- O políptico de S. Vicente de Fora e a Iconografia Médica Portuguesa do século XV / por José dos Santos Carvalho. Lisboa : [s.n., 1968.
- A Sé Catedral de Lamego / José dos Santos Carvalho. Lamego : Paroquial da Sé : Gráf. de Lamego, 1966.
O livro que escreveu sobre Timor, baseia-se nas suas recordaçõe e registos pessoais bem como nas memórias de outros portugueses, seus companheiros de infortúnio.
Em anexo, o autor publica também os relatórios anuais do serviço de saúde (pp. 142-194), que têm igualmente interesse documental para a historiografia da presença portuguesa em Timor, relatórios esses que ele nunca deixou de fazer, anualmente, apesar das dramáticas circunstâncias em que teve de exercer as suas funções de médico de 2ª classe, chefe interino da Repartição Técnica de Saúde e Higiene.
O livro, de 208 pp., ilustrado com algumas fotografias, foi escrito, em 1970, quando passavam já 25 anos sobre o fim da ocupação japonesa do território de Timor e a libertação dos prisioneiros portugueses, timorenses e outros. Foi composto e impresso na Gráfica Lamego e publicado pela Livraria Portugal, 1972, editora que já não existe.
2. Vamos publicando notas de leitura e excertos do livro, de modo a permitir conhecer melhor este período da história de Portugal, em que Timor foi o único pedaço do Império que foi invadido e esteve ocupado por forças estrangeiras, na altura da II Guerra Mundial (entre dezembro de 1942 e setembro de 1945).
(...) Explicação Prévia (pp. 3-9)
Todos os portugueses que então aí viviam, fossem eles timorenses, metropolitanos, goeses, madeirenses, africanos ou macaenses, estiveram sujeitos a prolongado e pertinaz suplício que estóica e patrioticamente suportaram, apesar de terem sido despojados de qualquer meio de comunicação com o mundo e de defesa contra a doença e, os que foram obrigados a reunir-se numa zona de concentração, submetidos a privações extremas de alimentos, medicamentos, artigos de vestuário, de higienee de conforto ,etc, numa palavra, de quase todo o essencial a uma via saudável e decente.
O autor esclarece que não foi apenas uma invasão estrangeira mas duas, as que vieram perturbar "a perfeita ordem e a serena paz" (sic) em que até então ali se vivia:
(...) Duas invasões por tropas estrangeiras vieram destruir a perfeita ordem e serena paz que em Timor desfrutavam portugueses de diversas naturalidades e crenças, mas unidos fraternalmente num mesmo ideal patriótico e de amor pela fascinante terra em que haviam nascido ou trabalhavam.
Deram o exemplo de desprezo pela soberania de Portugal as forças australiano-holandesas que desembarcaram em Díli a 11 de Dezembro de 1941, não obstante a firme e decidida oposição do governador Ferreira de Carvalho, esse português de ouro do mais puro quilate, que, sem possibilidade de se impor pelas armas, energicamente protestou contra tão aleivosa afronta a um país neutral, aliado de Inglaterra, ainda mais!
Mas, não ficou por aí o atropelo à autoridade portuguesa. Já instalado em Díli, o tenente-coronel holandês Van Stratten, comandante das forças aliadas, impôs ao Governador a deslocação para longe da cidade do aquartelamento da Companhia de Caçadores de Timor, única força válida de que os portugueses dispunham, com a ameaça de a mandar desarmar, se assim não fosse, dando como motivo de tão vexatória decisão, o ter recebido informação de que a companhia se preparava para as atacar! (...)
Apesar de tudo, o comportamento das duas tropas invasoras não são comparáveis, sendo o autor muito mais crítico do projeto imperalista e totalitário dos japoneses, ao mesmo tempo que não perde a oportunidade de exaltar o portuguesismo das gentes de Timor e marcar o seu alinhamento pela política de "neutralidade" do país face ao conflito mundial. De qualquer modo, a ocupação japonesa, vai-se prolongar por 3 anos e meio (fev 42 / set 45).
(...) Não teve esta invasão efeitos maléficos de monta sobre a vida material da população, porém, da levada a efeito pelos japoneses resultaram inúmeras e variadas consequências funestas pois certamente se aperceberam de que o desenvolvimento em Timor da ideia da Grande Ásia Oriental (eufemismo com que encobriam o seu desígnio de se tornarem senhores de toda ela) somente poderia realizar-se na condição de serem profundamente abaladas a fé patriótica, assim como a amizade e a confiança dos naturais timorenses nos seus irmãos de álém-mar.
Para atingirem esse objectivo dedicaram-se os nipões a vexar duramente estes últimos e a procurar desprestigiá-los perante os nativos da ilha, servindo-se dos meios mais desleais e hipócritas.
A propaganda contra Portugal era prática sistemática dos segundos invasores que não escondiam o desprezo do «Império Imperial do Grande Japão» pelos europeus que tão fácil e surpreendentemente até então haviam conseguido derrotar e quase aniquilar.
