos Museus Reais das Belas-Artes, o Museu dos Instrumentos de Música, o interior do Palácio das Belas-Artes, mas era nítido que os novos intérpretes estavam mais do que exaustos, a informação tinha sido muita. Para consolar todos, prometi a guias e visitantes que uns meses adiante iríamos continuar a nossa itinerância turística, por exemplo visitando o Sablon, o Conservatório, a Sinagoga, o Palácio da Justiça. Se se der a felicidade de tu cá estares, está prometido que desceremos Marolles, até à Feira da Ladra…

Estou ansiosa que tu venhas, há pouco sentido na minha vida sem a tua presença, faço jus ao teu acompanhamento quase diário, e jamais saberás o que representa para mim chegar à Rua do Eclipse e ter as tuas cartas, os documentos da guerra da Guiné, as tuas lembranças. Que bom vires em junho duas vezes. Consola-te com estas imagens da cidade que tanto amas e abraça-me e beija-me muito. Gostei que me pedisses para ter queijos genuinamente belgas à tua chegada, nós temos muito orgulho na nossa queijaria, mas como sabes o gosto pelos queijos franceses é incontestável no nosso mercado. Lembranças aos teus filhos. Nunca escreverei a palavra adeus, é muito dura e amargurante. Até breve, até sempre, milliers de bisous, Annette

(continua)
O início do Monte das Artes, ao fundo a agulha do Hôtel de Ville, em frente a estátua do rei Alberto I, à esquerda a Biblioteca Real Alberto I e à direita o Palácio dos Congressos, que tem levado uma vida acidentada
No edifício à direita funcionou durante largo tempo o Comité Económico e Social Europeu, que já mudou de paragem, está hoje na Rue Belliard, em pleno Bairro Leopoldo, esta escultura móvel é muito graciosa, e o espaço está perfeitamente articulado com a Rue Ravenstein, onde se situa o Palácio das Belas-Artes, onde têm lugar exposições de renome, a Cinemateca Nacional e uma sala de concertos famosíssima, ali se realizam os concertos dos laureados do concurso Rainha Elizabeth e atuam artistas consagrados, como é o caso de Maria João Pires
Grande plano da estátua de Godofredo de Bouillon
Esta é a Praça Real, no centro a estátua de Godofredo de Bouillon, um épico da 1.ª Cruzada, em frente a Capela Real, diga-se em abono da verdade tem um interior paupérrimo numa atmosfera quase lúgubre. Bem perto desta praça existiu o Palácio de Carlos V, descendo o Monte das Artes do lado direito está o Museu dos Instrumentos Musicais que funciona no belo edifício onde existiu o Old England. Atravessando a praça e à nossa direita estão dois dos mais famosos museus belgas, e descendo o Boulevard de l’Empereur temos o muito bem tratado jardim do Sablon, com a fonte dedicada a Egmont e Hornes, tratados como mártires.
Estátua de Egmont e Hornes, jardim do Sablon
Hotel Ravenstein, é o que resta do esplendor do Brabante, descendo a rua, do lado direito já se vê uma nesga do Palácio das Belas-Artes
Esta cúpula foi considerada uma enorme atração quando se inaugurou a Galeria Ravenstein, na década de 1950, liga a parte alta e a parte baixa de Bruxelas, situa-se mesmo em frente ao Palácio das Belas-Artes
Fachada principal da Biblioteca Real Alberto I com a escultura do Rei-Soldado em destaque. Em frente da escultura, do outro lado da rua, levanta-se a estátua de Rainha Elizabeth, sua mulher
Fachada do palácio de Carlos de Lorena, no Monte das Artes
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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22216: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (53): A funda que arremessa para o fundo da memória

Guiné 61/74 - P22230: Casos: a verdade sobre... (25): a vida e a morte do maj inf graduado Jaime Frederico Mariz (1936-1973): "sei muito poucas coisas do meu pai" (Frederico Rezende)


Jaime Frederico Mariz Alves Martins (Oeiras, 8/1/1936 - Guiné, 6/4/1973).


1. Mensagem de Frederico Resende, filho do nosso infortunado camarada major de infantaria graduado Jaime Frederico Mariz
 
Date: segunda, 24/05/2021 à(s) 09:27
Subject: Maj Infª Grad Jaime Mariz
 

Caro Sr Luís Graça, bom dia

 A minha filha Maria deu-me ontem conta da existência deste blogue.

