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segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20619: Notas de leitura (1261): Longas Horas do Tempo Africano, por Manuel Barão da Cunha; 10.ª edição, revista e reestruturada, Oeiras Valley, Município de Oeiras, 2019 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Manuel Barão da Cunha, um caso sério de reincidência na literatura da guerra colonial, um apóstolo da sua difusão organizando tertúlias entre Lisboa e Oeiras, desta vez convoca um elevado número de testemunhos que referenciam o homem e a sua obra.
Tendo começado a escrever ainda no Estado Novo, sobressaiu pelo cuidado posto na exaltação dos seus soldados, na satisfação expressa pela obra feita. Vê-se claramente que tem o seu coração repartido por Angola e pela Guiné. E é admirável este seu trabalho alquímico de mexer e remexer nas coisas do passado, o chamamento que faz de vivos e mortos que pertencem à sua história, participantes de toda a sua vida militar e até civil.
Deve-se a Manuel Barão da Cunha uma enorme gratidão coletiva por ser um porta-bandeira sem rival no dever de memória, trazendo-nos à presença toda e qualquer pessoa que calcorreou o império ou nele combateu. É uma dívida de peso, impagável. Mas ele também não se importa.

Um abraço do
Mário


Longas horas do tempo africano, por Manuel Barão da Cunha

Mário Beja Santos

Num estudo recente sobre as cartas de guerra, uma investigação de Joana Pontes intitulada Sinais de Vida, Tinta-da-China, 2019, esta conhecida investigadora e jornalista observa que a generalidade da correspondência estudada confina-se a um tempo demarcado, o da comissão militar, aos lugares que o combatente percorreu ou onde vive, não há um entendimento do fenómeno da guerra no seu todo, as motivações de fundo, acrescendo que com o passar dos anos, um pouco como o passar dos meses da comissão militar, é percetível o desalento e a vontade de regressar. Serve este preâmbulo para abrir caminho a uma outra consideração: toda a literatura da guerra colonial tem que ser ponderada no tempo em que se publicou, conheceu sucessivas etapas. Não é homogénea, o que se escreve sobre a Guiné tem particularidades, não se encontra na literatura de guerra angolana ou moçambicana. Qualquer relato remete-nos para a localização e a natureza do inimigo. Um exemplo mínimo: quem escreve sobre a Guiné inclui, inevitavelmente, rios e rias, lodo, diferenças de maré, humidade excessiva, calcorrear quinze quilómetros nos emaranhados de uma floresta-galeria provocam uma exaustão sem paralelo; quem escreve sobre Angola e Moçambique fala em longas distâncias, viagens de centenas de quilómetros, operações com montes e vales.

O que se vai espelhar na literatura, consoante o palco e a experiência vivida pelo combatente. Ler Armor Pires Mota, Álvaro Guerra, José Martins Garcia, Álamo Oliveira, Cristóvão de Aguiar, José Brás, Luís Rosa, é perceber como estes homens falam de um tempo, de lugares, de situações distintas, como distintas foram as perceções que eles registaram da guerra que viveram. E o mesmo se pode dizer de escritores como João de Melo ou António Lobo Antunes, em Angola, ou Carlos Vale Ferraz ou António Brito, em Moçambique.

E o fenómeno literário também é irradiante, pois abarca romance e conto, memórias, ensaio, poesia, reportagem, história e diários. Atenda-se que um significativo número de escritores faz uma só “viagem”, memórias ou romance, escreve-se uma vez e não se regressa. Há os reincidentes, caso de Armor Pires Mota e Manuel Barão da Cunha. Curiosamente, ambos escreveram na fase de arranque, sob a forma de epopeia, de gesta, da glorificação da obra do soldado, da exultação da camaradagem e do destemor de gente humilde que apanhou o início das guerras.

Manuel Barão da Cunha 

Manuel Barão da Cunha tem vasta obra, todo começou com um livro memorial, Aquelas Longas Horas, 1968, edição da Mocidade Portuguesa. Combateu em Angola, ali estava em 1961, conheceu ásperos tempos, irá intervir em regiões cruciais, como Nambuangongo, participou na operação Viriato. Estará na Guiné, anos depois, na intervenção direta, fazendo operações em santuários do PAIGC e depois na quadrícula, no Leste, no regulado de Pachana. Em 1972, reciclou o que escrevera, com novos averbamentos, e publicou Tempo Africano. Escreverá posteriormente A Flor e a Guerra, em 1974, na Parceria António Maria Pereira. É um registo distinto, tem pouco de épico ou glorificador, ressalta uma visão amargada, é um homem doente, ferido, seguramente a desiludir-se, se tivermos em conta o que escreveu.

Depois, como um alquimista, passou a torcer, a retorcer e a distorcer as diferentes narrativas de guerra. O essencial das suas memórias tem a ver com a Angola de 1960 a 1962 e a Guiné de 1964 a 1966. Foi um pioneiro desta escrita, faça-se-lhe justiça. Já uma vez escrevi como ele fala dos seus soldados, das obras que deixarão em vários pontos de Angola e da Guiné, segundo um princípio axial: “A obra ficava, o homem partia. A obra ficava para outros homens e o homem partia para outras obras”. Fazendo e refazendo o Tempo Africano foi tratado como farinha espoada, a narrativa passou a compartimentar-se em andamentos, e onde o autor se distanciava de tudo quanto contava, foi-se gerando uma aproximação autobiográfica, com o recurso a um alter-ego, Pedro Cid, que vai dialogando com um jovem, em variadíssimas situações que metem repastos e encontros com outros veteranos de guerra. O jovem, Francisco Adão, pergunta, Pedro Cid responde, ao sabor da cronologia. Tudo começa em Angola, estamos em janeiro de 1960, Pedro é um “dragão”, um jovem alferes que comanda mancebos naturais ou residentes em Angola. E assim chegamos aos acontecimentos de fevereiro de 1961, com os ataques a Luanda e musseques periféricos. Pedro é um observador privilegiado, cabe-lhe ir a Nambuangongo com os seus “dragões”, seguir-se-ão outras dolorosas missões, e mesmo autobiográfico retoma-se a atmosfera de Aquelas longas horas, dando ênfase aos comportamentos militares de exceção. Gente que aparece agora a depor, entre muitíssimos outros depoimentos na obra mais recente de Manuel Barão da Cunha, "Longas Horas do Tempo Africano", 10.ª edição, revista e reestruturada, Oeiras Valley, Município de Oeiras, 2019.

Pedro regressa a Portugal, estará em Lamego nas Operações Especiais. E em 1964, parte para a Guiné, na CCAV 704. No início, faz parte das forças de intervenção, vai ao Sul e depois ao Morés, volta agora a falar nesta operação Tornado que durou cerca de 80 horas. E depois passa para a quadrícula, estará no Leste, fala em Bajocunda e Copá, vive em Amedalai, sede do regulado da Pachana, deixarão obra. Pedro Cid regressará a Angola entre 1969 e 1971.

O seu novo livro recolhe depoimentos de amigos, de companheiros de estrada, de camaradas que o admiram, alguns deles foram seus militares: o escritor João Aguiar, o General Rocha Vieira, o Engenheiro Anacoreta Correia, o Professor Henrique Coutinho Gouveia, entre tantos outros. A edição é ricamente ilustrada com desenhos do pintor Neves e Sousa. Uma autobiografia num livro de consagração do escritor. Fala-se da sua preparação, o Colégio Militar é uma referência. É meticuloso nas suas referências. Quando fala da operação Viriato, anota: “Durante 36 dias e 36 noites e ao longo de 1419 km deparámo-nos com mais de 20 ações de combate, incluindo emboscadas, muitas das quais não foram registadas por terem sido atingidos militares de outras unidades, num total de 3 mortos e 38 feridos; mais de duas centenas de obstáculos, alguns constituídos por 4 e 5 árvores empilhadas ou embondeiros gigantes, fazendas destruídas, incluindo casas e viaturas; abrigos próximos da picada, para facilitar a emboscada".

Livro de uma vida militar, nele acorreu um conclave de diferentes protagonistas de todo este itinerário que depois se prolongou pela vida civil, um trabalho proficiente na Livraria Verney, onde começaram as afamadas tertúlias Fim do Império, que hoje se derramam por diferentes espaços, acolhendo apresentação de obras de múltiplos olhares, tal e tanto é o incansável dever de memória a que Manuel Barão da Cunha se entrega.
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de Janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20610: Notas de leitura (1260): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (43) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20205: Notas de leitura (1223): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (26) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
A BVAC 490 retirou da ilha do Como, vem bastante mal tratada, fica em Bissau até partir para Farim e redondezas, em maio.
Era incontornável a referência a Armor Pires Mota, um diarista do Como, a ele nos iremos socorrer nas etapas seguintes.
Mas ao sair do Sul havia uma referência, brejeira e burlesca, inescapável, saída da pena de um grande escritor, José Martins Garcia, aquele alferes miliciano que deixou um romance brilhante "Lugar de massacre", continuamente a ser estudado em instâncias universitárias.
Tudo se passa entre Catió e o Cachil, e por vezes as fraquezas dos homens até permitem ir à procura de um responsável inexistente...

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (26)

Beja Santos

“Todo o pessoal louvado,
pouco tempo descansámos.
Noutra saída, novamente
para Farim abalámos.

De novo metidos ao mar
no Vouga, Lanchas e Dragão,
todo o nosso Batalhão
irá ao cais atracar.
Vamos nós aquartelar
no quartel amuralhado.
Onde o Batalhão é formado, havendo grande reunião
e pelo Comandante da operação
todo o pessoal é louvado.