(...) Sabiam bem que os soldados australianos e holandeses refugiados no interior da ilha e que seriamente os molestavam e dizimavam quando saíam de Díli, somente podiam aguentar-se na guerrilha que faziam por serem fornecidos de alimentos e ajudados por todos os meios não só pelos timorenses como por todos os nativos doutras terras, havendo somente a diferença de que a maior parte o faziacom as devidas cautelas, aparentando neutralidade, ao passo que alguns outros tomavam atitudes tão abertamente parciais que nos comprometiam, sem necessidade, perante os japoneses. (...)
A estratégia dos japoneses era claramente a de segregar e separar timorenses e não-timorenses, se não a bem, a mal, pelo terror.
Sabe-se, por outro lado, que a guarnição militar de Timor tinha um efetivo total de três oficiais, sete sargentos e cerca de 3 dezenas de cabos metropolitanos, mestiços e nativos; e não mais de 3 centenas de soldados do recrutamento local, mal treinados e pior equipados.
(...) Continuando na sua obra demolidora, recrutaram no Timor Holandês centenas de indígenas com os quais, enquadrados por árabes e chineses, constituíram as famigeradas "colunas negras". Ora, esses timorenses da parte ocidental da ilha odiavam francamente os europeus, avaliados pelo padrão holandês que nunca conseguira, nem provavelmente pretendera, captar a sua amizade, o que bem fácil seria, a exemplo da parte portuguesa, se os considerassem, em tudo, como seres humanos seus iguaise não como espécimes duma raça inferior.
Lançadas as "colunas negras" pelo interior da ilha, sempre veladamente amparadas pela tropa nipónica que punha todo o cuidado em não se misturar com elas, por toda a parte se registaram assassinatos de pessoas indefesas, violências e depredações de toda a espécie.
As autoridades portuguesas prontamente reagiram, seguindo para as regiões afectadas expedições constituídas por militares e por voluntários civis, com o fim de castigar os culpados e restabelecer a ordem. Heroicamente se comportaram esses valentes e destemidos homens, tendo morrido em combate o cabo Paulo Moreira, o soldado Abel Soares dos Santos e o civil, António Fernão Magalhães, porém a sua missão foi integralmente cumprida. (...)
E aqui se conta como uma dessas "colunas negras", oriunda de Atambua, atacou à traição o aquartelamento da Companhia de Caçadores de Timor, em 1 de outubro de 1942, provocando aquilo a ques e chamou a "chacina de Aileu" (Aileu ficava a sul de Dili, vd. mapa):
(...) Uma "coluna negra" formada por timorenses da cidade de Atambua, na parte holandesa, assaltou o aquartelamento da Companhia de Caçadores de Timor, então situado em Aileu. Ataque traiçoeiro, a coberto do escuro da noite, não permitiu uma defesa eficaz, morrendo, combatendo, os cabos Evaristo Madeira e Júlio António da Costa, os soldados Álvaro Henrique Maher e João Florindo e vários soldados timorenses.
O comandante da companhia, capitão Freire da Costa, que com sua esposa, o médico dr. Arriarte Pedroso, o secretário de circunscrição Gouveia Leite e o chefe de posto auxiliar António Afonso, se encontravam reunidos na residência do comandante, suicidaram-se para não caírem nas mãos dos selvagens que atacavam a casa e lançavam fogo às suas dependências, os quais, certamente, os torturariam e sujeitariam aos piores vexames. (...)
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O antigo palácio dos governadores, em Lahane datando de 1933, em estilo art déco, colonial. Restaurado. Foto: cortesia de Wikimedia Commons
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Na impossibilidade comunicar com o Governo central (cuja política , de resto, era a da "estrita neutralidade" e de não-confrontação com as tropas nipónicas de modo a garantir a "manutenção da soberania portuguesa", a todo o custo), enfim, com a certeza de que nunca viriam reforços de Lisboa (via Moçambique ou de Macau), e face ao número crescente de acções hostis contra os portugueses e a população autóctone, o Governador, o capitão Manuel Abreu Ferreira de Carvalho (1940- 1945) não teve outra solução se não aceitar a vontade do ocupante, que era a de separar e concentrar os não-timorenses nas povoações de Lahane (na encosta sobranceira a Dili), Liquiçá e Maubara (a oeste de Dili) (vd. mapa).
(...) Foi nestes campos de detenção que "se passaram três infindáveis anos de permanente terror, fome e extrema miséria em que nos tornámos 'esqueléticos, quase irreconhecíveis à primeira vista', tal como nos encontrou o Dr. Cal Brandão, no fim da guerra, voltando da Austrália." (...) Mas foram esses esqueletos ambulantes, verdadeiros fantasmas de si próprios, que seguiram impavidamente para o interior da ilha onde, desde há anos, os nipões faziam,
certamente, propaganda assassina contra eles! (...)