O meu nome é Frederico (como o meu pai) Rezende (apelido que uso de minha mãe ). Sou filho do Maj Jaime Mariz.

Gostaria que, se não se importar, me enviasse informações sobre a sua vida e morte. Eu e minha mãe que entretanto já morreu, nunca soubemos exactamente o que se passou. Apenas que o avião tinha sido atingido e que não foram encontrados destroços.

A minha mãe foi à Suiça contactar a Cruz Vermelha e na altura a PIDE teve conhecimento e fez-lhe a vida num inferno. Desta forma contactou o PAIGC que confirmou que tinha abatido o avião.

Mas de concreto nunca soubemos muito mais.

Fico a aguardar.

ObrigadoCumprimentos

Frederico Rezende

2. Resposta do editor Luís Graça:

Caro Frederico:

O nosso blogue tem pelo menos 7 referências ao seu querido pai e nosso infortunado camarada. Não o conheci pessoalmente, estive na Guiné em 1969/71, mas quem com ele lidou, escreveu que era "pessoa de fino trato, aberto, civilizado, camarada". Pode ver aqui as referências que temos sobre o então comandante do COP 3 (*):
 
Se mo permitir, vou publicar a sua mensagem, na expetativa de poderem aparecer mais testemunhos sobre o senhor seu pai e as circunstâncias que antecederam aquele voo fatídico. Tudo indica que a avioneta DO 27, no percurso Guidaje-Bigene, em 6 de abril de 1973, terá sido abatida por um míssil Strela. E os restos mortais do seu pai nunca terão sido encontrados. 

Oxalá possamos escalarecer algumas das suas dúvidas  (**). Disponha do nosso blogue. Se tiver fotos e outras recordações do seu pai, e se as quiser publicar no nosso blogue, esteja à vontade. De resto, como gostamos de dizer, "os filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são"... Este é um blogue exclusivamente de partilha de memórias e de afectos dos bravos que estiveram na Guiné, entre 1961 e 1974, dos 3 ramos das Forças Arnadas,

Um alfabravo (ABraço), Luís Graça, editor

3. Resposta do Frederico Rezende, com data de 27 do corrente:

Caro Sr Luís Graça:

Muito obrigado pela sua resposta que muito me sensibilizou.

Peço-lhe então o favor de publicar a minha mensagem e de me ir dando novidades caso as haja.

Sei muito poucas coisas sobre o meu pai. Sei que fez o curso de Lamego, sei que fez alguns cursos de contra-informação na África do Sul e das comissões que ele fez. Sei que foi Cmdt da PSP em Lisboa e pouco mais.

Caso seja possível mais informações ficaria muito agradecido.

Fico a aguardar. Bem haja
Frederico Rezende

4. Elementos para uma nota biográfica do major inf grad Jaime Frederico Mariz (Oeiras, 1936-Guiné, 1973), recolhidos  no nosso blogue (*)

Jaime Frederico Mariz Alves Martins:

(i) nasceu em Oeiras, em 8 de janeiro de 1936;

(ii) entrou para a Escola do Exército (antecessora da Academia Militar) em 16 de outubro de 1954, com 18 anos;  era o nº 400 do Corpo de Alunos;

(iii) fez três comissões de serviço no ultramar: em Moçambique, com  o posto de tenente (setembro de 1961 / fevereiro de 1964); em Timor, como capitão (abril de 1965 / maio de 1967); de novo em Moçambique, como capitão (setembro de 1968/setembro de 1970);

(iv) morte em combate no TO da Guiné, em 6 de abril de 1973;

(v) circunstâncias da morte: tendo embarcado num DO-27 em Guidaje com destino a Bissau, no decurso de uma missão de evacuação (TEV), o avião foi abatido por um míssil Strela, na região de Sambuiá, no norte da Guiné, entre Guidaje e Bigene; não foram encontrados vestígios do aparelho nas buscas posteriores quer terrestres quer aéreas; foi um dia fatídico para a FAP pois o PAIGC, em cerca de três horas, abateu 3 aviões e falhou o ataque a outros dois; o aparelho, DO-27 3470 era pilotado pelo fur pil Fernando António de Carvalho Ferreira; o major Jaime Frederico Mariz, cmdt do COP 3, aproveitou uma "boleia", pretendendo ficar em Bigene

