1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Junho de 2021:
Queridos amigos,
Os assuntos pessoais de Annette e Paulo entranham-se nas suas vidas, da mesma forma que Annette não deixa de pasmar com as errâncias de Paulo naqueles tempos de Bambadinca, um misto de recoveiro, guerreiro na escala, ajudante humanitário, vigilante de populações, até desenhador de operações, caso da Rinoceronte Temível, que está na forja. Paulo enviou a Annette um depoimento muito sofrido sobre a notícia da perda do seu maior amigo, Carlos Sampaio, falecido no início de fevereiro daquele ano de 1970, em Mocímboa da Praia, no norte de Moçambique. Na roda dentada do destino, coube-lhe receber a última carta do Carlos, datada de 31 de janeiro, antes de partir para uma estrada fatídica onde pisou um sistema de minas antipessoal. O horrível da carta era a maré de sonhos que ela continha, o que se faria depois da guerra, refundar uma livraria, finda a tormenta voltar-se-ia aos estudos, em breve os dois tão queridos amigos encontrar-se-iam no n.º 9 da Praça Pasteur, em Lisboa. Como Paulo escreveu a Annette:
"Ao abrir aquela carta de onde se soltou a necrologia, a imagem do Carlos, formalmente com a farda n.º1, foi como se um coice de mula me atirasse ao chão, onde rebolei de dor, eu que recebia regularmente a visita da amiga morte, estava casualmente naquele quarto-camarata o meu camarada Abel Rodrigues que olhava, atónito, para quem tão inesperadamente urrava, lá pegou aquelas folhas e viu a necrologia e se apercebeu que havia motivação para tal explosão de sofrimento. Como se partilhasse as minhas lágrimas, em linguagem suave, tentava acalmar-me. Posso reconstituir toda aquela cena infernal, estou a vivê-la neste momento, e para todo o sempre".
Um abraço do
Mário
Rua do Eclipse (59): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Mon adoré Paulo, regressei ontem ao fim da tarde de Munique, uma cansativa conferência europeia sobre fundos regionais, o meu coordenador de trabalho já me avisou que tenho uma semana inteira com peritos que vêm debater a reforma da política agrícola, trabalharão com funcionários da Comissão Europeia, haverá reuniões com a Comissão Parlamentar de Agricultura, com o Comité Económico e Social Europeu e, não percebo bem porquê, com o Comité das Regiões. Felizmente que esta maratona não vai beliscar com as nossas férias.
Antes de te falar do meu trabalho de casa sobre este período de 1970, andas tu, feito vagabundo entre Bambadinca, Nhabijões, tabancas do Cossé, ponte do rio Undunduma, operações no Xime e colunas de reabastecimento ao Xitole, quero contar-te que o meu filho Jules está a manifestar um quadro de depressão e por razões sérias: a sua relação amorosa com Renée não tem futuro, ambos concordaram numa separação sem lágrimas, e o seu trabalho precário acaba em breve, pelo que ele me contou é um caso de falência fraudulenta, anda à procura de emprego, por ora sem sucesso. Inesperadamente, enquanto jantávamos aqui em casa, perguntou-me se considerava muito extravagante que pedisse para passar aí uma semana ou dez dias contigo, ele desenvencilha-se bem sozinho desde que lhe dês sugestões para passeios, visitas de museus e jardins, que ele adora. Disse que ia prontamente falar contigo, independentemente de em breve se poderem encontrar aqui e ele observou mesmo que talvez pudessem regressar os dois juntos a Lisboa…. Naturalmente, eu assumirei os encargos da viagem, Jules tem vivido do seu pequeno rendimento e da ajuda dos pais. Pensa se é exequível, se não vai transtornar os teus planos, tu regressas já com o fim do ano letivo no horizonte, não te quero trazer sobrecarga de trabalho. Está descansado que estou a ver no Guia Michelin nos cemitérios da I Guerra Mundial diferentes lugares de Ypres que visitaremos. Com Pas de Calais ainda não tenho elementos, tudo se resolverá a seu tempo.
