Porto > Parque da Cidade > 23 de dezembro de 2018 > Alguns recantos e encantos do Parque.
Fotos (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].
Contos com mural ao fundo: Caminheiros
por Luís Graça
Às quintas-feiras encontravam-se no magnífico Parque da Cidade, no Porto, havia lá um grupo de amigos e conhecidos que gostavam de fazer a sua caminhada matinal, de duas horas. Isto, ainda uns bons anos antes da pandemia.
“Duas voltas ao bilhar grande”, diziam eles e elas. "E tudo por mor da nossa saúde"... Desenferrujava-se as pernas, desentaramelava-se a língua, massajava-se os neurónios, tonificava-se o coração, estreitavam-se os laços sociais e afetivos, "limpava-se a vista" (com o azul do Oceano Atlântico, ao fundo, e o verde da vegetação em redor), cultivava-se a boa disposição e o humor, desligava-se o malfadado telemóvel… Ah!, e não se fumava, pelo menos durante essas duas horas.
O grupo, de dimensão variável, no máximo uns vinte nos melhores dias, era quase todo ele de gente sénior, como sói agora dizer-se, “colarinhos brancos”, ou "pessoal engravatado" (os homens, no tempo em que ainda se usava gravata e fato completo, na banca, nos seguros, nos escritórios, nas repartições públicas... e as mulheres não vestiam calças).
Enfim, reformados, gente com algumas economias no banco, e já poucos sonhos, mas que achava que ainda tinha todo o tempo e vagar à sua frente.
No essencial, e em comum, tinham o gosto por conviver, cavaquear e andar a pé. Era a “Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade”… Até já eram populares entre os trabalhadores do Parque, demais utentes e frequentadores dos cafés e esplanadas da zona. Eram gregários como os primatos, ruidosos como os adolescentes, e temerosos da solidão como são todos os idosos do mundo.
Nessa altura, passavas por lá, de vez en quando. Estavas a fazer um estudo de caso no Porto, no âmbito de um projeto de investigação sobre a promoção da vida ativa saudável. Tinhas o estatuto de observador-participante... Aparecias com a “Nucha” e juntavas-te a eles e a elas, para duas horinhas de saudável caminhada e agradável convívio. Eram, aliás, as tuas duas únicas horas de exercício semanal... ("Bem prega Frei Tomás!...", dizia-te a "Nucha", em jeito de piada.)
Havia de tudo um pouco, num grupo de trinta, no máximo (quando excecionalmente se vazia o pleno, no "almoço de Natal": professores, talvez a maioria, um ou outro engenheiro, bancário, magistrado, advogado; umas tantas secretárias, e domésticas; uma médica, uma enfermeira, uma jornalista; e até um editor, um militar e um operador de câmara. Vinham do Porto, de Matosinhos, da Maia,de Vila Nova de Gaia e até de mais longe.
Era a primeira geração de portugueses de que se podia dizer que eram filhos da abundância, relativa, dos planos de fomento estado-novistas, e depois do Estado-Providência abrilista. E que podiam aspirar a viver, com alguma tranquilidade e relativa qualidade, o “outono da vida” (contrariamente ao que se passara com os seus antepassados, pais, avós, bisavós).
Em função da condição física e do número, sempre variável, dos que iam aparecendo às quintas-feiras de manhã, mas também do estado do tempo, das afinidades e das idiossincrasias, o grupo acabava por fragmentar-se ao fim de meia-hora.
Formavam-se então pequenos grupos de três ou quatro que continuavam a caminhar e a conversar, sem qualquer preocupação aparente com os mais atrasados ou os mais adiantados. Aqui não havia contemplações e muito menos solidariedade para com os mais fracos das canetas que vinham na cauda do pelotão.
A meio do percurso, entre as 10h50 e as 11h00, fazia-se uma pausa, de dez a quinze minutos, para ir à casa de banho e descansar um pouco, nas esplanadas à beira-mar. Invariavelmente cronometradas pelo "Mister". Era então que o pelotão se reagrupava, antes de atacar o regresso ao ponto de partida, e completar o circuito.
Os temas de conversa eram os mais variados, desde as inevitáveis doenças da idade (havia já gente com um ou mais doenças crónicas, as famigeradas comorbilidades) às viagens passadas (em geral organizadas pela agência Pinto Lopes), das deliciosas fofoquices às viagens futuras, das agendas culturais às grandes questões existenciais (tais como: “se Deus não existe, o que é que eu estou aqui a fazer?!”)…
Sem esquecer, naturalmente, as preocupações mais terrenas e comezinhas com os filhos que se iam divorciando, e os netos que lá iam trepando a montanha da vida, de degrau em degrau, da escolinha de escolinha até à universidade final…, o doloroso "home leaving" e o primeiro emprego, precário.