(vi) segndo pesquisa efetuada pelo nosso coeditor Jorge Araújo, a aeronave da FAP, DO 27 3470, foi localizada submersa (algures na região norte da Guiné) tendo sido fotografada pelo médico holandês Roel Coutinho (vd. poste P18702)



Wikimedia Commons > ASC Leiden > Coutinho Collection > D 09 > Portuguese plane wreck in Northern liberated areas > Guinea-Bissau > Airplane wing number with Coutinho watching [Asa do avião,  DO-27, com o nº 3470, e o Coutinho a observar] 

(vii) No seu Diário da Guiné, o ex-alf mil António Graça de Abreu (CAOP1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar. 1972/74), descreve o major Jaime Frederico Mariz nestes termos:  (...) "o major Jaime Mariz que conhecia muito bem, desempenhou durante algum tempo as funções de 2º. Comandante do Batalhão 3863, de Canchungo (Teixeira Pinto). Almoçámos e jantámos muitas vezes juntos na messe de Teixeira Pinto. Era pessoa de fino trato, aberto, civilizado, camarada. " (...) (Em nota de rodaté: "O corpo do major Jaime Mariz jamais foi encontrado, nem sequer foi possível fazer-lhe um funeral digno" (Mansoa, 7 de abril de 1973) (vd. poste P3826).

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Notas do editor:

(*) Vd.  os 7 postes com o descritior "Jaime Frederico Mariz (maj)":


25 de setembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21391: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XLIV: Jaime Frederico Mariz Alves Martins, maj grad inf (Oeiras, 1936 - Guidaje, 1973)

2 de junho de  2018 > Guiné 61/74 - P18702: (D)o outro lado do combate (31): Os dois aviões DO-27-A1, da FAP, nºs 3333 e 3470, abatidos em 6 de abril de 1973... Fotos do médico holandês Roel Coutinho (Jorge Araújo)

24 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13031: 10º aniversário do nosso blogue (22): Quando os senhores coronéis da censura censuravam notícias com declarações de Spínola e a escalada da guerra no CTIG, incluindo a queda do DO 27 em que pareceu, entre outros, o major Jaime Frederico Mariz, comandante do COP 3, em 7/4/1973 (António Duarte, leitor do blogue)

29 de maio de 2012 > Guiné 63/74 - P9960: (Ex)citações (179): A actuação da FAP em Guidaje (José Manuel Pechorro)

1 de Fevereiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3826: FAP (3): A entrada em acção dos Strella, vista do CAOP1, Mansoa, Março-Maio de 1973 (António Graça de Abreu)

17 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1668: In Memoriam do piloto aviador Baltazar da Silva e de outros portugueses com asas de pássaro (António da Graça Abreu / Luís Graça)

(**) Último poste da série > 20 de maio de  2021 > Guiné 61/74 - P22215: Casos: a verdade sobre... (24): o roubo de 200 cartas (ou mapas) do Serviço Cartográfico do Exército, atribuido às Brigadas Revolucionárias, em dezembro de 1972: o seu impacto no CTIG (Luís Graça / C. Martins / António J. Pereira da Costa)

Guiné 61/74 - P22229: Parabéns a você (1966): António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil, CMDT da 1.ª CCAV/BCAV 8320/72 e CCAÇ 17 (Bula e Binar, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 26 de Maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22224: Parabéns a você (1965): Jorge Narciso, ex-1.º Cabo MMA da FAP (BA 12, Bisslanca, 1969/70)

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22228: Agenda Cultural (771): Publicação do romance "Além do Bojador", de Manuel Fialho (nova edição reunida e revista), editado por Grupo Narrativa (Carlos Silva, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2548)

1. Mensagem do nosso camarada Carlos Silva (ex-Fur Mil Inf CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Jumbembem, 1969/71) com data de 25 de Maio de 2021:

Já saiu a nova edição reunida do livro “Além do Bojador” com 800 págs e da autoria de Manuel Fialho.