Em Bissau a passear,
para ver as matulonas
mas elas são tão mazonas
que à tropa não querem ligar.
Levando o tempo a andar,
as solas dos sapatos estragamos.
Muitas vezes chegámos
a faltar à comida.
Com esta tão boa vida,
pouco tempo descansámos.

Os médicos inspeccionaram
para ver os que estavam capazes.
Tivemos muitos rapazes
que para a guerra não abalaram.
Eu fui um dos que cá ficaram
junto a quem estava doente,
pois ficou cá muita gente,
que estava muito mal,
mas quase todo o pessoal
noutra saída, novamente.

Ao mês de Maio se chegou
e os batelões foram carregar.
Com os rebocadores a puxar,
pelo mar se navegou.
Muitos dias se demorou
porque grande carrada levámos.
Para muito tempo nos destinamos,
enfrentando sempre a morte,
e ansiosos por melhor sorte,
para Farim abalámos.”

********************

Vamos despedir-nos em grande dessa batalha do Como, temos um vate, um cronista, um diarista que por ali andou e deixou páginas de indelével impressão. Trata-se do “Tarrafo”, de Armor Pires Mota. Logo no Como, em 15 de janeiro:  
“Quando o sol, suavemente, se aconchegou vermelho no seio verde e agitado das ondas do mar, a distância que nos separava da ilha tão falada, era pouca, a indispensável para não quebrar a surpresa. E o barco ancorou, durante a noite estrelada, ao sul. Em cada rosto, em cada palavra, havia a incerteza do dia seguinte e o perigo do desembarque, pois há tempos que a tropa não punha ali os pés (…). E fez-se a noite do primeiro dia, escura e cheia de medos e fantasmas. Qualquer folha ou fruto caindo das árvores ou bulindo no chão, qualquer sapo saltitando, caindo no abrigo, lembrava um passo estranho que arrepiava. Em frente, na mata, separada de nós por uma pequena bolanha encharcada, duas ou três fogueiras crepitavam cinicamente.”

No mês seguinte, 8 de fevereiro, deixa estas considerações no seu diário: 
“A manhã correra bem. Os bandidos foram levados de rompão na tabanca grande de Cauane. E de lá trouxemos um crucifixo, cujo Cristo tinha um braço despregado. Uma explosão súbita de granada atroou os ares. Que seria, que não seria? Mas, logo, gritos de dor magoaram os ouvidos. Era o Quítalo que, alucinado, corria, a manquejar, gemendo, rosto mascarado de sangue e lama, peito ensanguentado e sem uma das mãos, enquanto a outra apresentava apenas dois dedos esfacelados. Correram a ampará-lo. Parecia uma visão terrível, um homem de calvário. A armadilha, que ele costumava montar todas as tardes para os terroristas, hoje, traiu-o, disparando-se-lhe nas mãos. Junto do buraco aberto pela explosão, pedaços de carne, terra avermelhada de sangue, uma alpercata desfeita, e, mais ao largo, o barrete e farrapos da farda”.

Armor Pires Mota
Estamos a 24 de fevereiro, regista o seguinte queixume:
“Há quarenta dias que o mundo para nós é incerteza da hora seguinte a devorar-nos a fronte atormentada. O mundo para nós é de luta, uma terra de sangue e fogo. Há refeições em branco, porque nada apetece senão a paz, o regresso. Há pesadelos e estonteamentos, cansaço. Uma grande parte da tropa está já inoperacional”.

O último texto do Como data de 15 de março:  
“A guerra esconde-nos as estrelas e faz-nos selvagens. Um tecto feito de troncos de palmeira, coberto de meio metro de terra, pesa, dói-me e sinto-me um condenado num exílio. Enfim, um abrigo à prova de morteiro, porque, de vez em quando, eles nos pregam uns sustos valentes. Tem 60 dias o meu abrigo. Da seteira larga olho, apreensivo, o dia seguinte, a mata densa e cheia de segredos”.
Nesse domingo houvera missa ao cair da noite, e ele despede-se dizendo: “Deus desceu à guerra para a paz”.
Só retomará o seu diário no mês de maio.

É importante voltar à história da unidade, sabemos que o BCAV 490 veio do Como em muito mau estado, estadeou em Bissau, cabe-lhe a partir de maio, com sede em Farim, proteger eixos como Cambajú – Sitató – Cuntima ou Canhamina – Canjabari – Junbembem. As atividades do PAIGC tinham-se alargado, excediam largamente o Oio. Ao BCAV 490 caberá a ocupação territorial da área da sua responsabilidade, irá mover-se entre Barro – Bigene – Farim – Cuntima, ocupando posições em Jumbembem e Cuntima, Binta, Bigene, Barro e Guidage. A seu tempo voltaremos a “Tarrafo”, de Armor Pires Mota. Iremos é despedir-nos da região Sul e nomeadamente de Cachil, o tal aquartelamento onde se posicionaram forças portuguesas depois da batalha do Como.

Temos à nossa disposição um importante escritor, José Martins Garcia, de um dos contos de “Morrer devagar”, de 1979, há para ali notáveis parágrafos brejeiros, onde o vitríolo mais mordaz é prática frequente:
“Na vila de Catió, lá para o Sul, onde a mosquitagem crescia delirante na estação das chuvas, o Batalhão de Caçadores tinha agora novo comandante, o Tenente-Coronel Galvão, um ser tratável, quase bondoso, um tanto sentimental, um tudo-nada neurasténico antes de se lançar nos uísques. O antigo comandante, o insuportável Tenente-Coronel Barradas, cuja paranoia crescera na proporção directa do entupimento dos tímpanos, havia sido afastado do activo, finalmente. E não deixara saudades aos militares nem aos civis respeitáveis do burgo.
Respeitáveis civis em escasso número, acrescente-se. Havia um comerciante transmontano, o único civil português totalmente branco da vila, o Barreiros, pequenino e rijo como um ouriço, que vendia arroz, aliás vianda, e amendoim, aliás mancarra, mais peixe seco e pano para blusas, saias e calções, e também vinho, aguardente e mistelas exóticas. (…) Os Fulas viviam quase todos em Priame, a um quilómetro de distância, sob autoridade feudal de João Bacar Jaló, Alferes de segunda linha do Exército Português. Os Nalus haviam desertado na totalidade. Só os Balantas adornavam as tardes rápidas de Catió, caindo bêbados de aguardente de cana e elevando ao crepúsculo uns risos lamentosos que os cães vadios, sarnosos, chagados, seguiam uivando horas a fio.

José Martins Garcia
No começo da guerra, em 1963, ordens e contraordens haviam produzido em Catió desusados movimentos de ida e volta. Um estratega iluminado decidira-se pela ocupação minuciosa das redondezas, fragmentando o batalhão, dispersando as companhias, fragmentando companhias, dispersando os pelotões, fragmentando pelotões, dispersando secções. O resultado foi desastroso, pois todas as ligações se mostravam extremamente complicadas, tanto por via rádio, como por via terrestre ou marítima, sucedendo-se às minas as emboscadas e às emboscadas as flagelações, com abundantes morteiradas alta noite. Confirmada a inoperância do iluminado estratega, logo lhe sucedeu um comandante de ideias diametralmente opostas, o qual, para demonstrar que a união faz a força, mandou recolher a Catió, com armas e bagagens, o batalhão que o antecessor havia disseminado. (…) Em Catió, onde os ataques nocturnos foram, por alguns anos, relativamente escassos, ouviam-se muito bem os rebentamentos das morteiradas vizinhas, desferidas contra Bedanda, Cachil, Ganjola e, mais raramente, Priame, ali mesmo ao fim da recta de um quilómetro, onde João Bacar Jaló, senhor de muita mancarra e de sete mulheres, valia, com a milícia Fula, por um exército inteiro. (…) O ataque à ilha de Como, onde posteriormente se instalaria a chamada Companhia do Cachil, nunca foi registado por cronistas. (…) O Cachil erguera-se, porém, nas imaginações. No passado recente, quando o surdo Tenente-Coronel Barreiros comandava o batalhão de Catió, a ameaça que mais insistentemente se lhe desprendia da boca era:
- Olha lá, ó militar! Queres ir prò Cachil?... 
Depois, quando o convivente Tenente-Coronel Galvão tomou conta daquela recalcada guarnição, logo um problema bicudo lhe veio pousar sobre a secretária: o Capitão Lourenço, comandante da companhia do Cachil, fora declarado incapaz para qualquer serviço militar, por conjugação de questões pulmonares com uma psicose verdadeiramente depressiva. (…)

Do Cachil não vinham nem bons ventos nem bons hóspedes, nem sequer boas notícias. A última irregularidade cometida por essas bandas rezava da alquimia operada no interior de um barril, cujo conteúdo vínico se revelara água, diante dos olhos crédulos e incrédulos. O comandante Galvão abominava as pequenas trapaças. E, por pensar em reabastecimentos, fez-lhe espécie, pela primeira vez, o facto de o Capitão Clemente, oficial de cavalaria, se ter enconchado na manutenção, superintendendo na batata, no vinho, no arroz, no bacalhau, como se fosse um desses da Administração, um ‘padeiro’. O Capitão Clemente empalideceu quando soube da decisão do Tenente-Coronel Galvão: mandá-lo para o Cachil, na qualidade de comandante interino da companhia, encarregando-o, ao mesmo tempo, mui honrosamente, de apurar a verdade acerca da transformação do vinho em água, alquimia tanto mais escandalosa quanto invertia a regra dos Evangelhos.