Vinham também à baila os grandes marcos do ciclo de vida de cada um e das suas famílias: nascimentos, batizados, primeiras comunhões, crismas, casamentos, divórcios e, cada vez mais, funerais (dos amigos, parentes, vizinhos, colegas e conhecidos)…
Por uma questão de “bom senso e bom gosto”, ou simplesmente por pudor, “não se falava em sexo nem em dinheiro”. Percebia-se: muitos tinham tido uma formação religiosa, nortenha, puritana e conservadora, o sexo praticava-se mas dele não se falava, e o dinheiro não passava do “vil metal” que comprava tudo (ou quase tudo), do amor ao temor… O que não impedia, de vez em quando, a galhofa brejeira, típica das gentes do Norte:
− Sabes como é, rapariga, o sexo na nossa idade é o último dos tabus! – gracejava alguém dos rapazes.
O telemóvel e o tabaco eram, agora, então, dois dos novos pecados mortais… O “no smoking” era uma condição “sine qua non” para a entrada de novos membros na tertúlia. E os ex-fumadores eram, nesse ponto, os mais radicais, intolerantes. (Aliás, todos os ex-qualquer coisa... são os mais intolerantes!, a começar pelos que saíam de uma "igreja" para se meter noutra)...
Às quintas-feiras de manhã o uso do telemóvel era “proibido”, a não ser para fazer alguma “chamada de emergência”, por causa dos netos, na creche, ou do gato ou do cão ao cuidado da vizinha. E, tanto quanto tu te apercebias, quando por lá andavas, não havia fumadores no grupo.
Um ou outro mais “chato” ia, por vezes, desenterrar coisas do passado não menos “chatas” como a escola primária, as férias grandes, o liceu, a Mocidade Portuguesa, os primeiros namoros, a descoberta do sexo, a tropa, a guerra colonial, a ação católica, a militância política, o 25 de Abril, o PREC, o fim do Império, ou a igualdade de género… Questões "fraturantes"... Alguns haviam passado por África e tinham memórias desse tempo, umas boas, outras más. Enfim, havia retornados e antigos combatentes…
Chegava-se, por volta das 9h15 / 9h30 da manhã, ainda a tempo para “pôr a escrita em dia” e para tomar o “cimbalino” ou a “meia de leite”, numa esplanada perto de uma das entrada do Parque, que era o ponto de encontro, em dias soalheiros e aprazíveis. É toda uma geração do tempo da “meia de leite”, do “cimbalino” (termo que hoje, convenhamos, já não se usa no Porto), do “Português Suave”, dos “brandos costumes", enfim gente nascida no Estado Novo, e que já era adulta no 25 de Abril. Gente com duas metades, e algo bipolar, como a lua, a luz e a sombra, a democracia e a ditadura, a esperança e a depressão...
No caso de um ou outro mais velho, quando nasceu, ainda estava em vigor o racionamento, imposto durante a II Guerra Mundial, e ainda não havia a “francesinha”, hoje, para o bem ou para o mal, um dos ícones da cozinha tripeira.
Eram quase todos portistas (ou "andrades"), mas também não se falava de futebol. Por uma questão de “higiene mental”, e por respeito das “minorias futebolísticas”: os boavisteiros, os benfiquistas, os sportinguistas, os minhotos...
Ficavam lá fora as “redes sociais", a par da “política partidária”. Eram quase todos “desalinhados”, uns à esquerda e outros à direita, mas alguns/algumas tinham um passado de militância política ou religiosa. Desalinhados, desencantados com as suas “igrejas”, agora mais centrados no seu umbigo, o que até era compreensível, olhando para as carecas deles e para as cabeleiras brancas ou horrivelmente pintalgadas, delas.
− Muito autocentrados, para o meu gosto! – confidenciava-te a “Nucha”, uma mulher minhota de grande generosidade, que te introduzira no grupo.
Quando chovia (e aqui chovia mais do que no Sul…), ficavam a cavaquear no café até próximo do meio-dia e meia, altura em que cada um ia às suas vidas.
− Por que é que repetimos sempre, ou quase sempre, as mesmas histórias, as mesmas anedotas, as mesmas tretas, as mesmas dicas, até as mesmas palavras e expressões ? – pergunta alguém, a meio da caminhada.
− Sim, “ad nauseam”… Essa é uma boa pergunta, mas eu não te sei responder, nem nunca tinha pensado nisso – observa a "Nucha", a caminhar ao lado do “Mister” e da “Natália”.