As livrarias Almedina já estão anunciando no site (Narrativa - Almedina).
https://www.almedina.net/editora/narrativa-1564158092

Preço €19,35

Trata-se de uma nova edição cuidadosamente revista das duas edições anteriores, mas agora acrescentada/reunindo a revolução, a diáspora, o retorno à Guiné, a invasão a Conacri, recordando o cerco de Guidage e a invasão de Cumbamori no Senegal, etc.

O nosso Camarada Fialho, engenheiro mecânico de formação, era alferes, Comandante do Pel Auto da CCS/Caç 2879, Guiné, Sector de Farim, 1969/71.

O Alf Mil Manuel Fialho em Farim

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Capa do novo romance de Manuel Fialho, editado por Grupo Narrativa
Contracapa


Os três livros anteriormente publicados por Manuel Fialho, agora condensados no seu último romance "Além do Bojador"
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22223: Agenda Cultural (770): "Ver do Bago nos Mosteiros", Baião, Mosteiro de Santo André, em Ancede, de maio a setembro de 2021: o primeiro de um ciclo de exposições que celebra a relação material e simbólica entre a vinha e a paisagem cultural e humana dos vales do Sousa, Douro e Tâmega... onde nasceu Portugal

Guiné 61/74 - P22227: Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo (António Graça de Abreu) - Parte VII: Peru, Lima, fevereiro de 2020


Foto nº 1



Foto nº 2


Foto nº 3



Foto nº 4

Peru > Lima > Fevereiro de 2020


Fotos (e legenda): © António Graça de Abreu (2021). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da série "Depois de Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74: No Espelho do Mundo" (*), da autoria de António Graca de Abreu [, ex-alf mil, CAOP1, Canchungo, Mansoa e Cufar, 1972/74.

Escritor e docente universitário, sinólogo (escialista em língua, literatura e história da China); natural do Porto, vive em Cascais; é autor de mais de 20 títulos, entre eles, "Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura" (Lisboa: Guerra & Paz Editores, 2007, 220 pp); "globetrotter", viajante compulsivo com duas voltas em mundo, em cruzeiros.

É casado com a médica chinesa Hai Yuan, natural de Xangai, e tem dois filhos dessa união, João e Pedro; é membro da nossa Tabanca Grande desde 2007, tem mais de  275 referências no blogue.


Lima, Peru, fevereiro de 2020



António, que fazes nesta terra?

Nada, ou melhor, oscilo entre o meio nada e o meio tudo, em dois dias à solta pela capital do Perú.

De Callao, porto de Lima, onde o barcalhão da volta ao mundo nos deixou, Fevereiro de 2020, quase em tempo de Covid universal, avanço rumo às inconsequentes descobertas da cidade, por espaços de maravilha e de dez mil vilanias, sobretudo, para abrir as mãos e parte do coração, o meu deficiente entendimento da arte dos mil artifícios de (sobre)viver.

Avisado para potenciais assaltos ao turista de passagem, caminho pela avenida ao lado do Pacífico. Há gente na praia, em cima dos pedregulhos e dos grandes seixos da beira-mar, os callaos, fruindo as delícias do Verão, com temperaturas de 22 graus. (Foto nº 2)

Pergunto a um polícia, por certo ali colocado para segurança da estranha e rica gente dos cruzeiros, sobre o que havia para ver. Falou-me numa lagoa abrigada, a dois quilómetros de distância, uma reserva natural de pássaros. Diz-me que basta tomar o mini-bus. Não tenho soles, o dinheiro peruano. Nenhum problema. O polícia manda parar o primeiro autocarro que passa, paga o bilhete com mini notas sebentas do seu bolso e deseja-nos boa estadia em Lima. 

É a primeira vez na vida que um agente da autoridade toma conta de mim. Adiante, as avezinhas, gaivotas, gaivinas, pelicanos, albatrozes, na restinga de areia grossa, chilreiam, grasnam, cacarejam aos milhares.

Um táxi e estou no centro de Lima. Agora, a cidade por minha conta (Foto nº 1). A Plaza Mayor, o convento e igreja de São Francisco, as catacumbas, a Casa da Literatura, o Palácio do Congresso. Tudo bem cerzido pelos mestres do passado, vindos das espanhas e do mundo. Hoje, em cada esquina, segurança, polícia e militares armados, mais viaturas anti-motim. Uma pátria, como tantas outras, insegura, dilacerada pela soberba e ganância dos homens.