- Mas, meu comandante – gaguejou o Capitão Clemente – , logo agora, que a minha mulher veio para cá…
- Mas você fica lá só uns dias, homem! Há meses que não se ouve um tiro para aquelas bandas…
O Capitão Clemente partiu desmoralizado e começou a portar-se mal diante da escolta que o acompanhou ao cais, chegando ao ponto de gemer de voz embargada:
- Agora é que não torno a ver a minha mulher nem os meus filhos.

(…) O jantar foi servido ao ar livre, sob um poilão gigantesco. As escassas lâmpadas, tão débeis como o rumorejar irregular da geradora eléctrica, mais concentravam do que dispersavam os temores. (…) Mais tarde, quando deu as boas noites aos alferes e se fechou no quarto, voltaram-lhe à memória as fábulas incertas, tão incertas quanto divulgadas em terras da Guiné: dezenas de mortos e feridos, a cavalaria a atolar-se, a artilharia a esquivar-se, a infantaria a imolar-se. Tudo por uma questão de estratégia, ou por falta dela, na sinistra ilha do Como. (…) O Capitão Clemente começou a sentir dores de barriga. Tinha medo, é certo; mas a causa daquelas cólicas devia ser o mau estado do jantar: uns feijões embrulhados em farrapos de carne duvidosa… E era evidentemente um atentado à dignidade de um capitão não terem construído uma retrete, que diabo!, ali ao lado, uma retrete privativa, porque, se não há distinção entre o comandante e os subordinados, está em crise a hierarquia, a autoridade, a civilização…
O capitão Clemente dormiu pessimamente, revolvendo-se na cama dura, sentindo-se atolar na água negra do canal. Muito cedo, a passarada desatou a chilrear. O Sol, finalmente, viria trazer-lhe um pouco de alento, depois do horrível negrume daquela noite memorável.
O capitão Clemente espreitou por uma nesga da porta e avistou a sentinela. Com um berro indignado, onde perpassavam a aspereza e o peso do comando, mandou que o militar se aproximasse: - Entra, que temos de conversar!
O soldado mal abria os olhinhos atordoados, pois acabara de render um camarada:
- Estás a ver aquilo, pá!
Hirto, solene, o Capitão Clemente apontava um canto do quarto onde alguns cagalhões se cavalgavam.
- Põe-te em sentido! – uivou a indignação do bravo Capitão Clemente.
O soldado obedeceu, boquiaberto.
- E agora – rematou o bravo capitão, mais que fera – responde! Quem foi o filho da puta que fez uma coisa destas?”.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 27 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20183: Notas de leitura (1221): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (25) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 30 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20190: Notas de leitura (1222): História das Tropas Pára-Quedistas Volume IV, é dedicado à Guiné e tem como título História do Batalhão de Caçadores Paraquedistas n.º 12; responsável pela redação e pesquisa Tenente-Coronel Luís António Martinho Grão; edição do Corpo de Tropas Paraquedistas, 1987 (1) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16140: Nota de leitura (842): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,
O trabalho de investigação de João de Melo foi tão rigoroso e cuidado, que publicados estes dois volumes sobre a literatura das três frentes em 1988 a sua leitura continua a ser imprescindível, bem entendido para quem pretenda conhecer as primeiras décadas da literatura da guerra.
O jornalista e escritor Joaquim Vieira contextualiza os acontecimentos, seguem-se as antologias.
Deixamos para a próxima incursão a revelação de um conto de Álvaro de Guerra de altíssima qualidade, e até agora não divulgado entre nós, "O Tempo em Uane".

Um abraço do
Mário


Os Anos da Guerra, por João de Melo (2)

Beja Santos

“Os Anos da Guerra”, com organização de João de Melo, dois volumes, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988, constitui o primeiro e até agora o mais significativo levantamento sobre a literatura da guerra colonial, nas suas três frentes. No primeiro volume, o escritor João de Melo passa em revista as principais etapas que conduziram os movimentos de libertação à luta armada, percorrem-se os itinerários da preparação militar e analisa-se a literatura de Angola. Este segundo volume integra as literaturas de Moçambique e da Guiné e diferentes olhares sobre e no regresso da guerra. Como sempre, Joaquim Vieira procede às introduções dos respetivos conflitos. No caso de Moçambique, refere que em 1964 a FRELIMO procurou lançar a insurreição em cinco distritos, descobrirá que não possuía forças suficientes e concentra-se em Cabo Delgado e Niassa, aproveita-se dos apoios situados na Tanzânia. A FRELIMO demorou a impor-se, sofreu divergências internas, tinha no seu seio duas grandes correntes, a pró-ocidental e a francamente pró-chinesa. O projeto de Cahora Bassa, no distrito de Tete alterou por completo o ruma da situação em Moçambique. Eduardo Mondlane foi assassinado nos escritórios da FRELIMO em Dar-es-Salam, Samora Machel sucede-lhe na presidência no ano seguinte e a ala mais moderada do partido é afastada, tendo-se alguns dos seus dirigentes entregue às autoridades coloniais. O período do Comandante-Chefe Kaúlza de Arriaga irá ficar assinalado pela operação Nó Górdio, proclama que a guerrilha está à beira do aniquilamento, numa altura em que a FRELIMO se concentra no distrito de Tete e ameaça a construção da barragem de Cahora Bassa. A guerra avança, o equipamento da FRELIMO melhora e em 11 de Abril é disparado o primeiro míssil Strella. Escreve Joaquim Vieira:
“O relatório do quartel-general da Região Militar de Moçambique, referente aos quatro primeiros meses de 1974, indica um acréscimo global da atividade da guerrilha, um pouco por toda a parte. Impressionado pela deterioração da situação, Costa Gomes decide afastar o Comandante-Chefe”.

Vários são os autores referenciados, mas a figura principal é necessariamente Carlos Vale Ferraz e o seu “Nó Cego”, aqui fica um estrato:
“Ao Passos pareceu-lhe distinguir silhuetas de palhotas, de gente entre os arbustos. Parou, avisou os soldados da sua equipa, o alferes e o capitão. Agachados, dispostos num rosário de contas ao longo do trilho, pressentindo a chegada do momento, retida a respiração, os homens, em equipas de cinco, foram-se desfiando em linha.
Prontos? Interrogaram os olhos antes de se lançarem ao assalto correndo e disparando sobre tudo o que bulisse, sombras e corpos. Atiravam as granadas de mão para o interior das palhotas como garotas assustando galinhas, rebentavam a pontapé as frágeis portas enquanto atravessavam o pequeno aldeamento, agarravam pelos panos os corpos dos negros que não tinam conseguido fugir.
- Encosta esse par de jarras aí a essa árvore para lhes retirar o retrato! – gritava o Pierre o para o Vergas, que passava arrastando um casal de negros velhos, ela, a cocuana, de tronco nu, as mamas descaídas quase até à cintura, a pele cinzenta escamada do calor e da sujidade, ele, curvado e dorido, as articulações deformadas.
O Vergas hesitou em entregá-los ao Pierre, sentia-se estranho, já não possuía as mesmas certezas dos primeiros meses de guerra, abriu a mão para os deixar entregues ao pequeno tripeiro e ficou de olhos parados vendo-o colocá-los a jeito antes de disparar uma rajada curta. Seguiu o descair lento deles até se enrolaram sobre a terra nos últimos estertores.
- Esta não! – rugiu o Passos, com uma negra jovem agarrada por um braço, para o Pierre a rir-se ainda com a G3 a fumegar, preparando-se para repetir a cena. 
– Esta vai pagar-mas doutra maneira! Puxou-a para trás de um arbusto enquanto os homens da companhia continuavam a disparar e a partir os potes de barro. Deitou-a sobre o capim seco, escutando deliciado os gritos e os tiros, arregaçou-lhe o pano da saia, abriu-lhe as pernas e enfiou-se nela. Resfolgou que nem um toiro cobridor.
A negra continua deitada depois de ele se levantar limpando-se antes de apertar as calças, os panos enrolados na cintura, os olhos parados, muito abertos, apenas os músculos tensos do pescoço erguiam ligeiramente a cabeça fixando inexpressiva, a cara dos soldados que se aproximavam.
- Vá, ó Transmissões de um cabrão, vá, agora tu! – berrava o furriel.
O Brandão, pálido como sempre, cuspiu e passou adiante. Foi o Freixo quem lhe tomou a vez, deitou a G3 ao lado do corpo e bombeou-se para cima e para baixo, rápido a despachar antes que outros viessem ou o capitão passasse por aquele canto escondido na periferia do aldeamento assaltado”.

E chegamos ao contexto da Guiné, Joaquim Vieira fala do significado comercial da colónia, da pujança da ofensiva rebelde, da desarticulação do território, da chegada de Spínola, da sua ofensiva psicológica e militar, são informações que todos nós já dispomos no blogue. A escolha de João de Melo para a literatura inclui nomes grados como Álvaro Guerra e José Martins Garcia. Começa logo por destacar o conto “O Tempo em Uane”, que veio incluído em Histórias Breves de Escritores Ribatejanos, antologia organizada por António Borga, Lisboa, 1968, mas que apareceu também numa antologia de literatura ultramarina organizada por Amândio César em 1966. É uma narrativa belíssima, merece destaque no próximo texto, nunca dela se falou aqui. Uma das razões fundamentais por que se deve procurar conhecer os textos que João de Melo escolheu para esta obra incontornável é a visão do depois da guerra a diferentes vozes e aí depõem escritores como Olga Gonçalves, António Lobo Antunes e Lídia Jorge, entre outros. “Os Anos da Guerra” incluem a bibliografia geral sobre a guerra colonial e a cronologia sobre as lutas de libertação, evidentemente tudo reportado a 1988. É ocioso dizer que muitíssima água correu depois sob as pontes.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 23 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16124: Nota de leitura (841): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16124: Nota de leitura (841): “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
Foi graças a "Os Anos da Guerra", de João de Melo que encontrei azimute para me abalançar a escrever o livro "Adeus, até ao meu regresso", um percurso da literatura da guerra da Guiné.
João de Melo foi muitíssimo bem-sucedido na investigação a que procedeu sobre os escritos das três frentes, inventariou ao tempo o que havia de melhor. Acertou em cheio com os três escritores que combateram na Guiné. Álvaro Guerra, José Martins Garcia e Álamo Oliveira. Estranhamente, reduziu Armor Pires Mota a uma mera referência, justiça incompreensível.
Não hesitem em comprar ou procurar nas bibliotecas públicas esta preciosidade.