E prossegue o “Mister” que vai no meio das duas:
− Sabes como é, já estamos fartos de ouvir aquela cena passada há tantos anos, com o fulano de tal, lembras-te, pá?!... Aquele gajo que andou no liceu connosco, e cujo pai era da “bófia”…
− Então, não me lembro, carago, o “Morcão, andou na escola com todos nós… É uma figura que me é estranhamente familiar, até a mim que estudei em Bragança – ironizou a “Natália”.
Transmontana, a “Natália” era uma mulher extrovertida, ‘engraçada’, cuja personalidade era um misto de truculência, rudeza, franqueza, autenticidade e… língua viperina… Chamavam-lhe a “Natália” porque dava ares, até no corpo e nos trejeitos, da Natália Correia… E também escrevia… “versos” panfletários. Tanto quanto julgavas saber, fora professora de português.
Nem todos os caminheiros (e sobretudo as caminheiras) apreciavam e toleravam o seu “génio”. Tinha fama de ser uma mulher de pelo na venta, muito independente e… feminista. Gostava de fazer, de vez em quando, a sua "peixeirada"... como se estivesse no Mercado do Bolhão.
− E as anedotas, estafadíssimas, do Samora Machel, eivadas de racismo e de revanchismo, que circulavam no tempo do PREC e dos retornados ?!
− Mas desde que morreu o “bicho”, acabou a “peçonha”… Já não oiço uma anedota do Samora Machel, há anos. Em contrapartida, continuas a ter as mesmíssimas anedotas sobre os alentejanos e os mouros de Lisboa… – atreveste-te tu a completar, infringindo o teu estatuto que era mais o de observar do que o de falar...
− Ah!, o Portugal plural, sacro-profano, no seu melhor, agora a cores do arco-íris. Por que dantes, irra!, era tudo a preto e negro – ironizou a “Natália”.
− Não concordo, acho que o humor lusitano era mais refinado, e até mais criativo do que é hoje, justamente porque havia a lei da rolha e o lápis azul da censura– acrescentou o “Mister”.
E para reforçar a sua tese de que as pessoas hoje eram mais “repetitivas, circadianas, chatas”, o “Mister” foi buscar um exemplo da sua própria experiência:
− Eu próprio caio na armadilha de repetir as mesmas histórias… Conto muitas vezes aquele episódio, que aconteceu a um casal meu amigo, naquelas férias que poderiam ter sido as melhores férias das suas vidas, lá nos picos da Europa ou coisa parecida, mas não foram porque os melhores amigos são muitas vezes os piores companheiros de viagem…
− Tens razão, olha, a mim, já me aconteceu isso, numa viagem ao sul de França, Grenoble, Alpes, Vale de Aosta…
E explicou a “Natália”:
− Fiquei escaldada para sempre… Dois poetas no mesmo carro, macho e fêmea, com egos de todo o tamanho, mais as nossas respetivas caras-metade, no tempo em que eu ainda vivia com o meu ex… Imaginem, quatro caramelos num Fiat 127, nos anos 70, foi pior a emenda que o soneto, carago!…
E lá foram continuando a caminhar e a tagarelar, os quatro ou cinco do grupinho da frente.
− Conversa da treta, sabes como é! É preciso ocupar o tempo − diziam-te, à laia de desculpa.
Nesta tertúlia tripeira quase toda a gente parecia ter alcunhas, diminutivos ou “nicknames”: ao que te disseram, fazia parte da praxe e dos “estatutos”… Por outro lado, todos se tratavam por tu, o que ajudava a esbater eventuais diferenças de estatuto socioeconómico, entre os doutores e os não doutores, os senhores e as senhoras, num terra burguesa em que os títulos, no passado, sempre tiveram o seu peso, conta e medida...
E também te pareceu que, pelo convívio que ias tendo (irregularmente, diga-se de passagem), com este grupo singular, ninguém levava a mal por ser identificado por uma alcunha ou um diminutivo: no fundo, era mais uma manifestação de ternura, uma forma de tratamento entre iguais, o reconhecimento de um traço de personalidade ou de uma particularidade da história de vida de cada um.
Os novatos, que já eram poucos nos últimos dois ou três anos antes da pandemia, eram sujeitos, como tu, à incontornável praxe de integração. Se bem que tu, porque fosses investigador, tinhas o estatuto do marginal-secante, aquele que fica sempre mais fora do que dentro. Na realidade, não chegaste a ser "entronizado", porque regressaste à base, em Lisboa, acabaste o trabalho de campo e deixaste de frequentar o grupo.
− Aqui no Norte, ninguém faz fretes. Gosta-se ou não se gosta de uma pessoa… Leva o seu tempo a aceitar-se um estranho. És posto à prova, tens de passar vários testes… Mas uma vez integrado na família ou no grupo, és um amigo para sempre! – explicou-te a “Nucha”, essa, sim, uma tua velha amiga de há muito.