Encaminho os meus passos para a enorme confusão do Barrio Chino. Os chifas, os restaurantes chineses. Lima tem centenas de chifas, os tascos da China cujo nome tem origem na palavra 吃饭 chifan, que significa «comer» em chinês e que os imigrantes chineses no Peru utilizaram, outrora, para denominar os seus restaurantes.

Descanso na Biblioteca Nacional, onde o pessoal de serviço foi amabilíssimo. Uma sala, com sofás e tudo, para sossegadamente termos wi-fi, a ligação à net no tablet e no telemóvel. Notícias de Portugal e da China. O coronavírus não dá tréguas, com navios de cruzeiro infectados no Japão e em Hong Kong. Que susto!

Em Lima, há favelas que pululam pelos arredores e que agora, por via do politicamente correcto, se passaram a denominar pueblos jóvenes ou barrios jóvenes. Verão, muitas casas têm diante das portas, quase fechando as ruas estreitas, piscinas desmontáveis naquele plástico azul meio aborrachado, piscinas que se enchem com mangueiras, tipo tanques portáteis, redondos e quadrados, que fazem as delícias da criançada e de alguns adultos. Os miúdos parecem patos chapinando na água não muito limpa que serve também de banheira para meninas e meninos de numerosas famílias.

Tempo de atravessar toda a malha urbana em direcção ao mar, desta vez em Miraflores, bairros mais modernos com casas alindadas para gente rica e considerada importante, com luxuosos apartamentos, onde a qualidade de vida dos cidadãos se situa a milhas de distância dos quotidianos das pessoas dos pueblos jóvenes. A zona até conta com um jardim pendurado na falésia, sobre o mar, que dá pelo nome de Parque do Amor, com uma estátua alusiva, a condizer, de dois amantes abraçados, na posição horizontal, num longo e ternurento beijo, e algo mais. Coisas de ricos, coisas de pobres.

De regresso ao centro da cidade, por puro acaso, apanho o final de um fabuloso desfile folclórico, (Fotos nº 3 e 5). No parque de La Muralla, os grupos começam a dispersar. Cansados, suados, satisfeitos, abanam-se com leques, fotografam-se uns aos outros, as mulheres descalçam os sapatos, algumas de saltos altos que lhes magoam os pés. Vaidosas, mostram os seus vestidos, entretecidos com mil cuidados por elas próprias, ou pelas costureiras das suas terras. Há raparigas bonitas, elegantes e guapas, outras nem por isso, gordas e avantajadas, todas ataviadas a rigor com trajes da cordilheira dos Andes, ou das pampas e florestas do Paraguai ou da Bolívia, da Colômbia ou da Argentina. Mas sempre femininas, perfeitas criações da natureza, dos deuses e dos seus pais.

António Graça de Abreu

[Texto recebido em 26/5/2021]

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quarta-feira, 26 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22226: Historiografia da presença portuguesa em África (264): O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (1) (Mário Beja Santos)

Sociedade de Geografia de Lisboa > Sala de Portugal, uma magnificência da arquitetura de ferro


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Outubro de 2020:

Queridos amigos,
 
Numa tentativa de ir ao fundo do espólio (riquíssimo!) guardado na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, para melhor conhecer o que aqui se guarda sobre a Guiné e quem a estudou, depois de percorrer aquele itinerário clássico de visitar os autores consagrados, o que oferecem os Reservados, o próprio boletim da Sociedade de Geografia, chegou a hora de bater à porta dos volumes das atas das sessões, estou agora entre 1876 e 1881, emana o entusiasmo dos fundadores, fala-se na criação do Instituto Colonial para dar base científica e rigor aos quadros da Administração, fala-se mesmo em fazer uma subscrição para apoiar as explorações ao interior africano, discute-se o trabalho do indígena, as potencialidades económicas, aqueles primeiros anos a África de que se fala é mais o Litoral de Angola, só mais por adiante se falará de Moçambique. Nem uma só palavra sobre a Guiné. Discute-se o papel do missionário e há quem se atire criticamente aos degredados civis e militares, são considerados uma desgraça da colonização.

E vamos continuar.