Um abraço do
Mário


Os Anos da Guerra, por João de Melo (1)

Beja Santos

“Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988, dois volumes, continua a ser a obra de referência para toda a literatura da guerra que travámos em África, até ao fim do império. Meticulosamente, ao longo de seis anos da década de 1980, João de Melo procedeu a um levantamento das vozes, e Joaquim Vieira fez o estudo de localização histórica e política.

João de Melo arranca os dois volumes com o seguinte ensaio:
“A guerra colonial e as lutas de libertação nacional nas literaturas de língua portuguesa". Fala-se de toda a literatura de colonização, do espírito civilizador, questiona-se a seguir o que é uma literatura de guerra e se, mesmo aqueles que contestavam a guerra e não foram combatentes não tiveram um papel pioneiro na construção de uma cultura conducente a um ideal de libertação. E depois João de Melo pergunta se há uma geração literária de guerra colonial, responde positivamente e apresenta uma listagem desde os percursores até aos anos 1980. Termina assim este seu ensaio sobre a literatura de guerra:
“Ela é um dos únicos meios de expressão que não faz silêncio nem tábua rasa sobre o enorme logro do nosso passado colonial. Daí que ela seja muito discriminada entre nós. E daí também que a sociedade do presente, parecendo enjeitar os seus males de guerra, continue a produzir a comprazer-se com o espetáculo da sua própria violência interior”.

Joaquim Vieira contextualiza a África nos anos de 1960 e a multiplicação das frentes. E chegamos à Gare Marítima de Alcântara e às atividades militares que a precedem. Logo um magnífico texto de Filipe Leandro Martins intitulado “O couro selvagem das botas”, que assim começa:
“O comboio deixou-nos na cidade com mais ou menos 20 anos. Saímos aos trambolhões, entre malas e saquinhos, berrando uns pelos outros com a solidariedade de bairro, de vila ou de escola. Eu vinha só com a mala pesadíssima que trazia de casa para a caserna que nos esperava, velhaca. Arrastávamo-nos com pressa, desancados pela viagem, pelas bagagens, pelo sol provinciano à uma da tarde no largo amarelo da estação e ouvia alguém gritar o meu nome uma porrada de vezes antes de voltar. Não me apetecia partilhar o que ia ser a vida dali em diante”.

Álvaro Guerra fala da sua recruta, tal como José Martins Garcia, e depois Álamo Oliveira descreve o cais de Alcântara:
“Talvez fosse febre aquele arder de Julho em Lisboa. O sol esgazeante e bravo. Meio-dia. João à beira do desmaio: uma dor nos olhos que cega. Do alto, na amorada do Uige, esforça-se por distinguir os corpos que enforma aquela pequena multidão, que se mexe e confunde, água oleosa batida por ventos sensuais, bailada, traindo os olhos, sempre o calor imperturbável, o corpo empastado de suor febril. A cabeça cresceu e pesa como nunca. João não consegue estar lúcido e, no entanto, sabe que não está louco. Ainda. Embaraça-se nos tentáculos do polvo, a multidão uivante, espasmódica. Lisboa ao fundo, postal quieto, enorme. O navio atracado. As escadas de acesso, altas e trémulas, enchem-se de soldados, as mãos a abanar, com fúria, com tristeza, olhos vermelhos como peixe-rei, os gritos da multidão lá em baixo a morrerem de afastamento e de cansaço”.

Joaquim Vieira dá-nos uma moldura dos acontecimentos angolanos de 1961, e depois o nacionalismo e o tribalismo, o aparecimento da Frente Leste, a guerrilha angolana dividida em três movimentos, seguem-se as narrativas dos escritores que em Angola combateram, ou sobre a guerra falaram: Manuel Alegre, Octaviano Correia, Manuel dos Santos Lima, José Luandino Vieira, Jofre Rocha, Wanda Ramos, David Mestre, Abílio Teixeira Mendes, Mário Varela Soares, Costa Andrade, António Lobo Antunes, Pepetela, João de Melo, Vergílio Alberto Vieira. A palavra a Mário Varela Soares no texto “O gajo de Cinfães”:
“O rapaz estava caído, branco, de um branco sujo onde se viam as riscas do suor cortando a poeira que tinha na cara. Um dos ombros estava descaído ao peso do sangue e do buraco negro que se avizinhava junto ao pescoço. E o borbulhar de sangue ouvia-se cavernoso e profundo como se viesse mesmo das entranhas do seu peito magro.
- O gajo tem a clavícula perfurada; não é grave mas precisa de ser evacuado…
O cabo enfermeiro quase soletrava as palavras, na importância da sua sapiência. O homem que se podia gabar de ser o tipo que mais mal dava injeções em todo o mundo. O rapaz olhava para todos sem perceber nada mais para além da sua dor e da surpresa de ter sido apanhado pelo único disparo nesse dia e nessa sua primeira guerra. A sua cara, de olhos esbugalhados, andava de um lado para o outro seguindo os movimentos lentos do cabo enfermeiro e do seu ajudante improvisado, o guia bailundo (…) Apeteceu-lhe dar uma das suas mãos para que o gajo de Cinfães a agarrasse no estertor das suas convulsões dolorosas. Nos seus olhos lia-se já o desmaio próximo; a camisa interior toda esfarrapada deixava à mostra a placa de sangue coagulado que era constantemente lavado por pequenas golfadas de sangue novo e brilhante. O buraco da bala persistia, negro e aberto, de bordos queimados.
- Tem orifício de saída – explicava o cabo enfermeiro ao guia bailundo.
O que seria o orifício de saída? As caras interrogavam-se numa mudez de desconhecimento. O que seria o orifício de saída. Os olhos do gajo de Cinfães reviraram-se ficando estrábicos numa incontinência de controlo; um vómito sobreveio ao desmaio encharcando com plaquetas brancas – o leite em pó do pequeno-almoço era sempre intragável – os braços do enfermeiro”.

E vamos despedir-nos com um texto de João de Melo, extraído de uma das obras incontornáveis da literatura da guerra, “Autópsia de Um Mar de Ruínas”:
“O furriel enfermeiro sacou rapidamente da faca-de-mato e cortou-lhe as calças, o dólman e a camisa. Fazia-o com a determinação dos olhos perdidos, dos homens que não iriam, nunca mais, perder a sua memória dos outros e de si mesmos. Cortava grandes pedaços de tecidos à navalhada e estava já ensopado daquele suor de lágrimas que tem a espessura da chuva e o salitre de uma navegação brutal. Ao ver os intestinos espalhados por todo o baixo-ventre do ferido, abri muito os olhos e disse três caralhos à vida, duas porras e três conas de madrinha-de-guerra aos capitães do Norte e, pondo-se a coçar a cabeça, sem saber o que faria àquele balão fumegante, começou por tomar as mãos do Gonçalves e disse: - Juro que não te vou deixar morrer, irmãozinho”.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de maio de 2016 Guiné 63/74 - P16113: Nota de leitura (840): “Outro Olhar, Guiné 1971-1973”, por Francisco Gamelas, edição de autor, 2016 (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14902: Notas de leitura (738): “Lugar de Massacre", de José Martins Garcia (2): Regressar à leitura de um dos livros indiscutíveis da guerra da Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Agosto de 2014:

Queridos amigos,
“Lugar de Massacre” é o primeiro título sonante da literatura da guerra da Guiné, após o 25 de Abril.
É uma carpintaria original, uma miscigenação de vários géneros literários, há para ali um controlo profundo de um mestre da língua que ondula entre o português vernáculo, o surrealismo, o humor trauliteiro, a paródia aos falsos valores ancestrais, o desnudar cruel dos horrores da guerra.
Pela sua complexidade, por ser uma página trágica do lugar e do tempo de massacre, continua a ser alvo de investigações universitárias, lá se vão descobrindo novas dimensões deste romance incómodo, subversivo, mordaz.

Um abraço do
Mário


Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (2): Regressar à leitura de um dos livros indiscutíveis da guerra da Guiné

Beja Santos

“Lugar de Massacre”, de José Martins Garcia, é obra cimeira da literatura da guerra. Cáustica, niilista, libelo dolorosíssimo, com recursos à linguagem encriptada, rememoração autobiográfica, impôs-se desde a primeira hora pela sua originalidade, por gritar em voz alta o nome dos lugares e dos tempos de massacre.