Em rigor, não havia regras escritas, e a dinâmica de grupo é que, ao fim de quase uma década, ia criando e modelando valores e normas de sã convívio e até de amizade.
Curiosamente foi tudo, no início, trabalho de um grupo de mulheres, de que restavam duas ou três, a quem chamavam carinhosamente as “abelhas -mestras”. Eram uma espécie de “mães-fundadoras”. Trabalhavam na mesma escola, professoras, auxiliares de educação, administrativas… No ano em que umas tantas se reformaram, na maioria professoras, ainda “cinquentonas”, como a "Nucha", olharam-se umas às outras e perguntaram-se:
− E agora, o que vamos fazer amanhã, que é o primeiro dia do resto das nossas vidas ?!,,,
− ... e em que deixamos de vir à escola por dever e obrigação ?!
− Pois, já não temos o dia de pica-boi! − dizia uma delas, com graça.
Foi assim que nasceu a "Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade", com a intenção mais ou menos explícita (mas nunca expressa, por escrito) de “promover o envelhecimento ativo e saudável”, segundo te contou a “Nucha”, que fora professora de biologia, "noutra incarnação", como ela gostava de apontar no seu currículo…
Eram mais as mulheres do que os homens, o que até era natural naquele grupo etário de gente sexagenária, com um ou outro já na casa dos 70… Em meia dúzia de anos (tinham começado pro volta de 2010), o grupo parecia ter-se aguentado e até renovado. As fundadoras arrastaram os seus maridos ou companheiros… Uns e outros convidaram amigos e amigas… E por aí fora...
Mas no grupo também havia a “Viúva Alegre” (que já despachara para o céu os dois "anjinhos" dos seus maridos), a “Rosa Mota (por ser uma “corredora de fundo”, compulsiva), a “Feicebuqueira” (que se vangloriava de ter “cinco mil amigos” no Facebook), além do “Manuel de Oliveira” (um operador de câmara reformado, e o fotógrafo do grupo, sempre muito calado), além do "Mandjor" (sic), amigo ou conhecido do "Mister", do tempo da tropa...
Enfim, outros tantos figurões ou exemplares de diferentes “espécies”, de ambos os sexos, daquela amostra do zoo humano que frequentava o Parque da Cidade, misturando-se com as aves que proliferavam por lá, entre as lagoas, as charcas e os pequenos bosques, separados por agradáveis campos verdejantes que, no passado, devem ter dado muitas carradas de milho…
− Por que é que somos “repetitivos, circadianos, chatos” ?!... Boa pergunta, ó “Mister”... Mas essa questão até nem parece tua!... Tu que vens da área do desporto onde o sucesso, sobretudo na alta competição, é o resultado de mil e um esforços repetidos até à exaustão, de mil e um micromovimentos…
− O treino leva à perfeição, exceto na pistola russa! – arrmetava, sarcástica, a “Natália"
Mas o "Mister" tinha sempre uma “teoria” para explicar tudo:
− Deixem-me avançar com a minha hipótese de investigação − se calhar, como piada a ti, que estavas a estudar o grupo. − Somos repetitivos porque somos circadianos, temos um relógio, biológico, que nos obriga, por exemplo, a descansar 6 ou 7 horas por dia… Sem esse relógio, entraríamos rapidamente em entropia, levando-nos por fim à morte… Temos por isso hábitos, automatismos. Somos animais de hábitos, o que tem vantagens e desvantagens.
− Por outro lado, temos uma memória seletiva, curta, um registo limitado de memórias, de recordações, de vivências…− acrescentou alguém, ao lado, e que também quis "botar a sua teoria".
Segundo ele, havia uma economia de meios, de energia, de recursos:
− Avaliamos os custos e dos benefícios das nossas decisões e ações, mas sempre com base em informação limitada, em quantidade e qualidade. Por exemplo, avaliamos a prática do exercício físico, numa ótica de custo-benefício… Custa-me andar a pé duas horas, mas faz-me bem à saúde, se esse esforço for conjugado com uma dieta mediterrânica e com a interação social, como diz a nossa “Nucha”… Enfim, é a minha teoria…
− Como li algures – acrescentou alguém –, somos animais dotados de racionalidade limitada, e no futuro seremos ultrapassados por formas superiores de inteligência…
− Queres dizer que somos demasiado estúpidos ? Em termos coletivos, não tenho dúvidas, vê como estamos alegremente a dar cabo do planeta, a abrir a cova para o caixão da humanidade…
E voltava à carga a “Natália”:
− Sim, não somos criaturas assim tão inteligentes quanto apregoa a propaganda do Criador.