Espero não te estar a constranger com imensas perguntas, sei que por vezes sou impertinente, olho para os teus papéis, fixo-me nas fotografias, na documentação avulsa, naquelas folhas que tu chamas aerograma, até nos bilhetes-postais que enviaste e recebeste e confesso que não posso deixar de achar extraordinário como tu tens aí pessoas naturais da Guiné que passadas estas décadas todas quando lhes fazes perguntas parece que a memória absorveu como um mata-borrão todos os pormenores, acho surpreendente as conversas com a professora Violete, até aos livros que ela te empresta, as pessoas que vai consultar para satisfazer as suas dúvidas, mas para mim não há ninguém como esse Queta Baldé, a quem tu chamas o número 126, natural de Amedalai, eu posso imaginar vocês os dois sentados à mesa do café a dar-te resposta sobre itinerários que se diluíram no teu espírito. Quase que fiquei arrepiada quando lhe perguntaste sobre certas povoações entre Bambadinca e Bafatá e ele te descreveu Bantajã Mandinga, Bantajã Assá e Bantajã Cuta como lá tivesse ido ontem. E quando lhe pediste informações sobre as tabancas do regulado de Badora, só faltou que ele dissesse quantos homens, mulheres e crianças viviam em Sinchã Dembel e Bricama. Como o Queta tinha sido milícia na Ponta do Inglês, ele deu-te informações sobre a presença do PAIGC na região desde o segundo semestre de 1963, já percorria o regulado do Xime com alguma liberdade, ele lembrou-te que o PAIGC deixara um dístico em Gundaguê Beafada, no início de 1964, onde estava escrito
“Aqui começa a Guiné de Cabo Verde”. Ele deu-te pormenores sobre a reação das tropas que vieram de Bafatá, bem violenta. Constituíram-se milícias para defender a Ponta do Inglês, ficaram em autodefesa Amedalai, Demba Taco, Taibatá e Moricanhe, que tu já percorreste desde que em novembro do ano passado chegaste a Bambadinca. Nessa conversa com o Queta achei curioso ele ter dado a sua opinião de que considerava uma calamidade a retirada da Ponta do Inglês, viera permitir a total liberdade do PAIGC no Poidom e em Ponta Varela, a capacidade ofensiva da guerrilha era enorme, o Queta falou nas emboscadas Ponta Coli, mortíferas. E se surpreendida estava com a memória do Queta, mais surpreendida fiquei quando lhe falaste na Topázio Valioso, cerca de 30 horas a vaguear entre o capim alto e o arvoredo frondoso, os guias permanentemente perdidos, umas vezes em direção ao Burontoni, outras vezes em direção ao rio Corubal. E o comentário que tu escreveste com as observações dele são uma delícia, não leves a mal mas vou registá-las integralmente no dossiê que estou a organizar:
“Nosso alfero e senhor doutor, muitos anos se passaram depois da guerra, continuo a pensar que era um erro muito grande quando chegávamos a um quartel não se perguntar à tropa africana quem é que verdadeiramente conhecia a região, quantas vezes aconteceu chegarmos a um quartel e impuseram-nos um ou dois guias só porque eram da confiança do régulo ou propostos pelo chefe de tabanca. Ora a maior parte das vezes esses guias tinham ido uma ou duas vezes ao Burontoni em meninos, entretanto tudo tinha mudado na natureza. Na época seca, estava tudo diferente, quando se avistavam as palmeiras de Gundaguê Beafada os guias desorientavam-se, era aqui que se podia ir em direção ao Baio, ao lado do rio Buruntoni, e sabiam os guias, mas tinham medo de progredir por aqui, era uma terra de savana, do outro lado o PAIGC tinha sentinelas, foi a caminhar nas lalas que do outro lado eles começaram a foguear em 1967 e aqui perdemos o nosso bazuqueiro Mário Adulai Camará. Metemos para dentro da mata, o Mário a agonizar, era fim de tarde, nada se podia fazer para o salvar. Ao amanhecer apareceu uma avioneta que nos denunciou, os guias arrastaram-nos para perto da Ponta do Inglês, vendo do ar andávamos perdidos, deram ordem da avioneta para regressarmos ao Xime. Ficámos chateados, aquilo não era maneira de fazer a guerra. Foi assim que se criou a ideia que não era possível ir ao Burontoni. Não, nosso alfero, era possível ir ao Burontoni a partir de Mansambo ou de Moricanhe, mas era caminho que nunca se fazia porque em Mansambo não havia guia, nunca ninguém me perguntou se eu podia servir de guia. Eu ficava triste por ver que não nos aproveitavam, nós, gente daquele chão, nosso alfero, eu era tocador de batuque em jovem, percorri todas estas tabancas, conhecia os caminhos como a palma da mão, podem imaginar a minha dificuldade em estar calado, vendo tanta canseira sem resultado”.