Demolidor com os valores passadistas, é nesse contexto que podemos observar os comportamentos burlescos dos condes d’Avince e d’Enxeque, que têm sempre na boca os valores da glória de Portugal e anunciam que estão em missão civilizadora e na prática são duas futilidades a brincar aos valores de antanho. A atmosfera do Quartel-General é de paródia, de orgia romana. Em contraponto, Pierre Avince, sempre a arrastar uma velha mala, espoleta a inquietação cultural entre os condes. Depois de uma festa em que os condes viram a mobília do quarto partida, Pierre Avince convida-os para o almoço do seu aniversário, nova borrasca, acaba tudo em bebedeira monumental, ausência ao serviço, o comandante Pássaro em raiva rubra. A propósito do sucessor do comandante Pássaro, José Martins Garcia destila o seu fel sobre a dimensão tacanha e burocrática do militar:

“Não foi a um ser verdadeiramente humano que o comandante Pássaro cedeu a chefia. Não se tratava também de um longilíneo pássaro triste, nem de uma consciência empenhada no dever, nem de um guerreiro nostálgico de brocados, nem de um recalcitrante enfastiado por disciplinas de caixa e tambor. Não era um eleito por capacidades insondáveis, não era um perito em matemáticas ou em fuga de ideias. Não era nada disso. Quebrara bravamente um pé. Não em combate. Mas em exemplificações para instruendo. Também na pança e nas nádegas se lhe infiltrara o micróbio da demissão. Sedentário, transferindo para tarefas menos ginasticadas, engordara. Ainda angélico nas pupilas azuis, crescera nas nádegas roliças, na cara bolachuda, no tronco, no alto e no baixo, a ponto por vezes de lhe terem chamado chimpanzé. Capitão Oliveira”.

A atmosfera de bacanal irá manter-se, há para ali amores inconversáveis entre oficiais e praças, o capitão Oliveira e o conde d’Avince andam ciumentos, disputam o mesmo efebo. Pierre Avince anda por Catió, não se mistura com estes ardores de paixão. Numa vinda a Bissau temo-lo novamente a protagonizar uma bebedeira monumental. As orgias sucedem-se. Pierre d’Avince parte para Bafatá e daqui para a Ponta do Inglês, o que aqui se passa é descrito com a irreverência e no tom delirante do costume. Mas é neste contexto que o escritor nos deixa uma página belíssima:
 “Frente ao rio barrento, com o mato pelas costas e ruídos inquietos pelas noites iguais, desenrolavam-se os dias de degredo, com a estritamente indispensável vigilância e a excessos de memória nas palavras cada vez mais ásperas. A saída única era à beira-rio, se a Marinha tivesse tempo ou propósito de ali mandar uma lancha. Mas constava ninguém apreciar essas paragens, que bem interiores ao mapa da Guiné-Bissau, constituíam na realidade o último enclave do ocupante, tomando por referência o largo afluente de nome Corubal. Daí para sul - dizia-se -, embarcação que ousasse adiantar-se saía rendilhada de bala inimiga, como já se provara. E em terra, nas picadas que tinham ligado a Ponta ao Xime e ao Xitole, o matagal apagara o trilho humano, dando por zero a parte colonizadora da civilização.
Havia três meses que aquele Destacamento de quarenta humanos ali encontrara abrigos e arame-farpado e ali se exercitava na espera, numa inquietação sem finalidade senão a de sonhar a evasão. Para além da vedação, percorriam, bem armados, uns cinquenta metros, para alcançarem água vagamente potável, tendo o cuidado de se abastecerem pela manhã, visto já terem notado, na lama fresca, pegadas de pé descalço. Ou fantasmas ali se dessedentavam, ou outra gente, invisível e talvez atenta, ali se abastecia. E o Anatólio, o furriel de poucas falas, não se entendia a si próprio quando afirmava querer e não querer conhecer esses fantasmas, quem sabe se homens menos loucos que os enclausurados brancos da Ponta do Inglês.
Reinava o sol sobre os perdidos defensores da cerca e então algum sorriso lhes sublinhava as falas. Mas vinha a noite e os receios aos montes acidulavam os gestos com que baralhavam as sebentas cartas e as davam a rostos apreensivos de tanto jogarem sem só uma certeza. E quando o vento sarcástico da história lhes fundiam mais uma lâmpada amarelenta, falavam de socorro e reabastecimento, culpando da solidão e da escassez de tudo o encarregado das transmissões”.

Com um domínio absoluto sobre o absurdo, assim termina o capítulo:
“No dia seguinte, Pierre e os seus dois auxiliares entraram, com o estúpido material que lhes coubera em sorte, numa lancha da Marinha, ali por acaso. Beberam água fresca e adormeceram. O Destacamento da Ponta do Inglês foi atacado poucas horas depois. Entre mortos e feridos muita gente escapou”.

Pierre d’Avince segue para São Domingos, no jogo das cartas ficará eternamente endividado, melhor dito fica a dever o vencimento de um ano. Pierre já não é produto do delírio literário, conversa com familiares mortos, são sonhos em que fala do tráfico de escravos, da polícia de choque que entrou no estádio universitário, o que nos remete para a crise académica de 1962. Prosseguem as conversas com os antepassados mortos, a sombra do passado também é dada pelo alferes Teive, no Sedengal, não longe de São Domingos, e temos mais uma comicidade com a velha aristocracia:
“O alferes Teive era ferozmente monárquico. Em 1578, no desgraçado dia da batalha de Alcácer Quibir, Dom Diogo de Teive, cheio de areia histórica, largara o ‘Ter! Ter!’ – brado com o qual, segundo os historiadores providencialistas, Deus pusera termo à loucura sebastiânica. O alferes Teive cuja paixão na vida civil fora a Heráldica, achava-se na posse de valiosos documentos que demonstrariam, uma vez revistos e conjugados, ser falsa a atribuição do tal desastrado brado ao heróico Dom Diogo de Teive. Dizendo isto, o alferes sacudiu o mindinho ornado de velhíssimo brasão”.
É por estas paragens que Pierre encontra as personagens mais simpáticas da obra, o capitão Camilo e um agente técnico mulato. Questionado por Pierre, responde que ninguém lhe faz mal, ele trabalha para o desenvolvimento da Guiné, diz ter andando na escola com Amílcar Cabral. Pierre diz-lhe de forma cortante que ele trabalha para o ocupante e o outro retorquiu:
“Não. Trabalho para a Guiné. O país fica, os governos mudam”.
O caminho para o delírio prossegue, Pierre vai ver com os seus olhos tabancas destruídas, seguramente que o PAIGC não está inocente, em chão felupe vê miséria indescritível, vê doença, vê superstição:
“De fora, vinha a lamúria dos felupes, encaminhando os mortos para o paraíso felupe. O deus felupe em nada se distinguia do deus da baga-baga, esse deus que ordena às formigas a construção de catedrais. Sombreado pelo compasso do tambor, o cântico fúnebre toda a santa-noite uivava encomendando a peste ao deus felupe”.

A guerra anda à solta, há minas e sinistrados, Pierre, combalido, regressa a Bissau e baixa aos serviços da neuropsiquiatria. Assiste à chegada dos helicópteros, grita pela Pátria no seu desperdício, vendo tanto sofrimento que acode àquele hospital militar, está seguramente louco, este doutor em letras, cirurgião dos fados soterrados em letra morta. Endoidece no lugar de massacre. Para que conste.
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14891: Notas de leitura (737): “Lugar de Massacre", de José Martins Garcia (1): Regressar à leitura de um dos livros indiscutíveis da guerra da Guiné (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Guiné 63/74 - P14891: Notas de leitura (737): “Lugar de Massacre", de José Martins Garcia (1): Regressar à leitura de um dos livros indiscutíveis da guerra da Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Julho de 2014:

Queridos amigos,
Vamos aos factos quanto à datação e faseamento da literatura da guerra. Nos anos 1960, pontificou a confiança no soldado português e o sentido de missão – é assim que podemos entender os escritos de Manuel Barão da Cunha e as primeiras obras de Armor Pires Mota. À entrada dos anos 1970, Álvaro Guerra deixa-nos parágrafos empolgantes e em 1973 publica “O capitão Nemo e eu”, um livro soberbo onde a Guiné é dona e senhora. E a seguir ao 25 de Abril, com estoiros de pirotecnia José Martins Garcia legou-nos o importantíssimo “Lugar de Massacre”, romance incontornável, um dos motivos de orgulho que devemos ter nesta literatura onde prima a originalidade e o arrebatamento.
Façam o possível por encontrar “Lugar de Massacre”.

Um abraço do
Mário


Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (1): Regressar à leitura de um dos livros indiscutíveis da guerra da Guiné

Beja Santos

Não é a primeira vez que aqui se fala neste belíssimo romance de José Martins Garcia, um dos primeiros a ser publicado no termo da guerra. Em nota, o autor informa-nos: “Este romance foi redigido entre o mês de Dezembro de 1973 e o dia 8 de Setembro de 1974. Qualquer coincidência com a realidade colonial dos anos 1966-1968, no que respeita à Guiné, não é produto do acaso”.

“Lugar de Massacre” tem merecido sucessivas edições e é alvo de continuada investigação universitária. Não é difícil perceber porquê. É um livro burlesco, codificado, com laivos de surrealismo, pintalgado de uma sexualidade excessiva, é uma obra em que o uso do palavrão aparece como um recurso natural e em que a linguagem é deliberadamente rebuscada de um português antigo, há para ali escrita alquímica e laboratorial. Incorpora uma metáfora da condição humana como escreveu Maria Edite Gordalina da Fonseca numa tese de mestrado que a Veja editou em 2003, em que compara “Lugar de massacre” com “Aparição”, de Vergílio Ferreira. Ela fala num romance-problema, romance que põe um problema e que dá ao leitor várias hipóteses de interpretação. A personagem Pierre Avince é uma das traves-mestres da arquitetura do romance. Pierre é oriundo de um meio social humilde, faz parte de uma espécie de aristocracia intelectual e cultural, é profundamente culto, é a imagem do império à deriva, transporta por todos os lugares de peregrinação os restos de uma mala. Escreve em rememoração, será frequente o leitor confrontar-se com a expressão “alguns anos depois”. A relação com as mulheres é cinzenta, indolor. O livro está carregado de símbolos, Pierre é oficial de transmissões e todo o equipamento que procura montar nunca funciona, é um inteiro fracasso. Pierre Avince é José Martins Garcia ao espelho.