Um abraço do
Mário



O pensamento colonial dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa (1)

Mário Beja Santos

Para se entender a mentalidade dos fundadores da Sociedade de Geografia de Lisboa, instituição criada em 1875, e que se veio a tornar a matriz do conhecimento do interior das colónias africanas, tendo mesmo gerado, pela agregação de figuras exemplares da política e da ciência, não só explorações audaciosas como estudos geográficos e coreográficos que se revelaram da maior importância para a fundamentação dos ideais do III Império, é preciso ler nos documentos da época. Nada melhor que ler as atas das sessões da Sociedade de Geografia, ir ao volume I onde estão coligidas as reuniões que ocorreram entre 1876 e 1881.

Estamos em 7 de julho de 1876, aberta a sessão presidida pelo Visconde de S. Januário, alguém propõe que se apresente ao governo de Sua Majestade a conveniência científica, económica e política de se empreender uma expedição portuguesa através do sertão africano, de costa a costa, prestando-se a sociedade a promover uma subscrição nacional para auxiliar este empreendimento. A alocução de Luciano Cordeiro, figura capital da Sociedade de Geografia e seu primeiro secretário durante anos a fio, é extremamente reveladora:

“O Sr. Luciano Cordeiro disse que uma das ideias principais que haviam presidido à fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa fora o reconhecimento da urgente necessidade e do imperioso dever imposto a Portugal pelas suas tradições, pela sua situação de segunda potência colonial da Europa, pelos seus interesses económicos e políticos além-mar, de entrar definitivamente no movimento espantoso que as ciências, os estudos e as explorações geográficas estão exercendo lá fora; e que sendo uma das fases mais interessantes e mais acentuadas desse movimento o problema africano, desde os primeiros passos no trabalho desta Fundação, ele e outros fundadores da Sociedade tinham reconhecido e assentado que uma sociedade geográfica portuguesa deveria necessariamente começar por ocupar-se vivamente daquele problema que encerrava para a nossa pátria uma questão vital (…)

Que era necessário levantar o espírito público à compreensão dos grandes interesses e dos impreteríveis deveres que o problema africano significava para nós. Que a necessidade de Portugal empreender urgentemente uma expedição científica ao interior africano, no intuito de o conhecer melhor e de o abrir ao comércio, ao prestígio português e à civilização europeia, era por tal forma axiomática que ele se dispensava de fundamentar a proposta que acabava de ler”.

Noutras sessões irão ser levantados problemas e situações para os quais os sócios da Sociedade de Geografia entendem dever encontrar resposta mediante sugestões para o governo de Sua Majestade. Um sócio, numa sessão em 1878, fala da qualidade da administração colonial, revelava-se indispensável preparar um centro de estudos para preparar tais funcionários:

“O Sr. J. M. Pereira declarou que tinha estado por algum tempo na costa ocidental de África, e por isso a experiência o levava a fazer algumas considerações. Que a circunstância de nos termos limitado a ocupar somente o Litoral fazia com que a língua portuguesa não estivesse ali mais desenvolvida; e que não sucederia assim se tivéssemos alguns estabelecimentos comerciais mais para o Interior. Que era certo não serem suficientemente habilitados os funcionários que vão para o Ultramar, porém, julgava como principal motivo disso a má remuneração que lhes dá o Estado; e que as empresas particulares nacionais e estrangeiras ofereciam um bom exemplo, pois elas tinham ali empregados tão hábeis como os melhores dos países civilizados. Que se havia aludido ao vexame e ao prejuízo que o Estado sofria por os seus empregados não conhecerem as línguas coloniais, e sem querer negar as vantagens resultantes do conhecimento dessas línguas, afirmava que, se metermos em linha de conta o estado da nossa civilização e o da civilização africana, havemos de concordar que nós é que vexamos os indígenas e não são eles que nos vexam a nós”.
 
Interveio seguidamente Adolfo Coelho que juntava uma proposta sua à de Teixeira de Vasconcelos para a criação de um instituto colonial onde se ministrasse o ensino das seguintes matérias: Geografia e Etnografia de África e da Ásia; Geografia e História das Colónias Portuguesas; Gramática Comparada das Línguas bantu e Ensino Prático do nbundo e zulu; Gramática Comparada dos Dialetos Modernos da Índia; Fauna e Flora das Colónias Portuguesas, Agricultura com Aplicação às Mesmas; Direito Administrativo Colonial. Luciano Cordeiro juntou o seu nome aos de Adolfo Coelho e Teixeira de Vasconcelos.

