quarta-feira, 26 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22225: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte IX: O primeiro murro no estômago

Foto nº 1 > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV  8351 (1972/74) > Visita do General Spínola: em primeiro plano, da esquerda para a direita: o” homem grande” de Aldeia Formosa, o “homem grande “da Guiné (Gen, Spínola), “homem grande” do Cumbijã (cap. Vasco da Gama) e o Abundâncio (alferes). Em segundo plano os ajudante de campo de Spínola.


Foto nº 2 > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV  8351 (1972/74) >. Visita do General Spínola - Está a ver ali General? É Nhacobá!!!.. - Em primeiro plano da esquerda para a direita: Comandante de Aldeia Formosa; General Spínola e o comandante da companhia o Capitão Vasco da Gama. Em segundo plano 2 ajudantes de campo de Spínola


Foto nº 3 > Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV  8351 (1972/74) >
 O regresso do General Spínola a Bissau... antes que “elas” comecem a caír !

Fotos:  © Vasco da Gama (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Joaquim Costa / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Joaquim Costa, hoje e ontem. Natural de V. N. Famalicão,
vive em Fânzeres, Gondomar, perto da Tabanca dos Melros.
É engenheiro técnico reformado.



Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte IX (#)

 

 A cruel confirmação do discurso agoirento do srgt Redondeiro:   “o primeiro murro no estômago” 


Estávamos nós nesta azafama diária de: (i) patrulhamentos na mata; (ii) segurança aos trabalhos de engenharia; (iii) coluna diária a Aldeia Formosa para reabastecimento, particularmente de água (razão pela qual esta coluna era conhecida pela coluna da água), quando voltamos a levar mais um murro no estômago. Desta vez com contornos dramáticos já que sofremos a primeira morte em combate.

A coluna da água que regressava ao Cumbijã ao fim da tarde (*), quando já todo o pessoal de proteção dos trabalhos tinha abandonado o local, perto de Colibuia, é emboscada por um grupo IN que fazia proteção a um outro grupo que minava, uma vez mais, um pontão.

Como já era muito perto do Cumbijã ouvimos claramente os rebentamentos e as rajadas de armas ligeiros, pelo que logo deduzimos ser uma emboscada do IN ao nosso grupo que regressava a casa. Em segundos se formou um grupo, uns em chinelos, outros descalços e quase todos em calções e tronco nu, montando em duas berliets com a G3 aos ombros em socorro dos nossos camaradas.

Chegados ao local da emboscada depara-mo-nos já com o IN em fuga e o desespero do nosso grupo perante a morte de um camarada no asfalto e ferimentos em quase todos os restantes (já que a maioria saltou das viaturas ainda em andamento).

Cruel confirmação do discurso do Sargento Redondeiro ainda em Portalegre (**).

Inimaginável a nossa revolta, com a insistência de alguns em se fazer a perseguição a quem provocou todo aquele horror não obstante o cair da noite. Com o ranger dos dentes de raiva (... a resvalar para o ódio!) e lágrimas nos olhos, não foi fácil resignarmo-nos ao facto de nada podermos fazer perante a morte do nosso camarada.

Foi com estrondo que tomamos consciência da violência e crueldade da guerra. Ainda hoje, a esta distância, tenho dificuldade em descrever a forma como esta perda afetou todo o grupo. Tudo mudou a partir deste fatídico dia.

Os dias seguintes foram muito difíceis. Os ferimentos graves em três camaradas da companhia, ao acionaram 3 minas, foi vivido por todos nós com muito dramatismo (ver dois amigos perderem uma perna e outro uma mão, em plena juventude, são coisas que só vividas, não há palavras que possam descrever o que nos vai na alma), mas nada se compara à morte de um companheiro. Mais do que nunca nos consciencializamos que vivíamos diariamente com o IN, pisando os mesmos caminhos e sentindo a sua respiração.

Não obstante este conflito se caracterizar como uma guerra de guerrilha, dada a proximidade dos beligerantes mais parecia estarmos numa guerra de trincheiras como na 1ª guerra mundial em que as trincheira eram separadas apenas por uma pequena mata densa. No silêncio da noite, em Cumbijã, eram audíveis os sons próprios da vida de uma aldeia na base do PAIGC em Nhacobá.

Com o tempo e o efeito do ”cacimbo”, os incidentes que eram recorrentes (quer na coluna diária da água quer na do transporte da engenharia para a frente de trabalhos), davam lugar ao batismo, pelos soldados, desses mesmos lugares, particularmente em três bolanhas (que eram os locais mais abertos e perigosos) cuja minha memória já só regista a “bolanha das touradas”.