A Guiné, toda ela, é o território onde está confinado o massacre de uma geração. O mato é lugar de massacre, tem aspetos bons quando suscita o isolamento e a clausura. Em termos niilistas, todas aquelas histórias com oficiais são de pôr os cabelos em pé, se acaso as tomássemos a sério, os oficiais em permanentes práticas homossexuais, Pierre vê panascas em todos os sítios, o oficialato é encarado com o mais completo desprezo, ao longo destas viagens só encontramos uma figura positiva, o capitão Camilo, o resto são pessoas desprezíveis.

Bissau é o ponto de partida e o ponto de chegada do romance, Pierre viaja por Catió, Bafatá, Ponta do Inglês, S. Domingos, Ingoré, Sedengal e Suzana. O recurso imagético é diversificado. Por exemplo, Catió tem bolanhas com odor podre; na Ponta do Inglês à para ali uma completa anarquia, um gato misterioso nome de morteiro 81, uma macaca a fazer arremessos de circo, o soldado Zé Burro que adorava fornicar ovelhas, e sofre porque estas não existem na Guiné, nesta Ponta do Inglês há um poilão onde apareceu Cristo. Os espaços interiores ligados a Bissau têm um tratamento insignificante, seja o Quartel-General seja a camarata da neuropsiquiatria do Hospital Militar de Bissau. Bissau é um cenário pintado em tons caricaturais, ali pontificam pessoas tratadas como aberrações ou serviços enigmáticos: “Sua Alteza”, “Chefe dos Comestíveis”, “Secção das Movimentações Perdidas”, “Serviços da Mortandade às Pingas”… Há por ali muita maldade, corrupção e decadência, é espaço dos bacanais típicos de Sodoma e Gomorra.

A instabilidade emocional de Pierre vai em crescendo, adensa-se à medida que se avoluma o dramatismo das situações que o rodeiam. Pierre vive consumido em álcool, do entorpecimento chega aos sinais da loucura, fala com familiares, inexplicavelmente passa a discorrer sobre o tempo e o espaço, as duas categorias fundamentais do entendimento, transformado em argonauta, incapaz de dar algum sentido à existência, anda de lugar em lugar, em jeito de interlúdios para se ganhar novo fôlego e para se perceber o seu desgaste temos a imagem da mala: velha mala, mala desconjuntada, incrível mala desconjuntada e suja, mala de Judeu Errante, farrapos de mala, parece que anda na Guiné a espiar uma culpa e ao mesmo tempo ganha a aguda consciência do absurdo da sua condição.

Obra enigmática ou cabalística, como se entenda. Bissau é uma cidade bíblica, tipo Sodoma e Gomorra, como se pode falar do cativeiro da Babilónia, das redondilhas de Camões, da Mensagem de Fernando Pessoa, tudo vem a propósito ou despropósito da guerra como situação limite, no vazio do tempo, do permanente a desejar da morte. Mas Pierre é um ser que nunca desiste – aí reside a questão central da metáfora da condição humana, mesmo alcoolizado, atormentado pelas imagens da peste que ele vê em Suzana, em pleno chão Felupe.

Mas “Lugar de Massacre” está longe de se confinar a Pierre Avince. O romance, aliás, começa com a chegada à Guiné do jovem conde d’Avince, uma clara imagem do passado, é uma das figuras anacrónicas do império tratadas com vitríolo por José Martins Garcia: “Descendente de uma família guerreira, cem anos inativa por imposição da paz e da prosperidade, coubera-lhe em sorte retemperar os gumes de antanho”. O seu passado é caricaturado para provocar gargalhada, vejamos a mãe do conde d’Avince: “A condessa era virtuosa. Por virtuosa, desposara o homem da sua vida, pálido, louro, tímido, casto, de brasão antigo, de fortuna incerta – mas todo ele aprumo. Uma lua após o himeneu, Dona Violante continuava virgem e dava graças as céu pela correção do esposo. Dom Teodósio, angelical, desflorou-a numa noite chuvosa, depois de algumas consultas, caras, a um especialista. Quando a condessa se convenceu do interessante estado, Dom Teodósio entregou-se com assiduidade às reuniões que, no fundo, constituíam a sua razão de ser. Dom Teodósio presidia à Liga para a Salvação do Passado, organismo completamente brasonado, cujas sessões se desenrolavam até de madrugada agrupando fidalguias, projetos e lamentações”. Este jovem conde que vai para a Guiné é literalmente um inútil, mas sente a sua missão de ir defender o solo sagrado. Foi colocado na Secção das Movimentações Perdidas. Procura amizades, conhece o Silva. Horrorizado, o conde ouve falar o Silva coisas que lhe parecem sinistras, do espiritismo ao vampirismo.

É nisto que entra no romance Pierre Avince, já bem alcoolizado, apresentar-se-á a Sua Alteza perdido de bêbado. Vai viver no quarto do conde e discursa coisas assim: “Um dos piores defeitos da nossa colonização é o anacronismo. Transpõem-se para os colonizados valores caídos em desuso. Quando derem a estes gajos uma fábrica de armamento, é porque já foi inventada, para os deuses, uma forma superior de destruição, o armamento fluido, o rei da morte. Quando os civilizados deixam de ligar à moral de entrepernas, a moral de entrepernas é exportada para outras latitudes. Isto é o mundo que a Europa criou”. O conde reage, mostra a sua indignação. Felizmente que chegou o conde d’Enxeque, veio também trabalhar para os Serviços de Conjugação.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14873: Notas de leitura (736): “Guerra d’África, 1961-1974, Estava a guerra perdida?”, por Humberto Nuno de Oliveira e João José Brandão Ferreira, Fronteira do Caos, 2015 (2) (Mário Beja Santos)

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Guiné 63/74 - P8900: Notas de leitura (286): Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 8 de Outubro de 2011:

Aqui há alguns dias atrás, um camarada interpelava o Mário B. Santos, através de comentário, se ele já tinha lido o livro com o titulo em epígrafe: "Lugar de Massacre", da autoria de José Martins Garcia, edições Salamandra, 1996 - 3.ª edição**.

Parece-me de realçar que a 1.ª edição ocorreu em 1975 e por via da Afrodite, essa interessante editora de Fernando Ribeiro de Mello, não só pelo cuidado das suas edições, mas, também, pelo arrojo dos temas apresentados (de que o mais conhecido será, talvez, a "Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica"), e pela divulgação de autores polémicos como Luís Pacheco, ou o mal-amado Fernão Mendes Pinto. A 2.ª edição foi no Circulo de Leitores.

Aquela interpelação levou-me novamente à estória, pois recordava apenas tratar-se de um texto de uma ficção erudita, e que me deu grande gozo na leitura.

De facto, trata-se de um romance cuja acção decorre no território da Guiné durante o período da guerra pela independência. É um género literário algo difícil, embora escrito com grande qualidade, apesar de o Autor, por momentos, parecer ter bebido um fortíssimo licor de absinto, com consequente perda do fio da meada. Mas não, não perdeu nada!

Ele recorre a um estilo provocador, eivado de uma inspiração humorística, que deve ter dado muito gozo enquanto escreveu a obra, através da qual são estilizadas diversas questões de absurdo, indiferença e irresponsabilidade, que aconteciam, quer nas repartições de Bissau, quer nos batalhões e companhias dispersas pela quadrícula (o mato). A partir dessa malha tece o Autor quadros de exageradas pinceladas, com riqueza de detalhes espantosos, e que contrariam o que mais se espera do retrato da guerra: a disciplina, a ordem, a determinação, o controle da situação. O Autor caracteriza as tradicionais dificuldades "obrigatórias" para o pessoal do mato, tanto ao nível das instalações, como do material, segurança e alimentação.

Mas o grande gaudio atinge-se com a caracterização da ineficiência verificada em repartições e departamentos militares em Bissau, onde vícios associados a tiques, a castas (filhos-de-famílias), à incompetência, ao desleixo, e à generalizada falta de auditorias (um fartar vilanagem, com ramificações cancerígenas por todo o território), espelhavam o ridículo e a ineficiência de algumas dessas repartições e departamentos, subjugados a interesses subterrâneos de conivências, apadrinhamentos e tricas, e à subtil vigilância exercida por uns sobre os outros, de que resultavam expressivas futilidades, inanidades e injustiças.

Neste particular desenvolve-se a narrativa, pela descrição pormenorizada das principais figuras dos "Serviços de Conjugação", onde um "lobby" de "panascas" desenvolve espectacularmente o caos e a actividade displicente, em termos geralmente repugnantes para o meio militar, mas tolerados por via de influências, receios revanchistas, e pela incapacidade para denunciar o comandante daqueles serviços.

A par disso, medrava a bebedeira da rejeição, protagonizada, sobretudo, por um alferes miliciano ceifado pela tropa no inicio da carreira profissional, decadente pelo álcool, que aqui e além acrescenta incisivas críticas ao regime militar em guerra, e que vem a sofrer com sucessivas andanças pelo mato, em inócuas tarefas de experimentação de equipamentos, sem obrigações nem responsabilidades, no que poderia tornar-se a divisa dos serviços, como consequência de uma sórdida congeminação do comandante e do amante.

Como referi, por vezes parece perder-se o tino da acção, por súbitas intercepções ou desvios ao discurso, num propositado caminho de desequilíbrios, dando abrangência a muitas e variadas estórias que aconteceram durante a guerra, mas, também, a muitos aspectos que feriam a capacidade da máquina militar, onde se ocultavam "ilhas paradisíacas", autónomas ou não, onde estranhamente se movimentavam oficiais, sargentos e praças que, objectivamente, não contribuíam para o bom desempenho e resultado da guerra, descrições que chegam a ser hilariantes.

