1. Mensagem, com data de 12 do corrente, do nosso camarada Ricardo Almeida [, ex-1.ºcabo, CCAÇ 2548/BCAÇ 2879,
Farim, K3 / Saliquinhedim, Cuntima e Jumbembem, 1969/71]
Boa tarde, Luís, com um abraço.
Dando seguimento à solicitação de segredos guardados enquanto combatentes... Com alguma relutância, amargura e muita tristeza que me vai consumindo a alma, divulgo como o destino se encarregou de torturar-me, enquanto tiver vida para recordar.
Esta recordação que nunca apago da mente nem do coração, reporta-se a uma madrinha de guerra à qual devo gratidão eterna pelo apoio moral e psicológico que me deu enquanto combatente, doente com uma moléstia terrível, redundando isto num amor fraterno, solidário e muito apego à vida que ela me transmitia tanto nas cartas que me escrevia, como depois pessoalmente, como quando trocámos promessas de vida em comum e casamento, testemunhado no interior duma capela pelo santo que lá existia e que parecia concordar com a nossa decisão.
Hoje vou-lhe pedindo perdão no silêncio dos meus silêncios, pela atitude que tomei, enquanto ela espera por mim, cumprindo a promessa de nunca ter a seu lado outro amor na sua vida. Hoje, ao refletir na minha atitude, só encontro uma explicação: a moléstia de que eu padecia e os médicos dizerem-me que era muito grave, levaram-me assim a proceder. O meu raciocínio parava no tempo, os pensamentos atropelavam-se, levando-me muitas vezes a devaneios e loucuras.
Como poderia eu cumprir a promessa se não tinha a certeza se ficaria bom e capaz de constituir família, submeter-me a internamentos e não ter meios para angariar subsistência familiar? Por isso tomei aquela atitude da qual ainda não saí nem voltarei a sair enquanto respirar. Então surge no meu cérebro o clique do rompimento, dando-lhe a primeira sapatada tão violenta e demolidora que até eu chorei ao reler o que lhe escrevi.
Toda a história tem um princípio e um fim e a minha não é diferente: sou do [BCAÇ] 2879 e da [CCAÇ] 2548 sediado em Farim, sendo que a dita companhia subdividia-se em pelotões que, por sua vez, eram colocados em vários sectores, sendo o meu, o terceiro [pelotão], colocado no K3. Certo dia ao regressar duma patrulha tive a ideia de escrever vários aerogramas, com os seguintes dizeres:
( Ao carteiro da terra tal:) À primeira moça que encontrar o desconhecido; levando como remetente, um coração triste no mato o desiludido.
Dos ditos [aerogramas] só um foi respondido. Vejamos o que dizia:
(...) Foi-me entregue no dia 22/10 de 69 um aerograma que li com atenção e regozijo-me ser sua madrinha de guerra apesar de saber que não me era dirigido. Mas, no entanto, se deseja uma madrinha e não se importa em ser eu, responda-me de novo. (...)
Então a esse aerograma sucederam-se mais, dando origem a que ganhasse afeição e amor a essa jovem. Já no HMDIC [
Hospital Militar de Doenças Infecto Contagiosas, ou Hospital Militar de Belém] ]e com as hemoptises [, expectorações de sangue,] por companhia, tentei escrever-lhe para dar-lhe a notícia que me encontrava em Lisboa mas fui aconselhado a não fazê-lo, devido ao meu estado debilitado e agora alguns aerogramas eram-me remetidos pelo SPM 6118.
Até que, debaixo do meu estado febril, consegui articular algumas palavras ao soldado ali de serviço, o que ele acedeu de bom grado. A partir daí desenrolam-se as viagens e consequentemente as visitas quase diárias. Perdura na minha mente, na primeira ou segunda visita, ter uma hemoptise tão violenta que o sangue espirrou sem o poder conter e ela, com a mão na minha cabeça, dando-me alento e coragem para não desanimar, que tudo se comporia.
Foi debaixo deste sentimento que tomei a decisão de tudo acabar ali, deixando-a livre para governar a sua vida, uma vez que era jovem e poderia arranjar um companheiro que lhe desse alguma segurança pela vida fora. Tal não veio a acontecer, conforme o acima relatado. Então, já me podendo soerguer na cama, escrevo-lhe a célebre carta:
(...) Hoje desprezo-me a mim próprio por tê-la conhecido e deixar que as coisas tomassem o nefasto rumo. (...)
só peço que ao receberes
esta carta afinal
tenhas o que mereceres
pois não te desejo mal.
Peço-te unicamente
que me dês o que é meu
por eu não ser coerente,
sofres tu e sofro eu.
Não sei se isso para ti
ainda tem significado,
creio que já sugeri
que tudo isso é passado.
Da minha parte acabei,
não voltes a pedir-me amor
pois de ti já nada sei,
já não alimento essa dor.
Eu não queria conhecer-te
na menina que amei.
pois já não quero rever-te,
reconheço que me enganei.
Peço desculpa se ofendo
mas não é minha intenção
porque eu isto revendo
só torturo o coração.
Já sofri muito, o bastante,
quando deixei de te amar.
hoje sou homem constante,
já nem quero recordar.
De certo vais estranhar
esta carta assim escrita,
pois não é para admirar,
meu coração já não grita.
Jurei à vida indiscreta
por ti, por mim e por mais
que esta coisa é certa,
de nos vermos nunca mais!
Se hoje estás arrependida,
tu mesma foste a culpada
por não saberes que a vida
só por si é já amada.
Agora para terminar
peço-te um grande favor,
esquece que está a acabar
o nosso sedento amor.
Vou terminando a final,
esperando que me escrevas,
pois não te levo a mal
o que digas ou o que pensas.
Interpretando a carta à sua maneira, a resposta [dela] era a seguinte:
(...) Meu amor, desejo em primeiro a tua saúde. Rik, recebi onde vi tudo quanto me dizias. Então estás assim tão desanimado! Nem tens mais confiança em minhas orações, porquê, Rik? Se eu te amava agora mais do que nunca te amo, com mais fervor, visto que sofres tanto. Não me interessa; não me importo esperar por ti dois ou três anos , quero casar contigo mesmo assim; nada me importa do que digam ou do que possam dizer; mais uma vez te digo que não quero perder-te por nada, não te quero trocar por ninguém. Quando comecei a namorar-te, portanto quando te aceitei namoro, já te encontravas no hospital, já te encontravas também doente; por isso, tentei sempre dar-te coragem, calma e continuo a fazê-lo, meu amor. Fizeste-me chorar amargamente como nunca tinha chorado em toda a minha vida e continuo a fazê-lo. Cada vez que penso no que me dizias na tua carta e quereres dar fim a tudo...
Mas eu ainda não o fiz, ainda não pus fim nem vou fazê-lo a tudo isto, ao nosso amor. Deixares-me assim sem quê nem para quê, que tristeza; nunca supus isso de ti.
Rik se me abandonas assim desta maneira, eu dou cabo de mim! Porei fim á minha vida ou adoecerei, quem sabe? Não quero mais homem nenhum; amo-te e amar-te-ei até ao fim da minha vida; até à hora da minha morte que talvez seja mais rápido do que todos pensam.
Eu que só quero a felicidade de todos e ela, para mim, não vêm; ela não quer nada comigo. Não me queres amar mais ou então nunca me amaste; terás outro alguém que tirou o meu lugar no teu coração? Preferia que me dissesses se é isso que aconteceu! Mas se não aconteceu e se é por estares doente, acredita em mim esperarei por ti o tempo que for necessário. Quero-te tal qual como és; sabes que o amor não escolha a saúde ou a doença; o amor é uma coisa tão forte que não olha a nada disso; amo-te e é tudo.
Ricardo, amar-te-ei sempre...
Se eu era incansável a pedir a Deus por ti, hoje mais do que nunca o faço porque sei como te encontras. Mas hás-de curar-te felizmente. Há tantos assim! Ou não é verdade? Muitos ainda em pior estado que tu! Não desanimes e pede a Deus por ti e por mim. Ele nos há-de ajudar, Ele te há-de curar, Ele é bom e nunca nos abandona, pelo contrário, nós é que o abandonámos, nos. esquecemos Dele. Vamos então orar-Lhe por ti, não queiras sofrer mais nem fazeres-me sofrer assim. O amor, a Paz, é tudo tão lindo! Mas eu quero sofrer também contigo.
Oh se eu pudesse dar a vida pela tua saúde, acredita que o faria; porque sabia que iria dar saúde àquele que tanto amo e que só ele para mim existe. Disse-te mais que uma vez que se algum dia me deixasses que não queria mais homem algum e continuo a dizê-lo constantemente até quando Deus quiser.
Quero sofrer neste mundo e alcançar a vida eterna; ir para junto dos seus anjos.
Teus pais, teus irmãos e o resto da tua família sabem de tudo isto? Da tua doença e da tua conduta para comigo? E que me queres deixar assim tão repentinamente? Diz-me; escreve-me sempre nem que sejam só como amigos.
Mas tu para mim és o meu primeiro amor e continuarás a sê-lo, o meu único amor, quero saber sempre noticias tuas. Agora uma coisa que te peço, que te suplico-te, Rricardo: nunca me amaste, pois não? Eu não era a mulher que tu supunhas encontrar? uma moça simples, simples de mais. Se não me amavas porque não me disseste logo? Então porque me beijaste? Preferia que isso nunca tivesse acontecido. Mas eu pressentia o que me poderia acontecer; lembras-te quando te disse que não devias beijar-me! Então porque quiseste saber tudo à cerca de mim e da minha família? Agora sei que quiseste fazê-lo para saberes como eram!
Disse-te tantas vezes que o amor está acima de tudo isto. Achas que procedes bem com essa tua atitude? E porque não me achas mais a mulher escolhida por Deus e por o destino? Só eu estou no mundo para receber tudo isto mas, apesar de tudo, continuo a amar-te e amar-te-ei sempre. Quem sabe se até com isto tudo e de tanto pensar, eu irei também para junto de ti? Doente, sim; não achas que é caso para isso? Tu, se continuasses a amar-me, pensas que me interessava se as tuas melhoras fossem a pior? Que me importava que dissessem que eu amava um homem morto, como tu lhe chamas? Não, Ricardo, nunca teria boca para renunciar ao amor dum homem que lutou por mim, pela Pátria, por nós todos. Quero ver-te curado, quero ver-te feliz porque tu merece-lo ser. Se é que não me enganaste, claro! Mas nunca supus isso de ti. Dizias que nunca esquecerias a minha amizade mas esqueceste o meu amor, a coisa mais valiosa que te dei. Esqueceste tudo isso; mas pronto, faz o que quiseres.
Mas fica sabendo que nunca deixarei de te amar. Cada vez que penso nisto nem sei para o que me dá... Tirar-me já do mundo mas isso era um pecado que Deus não me perdoaria, por isso estarei aí chorando horas esquecidas, e prostrada de joelhos toda a noite, velando pela tua saúde e pelo teu bem estar nesse hospital. Não sou assim tão má e dura como pensas porque, como sabes, Deus perdoou a quem o matou, Ricardo. Porque não fazemos o mesmo?
Perguntas-me se quero as minhas fotografias, então é porque já estás cansado de vê-las. Ou não as podes ter contigo? Oferecidas com o pensamento em ti, ao homem que veio despertar meu coração para o amor e, agora, o deixa ou deixou tão triste, tão escuro e tão magoado. Mas, enfim, vocês, homens, não pensam, não sabem, o quanto isto custa sofrer por amor e morrer.
Jesus morreu pelo amor dos homens, pelos nossos pecados e eu morrerei de amor por aquele que ia considerar meu marido.
Por hoje está tudo e peço-te, chorando, que me dês sempre noticias, quer onde te encontres e como te encontres. Envio um beijo ao homem da minha vida. Mais uma vez te peço que me dês sempre notícias, sejam elas quais forem, e estás perdoado por tudo. Chorando loucamente por quem não me ama mais ou nunca me amou, te digo, por último, que sempre detestei a mentira, disse-to tantas vezes! Perdoa, se estou a ofender-te.
Com o coração destroçado termino.
Para a eternidade. (...)
______________
Nota do editor:
Último poste da série > 23 de janeiro de 2014 >
Guiné 63/74 - P12627: O segredo de... (15): Processo concluído (Augusto Silva Santos)