− E depois achamos graça − completou o “Mister” – a certas situações que afinal são banalíssimas, que acontecem a toda a gente.
− Para não dizer confrangedoras!... Repara, tanto rimos como choramos… Ficamos à beira de um ataque de nervos nas bichas para os centros comerciais nos "Black Fridays", ou na época natalícia, ou na noite de São João… Por outro lado, somos capazes de achar piada ao mal dos outros, às desgraças alheias, somos maus e, pior, somos capazes de ser cruéis como nenhum outro animal da Arca de Noé!
Um terceiro elemento retomou a sua teoria... Resumindo: mais do que estúpidos ou predadores, somos animais sociais, somos palhaços, palhaços de circo, gostamos (e precisamos) de circo, de fazer rir, de entreter e apaparicar os outros.
− Catar e encantar os outros, como os nossos parentes primatas… − esclareceu a “Natália"− Que é a catar os parasitas e a fazer favores sexuais que se reforçam as alianças… "Grooming", dizem os antropólogos.
− Mas, no fundo, não temos piada nenhuma, não temos sentido de humor!
− O humor cultiva-se, é uma forma superior de inteligência! – atalhou a “Nucha”.– E quanto mais velhos, pior!.. Precisamos de mais mimos, de amar e de ser amados…
− Desculpa lá, mas estou em desacordo total contigo, os velhos são egocêntricos como o carago!... – contestou a “Natália” que é ainda, segundo os critérios da Organização Mundial de Saúde, uma “jovem… idosa”, como ela faz gala de dizer.
O “Mister” era dos três, que caminhavam na frente, o mais novo, tinha-se reformado cedo, o sortudo. Era o líder do grupo... Fora professor de educação física, e todos lhe reconheciam o jeito (e o gosto) para “puxar a carroça”, para motivar o grupo. Chamavam-lhe “Mister” por que em tempos fora também “personal trainer” em ginásios do Grande Porto, e treinador de futebol lá para os lados de Paços de Ferreira ou Penafiel.
Era natural de Baião, filho de gente modesta, foi trabalhador-estudante, o único dos irmãos que conseguira formar-se. A “Natália”, a mais crítica e contestatária do grupo, gostava de lhe lembrar, de vez em quando, que ninguém estava ali para bater recordes, ganhar medalhas, ir para o livro do “Guinness”. Que o grupo nem sequer era uma “equipa” e muito menos o Parque era um “fitness center”, daqueles “low-cost” que agora proliferam , como cogumelos, pelos nossos bairros, com “personal trainers” brasileiras, pagas à peça, descartáveis…
− Gosto mais dos “bandos” do que das “equipas”. Nunca me apanharam na Mocidade Portuguesa Feminina, apesar de ser filha de um militar. A minha mãezinha encarregou-se de me arranjar um atestado médico, digamos, “vitalício”… Se há expressões que me põem os cabelos em pé, é “espírito de corpo”, “team-building”, e outras do linguajar das artes e ofícios de formatar corpos e almas…− acrescentou a “Natália" e explicou:
− Desculpem, é o meu lado anarquista, a costela do meu avô materno, corticeiro, algarvio de Silves, que chegou a ser desterrado para os Açores por ter conspirado contra a Ditadura Militar, no final dos anos 20… De qualquer modo, gosto da teoria do caos, mais do que a teoria do eterno retorno… Vivo em pânico só de pensar que , quando morrer, vou direitinha para o céu que nem um fuso, e tenho à minha frente uma eternidade de pasmaceira e ao meu lado uma múmia como eu…
− Mas o que fazemos nós aqui, ó criatura, todas as quintas-feiras ?!... “Corpo são em mente sã… em 10 mil passos!”. Tens que ler o meu manual…que é um sucesso de vendas!
− Vai-te, Afonso, com essa ! [Queria ela dizer "não me f..." ]. Trata do teu corpinho que eu trato da minha mente: detesto pensar que estou a ser “formatada”, mesmo com as melhores intenções do mundo e por pessoas encantadoras, sedutoras e bem-intencionadas como tu… E esse é o risco da “equipa”, do “pensamento de grupo”, das “tertúlias”…
Desviando a conversa, que já estava a azedar, o “Mister” insistiu que o corpo não fora feito para “criar raízes” como os arbustos e as árvores…
Gostava, um pouco revelia do grupo, de evocar os seus tempos de Lamego e da Guiné, onde fora “ranger”, de 1972 a 1974…
− "Ranger" ?!...Meu Deus!, de "ranger os dentes" ?!