Abraços fraternos
JD
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Notas de CV;

(*) Vd. poste de 2 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8728: História da CCAÇ 2679 (43): Aquele hôme (José Manuel Matos Dinis)

(**) Vd. poste de 3 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5924: Notas de leitura (72): Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 10 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8885: Notas de leitura (285): Até Lá Abaixo, de Tiago Carrasco (Mário Beja Santos)

terça-feira, 16 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6001: Notas de leitura (78): Morrer Devagar, de José Martins Garcia, De Catió para Farim (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Renovo o meu pedido de ajuda.
Primeiro, quem tiver “O capitão Nemo e eu”, de Álvaro Guerra, que faça o favor de mo emprestar (um camarada nosso ouviu-me, vai-me emprestar “A lebre”).
Quem tiver livros referentes à Guiné do Cristóvão de Aguiar, peço igualmente o favor de mos emprestar. Devolvo sem estragos e fico atento a outras propostas de leitura, de autores que escreveram ao longo das décadas de 80 e 90.

Um abraço do
Mário


De Catió para Farim

Beja Santos

O livro de contos “Morrer Devagar”, de José Martins Garcia (Editora Arcádia, 1979), é uma colectânea de histórias onde a memória da sua infância na ilha do Pico se junta a outras recordações, noutras latitudes, e que dão ao leitor a nítida percepção de que José Martins Garcia além de romancista, dramaturgo, ensaísta, poeta e publicista, foi um admirável contista, na vertente satírica, sobretudo. Insisto que o seu conto “As suspeitas dum bravo capitão” é uma peça exemplar que merecerá destaque em qualquer antologia que se vier a organizar sobre a literatura da guerra colonial na Guiné. Mas destaco igualmente duas outras peças de enorme qualidade: “Justiça” e “O lúcido capitão Ventoinha”. Para os não iniciados na obra de José Martins Garcia, é importante informar que o seu estilo é profundamente cáustico, torce e retorce, desenvolve e faz explodir pandemónios, desenha o caos, espalha o vitríolo, força-nos à gargalhada na construção hilariante de personagens e atmosferas.

No conto “Justiça”, somos enredados no caos das tricas militares, reais ou fictícias. Temos o antes e o depois, no teatro de operações. No tempo do tenente-coronel Barradas, anterior comandante batalhão de Catió, toda a gente tinha tento língua; com o novo comandante, tenente-coronel Galvão, a livre crítica instalou-se na unidade, os costumes relaxaram-se: “Um dia um, logo depois outro, os oficiais começaram a afoitar-se em matéria ideológica. Oficiais de carreira só havia quatro, além do comandante: o major Trigo, segundo comandante; o capitão Palmeirim, comandante da companhia de intervenção; o capitão Ferraz, comandante da CCS; e o alferes Santos, lateiro, melhor conhecedor das papeladas que um qualquer primeiro-sargento (o bravo capitão Clemente comandava, exilado, a companhia do Cachil). O restante pessoal era miliciano e havia – rosnavam os últimos defensores do regime – de destruir por dentro as nossas gloriosas Forças Armadas”.

Depois temos a descrição dos milicianos, os potenciais subversivos da ordem estabelecida: o alferes miliciano Capote, precocemente Calvo, angolano branco, clamava pela independência de Angola; a seguir ao Capote vinham ex-universitários como o Castelo Branco e o Gomes, doutrinados pelas greves académicas, com Marx de empréstimo e ecos de Mao Tsétung e da cisão sino-soviética. O alferes Queirós dava a entender que havia de fomentar a luta armada, se voltasse a Coimbra. No outro extremo, tínhamos alferes Silveira e Serrão. Insinuava-se que haviam sido informadores da PIDE. O Silveira pertencia à 2ª Repartição, o Serrão era o oficial de transmissões. A contra-guerrilha ideológica dividia o oficialato em Catió.

Aproximava-se o Natal, “a brisa agitava as laranjeiras pejadas de frutos verdes, os limoeiros crivados de limões liliputianos e a temperatura baixara para uma média de vinte graus centígrados”. Era uma época propícia para a boateira, imaginavam-se ataques iminentes. João Baker Jaló, célebre alferes de segunda linha apanhara um balanta suspeito. O alferes Silveira engaiolou-o, Serrão, descobrindo que o prisioneiro falava crioulo, propôs a Serrão que o apertasse. Eis o culminar da história:

“Por trás das lentes investigadoras, os olhinhos do Serrão rebolavam-se de vingança. Também andava agastado com os dizeres do bando progressista e preferia juntar a fama ao proveito. Serrão era um apaixonado por pornografia e tinha copiado, à mão, uma incrível narrativa intitulada “A Marca dos Avelares”, com a qual matava o tédio do ostracismo que lhe fora imposto.

Mandara colocar ao centro da prisão uma grande selha cheia de água. À porta, por razões de segurança, postou-se um soldado de G-3 apontada ao prisioneiro.

Dentro, à esquerda e à direita do preto, mais de três soldados de G-3 apontadas. O Silveira ficou cara a cara com a vítima. Atrás, como convidado de honra, o Serrão.

O crioulo do alferes silveira não era totalmente correcto. O crioulo do balanta também possuía graves lacunas. Desentenderam-se. O balanta respondia «...mê ká sibi». Não sabia de nada. Estava teimoso.

O alferes Serrão agarrou-lhe o cachaço e o prisioneiro quis resistir. Fechando bem os punhos, o Silveira pô-lo a sangrar do nariz e das beiçolas. O Serrão pôde então mergulhar a cabeça na selha. Subiram algumas bolhas, depois a água aquietou-se. Puseram-no de pé. O interrogatório recomeçou, com análogo desentendimento das partes em conflito.

– Vocês são uns incompetentes – ganiu o Serrão. – Nas mãos da PIDE, o gajo já tinha escarrado tudo...

O alferes Silveira encheu-se de brio e disparou ao nariz do preto um soco terrível, o maior, o em-cheio... mas um segundo depois de o prisioneiro cair, sem sentidos. O alferes Serrão foi atingido no sobrolho, que cedeu.

Ao jantar reinava um silêncio esquisito na mesa dos oficiais. O penso que ornamentava a arcada do Serrão ganhara uma eloquência capaz de emudecer o mundo”.

“O lúcido capitão Ventoinha” passa-se em Farim, em 1967. É aqui que aquele que viria a celebrizar-se sob a alcunha do capitão Ventoinha teve um sonho profético: “Sonhou-se numa espécie de trincheira mal protegida, morrendo às mãos dos turras e acabando por se ver de fora, morto e mais lúcido do que fora em vida (isto ele contaria ao psiquiatra, no Hospital Militar de Bissau”.

A escrita de José Martins Garcia, timbrada pela paranóia e pelos crescendos do ridículo, desnudando os bonifrates, aqui tem um toque onírico, à moda surrealista. Se é verdade que as tropas portuguesas violavam o território do Senegal, no seu sonho os turras crivavam-no de balas, coisas estranha agora a guerra dividia os próprios exércitos, os oficiais, sargentos e praças andavam a emboscar-se uns aos outros, era este o fundamento da mensagem libertária, pensou o capitão quando acordou do sono. O importante é que ele acordou aflito, desorientado com a sua própria imaginação, quando voltou a energia eléctrica e as ventoinhas se puseram a girar, talvez temendo a operação marcada para essa noite, o capitão Ventoinha meteu um dedo na dita e fracturou a falangeta... o leitor conclua a moral da história.

Tudo quanto ele escreve sobre a Guiné é deletério, puro veneno, destruição contumaz, a fábula histriónica que força a gargalhada desopilante.

Que se saiba, nada mais escreveu sobre a Guiné.

O livro de contos “Morrer Devagar” passa a pertencer ao blogue.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5980: Notas de leitura (77): Morrer Devagar, de José Martins Garcia, um contista fabuloso (Beja Santos)

sexta-feira, 12 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5980: Notas de leitura (77): Morrer Devagar, de José Martins Garcia, um contista fabuloso (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Para a semana “despeço-me” do José Martins Garcia*, tenho duas outras recensões em mãos. Venho novamente lançar um apelo a quem tem as obras do Álvaro Guerra e mas possa disponibilizar.

Faço o mesmo pedido para quem tem livros do Cristóvão de Aguiar, o grande nome da literatura da Guiné a partir dos anos 80. Agradeço antecipadamente a ajuda dos nossos tertulianos.

Um abraço do
Mário


José Martins Garcia, um contista fabuloso

Beja Santos

O crítico Álvaro Manuel Machado ao apreciar o grande livro que é “Lugar de Massacre” apõe-lhe os contos de “Morrer Devagar” como um prolongamento do romance. E são-no, de facto. O romance surgiu em 1975 (convém não esquecer “Katafaraum é uma nação”, publicado em 1974, é seguramente a primeira obra não visada pela censura onde se fala da guerra colonial), os contos “Morrer Devagar”surgem em 1979, tendo como chancela a Arcádia Editora. José Martins Garcia previne que o título tem a ver com o primeiro conto, a obra em si é miscelânea de diferentes intervenções onde uma parte significativa passa por histórias burlescas da Guiné.