Refira-se que o dr. Carlos Cal Brandão (1906-1973) era um advogado do Porto, deportado para Timor em 1931, por razões políticas, e que se irá mais tarde juntar aos australianos na resistência ao ocupante japonês.
Na hora da libertação, três anos e meio depois, "as bandeiras verde-rubras logo surgiram por toda a parte, retiradas dos esconderijos onde ciosamente haviam sido resguardadas pelos timorenses":
(...) No dia 19 de setembro de 1945, data a todos os títulos memorável na nossa história, a bandeira da Pátria desfraldava-se orgulhosamente em todas as localidades importantes eem muitas povoações timorenses enfim libertadas da opressão estrangeira.
Três dias depois amarou na baía de Díli um hidroavião australiano transportando um representante do brigadeiro Dyke que em Koepang já havia recebido a rendição das tropas japonesas. (..:)
(...) A 27 de setembro ancoraram na baía de Díu os avisos Bartolomeu Dias e Gonçalves Zarco, com tropas vindas de Lourenço Marques. (..)
O autor, nesta síntese dos anos que passou em Timor, faz o balanço das vítimas (o número está subestimado em relação aos timorenses):
(... ) Contaram-se muitas centenas de timorenses assassinados, mortos em combate ou falecidos na prisão e, entre os não-nativos de Timor, pelo menos, trinta e sete assassinados, dez mortos em combate, seis mortos por suicídio, vinte falecidos ao abandono no interior da ilha onde andavam foragidos e oito que miseravelmente acabaram os seus dias no cárcere japonês, vítimas de violências e, sobretudo, da privação de alimentos e da falta de condições higiénicas e de qualquer espécie de assistência na doença. (...)
Sendo um dos dois sobreviventes dos quatro médicos que estavam ao serviço da administração colonial (dois morreram de morte violenta), o dr. José dos Santos Carvalho vai começar a sua narrativa com a sua história de vida, quando em meados de 1940 é colocado em Timor como médico de 2ª classe, do "quadro comum colonial".
Muito resumidamente, descreve-se aqui a verdadeira odisseia que era, para um funcionário colonial, em plena II Guerra Mundial, chegar, a partir de Lisboa, a um território tão longínquo como Timor, no Sudoeste Asiático:
(i) o autor não pôde, obviamente, fazer a viagem pelo canal de Suez, mas seguir peçla rota o Cabo (cerca de 19,5 mil km até Dili);
(ii) viajou até Lourenço Marques, transportado no vapor "Niassa".
(iii) na capital de Moçambique teve de aguardar dois meses (!) até poder embarcar, num vapor holandês, o "Tasmam", com destino a Singapura;
(iv) a bordo encontrou outros compatriotas que iam para Timor: o coronel de aeronáutica Jorge Castilho, e o engenheiro Canto Resende, chefe e adjunto da Missão Geográfica de Timor, respetivamente; o dr. Tarroso Gomes, funcionário do serviço da Fazenda; os funcionários administrativos Botelho Torresão e Silva Marques e o sargento da marinha Luís de Sousa, auxiliar da referida missão geográfica.
(v) passados dias , embarcaram num "grande e luxuoso navio", o "Op Tèn Noort" que os transportou a Malaca, a Batávia (atual Jacarta) e a Soerabaja:
(...) Pelas Índias Holandesas notava-se um ambiente febril de preparação guerreira, sendo frequente o encontro de campos de treino onde militares holandeses exercitavam recrutas
javaneses. De facto, sentia-se evidente e iminente a ameaça
nipónica a Singapura, à Insulíndia e à Austrália, pois os
japoneses que há três anos se encontravam em guerra com a China, haviam aproveitado o facto de a França se encontrar manietada pelos alemães e conseguido dos governadores militares da
Indochina a sua ocupação militar e levado, logo depois, as suas
tropas, de setembro a novembro de 1940, à Indochina do Sul, à Tailândia e ao Cambodja.(...).
Em Soerabaja estiveram três dias...
(vi) embarcando depois num pequeno navio, o "Valentijn", que tocou em vários portos das pequenas ilhas de Sonda entre as quais a capital
de Bali;
(vii) em 21 de dezembro de 1940 chegam a Koepang, capital da parte holandesa da ilha de Timor;
(viii) na noite de 29 fundeavam, finalmente, na baía de Díli;
(ix) em Timor o autor iria ter apenas um ano de paz.
(Continua)
(Excertos, revisão / fixação de texto, itálicos e negritos: MS/LG)
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Nota do editor:
Último poste da série > 19 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25661: Timor Leste: passado e presente (8): Os últimos soldados do império que estiveram prisioneiros do IN, na Indonésia (de setembro de 1975 a julho de 1976): tiramos o quico, o chapéu, a boina, o barrete, o boné... à Ephemera - Biblioteca e Arquivo do José Pacheco Pereira