“Tempos puros e duros”, recordava com alguma saudade, o "Mister". Foi a sua divisa, “mens sana in corpore sano”, que o ajudou a sobreviver àquela guerra que ele fez com “sentido do dever” mas sem qualquer “entusiasmo patriótico”. Foi um “bom combatente”, conhecera as agruras da guerra em Guidaje… Nunca equacionou sequer a hipótese de desertar, já que “queria continuar a exercer o direito de viver no seu país” e na terra que ele amava, a sua cidade do Porto, onde já vivia antes da tropa… De resto, “não tinha ainda grande consciência cívica ou política”, como a maior dos jovens da sua geração… Aliás, nem grande nem pequena...
Enfim, fizera o melhor que sabia e podia para ficar bem classificado na recruta e na especialidade, em Lamego, o que não o impediu de ser mobilizado para a Guiné. Uma vez lá, preocupou-se apenas em não cometer erros e sobreviver, ele e os seus homens:
− Djubi, gosse, gosse!
− Ó “Mister”, o que é que isso quer dizer ?
− É crioulo, toca a andar, míudo, que se faz tarde.
Juntara-se agora ao grupo da frente o amigo do "Mister", o “Mandjor”, um que estivera no fim da guerra colonial, em Moçambique, nos paraquedistas. Fora ferido, com alguma gravidade no planalto dos Macondes, e tivera direito a cruz de guerra. Era agora "sargento ajudante", mas no grupo chamavam-lhe o "Mandjor", talvez por ser alto e encorpado...
Tal como o “Mister”, gostava de “meter a sua colherada” sempre que se falava da “guerra de África”, coisa com que alguns embirravam solenemente.
− Guerra, só a das ideias!− defendia alguém, que se declarava antimilitarista e que, antes do 25 de Abril, vivera em Paris, como refratário, tendo ainda frequentado a Sorbonne, como ele fazia gala de dizer, para “épater le bourgeois”. (Muito provavelmente nunca lá pusera os pés, na Sorbonne, mas a malta, condescendente, comprava-lhe a história, tal como ele a vendia a seu bel prazer.)
Tendo beneficiado da amnistia aos exilados, refratários e desertores, regressaria a Portugal, no verão de 1974, matriculando-se ainda nesse ano no curso de filosofia.
Não escondia que andara em 74 e 75 "a sanear professores e patrões", ao mesmo tempo que se metera no negócio da edição de livros e panfletos. Ao que parece, terá tido várias pequenas, pequeníssimas editoras, a maior parte de vão de escada, uma ou outra com algum sucesso editorial e comercial, mas, no cômputo geral, esbanjou bastante dinheiro, da herança dos avós maternos de Ponte de Lima.
Fora também durante vinte anos professor de filosofia em colégios privados… Fazia agora traduções, “a recibo verde”, tendo andado portanto “de cavalo para burro”. Já não te recordas da alcunha que o grupo lhe pusera. Mas era um "cromo" da cidade... Talvez fosse essa a alcunha, "Cromo"...
− Profissional liberal da treta!... Como se pode ter liberdade (para pensar, escrever, publicar) num país de merda como este ?!...
E a "Natália" aproveitou a sua deixa para lançar a sua provocação:
− Olhem, eu ando há anos para publicar o meu primeiro livro de poesia, lancei um “crowdfunding”… Faltam vocês, dou-vos depois um livro, com dedicatória, autografado, por cada notinha de cinco euros investida. Poesia-diamante de muitos quilates, o que é que vocês querem mais ?!
− Poesia-diamante ou dinamite ?!|...Não é coisa que se coma ou beba, a poesia, por isso não se vende… Somos um país de poetas, mas não é coisa que se exporte como a cortiça ou o vinho do Porto… − comentou, irónico, o “Mister” que, de resto, de poesia só conhecia uma paródia do soneto de Camões, “Alma minha, gentil, que te partiste”…
− Cá está, andamos sempre a queixar-nos do mesmo, e a usar as mesmas imagens estafadas de sempre, como o do Portugal pequenino, o retângulo de 89 mil quilómetros quadrados, a ir ao fundo, como um barco de papel, juntamente com o “iceberg” da Ibéria… − interrompeu o “Manjor”.
Desta feita era o militar a marcar a sua presença, com a veemência e a indignação próprias de um patriota dos quatro costados, façanhudo e medalhado com cruz de guerra, face à expressão, pouco feliz, “país de merda”, usada pelo “Cromo” que ainda por cima fugira ao seus deveres para com a Pátria quando chegou a altura de a ir defender...