O comando desta coluna diária a Aldeia Formosa era rotativo por todos os graduados da companhia, cabendo-me a mim (se a memória não me falha) o comando desta. Por insistência de um camarada, que, segundo ele, tinha assuntos a tratar em Aldeia Formosa (não obstante os perigos todos gostávamos de ir à “civilização”!!!...) cedi-lhe o lugar. O destino é como as bruxas: não acredito nelas mas que as há, há !!!

Para levantar a moral das tropas, tivemos a visita, ao Cumbijã (a nossa modesta casinha) do comandante em chefe da Guiné o General Spínola, em  14 de abril de 1973  (##)...

(Continua)
________

Notas do autor:

(*) Esta coluna da água, neste dia, atirou mais para tarde para levar o sargento Redondeiro (que julgo nunca ter pernoitado em Cumbijã, permanecendo em Aldeoa Formosa a tratar da “burocracia” da companhia) que se deslocou a Cumbijã para uma reunião com o Capitão.

(**)  … Foi aqui (Portalegre) que o mesmo sargento (Redondeiro), de fisionomia a condizer com a patente, grande e gordo, com uma avantajada barriguinha, e que, dada a sua experiência feita de outras comissões em África, resolveu fazer aos soldados, formados em parada, o discurso de despedida. Era suposto um discurso a chamar ao patriotismo mas ao mesmo tempo de ânimo e de tranquilidade e de que tudo iria correr pelo melhor. Contudo o discurso saiu completamente ao lado ao começar logo por dizer:

- Caros militares, infelizmente, alguns de vocês não voltarão a casa… 

O moral de todos aqueles rapazes bateu no fundo, pelo que a nossa tarefa durante todo o dia, recorrendo aos nossos conhecimentos de psicologia (que não eram nenhuns), e também afetados por aquele discurso de alguém que sabia do que estava a falar, foi recompor-se e tentar recompor o pessoal…
 ____________

Notas do editor:

(#) Último poste da série > 1 de maio de 2021 > Guiné 61/74 - P22159: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte VIII: A primeira visita... dos "vizinhos", com ataque ao arame!

(##) Vd. poste de 20 de janeiro de  2009 > Guiné 63/74 - P3765: A história dos Tigres de Cumbijã, contada pelo ex-Cap Mil Vasco da Gama (7): A visita do General Spínola

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

"O primeiro murro no estômago", o primeiro morto... Deviámos ter aqui o descritor "primeiro morto"... Temos o descritor "mortos" mas "primeiro morto"... Na realidade, aqueles de nós (e fomos muitos ou quase todos) que passámos por essa dura, trágica, traumática experiência, sabe dar valor às tuas palavras:

(...) "Inimaginável a nossa revolta, com a insistência de alguns em se fazer a perseguição a quem provocou todo aquele horror não obstante o cair da noite. Com o ranger dos dentes de raiva (... a resvalar para o ódio!) e lágrimas nos olhos, não foi fácil resignarmo-nos ao facto de nada podermos fazer perante a morte do nosso camarada." (...)

Conheci esse estado de espírito quando, em 7 de setembro de 1969, na Op Pato Rufia, vi cair a meu lado vários camaradas, um deles atingido mortalmente por um dos nossos diligranas... Vou criar o descritor "primeiro morto".

Mantenhas, a partir de Candoz, onde a velocidade da Net é mais lenta...LG




Anónimo disse...

Coisas que se passaram perto de mim, física e afectivamente. É impossível não regressar a Mampatá numa visita mental, reeditando estados de espírito, em que apetece perguntar porquê e para quê, ainda que já de nada valha.

Um abração

Carvalho de Mampatá

Joaquim Costa disse...


Dizes bem amigo e vizinho Carvalho, e, também vizinho de Mampatá. Porquê e para quê?

“SÓ SEI QUE NÃO SEI”

Em Bissau, o avião aterrou, o cinto desapertei, toda a África entrou, e, eu petrifiquei
A caminho do Cumeré, o que vi, senti e interiorizei “esmagou” o que sempre sonhei
No Cumeré vi o que não queria ver, o mosquito enfrentei, e, também me deslumbrei
Pelo Rio Geba acima dormi e acordei, e, de Fernão Mendes Pinto me lembrei
Em Buba com a sua beleza me entusiasmei e ao ver os “velhinhos” me assustei
Na picada para Aldeia a um canto me enrosquei, e, na tentativa de fugir dali, me belisquei
Em Aldeia chorei, comi capim, comi macaco(?) e rezei
Em Mampatá cerveja fresca bebi, não paguei, mas muito abracei
Em Colibuia entrei... mas não fiquei
Em Cumbijã entrei, fiquei, as “passas do Algarve” passei, odiei... e quase amei
Em Nhacobá a entrada forcei, arroz encontrei e por mortos passei… e me desassosseguei
No regresso a casa cantei, pelos que não regressaram o seu nome gritei, e pelo povo que ficou me emocionei.
E tudo isto para quê ?NÃO SEI!
(Joaquim Costa)