Curiosas serão as intervenções que se seguem, vale a pena registá-las:

“O Sr. Gastão Mesnier declarou de discordar da opinião de muitos consócios, pois estava convencido de que a África só se podia civilizar por meio dos missionários. A religião católica era a que melhor se podia implantar ali; e quer os mais acreditassem quer não, ele orador estava convencido de que o catolicismo tinha a representar um grande papel no continente africano. Pôs em paralelo o missionário da crença e o missionário da ciência; e concluiu afirmando que uma nação pequena como a nossa não se podia reger pelas mesmas leis das grandes nações, e que as cadeiras que se criassem teriam de fechar-se mais tarde por não haver discípulos para elas. 

O Sr. Batalha Reis declarou que não se preocupava e que nem a sociedade nem o governo se deviam preocupar com o que se dizia de não haver discípulos para as novas cadeiras. Que uma nação civilizada e colonial tinha o rigoroso dever de conhecer as suas colónias; e que não havia nações pequenas nem nações grandes perante o desenvolvimento científico”.

Constituiu-se uma comissão de redação e a sugestão do Instituto Colonial foi por diante.

Nesta digressão pelas atas iniciais das sessões da Sociedade de Geografia nos seus primeiros anos de atividade, o que se pretende mostrar ao leitor eram as principais preocupações dos fundadores, logo conhecer o interior africano, está latente o sentimento da cobiça de várias potências, dentro de alguns anos haverá a Conferência de Berlim e Portugal já se debate com as ambições da Bélgica sobre o Congo, da Alemanha com o Sudoeste africano e o Norte de Moçambique, as viagens de Capelo e Ivens e Serpa Pinto, de costa a contracosta, irão exacerbar a posição britânica de que não quer intrusões na linha entre o Cabo e o Cairo, chegaremos assim ao Ultimatum de 1890, com gravosas consequências para o regime monárquico.

Da leitura que iremos tentar fazer destas atas iniciais não surpreende não haver uma qualquer referência à Guiné, as primeiras reuniões estão polarizadas das explorações africanas em Angola e até Moçambique; haverá intervenções sobre a ocupação angolana, só mais tarde se irá falar de Moçambique; Cabo Verde e S. Tomé terão referências avulsas e pouco representativas nestes primeiros anos. 

E pelo adiante se verificará, até com a chegada de novos sócios declaradamente ligados a negócios, de que há grandes preocupações em ensinar o preto a trabalhar. Não faltarão referências às condições higiénicas e climáticas, os problemas das comunicações serão versados de forma continuada, e não faltarão críticas aos degradados enviados para África, como alguém sublinha:

“E que ele orador pudera verificar em África que o preto que não tinha convivência com um branco era muito mais honrado do que aquele que estava em contato com os europeus; devendo ainda assim ser muito boa a índole do negro para não estar completamente pervertida, visto que os condenados a degredo pelos mais horrorosos crimes são como que os professores que nós mandamos para ali. Se queremos introduzir a civilização em África, é urgente que se estabeleçam colónias penais, pois não pode nem deve consentir-se que o degredado tenha a mais completa liberdade. Tem dado péssimos resultados este sistema; e não é raro ver-se ali o condenado na melhor sociedade, e adquirir uma influência que por vezes embaraça o exercício do governo local. 

Devia também acabar-se por uma vez com o costume de mandar para o exército de África os soldados incorrigíveis do exército da metrópole; e que ele orador, quando estava em Luanda, passava sossegado e tranquilamente pelos negros indígenas que encontrava, não lhe sucedendo o mesmo quando tinha de passar por entre os soldados brancos do serviço policial, porque estes eram, na grande maioria, degredados e incorrigíveis”.

(continua)
Uma imagem clássica do explorador Serpa Pinto
Uma das traves-mestras da Sociedade de Geografia de Lisboa, Luciano Cordeiro
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22214: Historiografia da presença portuguesa em África (263): Corografia cabo-verdiana das ilhas de Cabo Verde e Guiné, 1841-1843 (5) (Mário Beja Santos)