E continuou o “Mandjor”, que lidava mal com “fujões”, agora com a autoridade do historiador com canudo passado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto... (Um dos seus trabalhos recentes era sobre o papel do “Aires de Ornelas nas campanhas de pacificação em Moçambique”, por sinal um distinto africanista, nascido como ele no Funchal):
− É cíclica a nossa crise de identidade, ou melhor, de confiança, desde que perdemos o Brasil em 1821 (e agora o resto do Império de Quinhentos). A crise agrava-se com a guerra civil de 1832-1834, opondo liberais e absolutistas. E, depois, com o humilhante “Ultimatum” britânico de 1890. E vamos perder, já não a identidade, mas a própria independência com o IV Reich que aí vem. E desta vez bem pode ser mesmo, de verdade, o Reich dos mil anos…
− Eh!, “Mandjor", nessa altura, até eu, com esta fraca figura, pego nas forquilhas da Maria da Fonte para defender a Pátria amada! – vociferou a “Natália”…
− Não me lixem, que eu para esse peditório já dei! – ripostou o “Mister”.
E encetou, este último, uma conversa que deu pano para mangas, até ao fim do percurso da primeira parte. A sua parangona incidia agora sobre os portugueses que, desgraçadamente, gostavam de dizer mal uns dos outros e, pior ainda, do seu país. Somos pequenos, somos parvos (etimologicamente falando…), somos poucos, ia explicando ele.
− E os espanhóis acrescentam: ‘Portugueses pocos, pero locos’! – insinuou a “Natália”.
− Somos vizinhos uns dos outros, da mesma adeia, da mesma parvónia, próximos, parentes, filhos dos mesmos pais e mães… Dizer mal e usar chavões é próprio dos meios pequenos, tacanhos, em que todos se conhecem uns aos outros.
A conversa virou-se agora para o Facebook e os seus malefícios, um dos cavalos de batalha do "Mister" nos últimos tempos, com o argumento de que as redes sociais reproduziam a estrutura e ampliavam a dimensão da aldeia, a aldeia virtual global.
− Levámos anos para chegar à Índia, hoje a Índia está ao alcance de um clique.
− Não é tudo mau, ó “Mister”, o telemóvel, o Facebook, o Skype, os blogues… Há novas formas de sociabilidade, é verdade. Posso alargar os meus contactos, ter “amigos famosos”, gente das revistas cor de rosa, enfim, viajar, ter o dom da ubiquidade como os deuses… E até fazer sexo virtual!
− Pedimos amizade uns aos outros (gosto da expressão “pedir amizade”…), sem nunca nos termos visto, nem cheirado, a não ser por fotografia nas redes sociais. Aceitamos amizade, recusamos amizade. Somos todos “amigos” do Facebook e temos lá as nossas vidas todas... escarrapachadas…
− Sim, não é só desvantagens, o problema é o uso compulsivo, é a adição, o vício...
− Preocupa-me é os meus netos que são viciados nos videojogos… − lastimou-se o “Manjor”.− E, daqui a mais uns anitos, na pronografia.
− Há, de facto, uma falsa sensação de partilha e de comunhão de afetos. Contabilizamos os “gosto”, os “like”, o número de "amigos"… − comentou o “Cromo”.
Mais enfático, exclamou o “Mister”:
− Vejo muita gente indignada porque foi aceite como “amigo” e, mais tarde, é rejeitada… O “amigo” do Facebook de ontem retirou-lhe a “amizade” no dia seguinte… É quase uma tragédia pessoal para alguns, uma tremenda perda!... Por esta ou por aquela razão, muitas vezes por mal-entendidos, questões de lana caprina, ou por razão nenhuma, ou só porque a página está cheia, sobrelotada… Ou porque o “amigo” fez um comentário desagradável, deselegante ou até insultuoso…
−Acho bem que não se pactue com o insulto, a calúnia, o impropério! Mas ninguém gosta de ser rejeitado, convenhamos! – opinou a "Nucha". − E depois tens o fenómeno do “cyberbullying”, a perseguição, o assédio, moral e sexual, nas redes sociais, é um novo tipo de violência, intolerável, para os nossos padrões de civilização e convívio.
E o “Mister” prosseguiu a sua palestra como se estivesse a falar para o “balneário” das suas equipas de futebol da III Divisão:
− Os portugueses dividem-se por dá cá esta palha, o futebol, a política, a religião, o cão, o gato, agora os touros… Ora os conflitos fazem parte da vida, as pessoas não sabem (ou não querem saber ?) lidar com os conflitos, as divergências ou diferenças que se manifestam no seio dos grupos…
−E blá, blá, blá!... Ora, se não fossem os conflitos, nunca haveria mudanças!... Eu cá gosto mais do inferno do que do céu, pelo menos acho que deve ser mais divertido… − interrompeu a ‘desbocada’ da “Natália”…
No meio disto tudo, tu tinhas que desempenhar o teu papel, que era mais de observador do que ator, afinal um intruso no grupo, mesmo todos eles sabendo que estavas a fazer sobre eles um “case study” para um projeto europeu... A sugestão e o convite vieram da “Nucha”, uma rapariga de Braga, de 60 e tais anos de idade, e que sempre se interessara pela promoção da saúde, tendo estado ligada à Rede Europeia das Escolas Saudáveis bem como à Rede Portuguesa das Cidades Saudáveis... Foi aí, de resto, que se haviam conhecido, vocês os dois.