Na nota biográfica, consta o seguinte: “José Martins Garcia nasceu na ilha do Pico e veio para Lisboa aos 15 anos de idade. Nesta cidade se licenciou em Filologia Românica. Andou na guerra, foi leitor de Português em Paris, ensinou na Faculdade de Letras de Lisboa, foi director-adjunto do Jornal Novo e até militante do Partido Socialista, do qual se demitiu por fastio invencível. Tem colaborado em vários jornais e revistas: República, A Capital, Jornal do Fundão, A Luta, Diário de Notícias, Colóquio Letras, Vida Mundial. Presentemente não pratica nenhuma religião, não adere a nenhum credo político, não perfilha qualquer sistema filosófico nem apoia qualquer imobilismo estético”. Foi depois professor nos Estados Unidos e ensinava na Universidade dos Açores em 2002, quando faleceu.

Atrevo-me a dizer, até prova em contrário, que o melhor conto escrito sobre a Guiné, por um combatente, se intitula “As suspeitas de um bravo capitão”. Antes de passarmos ao seu conteúdo e a outros contos deste ilustre escritor açoriano desaparecido em 2002, convém recordar que José Martins Garcia se movimenta agilmente entre o paranóico e o demencial, entre o burlesco e o corrosivo, entre a paródia e a pantomima. O chamado antigo combatente tem por vezes dificuldades em aceitar a derrisão, o pandemónio e as construções alucinantes em torno da descrição da guerra. Goste-se ou não, são os muitos os escritores que abrem mão da pilhéria e do grotesco para sulcar ainda mais fundo os enredos de non sense. Martins Garcia é um artífice da escrita carregada de vitríolo e doidice metafórica. Como sobejamente comprovam estes contos.

“As suspeitas dum bravo capitão” abre e engana-nos pela atmosfera de normalidade: “Com a chegada do mês de Dezembro, a situação melhorara a olhos vistos. Os tornados rodopiantes e lamacentos haviam cedido o lugar a uma viração seca, quase apetitosa, que parecia limpar da planura guineense aquele fedor alagado onde se misturava à erosão um subtil, talvez moral, cheiro a cadáver.

Na vila de Catió, lá para o Sul, onde a mosquitagem crescia delirante na estação das chuvas, o batalhão de caçadores tinha agora um novo comandante, o tenente-coronel Galvão, um ser tratável, quase bondoso, um tanto sentimental, um tudo-nada neurasténico antes de se lançar nos uísques. O antigo comandante, o insuportável tenente-coronel Barradas, cuja paranóia crescera na proporção directa do entupimento dos tímpanos, havia sido afastado do activo, finalmente”.

Depois o escritor descreve a população de Catió, os comerciantes, o administrador, o enfermeiro e o agente da PIDE, bem como o técnico da central eléctrica. Os fulas vivendo em Priame, sob autoridade feudal de João Baker Jaló, alferes de segunda linha. Os nalus tinham desertado, ficaram os balantas. No início da guerra, a estratégia passara pela dispersão e fragmentação das tropas; tendo-se revelado desastrosa, o novo comando mandou recolher a Catió as tropas. O autor descreve a situação: “Para aboletar todo este pessoal belicoso, o quartel expandiu-se pelo povoado. Os militares ocuparam tudo o que possuísse tecto, desde casas meio arruinadas até às moradias de comerciantes que, alertados pelos primeiros rumores do invencível terrorismo, rapidamente se haviam transferido para regiões de mais densa população branca, nomeadamente Bissau e Bafatá”. Os ataques eram escassos em Catió, mais frequentes em Bedanda, Cachil e Ganjola. Sendo possível concentrar em Catió todo o batalhão, este voltou a dispersar. Foi de Catió que partiu a expedição sobre o Como, que o escritor açoriano assim averba:

“O ataque à ilha de Como, onde posteriormente se instalaria a chamada companhia do Cachil, nunca foi registado pelos cronistas, talvez porque estes, sempre tão eloquentes em casos de vitória, se desgostam das estrondosas derrocadas... a Força Aérea cumpriu o seu dever, descarregando sobre os objectivos o arsenal estipulado. Para nada! Os abrigos subterrâneos da ilha do Como, construídos, dizia-se pelos soldados do Hitler, em certa fase da Segunda Guerra Mundial, resistiam bem a qualquer bombardeamento, não só devido à cortina natural da vegetação como pela consistência do material, coisa alemã, coisa inexpugnável, ali mandada cavar pelo Hitler... Depois da Força Aérea, coube a vez à Artilharia, ali classicamente postada para cobrir o avanço da Cavalaria. A Artilharia cumpriu a sua missão, despejando sobre a ilha sinistra a quantidade estipulada de material ardente, sem grande precisão, aliás, pois o alvo flutuava nessa latitude onde as marés esticam e encurtam a terra em vários milhares de quilómetros quadrados. A Cavalaria entrou nas lanchas da Marinha e, sob a protecção da Artilharia, escorregou para o lamaçal desconhecido. A Infantaria, finalmente chamada a reconquistar com seu pé clássico o terreno rebelde, saltou no vazio, atolou-se, afundou-se, emaranhou-se e alguns dos nossos mais bravos soldados crucificaram-se a si mesmo no matagal.

E então o inimigo invisível foi abatendo misericordiosamente os feridos, enquanto a Marinha dava por cumprida a delicada missão, a Artilharia cessava a actuação segunda bem conhecidas regras e a Cavalaria jazia em veículos inoperantes. Havia muito que a Força Aérea despejara seus inócuos carregamentos, pois a noite caíra, repentina, e só os moribundos, sem cronista de serviço, se esvaiam sobre a lama que o tempo não guardou”. Dois anos depois, o exército instalou-se no Como, em Cachil, sem se perceber lá muito bem a função. O quartel passou a ser uma permanente ameaça de desterro. Martins Garcia prepara assim a sua trovoada pirotécnica:

“Foi quando chegou a Catió, em escala para Bissau o doente capitão Lourenço, ex-comandante efectivo do Cachil. As suas faces chupadas não excluíam de forma alguma a hipótese de doença ruim... o comandante Galvão apressou-se a enviar para Bissau o hóspede impertinente, “para ele se curar”. Do Cachil não vinham nem bons ventos nem bons hóspedes, nem sequer boas notícias. A última irregularidade cometida por essas bandas rezava da alquimia operada no interior de um barril, cujo conteúdo vínico se revelara água. O comandante Galvão abominava as pequenas trapaças tão frequentes na carreira que escolhera. E, por pensar em reabastecimentos, fez-lhe espécie, pela primeira vez, o facto de o capitão Clemente, oficial de Cavalaria, se ter enconchado na manutenção, superintendendo na batata, no vinho, no arroz, no bacalhau, como se fosse um desses da Administração, um “padeiro”. O capitão Clemente empalideceu quando soube da decisão do tenente-coronel Galvão: mandá-lo para o Cachil, na qualidade de comandante interino, encarregando-o, mui honrosamente, de apurar a verdade acerca da transformação do vinho em água, alquimia tanto mais escandalosa quanto invertia a regra dos Evangelhos.

– Mas, meu comandante – gaguejou o capitão Clemente – logo agora, que a minha mulher veio para cá...

– Mas você fica lá só uns dias, homem! Há meses que não se ouve um tiro para aquelas bandas... a situação melhorou é o que toda a gente diz.

O capitão Clemente partiu desmoralizado e começou a portar-se mal diante da escolta que o acompanhou ao cais, chegando ao ponto de gemer de voz embargada:

– Agora é que não torno a ver a minha mulher nem os meus filhos...

Ao cair brusco da noite, encontrava-se no seu novo e miserável posto de comando, enclausurado pelo arame farpado, remoendo angústias, ao centro do improvisado quartel: um abrigo subterrâneo com duas toscas divisões, uma saleta quase desmobilada, separada do quarto por uma vedação de bambu mal entrançado... Mais tarde quando deu as boas noites aos alferes e se fechou no quarto, voltaram-lhe à memória as fábulas incertas, tão incertas quanto divulgadas em terras da Guiné: dezenas de mortos e feridos: a Cavalaria a atolar-se, a Artilharia a esquivar-se, a Infantaria a imolar-se. Às duas da manhã, porque era preciso poupar combustível, as lâmpadas extinguiram-se e a geradora deixou de arquejar. O capitão Clemente chamou a sentinela e recomendou-lhe vigilância; que não abandonasse a porta da tabanca. A sentinela limitou-se a acenar afirmativamente. Que imbecis! E as latrinas haviam mergulhado no escuro, lá para o outro extremo. Que criminosos! Nem havia uma privada para uso privado do comandante.

O capitão Clemente começou a sentir dores de barriga. Tinha medo, é certo; mas a causa daquelas cólicas devia ser o mau estão do jantar: uns feijões embrulhados em farrapos de carne duvidosa... o capitão Clemente dormiu pessimamente, revolvendo-se na cama dura, sentir atolar na água negra do canal. Muito cedo, a passarada desatou a chilrear. O Sol, finalmente, viria trazer-lhe um pouco de alento, depois do horrível negrume daquela noite memorável.

O capitão espreitou por uma nesga da porta e avistou a sentinela. Com um berro indignado, onde perpassavam a aspereza e o peso do comando, mandou que o militar se aproximasse:

– Entra, que temos de conversar!

O soldado mal abria os olhos atordoados, pois acabara de render um camarada:

– Estás a ver aquilo, pá?

Hirto, solene, o capitão Clemente apontava um canto do quarto, onde alguns cagalhões se cavalgavam.

– Põe-te em sentido! – uivou a indignação do bravo capitão Clemente.

O soldado obedeceu, boquiaberto.

– E agora – rematou o bravo capitão, mais que fera – responde! Quem foi o filho da puta que fez uma coisa destas?

Não fica por aqui o chocarreiro virulento, de Martins Garcia, há mais contos para contar, em “Morrer Devagar”.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 3 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5924: Notas de leitura (72): Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 8 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5952: Notas de leitura (76): Kikia Matcho, de Filinto de Barros (Beja Santos)