Paulo, viveste estes dois primeiros meses em permanente errância, o que me surpreende é que os dias que passaste em Bissau a dormir te deixaram recomposto. Estou neste momento a ler cartas tuas e que falas em obras na ponte de Undunduma, dizes que já não queres viver no meio daquela espelunca, com uma fila de arame farpado apodrecido. Foste falar com o comandante da companhia de comandos e serviços, o capitão Figueiras, ele deferiu um projeto de benfeitorias, parecia que tu voltavas aos bons tempos da reconstrução de Missirá, agora numa versão ligeira, ele dava-te arame farpado, cibes e cobertura de bidão, sacos de cimento, a engenharia emprestava-te pás e picaretas para reforçar as valas. Falas num delegado do batalhão de engenharia que te recebeu com duas pedras na mão, alegando que todo aquele material estava contado para os Nhabijões, se ele foi azedo contigo tu também não te contiveste, avisaste esse homem de nome Dário que se preparasse para nessa noite ir dormir na ponte de Undunduma, ele amansou e garantiu que os materiais e o ferramental seriam cedidos na semana seguinte.
Detenho-me aqui, sei que a seguir vais ter um dos maiores desgostos da tua vida, como escreverás inúmeras vezes, perdeste no norte de Moçambique o teu mais querido amigo, e tenho na minha frente o documento que me enviaste sobre a operação Rinoceronte Temível, que gizaste e comandaste. Faltam-me palavras para te dizer quanto te amo, com que profundidade e com que pasmo, quando se abre a janela para a nossa terceira idade, e encontro em ti o meu porto de abrigo, eu que faço interpretação em várias línguas como se fosse a coisa mais natural do mundo, ao ler estas folhas, é tudo para mim inacreditável o que aconteceu naquela noite dentro da bolanha do Poidom, duzentos homens, trinta carregadores a transportar dois morteiros 81 e trinta granadas, mais caixas de munições, a fuzilaria monumental que rebentou ao amanhecer.
Espero ansiosamente o teu telefonema, que a tua voz me inunde de sonhos, que me recorde que passei a ter futuro, cavaleiro andante a meu lado, e já pouco me importa ter receios quanto ao modo como vamos viver nos poucos anos que medeiam até termos uma vida em comum para sempre. Bisous infiniment, en attendant ton coup de fil, bien à toi, à tantôt, Annette.
Lembranças de Missirá, de braço dado com Nhamô Soncó, ao lado de Quebá, seu marido, nosso picador, irmão do régulo Malam, cruelmente metido numa prisão em Bafatá depois da independência. Nhamô não ganhou para o susto neste dia. Tem a seus pés um saco com coisas que pensa levar à família em Bambadinca. Mas foi parar ao Enxalé onde deixou este presente e trouxe outro para Missirá
Pista de Bambadinca, drama lancinante, deitado na maca está Uam Sambu. Ali estou dilacerado, com a camisa toda ensanguentada, a olhar o meu querido amigo que não chegará vivo ao Hospital Militar de Bissau
Não encontro justificação para o silêncio das Artes Plásticas face à guerra que vivemos em África. As exceções são poucas, e a que destaco como a mais relevante é a do pintor Manuel Botelho que aqui presta homenagem à morte do soldado-condutor Soares, morto na estrada entre Nhabijões e Bambadinca, por quem eu nutria uma profunda estima
A Escola de Bambadinca, muitos anos depois. Não faço grande esforço em conseguir na minha imaginação bater na porta da casa ao lado, ali vive a professora Violete com a sua mãe, como nas Mil e Uma Noites vamos conversar sobre o passado do Cuor, do comércio do Geba, de heróis e lendas
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Nota do editor
Último poste da série de 25 DE JUNHO DE 2021 >
Guiné 61/74 - P22315: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (58): A funda que arremessa para o fundo da memória