Enfim, podias dizer que tiveras a sorte de ganhar a confiança do grupo, ao ponto de te chamarem “Mouro” na brincadeira. Sabias, por outro lado, que o grupo fazia alguns almoços, e seguramente "um no solstício do inverno, pelo Natal", e outro no "solstício do verão, antes das férias grandes”... E que se preparavam, em 2020, para "atacar" os caminhos de Santiago, numa verdadeira aposta de superação, individual e grupal: um caminho, todos os anos até 2030 (para os..."mais otimistas").
No verão ainda gostavam de "ir a banhos", ou de fazer uns cruzeiros pelos sete mares… No fundo, eram circadianos, repetivos, e chatos quanto baste, como qualquer ser humano, em qualquer hemisfério…
A “Natália” costumava escrever uns versinhos para essas ocasiões em que, por sinal, nunca pudeste aparecer. Dizia-te a "Nucha" que eram versinhos do tipo “escárnio e maldizer”… Ela adorava pôr sempre um pouco de picante no que escrevia e dizia... No último Natal, de 2019, ela fizera um soneto a “castigar”, surpreendentemente, os que só apareciam nesta data para “dar ao dente” e "manter as quotas em dia". Mas também queria dar o mote para o novo projeto do grupo, os Caminhos de Santiago.
No fundo, era um homenagem a este pequeno grupo de gente gira do Norte que te surpreendia pela energia e alegria que punha todas as quintas-feiras nas suas "voltinhas" pelo Parque da Cidade... "por mor da saúde" (uma expressão que tu achavas deliciosa, e tão tipicamente nortenha).
A “Nucha” teve a gentileza de te mandar uma cópia do texto por email, com autorização expressa para o usares no teu relatório e, também, de algum modo, ficares com uma recordação pessoal dessas quintas feiras no Parque da Cidade onde te chegaste a juntar a esses caminheiros, alguns dos quais infelizmente iriam arrumar de vez as sapatilhas em 2020...
Em Lisboa, soubeste pela "Nucha", da morte do "Mister", logo no início da pandemia, o que chocou toda a gente, e deixou o grupo destroçado. Nem sequer ao funeral dele puderam ir. Era o mais novo, o mais ativo, o mais saudável, o mais entusiástico, o mais prestável... Com a pandemia, o confinamento e a morte do "Mister", a tertúlia acabou por desfazer-se...
− E, depois, sabes como é, a idade não perdoa!
Desfez-se o grupo, por falta de comparência, motivação e liderança, e com ele o sonho de se fazer os caminhos de Santiago, a partir do início da década de 2020. Ainda se chegaram a encontrar uns tantos, quando amainou a pandemia, mas nunca mais se reconstituiu o grupo.
− Não, não chegámos a Santiago de Compostela, mas também não morremos na praia. Cumprimos a nossa missão! − concluiu, resignada, a "Nucha".
E tu achaste que sim, que ficava bem esse soneto a rematar esta história, bonita e triste ao mesmo tempo, destes caminheiros nortenhos, com dez anos de caminhadas... Infelizmente, o ano de 2020 foi mau para todos e tu acabaste também por perder o contacto deles, restou-te apenas a "Nucha". Eis o texto que ela te mandou, da autoria da "Natália" (e com a sua generosa permissão):
"Feliz Natal de 2019, caminheiras e caminheiros!
"Faltosos, refractários, desertores,
Não deixam de ser também caminheiros,
Sentem-se, pois, à mesa, meus senhores,
Que à mesa somos todos companheiros.
"Cá no Parque, não há livro de ponto,
Nem sequer prémios de assiduidade,
Quem quer e pode, vem, não tem desconto,
Que a quota é só a da amizade.
"Com as malas feitas p’ra viajar,
Juntam-se aos residentes, p’lo Natal,
Mas com medo do mundo acabar.
"Esqueçamos, gente, os maus agouros,
Que o ano há de correr menos mal,
Valha-nos Santiago, o Mata-Mouros!
"Parque da Cidade, quinta feira, 19 de dezembro de 2019. Natália"...
© Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados.