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segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26063: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (34): Ciúme patológico


Contos com mural ao fundo >  Ciúme patológico

por Luís Graça (*)


A Nucha ainda estava bastante combalida quando tu, na semana seguinte, lhe telefonaste. Por mero acaso, numa daquelas vezes em que te lembravas de fazer a ronda dos amigos que viviam longe.  (Gostavas de saber, de viva voz, que  a malta "ainda ia estando por cá",  se bem que já com a saúde "remendada"...   Tudo isto antes da pandemia, tragédia que mudou para sempre as nossas vidas. )

A Nucha estava viva, graças a Deus. Mas tinha tido um “acidente de percurso” (sic), nesse princípio de verão de 2017. Desconfiaste do eufemismo...

− Acidente ?!...

− Num ataque de ciumeira, o meu ex tentou estrangular-me!

− O quê, estrangular-te ?! Quem, o teu ex ?!... Não posso acreditar!...

− Desculpa, 
 nestes anos todos nunca te cheguei a falar dele, e da nossa relação!...Mas tu conheceste-o, uma vez na Casa da Música.
 
Sentiste que ela precisava de desabafar.  Nada, afinal,  como ter um velho amigo (e confidente). A 300 km de distância. Longe mas sempre ao alcance de um clique. 

Ainda os telemóveis não faziam videochamadas. Pelas fotos que ela te mandou,  dava para perceber a gravidade da agressão de que fora vítima… Trazia um colar cervical.

Segundo as suas queixas, sofrera diversas contusões no pescoço, mas também na couro cabeludo e no peito. Felizmente não havia vértebras cervicais partidas.

Logo que pudeste, em meados de julho desse ano, arranjaste um pretexto para estar com ela
. Tinhas uma viagem no Alfa, paga. Até Braga, por razões profissionais. Aproveitaste para ir na véspera e ficar no Porto nesse fim de semana.

A Nucha era uma das “mães-fundadoras”  da Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade (**). Juntavam-se às quintas feiras.  
Tu havias entrado neste grupo, como "observador-participante", justamente através da Nucha e do seu projeto local de promoção do envelhecimento ativo e saudável. 

−  Deixou-se ir abaixo com esta história toda, anda deprimida 
− confidenciou-te uma das pessoas do grupo que lhe estavam mais próximas. 

Mas, não faltaram logo, à boa maneira nortenha, as manifestações de afeto e de solidariedade, por parte dos caminheiros e demais amigos.  O  “caso” tornara-se público, contra a sua vontade. 

A Nucha fora vítima de violência doméstica. Disso ninguém tinha dúvidas. Algumas pessoas do grupo estavam chocadas, umas mais do que outras.

− Uma brincadeira, ao que parece, que poderia ter acabado em tragédia – terá comentado um dos caminheiros com quem falaste ao telefone.

Ninguém achou graça nenhuma  à subtil insinuação desse caminheiro. "Brincadeira" ?!... Para mais vinda  de alguém que, no passado, também fora vítima de violência conjugal. Neste caso por parte da companheira, que sofria de graves problemas de saúde mental. 

Enfim, o termo “brincadeira” não estava isento de uma conotação algo machista.

− O gajo, no fundo, está a insinuar que a Nucha também tivera culpas no cartório, “ao andar a brincar com o fogo”... Estás a ver a mente pornográfica destes sacanas?! 
− comentava uma amiga dela.

Quanto ao ex-companheiro da Nucha (que vivia com ela há cerca de oito anos, e que ela te apresentara uma vez como "amigo" ) contaram-te que fora ouvido, no dia seguinte, na polícia e depois no tribunal, na presença do seu advogado.

A Nucha apresentava, pelas fotos que tu viste,  claros sinais de ter sido vítima de uma grave agressão, com escoriações ao nível do pescoço, peito e cabeça. Teria havido uma tentativa de estrangulamento, num acesso de fúria provocada, ao que parece, por uma crise de “ciúme patológico” (sic).

− Patológico ?... Dizem-me que o ciúme é o fogo que alimenta, a lume brando, o amor.

− Todo o ciúme é patológico!... Não me lixes − asseverava ela.

A verdade é que a Nucha ficara muito afetada, física e psicologicamente. 

“In extremis” conseguira libertar-se das mãos do agressor, e chamar o 112. O INEM veio com a polícia. O  fulano acabou por cair em si e deu-se por “culpado”. (Até por que era um homem "educado, culto e inteligente", disse o advogado no tribunal.) 

A Nucha foi levada, à meia noite, para o Hospital de São João,   tendo estado dois dias em observação e depois em tratamento.

Compreensivelmente, ela nunca mais quis voltar à casa da Foz. Nem sequer para ir buscar uma muda de roupa e alguns objetos pessoais mais urgentes.  Incumbiu, p
ara essa tarefa, uma amiga, que morava para os lados da avenida da Boavista. 

A Nucha voltou, de vez, para o seu apartamento na Rua da Alegria. 

− Os 50 metros quadrados da sua ilha preferida.

Costumava dividi-los  com o confortável casarão da Foz, nomeadamente no outono e inverno, estações mais "tristonhas".

− Na primavera e no verão, preciso de sentir na pele a maresia, preciso de estar junto ao mar, como a Sophia [de Mello Breyner], faz-me bem aos quatro humores… 

A Nucha confidenciara-te que nunca mais  poderia viver por detrás de uma serra!.,. Detestava o rosmaninho e a urze, aromas de uma infância em que decididamente não fora feliz!

O juiz impôs ao agressor,  como medida de coação, o simples termo de identidade e residência... Aguardou o julgamento em liberdade...


− É a merda da nossa justiça, no seu melhor, uma justiça ainda com muitos tiques de classe... Pior ainda, misógina, sexista, homofóbica e racista 
−  comentou-se no grupo que, em peso,  foi solidário com a Nucha.

Sobretudo as mulheres não escondiam a sua indignação:
 
− Os nossos juízes, e nomeadamente os machos, mas também algumas juízas que vestem calças, parecem, às vezes, ter dois pesos e duas medidas... Pelo menos, em matéria de crimes sexuais e de violência de género, incluindo a violência doméstica. Tudo depende do sexo e da classe social da vítima e do agressor.
 
Mas, afinal, quem era o homem de que tanto se falava, no círculo dos amigos e conhecidos da Nucha ?...  O "mau da fita", a "besta quadrada", o "energúmeno", para usar alguns dos epítetos mais suaves do léxico   nortenho.

Bom, vieste a conhecê-lo melhor mais tarde. Não no Porto, mas em Lisboa. Por ocasião do lançamento do álbum fotográfico de um amigo comum,  fotojornalista, que to apresentou:

− O eng. Vaz C... (vamos omitir o apelido por razões obvias.)

− Por acaso, já nos tínhamos visto antes...

Não vais dizer que ficaram amigos, seria uma fanfarronice da tua parte. Afinal não costumavas fazer amigos logo ao primeiro aperto de mão... E sobretudo seria uma "traição", uma quebra de solidariedade para com a tua amiga Nucha que tu conhecias há mais de vinte anos, e que era uma boa e leal amiga do Norte.

Mas tiveste depois, mais tarde, uma conversa franca,  com o "engenheiro"... Ele prometeu que, "um dia", iria contar-te a sua versão dos factos, tanto mais que se sentia "injustiçado pelo tribunal, e crucificado na praça pública"... De
 resto, ele sabia  tratar-se de uma amiga tua de longa data.  

O tribunal condenara-o a a 30 dias de prisão, com pena suspensa. Teve que pagar ainda uma indemnização, por danos corporais e morais, à Nucha.

Deves ter-lhe inspirado confiança. Por outro lado, tu tinhas a vantagem de estares em Lisboa, de não seres do Porto nem viveres no Porto. E muito menos na Foz.

O  Vaz C...  era um engenheiro químico. Fizera toda a vida no Porto mas tinha as suas raízes no Alto Minho (curiosamente, tal como a Nucha).

− Corrijo: fui engenheiro químico, já não sou. É uma parte do meu passado que ainda hoje me é doloroso evocar... Mas não posso riscá-la do meu currículo, seria fazer batota comigo e com os outros que me conhecem... Afinal, sou filho, neto e bisneto de engenheiros... O meu bisavô, esse, era engenheiro militar e ainda chegou a conhecer o Fontes Pereira de Melo. Tenho orgulho nas minhas raízes.

Poucos o conheciam na vida da Nucha. Ela, de resto, nunca o havia apresentado à Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade. Nem muito menos aos seus colegas,  professores da escola secundária onde ela dava aulas de biologia.  (E onde, de resto, fez lá toda a sua carreira e desenvolveu projetos na área da promoção da saúde escolar; foi daí que tu a conheceste.)

Também eram muito raros 
os amigos comuns. O Vaz C... não te explicou como é que a Nucha aparecera na vida dele, há cerca de uma década atrás. Mas é capaz de ter sido numa viagem do Pinto Lopes, a quem chamavam, no Porto, a "agência do amor" ou "agência cor de rosa"...

Nem ele nem ela faziam grande vida social. Eram pessoas discretas, "cada um na sua casa, como convinha".  A dele, na Foz, a dela na rua da Alegria. Formavam um casal atípico. "Andavam juntos" há cerca de oito anos, com interregnos, e com completa "separação de bens", a começar pelas contas bancárias... Até o IRS faziam em separado. Ela como "solteira" (nunca se tinha casado), e ele como "divorciado", pai de 2 filhos e avô de 3 netos... Filhos e netos que, é curioso,  ela nunca quis conhecer.  

Preferiam dizer que "andavam juntos" do que "viviam juntos". A Nucha ficava muitas vezes na casa do Vaz C... Por conveniência, comodidade, preguiça,  inércia, etc. "Por ser mais espaçosa e confortável, enfim, e sobretudo, por estar junto ao mar"... Mas ela não gostava do vocábulo "namorados". Nem nunca terá estado atenta a eventuais "sinais de crises de ciúmes"... Consideravam-se pessoas adultas, cultas, racionais, livres...

− Éramos amigos que às vezes dormíamos na mesma cama − confidenciou-te ela.

Ele também raramente a apresentava como "namorada", e apenas  aos vizinhos e conhecidos, mais próximos. Não era nada "exuberante" no que dizia respeito à sua vida..."amorosa". Era um "cavalheiro",  em suma.

Todas as despesas de manutenção da casa (e não eram pequenas, a começar pela segurança e condomínio) eram suportadas por ele. A Nucha contribuía "apenas com parte da alimentação". Nas despesas do dia a dia, ela gostava das "contas à moda do Porto". Os pequenos luxos, como restaurantes caros, uma vez por outro, em "dias de festa", era ele que fazia questão de pagar.

 De resto, ele era também "um razoável cozinheiro, um bom, garfo e um melhor copo", segundo o autoelogio que ele próprio fez, na conversa que teve contigo. 

A Nucha confirmou-te que "ele bebia bem, e às vezes demais". Tinha uma excelente garrafeira, de fazer inveja aos amigos e vizinhos.  Adorava o "Alvarinho" da sua terra...

Não, não  era um desses "antigos ricos da Foz", nem sequer se considerava "rico". Vivia com relativo desafogo, graças ao "pé de meia" que juntara no tempo das vacas gordas, e ao longo de uma vida de trabalho. 

A casa na Foz ("um casarão", integrada agora num condomínio fechado) já vinha de família, mas fora remodelada. O pai tinha sido um dos pioneiros da construção das barragens no Douro. Era também engenheiro (e empresário). E dera-se bem com as obras públicas do Estado Novo.

− Pela minha parte, investi na bolsa, ganhei dinheiro, soube aplicá-lo, poupei-o... Fui formiguinha, hoje posso dar-me ao luxo de ser cigarra...A Nucha só conheceu a cigarra, não a formiga...

Foi ele próprio que te deu alguns detalhes do seu currículo profissional. Tinha sido, durante mais de três décadas, um alto quadro de um conhecido grupo empresarial do Norte,  ligado à indústria transformadora.

Tivera uma "fulgurante e brilhante carreira", até à morte do fundador do grupo. (Nas fábricas do grupo, antes do 25 de Abril, o fundador era tratado por toda a gente, desde os operários às chefias, como o "Senhor engenheiro", só mais tarde é que passou a ser o "Velho" ou o "Patrão Velho".)

− Fui eu que sugeri (e preparei o dossiê de) a internacionalização do grupo e é por isso que alguns não me perdoam, a começar pelos herdeiros. Deviam-me estar gratos. Se o grupo não se abre (ao capital estrangeiro), os filhos e os netos estariam hoje na miséria. A empresa familiar não teria sobrevivido aos choques políticos, económicos e tecnológicos dos últimos 30 ou 40 anos... 
Hoje está sólida e tem à frente uma equipa de gestores altamente profissional.

E prosseguiu o teu interlocutor (que parecia ter necessidade de falar do seu passado):

− Tudo corria aparentemente bem até ao dia em que lhe foi diagnosticado (ao fundador e líder do grupo,) um tumor. Fatal, no cérebro. Ainda foi operado nos EUA, mas em vão. 

Com um prognóstico tão reservado, toda a gente entrou  em pânico. Ele era muito centralizador, para não dizer autocrata. Gostava sempre de ter a última (e decisiva) palavra, à boa maneira antiga do "eu quero, posso e mando". 

- Este período poderia ter sido fatal para o futuro do grupo mas eu fui-lhe sempre leal e dedicado até à sua morte. De resto, eu não tinha funções executivas.

Convém acrescentar que o Vaz C... já antes se tinha começado a incompatibilizar com o filho mais velho do patrão.  Este regressara  à fábrica, vindo da América, com o canudo de um "Master", um "MBA", debaixo do braço, preparando-se para assumir, "com toda a legitimidade", o lugar que um dia, pela "ordem natural das coisas", o pai deveria deixar ... ao "morgado". 

Na realidade, não seria assim tão pacífica a sucessão... E confessou-te, o Vaz C...,  o que sentiu com a morte do "Velho":

− No dia seguinte, tive a sensação (sufocante) que aquela casa também já não era a minha...

A correlação de forças mudara com a modificação da estrutura acionista: entraram para o Conselho de Administração os representantes dos herdeiros e dos novos acionistas, nacionais e estrangeiros.

O eng Vaz C..., assessor para a área do desenvolvimento estratégico, braço direito e protegido do "Patrão Velho", deixou de ser convocado para as reuniões do Conselho de Administração onde tinha lugar "praticamente vitalício", embora com funções consultivas. 

Sobretudo os herdeiros não gostavam dele, chamavam-lhe o "Rasputine". Acusavam-no  de ter uma influência demasiado grande (e sobretudo nada benéfica) sobre o "Velho".

− Substituiram o rei (que morreu) e afastaram o seu "leal conselheiro"... A história repete-se... Vi este filme noutras empresas aqui do Norte.

Os novos patrões não o despediram logo, até por razões legais e por respeito a uma cláusula testamentária do "Velho"... Por "piedade" (sic), deixaram-no só, num gabinete vazio, com uma secretária, uma cadeira e um PC... Alguém lhe sugeriu que escrevesse a "história" da empresa e as suas memórias de trinta anos de colaboração com o "Patrão Velho"...

− Recusei-me, disse-lhes que não era historiador, era engenheiro...

O seu conhecimento e relacionamento com o fundador do grupo já vinha de longa data, ainda antes do 25 de Abril, quando, jovem engenheiro químico (e um dos melhores alunos do seu curso) fizera um estágio prolongado numa das fábricas da empresa, na Maia.

O "Velho" também vinha da "química" (ou da "alquimia", como ele gostava de  dizer, na brincadeira entre "colegas"), mas era de outra geração... 

Apreciava, no jovem Vaz C..., além da "competência técnica", a "visão estratégica" em relação ao futuro do setor e dos negócios, a par da "arte de negociar" e de sobretudo de "resolver problemas práticos sem grandes equações".

− Sem falsa modéstia, eu fui um dos obreiros da "via real" do sucesso daquela empresa. E, por tabela, do grupo que veio depois a criar-se. Sobrevivemos aos desvairados anos 70, à crise do petróleo de 1973, ao 25 de Abril, às greves, saneamentos e ocupações selvagens, 
ao PREC, à deriva totalitária, às nacionalizações, à intervenção do FMI, , etc. Mas, depois, vieram os "trinta gloriosos", de princípios de 80 até à primeira década do séc. XXI"...

Não foram trinta, emendou ele:

− Se não foram trinta, foram vinte e tal anos a trabalhar bem, sem horários, às vezes sem férias, a criar riqueza, postos de trabalho, a distribuir dividendos, a abrir novas fábricas...

 Católico, com "sensibilidade social", o "Velho" não perdeu a oportunidade de contratar o jovem e brilhante Vaz C...para a sua equipa de gestores e assessores, numa época em que, nas empresas, ainda se valorizava mais a "tarimba" do que os "canudos". Por outro o conhecimento pessoal e as famosas "cartas de recomendação" também eram como o código postal, ou seja, meio caminho andado para se arranjar um bom emprego numa boa empresa... 

Mais do que simples colaborador, o eng Vaz C... tornou-se um amigo e confidente do "Velho", e um homem, afinal, poderoso. 

Resumindo:

− Eu era um "colarinho dourado" muitíssimo bem pago, comecei a ser vítima de "bullying", como se diz agora. Arrumaram-me para um canto, como um trapo velho... A maior humilhação da minha vida... Devia ter lutado mais, mas faltaram-me as forças... O braço de ferro acabou por quebrar pelo elo mais fraco da cadeia. Estive de baixa psiquiátrica durante três anos, e depois a Segurança Social mandou-me para o esquema da invalidez... Hoje estou reformado, isto é, arrumado. 

E arrematou: 

− A única coisa boa que me aconteceu nestes últimos oito anos foi ter conhecido a Nucha. Infelizmente acabei de a perder, pela coisa mais estúpida que fiz na minha vida, que foi bater numa mulher. Perdi completamente a cabeça, meu Deus!

Fez-se um silêncio prolongado, embaraçoso. O teu interlocutor ia sendo traído pela emoção. Recompõs-se, puxou de um lenço, assoou-se e prosseguiu:

− Há coisas que fazemos que não têm volta a dar: a rajada de G3 que se dispara à queima-roupa contra um pobre diabo de um negro que tenta iludir a vigilância dos seus captores, mesmo de mãos algemadas; a pedra que se lança no pátio da escola, e que vai partir a cabeça de um inocente; a gadanha da morte que varre a autoestrada e que ceifa a vida daqueles que te deram o ser; enfim, uma mão, pesada, que se abate sobre a cara da mãe dos teus filhos...

Depreendeste, ou deduziste,  que eram fantasmas do seu passado: a guerra colonial, o acidente mortal com os seus pais, o divórcio litigioso do seu primeiro (e único) casamento...

Ainda estavas à espera que ele te contasse o que se passara exatamente "naquela malfadada noite" em que a Nucha regressara de Lisboa, de um congresso internacional... Mas ele, de repente, entrou num mutismo extremamente embaraçoso... 

Respeitaste o seu silêncio, levantaste-te, despediste-te dele... e nunca mais o voltaste a encontrar.

Só mais tarde é que conseguiste saber mais pormenores, através da Nucha,  sobre o que se havia passado nessa noite fatídica, para ambos, que marcou o fim de uma relação... 

 − Um relação que tinha tudo para ser tranquila e até feliz − assegurou-te o engenheiro,  quase no fim da conversa (que foi mais um monólogo).

Eis,  em resumo,  alguns excertos de longas conversas que tiveste, entretanto, com a Nucha, permitindo completar o “puzzle” do retrato do seu ex-companheiro e da narrativa sobre a relação de ambos, que terminara num já longínquo mês de junho de 2017:

− De qualquer modo, houve uma punição legal e uma reparação material… A justiça é sempre relativa.

− O tanas, minha querida!... Ele teve uma pena suspensa, caricata, e foi obrigado a indemnizar-te por danos físicos e morais…mas isso para ele foram "peanuts".

− De mal o menos… Se eu fosse uma verdadeira lutadora, como a minha vizinha Maria da Fonte, ter-me-ia esforçado por provar que vivíamos juntos a maior parte do ano, em união de facto… Por uma questão de orgulho, não o fiz… Bloqueei!... Nunca me tinha visto num tribunal, com montes de gajos a despirem-me, mentalmente, de alto a baixo!

− Ias pôr em causa o teu autoconceito de mulher livre e independente ?!

− Posso estar a ser burra, mas assim foi-me mais fácil varrê-lo completamente da minha vida e das minhas memórias…

− ?...

− Sou uma mulher do Minho… de pêlo na venta e nas pernas!... Nisso sou uma cópia, a papel químico,  da minha mãezinha, que era capaz de ser má como as cobras, quando lhe pisavam os caules!

− Que disparate!

− ... Legalmente não houve violência… doméstica! Não éramos um casal, o juiz deve pensado que eu era um cabra, julgou o caso como uma simples agressão corporal…

−… na cama!

− Foi tudo muito sórdido!... Ele [o Vaz C…] tinha massa, arranjou um advogado, conhecido aqui na praça, que lhe limpou  a barra...

− E inverteram-se os papéis, não ?!

− Sim, às tantas, eu é que era a má da fita, a fria e astuta Eva que ludibriara o pobre e indefeso Adão!... Tive de reconstituir não sei quantas vezes a cena dessa maldita noite!...

−  Tens de ma repetir para eu poder defender-te quando as pessoas vêm insinuar que fizeste uma cena de teatro só para provocar o teu ex...

− Foi o que o advogado dele procurou demonstrar perante o juiz, passando da defesa ao ataque… A minha advogada era uma jovem, minha conhecida, que estava mais atrapalhada do que eu!...

A Nucha reforçou-te a ideia de que o tipo afinal tinha uma dupla personalidade:

 − Sabes, ele era um tipo misterioso… E deixa-me, desde já,  falar dele como sendo um fantasma do passado!... Pensava que o conhecia minimamente, que estupidez a minha!...Vivi com um animal estranho, durante oito anos, se não foram oito, anda por lá perto, com muitos intervalos pelo meio entre a casa da Foz e a da rua da Alegria…

− Ele falou-me em tiros de G3, deu a entender que andou na guerra colonial… Não quis aprofundar o assunto, seria indelicado da minha parte...

− Sim, ele esteve na Guiné, entre 1963 e 1965, se não erro… Não sou boa em datas. Regressou com 25 anos e só depois é que acabou o curso de engenharia, faltava-lhe um ano ou coisa assim… Deve ter apanhado a crise estudantil de 62… Não te sei dizer.

− Nasceu portanto em 1940 ou por aí…

Sim, ele era mais velho do que a Nucha uma boa dúzia de anos… Ela era de 1952.

− Falava-te da guerra ?

− Pouco ou muito raramente... Sim, quando fomos à Guiné-Bissau, ou melhor, à ilha de Orango, no arquipélago dos Bijagós… Fomos de avioneta, diretamente de Dacar para Orango… Em rigor, não estivemos na parte continental da Guiné-Bissau. Nesses dias, que adorei, vi os estranhos hipopótamos que vivem tanto em água doce como salgada, e que vão desaparecer com a subida do nível do mar, daqui a algumas décadas… Sim, nesses dias, ele falou-me por alto de algumas recordações do tempo da Guiné… Tinha estado em Bubaque, em 1964, numas curtas férias…

− Mas nunca te falou em episódios de guerra ?!... De um prisioneiro que terá tentado fugir e que ele terá abatido à queima-roupa...

− Não... Acredito que não deve ter sido fácil para ele. Mas eu também não queria saber nada sobre esse passado obscuro. E muito menos da merda da guerra!...  

− Deve ter tido também um divórcio litigioso… E deve ter havido, aí, no passado dele, mais episódios de violência doméstica, não ?!

− É bem possível, mas era assunto tabu entre nós. Nunca falámos da ex-mulher dele. Nem eu queria ouvir falar dela, nem de filhos e netos... Afinal, também sou ciumenta, como toda a gente.

− Estranho, não ?!,,, O passado de cada um de nós é sempre uma caixinha de Pandora...Percebi que também perdera os pais, ainda relativamente cedo…

− Sim, num estúpido acidente automóvel, nas vésperas de Natal quando iam para Viana do Castelo. Há uns trinta e tal anos. Ele é que ia a conduzir. Os velhotes iam atrás. Ficaram esmagados pelo embate de um camião TIR, que ficou sem travões…

− Não o amavas assim tanto…

− Vamos lá a ver: habituámo-nos à companhia um do outro. Tínhamos, de facto,  algumas coisas em comum. Por exemplo, éramos cinéfilos, adorávamos o cinema italiano do pós-guerra... Ele era um gajo culto, para os padrões burgueses do Porto… Gostava de ir ao teatro, gostava de ouvir um bom concerto sinfónico, etc. Não discutíamos política... Ele ia a missa, eu não...Sempre respeitei as suas convicções... Mas, amor, amor… É uma palavra demasiado forte que eu não gosto de pronunciar em vão… 

E depois de retomar o fôlego, a Nucha lamentou: 

- Andei toda a vida à procura do grande amor da minha vida, como quem joga no Euromilhões… Desisti, olha, agora jogo à raspadinha...  

− Somos utópicos…

− Somos mas é estúpidos, pelo menos nós, as mulheres, somos mais estúpidas do que vocês…

− Não digas isso, estás ainda magoada ao fim deste tempo todo.

− O meu sexto sentido, a minha inteligência emocional, o meu faro de felina... falharam redondamente desta vez… Aliás, têm falhado bastas vezes. Afinal, nunca acertei com os gajos que passaram pela minha vida, ou pela minha cama, que são coisas que deveriam ser completamente diferentes!

− Não, quando se tem vinte anos!... 

− Sim, nessa altura o sexo era tudo… E ainda não havia, felizmente, a Sida!.... Mas já tínhamos a pílula, ao menos… Nós, as mulheres!...  Lembras-te ? Dizíamos que era o "amor livre"!...

− Mas, afinal, ainda o odeias, ao teu último ex ?

− Se queres que te seja franca, tenho-lhe um pó danado. Só consigo fazer o luto de uma relação, através do ódio… Ainda não deixei de o odiar, acredita... E não quero encontrá-lo nunca mais, o que é difícil para quem vive numa cidade provinciana como o Porto. Evito, por exemplo, ir à Foz, e aos locais que frequentávamos... Felizmente que ele não vai ao Parque da Cidade... Nem temos praticamente amigos comuns...Vivi meses enclausurada como uma monja...

− O amor e o ódio são as duas faces da mesma moeda… Mas como é que se risca uma pessoa da nossa vida ?... Foram oito anos de vida juntos…Ou em que andaram juntos.  Vocês partilhavam algumas coisas boas da vida: as galerias de arte, Serralves, a Casa da Música, o teatro, o cinema, a música, a boa comida, as viagens…

− Até o nosso álbum de fotografias destrui, num acesso de raiva, as férias “maravilhosas” que ele me proporcionou na ilha do Príncipe ou na ilha de Orango… Queimei todas as fotos em que aparecíamos juntos. É assim que eu faço o luto de uma relação quando as coisas acabam mal por culpa dos gajos…

− Parece-me que o teu ódio também é contra a injustiça da justiça, digamos, falocrática, não ?!

A Nucha fez questão de te acompanhar ao comboio, apanharam o metro até Campanhã. Pelo caminho foi-te então contando, mais descontraída, o que se passara nessa noite de junho de 2017…

Vieste no comboio, de regresso a Lisboa, a tentar reconstituir, por escrito, o longo monólogo que a Nucha teve na cama com ele, o Vaz C…, e que terá sido o “móbil do crime”… Ou pelo menos a gota de água que fez transbordar o copo de uma relação já há muito desgastada pela usura do tempo, da rotina e do medo do futuro… 

(...) "Imagina, encontrei o Mastroianni em Lisboa! [começou ela a contar ao Vaz C..., os dois já deitados na cama]... Um Mastroian
ni grego, ateniense. Foi um dos estrangeiros que participou na conferência. Ele era lindo como um deus do Olimpo. Mais novo do que tu, muito mais novo. Um quarentão, charmoso, brilhante, sedutor, como Apolo. De facto, dava muita parecença com o Mastroianni quando novo... (Como sabes, sempre foi o meu ator italiano preferido... Isto de ser cinéfilo é o que dá: confunde-se às vezes a ficção com a realidade. Gostamos de tirar parecenças dos atores que vemos na tela com as pessoas de carne e osso que vamos conhecendo na vida.)

"Em boa verdade, já nos tínhamos encontrado antes, uma vez, em Barcelona, há uns poucos anos atrás, recordava-me do seu nome... Era o último da lista, o Zacarias, mas nem ele reparou em mim nem eu nele. Também era mais novo e desconhecido.  E eu era já uma cinquentona nesse tempo... 

"Desta vez, em Lisboa,  ele era a estrela da companhia. Intelectualmente brilhante, fisicamente atraente. O encontro foi de dois dias, 5ª e 6ª. No primeiro dia, à noite, houve o tradicional jantar de gala, oferecido pela organização. O sítio não podia ser mais romântico e inspirador, no terraço coberto de um hotel de charme, um antigo palacete do séc XVIII, revestido a fabulosos azulejos da época, e que milagrosamente sobrevivera ao terramoto... Com vista para a Baixa e o estuário do Tejo, estás a ver ?!... A noite estava perfeita, com uma temperatura já de verão, e Lisboa estava em festa com a proximidade dos santos populares.

"Comeu-se bem e bebeu-se melhor, sabes como são os estrangeiros quando vêm cá, a Lisboa ou ao Porto, em negócios ou trabalho, gostam de juntar o útil ao agradável, o dever e o prazer. São muito trabalhólicos mas à noite tiram a gravata e o casaco, o mesmo é dizer, a máscara. O ambiente era descontraído, e desinibido, e havia uma tremenda carga de energia positiva no ar. 

"Os trabalhos, no dia seguinte, só recomeçavam às 10h00, por alteração de última hora do programa. Esperava-se a presença do ministro. Ainda fomos ao Bairro Alto, mais para ver o ambiente e andar um pouco a pé. Depois regressámos ao hotel, que não era longe, estávamos alojados no mesmo sítio, e por coincidência no mesmo piso. Como estava sem sono e, em boa verdade, sentia-me 'very, very free, cool, happy', uma sensação que há muito não experimentava. 

"Apesar da nossa diferença de idades, para aí uns vinte, o Mastroianni quis ser gentil comigo, ficou mais tempo na conversa, bebemos o último copo 'para a sossega' (fez ele questão de mo oferecer!), acabámos por subir juntos, no elevador, despedimo-nos com um beijo e eu aí..., tive uma sensação estranha, um impulso irresistível: agarrei, qual leoa, com as duas mãos, aquela cabeça de Apolo e,  zás!, ..."

(...) "Foi nesse preciso momento que o gajo [ela estava agora a referir-se ao Vaz],  o cabrão que estava a ler, a um canto da cama, a fingir que me ouvia, saltou como o tigre da Malásia, ferrou-me o pescoço com os dentes, tapou-me a boca com uma mão, puxou-me os cabelos com a outra, e deu um urro que ecoou pela casa toda: 'Cala-te, sua caaaaa... braaaaaa...!'... 

"E tentou estrangular-me, quase até à asfixia total...

(...) "Tive uma fração de segundo de lucidez para perceber o que estava a acontecer e que ele me ia matar... Foi aí que consegui, num derradeiro esforço hercúleo de mulher minhota, libertar a minha perna esquerda e dar-lhe uma joelhada fortíssima no baixo ventre. 

"Deu um urro de morte: 'Sua....caaaaa... braaaaa, filha de uma ganda puuuuu...ta!!!".

"E, 'in extremis', largou-me, desistiu, bloqueou, caiu exausto na cama, teve um ataque de choro, histérico ...  

(...) "Sim, consegui chamar o 112...Saltei da cama, cheia de dores, num estado miserável, desgrenhada, a roupa rasgada, pedi socorro ao 112... 

"Não ofereceu resistência quando chegou a polícia... Só voltei vê-lo no tribunal.   O processo correu célebre.

" Cabra, eu?!... O gajo ficou completamente desvairado com a cena que eu estava a contar, em voz alta, mais para mim do que para ele... Uma verdadeira fantasia erótica, se queres que te diga!...Mas na sua imaginação pornográfica ele viu-me agarrada ao grego, a rebolar na cama de gozo!... 

"O gajo tratou-me como uma puta, privativa, a quem pagava, de vez em quando,  uns jantares em restaurantes de luxo, só para eu ser dele!

"Fantasia erótica ?!...Não vou dizer que não estava excitada... Sim, se calhar até era capaz de ir para cama com ele, mas fiquei por ali, peguei-lhe na cabeça com as duas mãos, como uma mãe faria a um filho, dei-lhe um longo beijo de boas noites ... e de despedida!... 

"No dia seguinte, trocámos olhares cúmplices, algo embaraçados, como  dois tímidos adolescentes, acabou a conferência, ele apanhou o avião para Atenas e eu o comboio para o Porto... Nem sequer sei onde mora!...

"No fundo, fiquei com uma pena danada de não ter  dormido com ele nessa noite, única, irrepetível! E ainda hoje não sei por que é que não o fiz... 

"Muito provavelmente porque ele não me deu  'luz verde'... Sou muito intuitiva nestas coisas, dou muito importância ao comportamento não verbal dos meus parceiros... Senti atração por ele, não senti atração dele por mim...

"Sim, o meu Apolo não estaria nos dias dele... Os deuses são caprichosos... tão ou mais que os humanos... Ou então ele era um falso deus, uma merda de sedutor, um daqueles gajos que têm medo das mulheres inteligentes e dominadoras...

"Claro que eu fui completamente idiota ao contar esta história do Olimpo ao meu ex... Se calhar até fui cruel, sem intenção de o ser... Ou, se calhar, inconscientemente, eu quis provocá-lo, testar os seus limites de racionalidade, pôr á prova o amor dele...  

"Dir-me-ás, também tu, que, antes de seres meu amigo, és macho, que as mulheres não podem brincar com o fogo... Se calhar foi por  isso que os homens, com medo, nos roubaram o fogo!... É um dos mitos mais antigos da humanidade!

"Que parva que eu fui!... Afinal, uma mulher não pode ter desejos, não pode ser proativa em matéria de sexo...E muitos menos se tiver cabelos grisalhos... Uma gaja aos 65, era a idade  que eu tinha na altura, em 2017, não pode desejar um homem, vinte anos mais novo... Grego, lindo com o Apolo!... 

"Sabes uma coisa ?!... Tenho reconhecer que estou velha e acabada, não tenho a pedalada dos miúdos de hoje, como os que são (ou foram) meus alunos". (...)

Não voltaste a ver a tua amiga Nucha desde a vossa última conversa, em Campanhã. Meteu-se, entretanto, a maldita pandemia... E, pior do que tudo, a Nucha sofreu, entretanto,  um surto psicótico, esteve internada em psiquiatria, um irmã dela, mais nova, veio ao Porto buscá-la... 

Vive hoje triste, apática, solitária, numa casa de repouso em Terras de Bouro... Por ironia, voltou aos montes da sua infância raiana, cobertos de rosmaninho e de urze. Coisa que já não a incomoda,  felizmente, para ela, que perdeu o olfato. E também já não sai nem ninguém a visita para além da família mais próxima...

Quanto a ti, tu nunca foste a Terras de Bouro. Nem sabias exatamente onde era, antes de ires ao Google... Mas ficaste  devastado ao saber do fim desta história de uma mulher que tanto acreditara, em vida, na arte e na ciência  da promoção do envelhecimento ativo e saudável.


© Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados.
Última revisão: 19 de outubro de 2024
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 17 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25952: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (33): O "Judeu'

(**) Vd. poste de 18 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25653: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (30): Caminheiros

terça-feira, 18 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25653: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (30): Caminheiros











Porto > Parque da Cidade > 23 de dezembro de 2018 >  Alguns recantos e encantos do Parque.

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2018). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

 

Contos com mural ao fundo: Caminheiros

por Luís Graça


Às quintas-feiras encontravam-se no magnífico Parque da Cidade, no Porto,  havia lá um grupo de amigos e conhecidos que gostavam de fazer a sua caminhada matinal, de duas horas. Isto, ainda uns bons anos  antes da pandemia.  

“Duas voltas ao bilhar grande”, diziam eles e elas. "E tudo por mor da nossa saúde"... Desenferrujava-se as pernas, desentaramelava-se a língua, massajava-se os neurónios, tonificava-se o coração, estreitavam-se os laços sociais e afetivos, "limpava-se a vista" (com o azul do Oceano Atlântico, ao fundo, e o verde da vegetação em redor), cultivava-se a boa disposição e o humor, desligava-se o malfadado telemóvel… Ah!, e não se fumava, pelo menos durante essas duas horas.

O grupo, de dimensão variável, no máximo uns vinte nos melhores dias, era quase todo ele de gente sénior, como sói agora dizer-se, “colarinhos brancos”, ou "pessoal engravatado" (os homens, no tempo em que ainda se usava gravata e fato completo, na banca, nos seguros, nos escritórios, nas repartições públicas... e as mulheres não vestiam calças). 

Enfim, reformados, gente com algumas economias no banco, e já poucos sonhos, mas que achava que ainda tinha  todo o  tempo e vagar à sua frente. 

No essencial, e em comum, tinham o gosto por conviver, cavaquear e andar a pé. Era a “Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade”… Até já eram populares entre os trabalhadores do Parque, demais utentes e frequentadores dos cafés e esplanadas da zona. Eram gregários como os primatos, ruidosos como os adolescentes, e temerosos da solidão como são todos os idosos do mundo.

Nessa altura, passavas por lá, de vez en quando. Estavas a fazer um estudo de caso no Porto, no âmbito de um projeto de investigação sobre a promoção da vida ativa saudável.  Tinhas o estatuto de observador-participante...  Aparecias com a “Nucha” e juntavas-te  a eles e a elas, para  duas horinhas de saudável caminhada e agradável convívio. Eram, aliás, as tuas duas únicas horas de exercício semanal... ("Bem prega Frei Tomás!...", dizia-te a "Nucha", em jeito de piada.)

Havia de tudo um pouco, num grupo de trinta, no máximo (quando excecionalmente se vazia o pleno, no "almoço de Natal": professores, talvez a maioria, um ou outro engenheiro, bancário, magistrado, advogado; umas tantas secretárias, e domésticas; uma médica, uma enfermeira, uma jornalista; e até um editor, um militar e um operador de câmara. Vinham do Porto, de Matosinhos, da Maia,de Vila Nova de Gaia e até de mais longe.

Era a primeira geração de portugueses de que se podia dizer que eram filhos da abundância,  relativa,  dos planos de fomento estado-novistas, e depois do Estado-Providência abrilista.  E que podiam aspirar a viver, com alguma tranquilidade e relativa qualidade, o “outono da vida” (contrariamente ao que se passara com os seus antepassados, pais, avós, bisavós).

Em função da condição física e do número, sempre variável, dos que iam aparecendo às quintas-feiras de manhã, mas também do estado do tempo, das afinidades e das idiossincrasias, o grupo acabava por fragmentar-se ao fim de meia-hora.

Formavam-se então pequenos grupos de três ou quatro que continuavam a caminhar e a conversar, sem qualquer preocupação aparente com os mais atrasados ou os mais adiantados. Aqui não havia contemplações e muito  menos solidariedade para com os mais fracos das canetas  que vinham na cauda do pelotão. 

A meio do percurso, entre as 10h50 e as 11h00, fazia-se uma pausa, de dez a quinze minutos, para ir à casa de banho e descansar um pouco, nas esplanadas à beira-mar. Invariavelmente cronometradas pelo "Mister". Era então que o pelotão se reagrupava, antes de atacar o regresso ao ponto de partida, e completar o circuito.

Os temas de conversa eram os mais variados, desde as inevitáveis doenças da idade (havia já gente com um ou mais doenças crónicas, as famigeradas comorbilidades) às viagens passadas (em geral organizadas pela agência Pinto Lopes), das deliciosas fofoquices às viagens futuras, das agendas culturais às grandes questões existenciais (tais como: “se Deus não existe, o que é que eu estou aqui a fazer?!”)… 

Sem esquecer, naturalmente, as preocupações mais terrenas e comezinhas com os filhos que se iam divorciando,  e os netos que lá iam trepando a montanha da vida, de degrau em degrau, da escolinha  de escolinha até à universidade final…, o doloroso  "home leaving" e o primeiro emprego, precário.

Vinham também à baila os grandes marcos do ciclo de vida de cada um e das suas famílias: nascimentos, batizados, primeiras comunhões, crismas, casamentos, divórcios e, cada vez mais, funerais (dos amigos,  parentes, vizinhos, colegas e conhecidos)… 

Por uma questão de “bom senso e bom gosto”, ou simplesmente por pudor, “não se falava em sexo nem em dinheiro”. Percebia-se: muitos tinham tido uma formação religiosa, nortenha, puritana e conservadora, o sexo praticava-se mas dele não se falava, e o dinheiro não passava do “vil metal” que comprava tudo (ou quase tudo), do amor ao temor… O que não impedia, de vez em quando, a galhofa brejeira, típica das gentes do Norte:

− Sabes como é, rapariga, o sexo na nossa idade é o último dos tabus! – gracejava alguém dos rapazes.

O telemóvel e o tabaco eram, agora, então, dois dos novos pecados mortais… O “no smoking” era uma condição “sine qua non” para a entrada de novos membros na tertúlia. E os ex-fumadores eram, nesse ponto, os mais radicais,  intolerantes. (Aliás, todos os ex-qualquer coisa... são os mais intolerantes!, a começar pelos que saíam de uma "igreja" para se meter noutra)...

Às quintas-feiras de manhã o uso do telemóvel era  “proibido”, a não ser para fazer alguma “chamada de emergência”, por causa dos netos, na creche, ou  do gato ou do cão ao cuidado da vizinha.  E, tanto quanto tu te apercebias, quando por lá andavas, não havia fumadores no grupo.

Um ou outro mais “chato” ia, por vezes, desenterrar coisas do passado não menos “chatas” como a escola primária, as férias grandes,  o liceu, a Mocidade Portuguesa, os primeiros namoros, a descoberta do sexo, a tropa, a guerra colonial, a ação católica, a militância política, o 25 de Abril, o PREC, o fim do Império, ou a igualdade de género… Questões "fraturantes"... Alguns haviam passado por África e tinham memórias desse tempo, umas boas, outras más. Enfim, havia retornados e antigos combatentes…

Chegava-se, por volta das 9h15 / 9h30 da manhã, ainda a tempo para “pôr a escrita em dia” e para tomar o “cimbalino” ou a “meia de leite”, numa esplanada perto de uma das entrada do Parque, que era o ponto de encontro, em dias soalheiros e aprazíveis. É toda uma geração do tempo da “meia de leite”, do “cimbalino” (termo que hoje, convenhamos, já não se usa no Porto), do “Português Suave”, dos “brandos costumes", enfim gente nascida no Estado Novo, e que já era adulta no 25 de Abril. Gente com duas metades, e algo bipolar, como a lua, a luz e a sombra, a democracia e a ditadura, a esperança e a depressão...

No caso de um ou outro mais velho, quando nasceu, ainda estava em vigor o racionamento, imposto durante a II Guerra Mundial, e ainda não havia a “francesinha”, hoje, para o bem ou para o mal, um dos ícones da cozinha tripeira.

Eram quase todos portistas (ou "andrades"), mas também não se falava de futebol. Por uma questão de “higiene mental”, e por respeito das “minorias futebolísticas”: os boavisteiros, os benfiquistas, os sportinguistas, os minhotos...

Ficavam lá fora as “redes sociais", a par da “política partidária”. Eram quase todos “desalinhados”, uns à esquerda e outros à direita, mas alguns/algumas tinham um passado de militância política ou religiosa. Desalinhados, desencantados com as suas “igrejas”, agora mais centrados no seu umbigo, o que até era compreensível, olhando para as carecas deles e para as cabeleiras brancas ou horrivelmente pintalgadas,  delas.

− Muito autocentrados, para o meu gosto! – confidenciava-te a “Nucha”, uma mulher minhota de grande generosidade, que te introduzira no grupo.

Quando chovia (e aqui chovia mais do que no Sul…), ficavam a cavaquear no café até próximo do meio-dia e meia, altura em que cada um ia às suas vidas.

− Por que é que repetimos sempre, ou quase sempre, as mesmas histórias, as mesmas anedotas, as mesmas tretas, as mesmas dicas, até as mesmas palavras e expressões ? 
– pergunta alguém, a meio da caminhada.

− Sim, “ad nauseam”… Essa é uma boa pergunta, mas eu não te sei responder, nem nunca tinha pensado nisso – observa a "Nucha", a caminhar ao lado do “Mister” e da “Natália”.

E prossegue o “Mister” que vai no meio das duas:

− Sabes como é, já estamos fartos de ouvir aquela cena passada há tantos anos, com o fulano de tal, lembras-te, pá?!... Aquele gajo que andou no liceu connosco, e cujo pai era da “bófia”…

− Então, não me lembro, carago, o “Morcão,  andou na escola com todos nós… É uma figura que me é estranhamente familiar, até a mim que estudei em Bragança – ironizou a “Natália”.

Transmontana, a “Natália” era uma mulher extrovertida, ‘engraçada’, cuja personalidade era um misto de truculência, rudeza, franqueza, autenticidade e… língua viperina… Chamavam-lhe a “Natália” porque dava ares, até no corpo e nos trejeitos,  da Natália Correia… E também escrevia… “versos” panfletários. Tanto quanto julgavas saber, fora professora de português.

Nem todos os caminheiros (e sobretudo as caminheiras) apreciavam e toleravam o seu “génio”. Tinha fama de ser uma mulher de pelo na venta, muito independente e… feminista. Gostava de fazer, de vez em quando, a sua "peixeirada"... como se estivesse no Mercado do Bolhão.

− E as anedotas, estafadíssimas, do Samora Machel, eivadas de racismo e de revanchismo, que circulavam no tempo do PREC e dos retornados ?!  

− Mas desde que morreu o “bicho”, acabou a “peçonha”… Já não oiço uma anedota do Samora Machel, há anos. Em contrapartida, continuas a ter as mesmíssimas anedotas sobre os alentejanos e os mouros de Lisboa… –  atreveste-te tu a completar, infringindo o teu estatuto que era mais o de observar do que o de falar...

− Ah!, o Portugal plural, sacro-profano,  no seu melhor, agora a cores do arco-íris. Por que dantes, irra!, era tudo a preto e negro – ironizou a  “Natália”.

− Não concordo, acho que o humor lusitano era mais refinado, e até mais criativo do que é hoje, justamente porque havia a lei da rolha e o lápis azul da censura– acrescentou o “Mister”.

E para reforçar a sua tese de que as pessoas hoje eram mais  “repetitivas, circadianas, chatas”, o “Mister” foi buscar um exemplo da sua própria experiência:

− Eu próprio caio na armadilha de repetir as mesmas histórias… Conto muitas vezes aquele episódio, que aconteceu a um casal meu amigo, naquelas férias que poderiam ter sido as melhores férias das suas vidas, lá nos picos da Europa ou coisa parecida, mas não foram porque os melhores amigos são muitas vezes os piores companheiros de viagem…

− Tens razão, olha, a mim, já me aconteceu isso, numa viagem ao sul de França, Grenoble, Alpes, Vale de Aosta…

E explicou a “Natália”:

− Fiquei escaldada para sempre… Dois poetas no mesmo carro, macho e fêmea, com egos de todo o tamanho, mais as nossas respetivas caras-metade, no tempo em que eu ainda vivia com o meu ex… Imaginem, quatro caramelos num Fiat 127, nos anos 70, foi pior a emenda que o soneto, carago!…

E lá foram continuando a caminhar e a tagarelar, os quatro ou cinco do grupinho da frente.

− Conversa da treta, sabes como é! É preciso ocupar o tempo − diziam-te, à laia de desculpa.

Nesta tertúlia  tripeira quase toda a gente parecia ter alcunhas, diminutivos ou “nicknames”: ao que te disseram, fazia parte da praxe e dos “estatutos”… Por outro lado, todos se tratavam por tu, o que ajudava a esbater eventuais diferenças de estatuto socioeconómico, entre os doutores e os não doutores, os senhores e as senhoras, num terra burguesa em que os títulos, no passado,  sempre tiveram o seu peso, conta e medida...

E também te pareceu que, pelo convívio que ias  tendo (irregularmente, diga-se de passagem), com este grupo singular, ninguém levava a mal por ser identificado por uma alcunha ou um diminutivo: no fundo, era mais uma manifestação de ternura, uma forma de tratamento entre iguais, o reconhecimento de um traço de personalidade ou de uma particularidade da história de vida de cada um
.  

 Os novatos, que já eram poucos nos últimos dois ou três anos antes da pandemia, eram sujeitos, como tu, à incontornável praxe de integração. Se bem que tu, porque fosses investigador, tinhas o estatuto do marginal-secante, aquele que fica sempre mais fora do que dentro. Na realidade, não chegaste a ser "entronizado", porque regressaste à base, em Lisboa, acabaste o trabalho de campo e deixaste de frequentar o grupo.

− Aqui no Norte, ninguém faz fretes. Gosta-se ou não se gosta de uma pessoa… Leva o seu tempo a aceitar-se um estranho. És posto à prova, tens de passar vários testes… Mas uma vez integrado na família ou no grupo, és um amigo para sempre! – explicou-te a “Nucha”, essa, sim, uma tua velha amiga de há muito.

Em rigor, não havia regras escritas, e a dinâmica de grupo é que, ao fim de quase uma década, ia criando e modelando valores e normas de sã convívio e até de amizade.

Curiosamente foi tudo, no início,  trabalho de um grupo de mulheres, de que restavam duas ou três, a quem chamavam carinhosamente as “abelhas -mestras”. Eram uma espécie de “mães-fundadoras”. Trabalhavam na mesma escola, professoras, auxiliares de educação, administrativas… No ano em que umas tantas se reformaram, na maioria professoras, ainda “cinquentonas”, como a "Nucha", olharam-se umas às outras e perguntaram-se:

− E agora, o que vamos fazer amanhã, que é o primeiro dia do resto das nossas vidas ?!,,,

− ... e em que deixamos de vir à escola por dever e obrigação ?! 

− Pois, já não temos o dia de pica-boi! − dizia uma delas, com graça.

Foi assim que nasceu a "Tertúlia dos Caminheiros do Parque da Cidade", com a intenção mais ou menos explícita (mas  nunca expressa, por escrito) de “promover o envelhecimento ativo e saudável”, segundo te contou  a  “Nucha”, que fora professora de biologia, "noutra incarnação", como ela gostava de apontar no seu currículo… 

Eram mais as mulheres do que os homens, o que até era natural naquele grupo etário de gente sexagenária, com um ou outro já na casa dos 70… Em meia dúzia de anos (tinham começado pro volta de 2010), o grupo parecia ter-se aguentado e até renovado. As fundadoras arrastaram os seus maridos ou companheiros… Uns e outros convidaram amigos e amigas… E por aí fora...

Mas no grupo também havia a “Viúva Alegre” (que já despachara para o céu os dois "anjinhos" dos seus maridos), a “Rosa Mota (por ser uma “corredora de fundo”, compulsiva), a “Feicebuqueira” (que se vangloriava de ter “cinco mil amigos” no Facebook), além do “Manuel de Oliveira” (um operador de câmara reformado, e o fotógrafo do grupo, sempre muito calado),  além do "Mandjor" (sic), amigo  ou conhecido do "Mister", do tempo da tropa... 

Enfim, outros tantos figurões ou exemplares de diferentes “espécies”, de ambos os sexos, daquela amostra do zoo humano que frequentava o Parque da Cidade, misturando-se com as aves que proliferavam por lá, entre as lagoas, as charcas e os pequenos bosques, separados por agradáveis campos verdejantes que, no passado, devem ter dado muitas carradas de milho…

− Por que é que somos “repetitivos, circadianos, chatos” ?!... Boa pergunta, ó “Mister”... Mas essa questão até nem parece tua!... Tu que vens da área do desporto onde o sucesso, sobretudo na alta competição, é o resultado de mil e um esforços repetidos até à exaustão, de mil e um micromovimentos…

− O treino leva à perfeição, exceto na pistola russa! – arrmetava, sarcástica,  a “Natália"

Mas o "Mister" tinha sempre uma “teoria” para explicar tudo:

− Deixem-me avançar com a minha hipótese de investigação 
− se calhar,  como piada a ti, que estavas a estudar o grupo. −  Somos repetitivos porque somos circadianos, temos um relógio, biológico, que nos obriga, por exemplo, a descansar 6 ou 7 horas por dia… Sem esse relógio, entraríamos rapidamente em entropia, levando-nos por fim à morte… Temos por isso hábitos, automatismos. Somos animais de hábitos, o que tem vantagens e desvantagens. 

− Por outro lado, temos uma memória seletiva, curta, um registo limitado de memórias, de recordações, de vivências…− acrescentou alguém, ao lado, e
 que também quis "botar a sua teoria".

Segundo ele, havia  uma economia de meios, de energia, de recursos:   

− Avaliamos os custos e dos benefícios das nossas decisões e ações, mas sempre com base em informação limitada, em quantidade e qualidade. Por exemplo, avaliamos a prática do exercício físico, numa ótica de custo-benefício… Custa-me andar a pé duas horas, mas faz-me bem à saúde, se esse esforço for conjugado com uma dieta mediterrânica e com a interação social, como diz a nossa “Nucha”… Enfim, é a minha teoria…

− Como li algures – acrescentou alguém  
–,   somos animais dotados de racionalidade limitada, e no futuro seremos ultrapassados por formas superiores de inteligência…

− Queres dizer que somos demasiado estúpidos ? Em termos coletivos, não tenho dúvidas, vê como estamos alegremente a dar cabo do planeta, a abrir a cova para o caixão da humanidade…

E voltava à carga  a “Natália”:

− Sim, não somos criaturas assim tão inteligentes quanto apregoa a propaganda do Criador.  

− E depois achamos graça − completou o “Mister” – a certas situações que afinal são banalíssimas, que acontecem a toda a gente.

− Para não dizer 
confrangedoras!... Repara, tanto rimos como choramos… Ficamos à beira de um ataque de nervos nas bichas para os centros comerciais nos "Black Fridays", ou na época natalícia, ou na noite de São João… Por outro lado, somos capazes de achar piada ao mal dos outros, às desgraças alheias, somos maus e, pior, somos capazes de ser cruéis como nenhum outro animal da Arca de Noé!

Um terceiro elemento retomou a sua teoria... Resumindo: mais do que estúpidos ou predadores, somos animais sociais, somos palhaços, palhaços de circo, gostamos (e precisamos) de circo, de fazer rir, de entreter e apaparicar os outros.

− Catar e encantar os outros, como os nossos parentes primatas… − esclareceu a “Natália"− Que é a catar os parasitas e a fazer favores sexuais que se reforçam as alianças…  "Grooming", dizem os antropólogos.

− Mas, no fundo, não temos piada nenhuma, não temos sentido de humor!

− O humor cultiva-se, é uma forma superior de inteligência! – atalhou  a “Nucha”.
– E quanto mais velhos, pior!.. Precisamos de mais mimos, de amar e de ser amados…

− Desculpa lá, mas estou em desacordo total contigo, os velhos são egocêntricos como o carago!... – contestou a “Natália” que é ainda, segundo os critérios da Organização Mundial de Saúde, uma “jovem… idosa”, como ela faz gala de dizer.

O “Mister” era dos três, que caminhavam na frente, o mais novo, tinha-se reformado cedo, o sortudo. Era o líder do grupo... Fora professor de educação física, e todos lhe reconheciam o jeito (e o gosto) para “puxar a carroça”, para motivar o grupo. Chamavam-lhe “Mister” por que em tempos fora também “personal trainer” em ginásios do Grande Porto, e treinador de futebol lá para os lados de Paços de Ferreira ou Penafiel.

Era natural de Baião, filho de gente modesta, foi trabalhador-estudante, o único dos irmãos que conseguira formar-se. A “Natália”, a mais crítica e contestatária do grupo, gostava de lhe lembrar, de vez em quando, que ninguém estava ali para bater recordes, ganhar medalhas, ir para o livro do “Guinness”. Que o grupo nem sequer era uma “equipa” e muito menos o Parque era um “fitness center”, daqueles “low-cost” que agora proliferam , como cogumelos, pelos nossos bairros, com “personal trainers” brasileiras, pagas à peça, descartáveis…

− Gosto mais dos “bandos” do que das “equipas”. Nunca me apanharam na Mocidade Portuguesa Feminina, apesar de ser filha de um militar. A minha mãezinha encarregou-se de me arranjar um atestado médico, digamos, “vitalício”… Se há expressões que me põem os cabelos em pé, é “espírito de corpo”, “team-building”, e outras do linguajar das artes e ofícios de formatar corpos e almas…− acrescentou a “Natália" e explicou:

− Desculpem, é o meu lado anarquista, a costela do meu avô materno, corticeiro, algarvio de Silves, que chegou a ser desterrado para os Açores por ter conspirado contra a Ditadura Militar, no final dos anos 20… De qualquer modo, gosto da teoria do caos, mais do que a teoria do eterno retorno… Vivo em pânico só de pensar que , quando morrer, vou direitinha para o céu que nem um fuso, e tenho à minha frente uma eternidade de pasmaceira e ao meu lado uma múmia como eu…

− Mas o que fazemos nós aqui, ó criatura, todas as quintas-feiras ?!... “Corpo são em mente sã… em 10 mil passos!”. Tens que ler o meu manual…que é um sucesso de vendas!

− Vai-te,  Afonso, com essa ! 
[Queria ela dizer "não me f..." ]. Trata do teu corpinho que eu trato da minha mente: detesto pensar que estou a ser “formatada”, mesmo com as melhores intenções do mundo e por pessoas encantadoras, sedutoras e bem-intencionadas como tu… E esse é o risco da “equipa”, do “pensamento de grupo”, das “tertúlias”…

Desviando a conversa, que já estava a azedar, o “Mister” insistiu que o corpo não fora feito para “criar raízes” como os arbustos e as árvores…

Gostava, um pouco revelia do grupo, de evocar os seus tempos de Lamego e da Guiné, onde fora “ranger”, de 1972 a 1974… 

− "Ranger" ?!...Meu Deus!, de "ranger os dentes" ?!

“Tempos puros e duros”, recordava com alguma saudade, o "Mister". Foi a sua divisa, “mens sana in corpore sano”, que o ajudou a sobreviver àquela guerra que ele fez com “sentido do dever” mas sem qualquer “entusiasmo patriótico”. Foi um “bom combatente”, conhecera as agruras da guerra em Guidaje… Nunca equacionou sequer a hipótese de desertar, já que “queria continuar a exercer o direito de viver no seu país” e na terra que ele amava, a sua cidade do Porto, onde já vivia antes da tropa… De resto, “não tinha ainda grande consciência cívica ou política”, como a maior dos jovens da sua geração… Aliás, nem grande nem pequena...

Enfim, fizera o melhor que sabia e podia para ficar bem classificado na recruta e na especialidade, em Lamego, o que não o impediu de ser mobilizado para a Guiné. Uma vez lá, preocupou-se apenas em não cometer erros e sobreviver, ele e os seus homens:

Djubi, gosse, gosse!

− Ó “Mister”, o que é que isso quer dizer ?

− É crioulo, toca a andar, míudo, que se faz tarde.

Juntara-se agora ao grupo da frente o amigo do "Mister",  o “Mandjor”, um que estivera no fim da guerra colonial, em Moçambique, nos paraquedistas.  Fora ferido, com alguma gravidade no planalto dos Macondes, e tivera direito a cruz de guerra. Era agora "sargento ajudante", mas no grupo chamavam-lhe o "Mandjor", talvez por ser alto e encorpado...

Tal como o “Mister”, gostava de “meter a sua colherada” sempre que se falava da “guerra de África”, coisa com que  alguns embirravam solenemente.

− Guerra, só a das ideias!− defendia alguém,  que se declarava antimilitarista e que, antes do 25 de Abril, vivera em Paris, como refratário, tendo ainda frequentado a Sorbonne, como ele fazia gala de dizer, para “épater le bourgeois”. (Muito provavelmente nunca lá pusera os pés, na Sorbonne, mas a malta, condescendente, comprava-lhe a história, tal como ele a vendia a seu bel prazer.)

Tendo beneficiado da amnistia aos exilados, refratários e desertores, regressaria a Portugal, no verão de 1974, matriculando-se  ainda nesse ano no curso de filosofia. 

Não escondia que andara em 74 e 75 "a sanear professores e patrões", ao mesmo tempo que se metera no negócio da edição de livros e panfletos.  Ao que parece, terá tido várias pequenas, pequeníssimas editoras, a maior parte de vão de escada, uma ou outra com algum sucesso editorial e comercial, mas, no cômputo geral, esbanjou bastante dinheiro, da herança dos avós maternos de Ponte de Lima. 

Fora também durante vinte anos professor de filosofia em colégios privados… Fazia agora traduções, “a recibo verde”, tendo andado portanto “de cavalo para burro”. Já não te recordas da alcunha que o grupo lhe pusera. Mas era um "cromo" da cidade... Talvez fosse essa a alcunha, "Cromo"...

− Profissional liberal da treta!... Como se pode ter liberdade (para pensar, escrever, publicar) num país de merda como este ?!...

E a "Natália" aproveitou a sua deixa para lançar a sua provocação:

−  Olhem, eu ando há anos para publicar o meu primeiro livro de poesia, lancei um “crowdfunding”… Faltam vocês, dou-vos depois um livro, com dedicatória, autografado, por cada notinha de cinco euros investida. Poesia-diamante de muitos quilates, o que é que vocês querem mais ?!

− Poesia-diamante ou dinamite ?!|...Não é coisa que se coma ou beba, a poesia, por isso não se vende… Somos um país de poetas, mas não é coisa que se exporte como a cortiça ou o vinho do Porto… − comentou, irónico, o “Mister” que, de resto, de poesia só conhecia uma paródia do soneto de Camões, “Alma minha, gentil, que te partiste”…

− Cá está, andamos sempre a queixar-nos do mesmo, e a usar as mesmas imagens estafadas de sempre, como o do Portugal pequenino, o retângulo de 89 mil quilómetros quadrados,  a ir ao fundo, como um barco de papel, juntamente com o “iceberg” da Ibéria… − interrompeu o “Manjor”.
 
Desta feita era o militar a marcar a sua presença, com a veemência e a indignação próprias de um patriota dos quatro costados, façanhudo e medalhado com cruz de guerra, face à expressão, pouco feliz, “país de merda”, usada pelo “Cromo” que ainda por cima fugira ao seus deveres para com a Pátria quando chegou a altura de a ir defender...

E continuou o “Mandjor”, que lidava mal com “fujões”, agora com a autoridade do historiador com canudo passado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto...  (Um dos seus trabalhos recentes era sobre o papel do “Aires de Ornelas nas campanhas de pacificação em Moçambique”, por sinal um distinto africanista, nascido como ele no Funchal):

− É cíclica a nossa crise de identidade, ou melhor, de confiança, desde que perdemos o Brasil em 1821 (e agora o resto do Império de Quinhentos). A crise agrava-se com a guerra civil de 1832-1834, opondo liberais e absolutistas. E, depois, com o humilhante “Ultimatum” britânico de 1890. E vamos perder, já não a identidade, mas a própria independência com o IV Reich que aí vem. E desta vez bem pode ser mesmo, de verdade, o Reich dos mil anos…

− Eh!, “Mandjor", nessa altura, até eu, com esta fraca figura,  pego nas forquilhas da Maria da Fonte para defender a Pátria amada! – vociferou a “Natália”…

− Não me lixem, que eu para esse peditório já dei! – ripostou o “Mister”.

E encetou, este último, uma conversa que deu pano para mangas, até ao fim do percurso da primeira parte. A sua parangona incidia agora sobre os portugueses que, desgraçadamente, gostavam de dizer mal uns dos outros e, pior ainda, do seu país. Somos pequenos, somos parvos (etimologicamente falando…), somos poucos, ia explicando ele.

− E os espanhóis acrescentam: ‘Portugueses pocos, pero locos’! – insinuou a “Natália”.

− Somos vizinhos uns dos outros, da mesma adeia, da mesma parvónia, próximos, parentes, filhos dos mesmos pais e mães… Dizer mal e usar chavões é próprio dos meios pequenos, tacanhos, em que todos se conhecem uns aos outros.

A conversa virou-se agora para o Facebook e os seus malefícios, um dos cavalos  de batalha do "Mister" nos últimos tempos, com o argumento de que as redes sociais reproduziam a estrutura e ampliavam a dimensão da aldeia, a aldeia virtual global. 

−  Levámos anos para chegar à Índia, hoje a Índia está ao alcance de um clique.

− Não é tudo mau, ó “Mister”, o telemóvel, o Facebook, o Skype, os blogues… Há novas formas de sociabilidade, é verdade. Posso alargar os meus contactos, ter “amigos famosos”, gente das revistas cor de rosa, enfim, viajar, ter o dom da ubiquidade como os deuses… E até fazer sexo virtual!

− Pedimos amizade uns aos outros (gosto da expressão “pedir amizade”…), sem nunca nos termos visto, nem cheirado, a não ser por fotografia nas redes sociais. Aceitamos amizade, recusamos amizade. Somos todos “amigos” do Facebook e temos lá as nossas vidas todas... escarrapachadas…

− Sim, não é só desvantagens, o problema é o uso compulsivo, é a adição, o vício... 


− Preocupa-me é os meus netos que são viciados nos videojogos… − lastimou-se o “Manjor”.
− E, daqui a mais uns anitos, na pronografia.

− Há, de facto, uma falsa sensação de partilha e de comunhão de afetos. Contabilizamos os “gosto”, os “like”, o número de "amigos"… − comentou o “Cromo”.

Mais enfático, exclamou o “Mister”:

− Vejo muita gente indignada porque foi aceite como “amigo” e, mais tarde, é rejeitada… O “amigo” do Facebook de ontem retirou-lhe a “amizade” no dia seguinte… É quase uma tragédia pessoal para alguns, uma tremenda perda!... Por esta ou por aquela razão, muitas vezes por mal-entendidos, questões de lana caprina, ou por razão nenhuma, ou só porque a página está cheia, sobrelotada… Ou porque o “amigo” fez um comentário desagradável, deselegante ou até insultuoso…

−Acho bem que não se pactue com o insulto, a calúnia, o impropério! Mas ninguém gosta de ser rejeitado, convenhamos! – opinou a  "Nucha". − E depois tens o fenómeno do “cyberbullying”, a perseguição, o assédio, moral e sexual, nas redes sociais,  é um novo tipo de violência, intolerável, para os nossos padrões de civilização e convívio.

E o “Mister” prosseguiu a sua palestra como se estivesse a falar para o “balneário” das suas equipas de futebol da III Divisão:

− Os portugueses dividem-se por dá cá esta palha, o futebol, a política, a religião, o cão, o gato, agora os touros… Ora os conflitos fazem parte da vida, as pessoas não sabem (ou não querem saber ?) lidar com os conflitos, as divergências ou diferenças que se manifestam no seio dos grupos…

−E blá, blá, blá!... Ora, se não fossem os conflitos, nunca haveria mudanças!... Eu cá gosto mais do inferno do que do céu, pelo menos acho que deve ser mais divertido… − interrompeu a ‘desbocada’ da “Natália”…

No meio disto tudo, tu tinhas que desempenhar o teu papel, que era 
mais de observador do que ator, afinal um intruso no grupo,   mesmo todos eles sabendo que estavas a fazer sobre eles um “case study”  para um projeto europeu... A sugestão e o convite vieram da “Nucha”,  uma rapariga de Braga, de 60 e tais anos de idade,   e que sempre se interessara pela promoção da saúde, tendo estado ligada à Rede Europeia das Escolas Saudáveis bem como à Rede Portuguesa das Cidades Saudáveis... Foi aí, de resto, que se haviam conhecido,  vocês os dois.

Enfim, podias dizer que tiveras a sorte de ganhar a confiança do grupo, ao ponto de te chamarem “Mouro” na brincadeira.    Sabias, por outro lado, que o grupo fazia alguns almoços, e seguramente "um no solstício do inverno, pelo Natal", e outro no "solstício do verão, antes das férias grandes”... E que se preparavam, em 2020, para "atacar" os caminhos de Santiago, numa verdadeira aposta de superação, individual e grupal: um caminho,  todos os anos até 2030 (para os..."mais otimistas").

No verão ainda gostavam de "ir a banhos", ou de fazer uns cruzeiros pelos sete mares… No fundo, eram circadianos, repetivos, e chatos quanto baste, como qualquer ser humano, em qualquer hemisfério…

A “Natália” costumava escrever uns versinhos para essas ocasiões em que, por sinal, nunca pudeste aparecer. Dizia-te a "Nucha" que eram versinhos do tipo “escárnio e maldizer”… Ela adorava pôr sempre um pouco de picante no que escrevia e dizia... No  último Natal, de 2019, ela fizera um soneto a “castigar”, surpreendentemente, os que só apareciam nesta data para “dar ao dente” e "manter as quotas em dia".  Mas também queria dar o mote para o novo projeto do grupo, os Caminhos de Santiago. 

No fundo, era um homenagem a este pequeno grupo  de gente gira do Norte que te surpreendia pela energia e alegria que punha todas as quintas-feiras nas suas "voltinhas" pelo Parque da Cidade... "por mor da saúde" (uma expressão  que tu achavas deliciosa, e  tão tipicamente nortenha).

A “Nucha” teve a gentileza de te mandar uma cópia do texto por email, com  autorização expressa para o usares no teu relatório   e, também, de algum modo, ficares com uma recordação pessoal dessas quintas feiras no Parque da Cidade 
 onde te chegaste a juntar a esses  caminheiros,  alguns dos quais infelizmente iriam arrumar de vez  as sapatilhas em 2020... 

Em Lisboa, soubeste pela "Nucha", da morte do "Mister",  logo no início da pandemia, o que chocou toda a gente, e deixou o grupo destroçado. Nem sequer ao funeral dele puderam ir. Era o mais novo, o mais ativo, o mais saudável, o mais entusiástico, o mais prestável...  Com a pandemia, o confinamento  e a morte do "Mister", a tertúlia acabou por desfazer-se...

− E, depois, sabes como é, a idade não perdoa!

Desfez-se o grupo, por falta de comparência,  motivação e liderança,  e com ele  o sonho de se fazer os caminhos de Santiago, a partir do início da década de 2020.  Ainda se chegaram a encontrar uns tantos, quando amainou a pandemia, mas nunca mais se reconstituiu o grupo.

− Não, não chegámos a Santiago de Compostela, mas também não morremos na praia.  Cumprimos a nossa missão!  − concluiu, resignada, a "Nucha".

E tu achaste que sim, que ficava bem esse soneto a rematar esta história, bonita e triste ao mesmo tempo,  destes  caminheiros nortenhos, com dez anos de caminhadas...   Infelizmente, o ano de 2020 foi mau para todos e tu acabaste também por perder o contacto deles, restou-te apenas a "Nucha". Eis o texto que ela te mandou, da autoria da "Natália" (e com a sua generosa permissão):


"Feliz Natal de 2019, caminheiras e caminheiros!

"Faltosos, refractários, desertores,
Não deixam de ser também caminheiros,
Sentem-se, pois, à mesa, meus senhores,
Que à mesa somos todos companheiros.


"Cá no Parque, não há livro de ponto,
Nem sequer prémios de assiduidade,
Quem quer e pode, vem, não tem desconto,
Que a quota é só a da amizade.

"Com as malas feitas p’ra viajar, 
Juntam-se aos residentes, p’lo Natal,
Mas com medo do mundo acabar.

"Esqueçamos, gente, os maus agouros,
Que o ano há de correr menos mal,
Valha-nos Santiago, o Mata-Mouros!
 

"Parque da Cidade, quinta feira, 19 de dezembro de 2019. Natália"...

© Luís Graça (2019). Todos os direitos reservados. 
Última revisão: 9 de outubro de 2024.

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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de maio de 2024 >  Guiné 61/74 - P25559: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (29): Então, adeus, senhora doutora, e até à... próstata!


domingo, 10 de março de 2024

Guiné 61/74 - P25260: Manuscrito(s) (Luís Graça) (246): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte V: 3. Da medicina mágico-religiosa do templo de Epidauro aos atuais médicos de família

 

Estátua de Asclépio


1. Comecei publicar no blogue, desde meados de março passado, uma série de textos, da minha autoria, sobre as ensinamentos que se podem tirar dos provérbios populares portugueses, nomeadamente sobre a saúde, a doença, os hospitais, os prestadores de cuidados de saúde (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, enfermeiros, terapeutas, etc.), mas também sobre a proteção e a promoção da saúde, incluindo a vida, o trabalho, o envelhecimento ativo e a "arte de bem morrer"...

São textos com cerca de 25 anos, que constavam da minha antiga página na Escola Nacional de Saúde Pública / Universidade NOVA de Lisboa (ENSP/NOVA). A págima foi recuperada pelo Arquivo.pt: Saúde e Trabalho - Luís Graça (página pessoal e profissional cuja criação remonta a 1999).

 Chega-se agora ao fim desta série (ou subsérie) "Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles?", de que se pubklicaram 11 postes. As referèncias biblioghráficas não foram revistas (por manifesta falta de tempo).

 
Luís Graça (2000)

Representações Sociais da Saúde, da Doença e dos Praticantes da Arte Médica.


3. Dos asclepíades aos médicos de família


Se quisermos ir às raízes do modelo salutogénico, teremos que ir muito provavelmente até à origem da própria cultura europeia ocidental, o mesmo é dizer, a uma das suas fontes, a mitologia grega e a cultura helénica.

Já no tempo da antiga Grécia, por volta do Século V a.C., havia santuários - como o grande templo de Epidauro - dedicados a Asclépio (o Esculápio dos romanos). Para os gregos, Asclépio, herói homérico, fruto lendário dos amores de Apolo com uma pobre mortal, tornara-se então o semideus da medicina (Grimal, 1992; Hacquard, 1996). O seu culto prolongar-se-ia até ao princípio da cristianização do império romano e às primeiras invasões dos bárbaros no Séc. IV (Charitonidou, 1978; Graça, 1996).

O seu poder de atracção mágico-religiosa de doentes e peregrinos foi enorme como também, ao que parece, a sua eficácia simbólica e terapêutica, a avaliar pela popularidade e permanência, ao longo de séculos, do culto de Asclépio na civilização helénica e greco-romana.

Estes e outros aspectos da história da medicina estão bem ilustrados nas pinturas de Veloso Salgado na Sala dos Actos da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa (Dória e Silva, 1999)

Sabemos que, do ponto de vista antropológico, o poder médico começa por ser um poder mágico-religioso, independentemente daquele que o exerce (curandeiro, feiticeiro, sacerdote, físico ou cirurgião), tanto nas sociedades primitivas como nas sociedades complexas. 

Esse poder baseia-se sobretudo na crença de que a cura da doença, embora operada por forças divinas, exige a intervenção de um medium dotado de um dom ou carisma. Não é por acaso que o termo terapeuta (do grego therapeutés) significava originalmente "o que cuida, servidor ou adorador de um deus".

Os templos de Asclépio (asclepeions), a avaliar pela reconstituição arqueológica do maior e mais importante de todos, o de Epidauro, eram constituídos basicamente por:

  • Uma nave principal (o templo propriamente dito ou cella, onde se erguia uma imponente estátua da divindade, em ouro e marfim: sentado sobre o trono, Asclépio segurava com uma mão o ceptro enquanto a outra pousava na cabeça da serpente, para os gregos uma animal sagrado e símbolo da própria arte de curar);
  • A fonte sagrada, em frente do templo, cujas águas serviam para os rituais de purificação, bem como os altares, também exteriores, onde os doentes faziam os seus sacrifícios, pedindo a intervenção do deus;
  • O tholos (uma construção circular, de desenho labiríntico, cuja função é ainda hoje enigmática: muito provavelmente, destinava-se a abrigar o túmulo do próprio Asclépio);
  • O abaton, ou seja, o local do templo onde os doentes deviam passar a noite, já que a cura dos seus males decorria durante o sono (incubatio) (Charitonidou, 1978; Lyons e Petrucelli, 1984).

O arqueólogo grego Charitonidou (1978. 13-15) descreve-nos com mais pormenor os rituais e o método terapêutico que então eram usados:

  • O santuário estava sob a jurisdição da cidade de Epidauro, cidade da Argólida, a nordeste do Peloponeso, a qual nomeava anualmente o dignitário supremo, o sacerdote de Asclépio, para o desempenho de funções simultaneamente religiosas e administrativas;
  • Ao sumo sacerdote competia, no essencial, fazer respeitar os preceitos do culto, tomar conta dos ex-voto, das oferendas e das esmolas, e administrar as finanças; 
  • Era ajudado por um corpo de sacerdotes (os asclepíades), cada um dos quais desempenhava funções específicas (o serviço do templo, a guarda dos arquivos sagrados, o transporte do fogo, etc.);
  • Os preceitos de culto, muito antigos, deviam ser fielmente observados pelos doentes que procuravam o templo para cura dos seus males, reais ou imaginários: por exemplo, às mulheres era proibido dar à luz no interior do templo, enquanto os moribundos deviam ser afastados para longe, curiosamente dois interditos que vemos encontrar mais tarde nos hospitais franceses do Antigo Regime;
  • Após os rituais das orações, das purificações e da oferta de sacrifícios (um boi ou um galo, para os mais ricos; frutas ou doces, para os mais pobres), o doente era sujeito a uma série de cerimónias que supostamente iriam pôr à prova a sua fé;
  • Ao que parece, a auto-sugestão era estimulada pelos sacerdotes que guiavam os doentes, de modo a criar as condições propícias ao acontecimento milagroso que se iria seguir durante o sono, com a aparição da própria divindade em pessoa; tudo isto se passava num ambiente de grande recolhimento, acentuado pelos hinos cantados, em coro, pelos peanistes;
  • Conduzido finalmente ao abaton (ou adyton, ou enkoimeterion, "o pórtico da incubação"), o doente devia lá passar a noite: “Nos aposentos sagrados, o doente, em estado de recolhimento, a imaginação febril, cheio de angústia pelo resultado da cura, entregava o corpo ao sono.  Os sacerdotes retiravam-se, deixando as salas na obscuridade. O deus paraceia em sonhos e operava o milagre. De manhã o doente acordava,  curado."(Charitonidou, 1978. 14, tr. de LG, Itálicos meus);
  • Como agradecimento pela cura milagrosa operada, os fiéis deviam presentear o deus com oferendas; havia-as de todo o tipo, para além do dinheiro: vasos de barro, utensílios em bronze, utensílios votivos, estelas, estatuetas, etc.

As estelas (ou inscrições votivas) que foram descobertas pelos arqueólogos constituem hoje uma fonte de informação preciosas sobre o Templo de Epidauro e o culto de Asclépio, os peregrinos que ali ocorriam, a sua origem social, a sua proveniência geográfica, os males de que sofriam e as curas que obtiveram: o paralítico, a criança muda, o homem de Tessália com manchas no rosto, a mulher de Messina que queria ter um filho e que, depois de dormir com a serpente, deu à luz duas crianças, etc.

Até agora não foi encontrado nenhum documento escrito que faça alusão à intervenção médica directa dos sacerdotes ao longo dos primeiros séculos de vida do templo. Eles continuavam a ser terapeutas, no sentido etimológico do termo, servidores do deus Asclépio que esse, sim, é que operava a cura (milagrosa) da doença durante o sono.

Mas, ao que parece, com o desenrolar do tempo, o santuário de Epidauro terá começado a sentir a concorrência dos médicos, na sequência do desenvolvimento da medicina grega, a partir de Hipócrates (460-377 a.C.). 

Terá havido então um processo de adaptação aos novos tempos, provavelmente a partir do Séc. II a.C., em seja, em pleno período helenístico. Para manter vivo o culto de Asclépio e conservar a sua clientela, os sacerdotes passaram a inteirar-se dos males de que sofriam os fiéis e ao mesmo tempo a dar-lhes alguns conselhos, antes de os encaminharem para o abaton:

 
"O paciente evocava em sonho os conselhos dos sacerdotes, considerando-os como prescrições do deus. Pela manhã relatava o seu sonho e os sacerdotes, valendo-se dos seus conhecimentos médicos, interpretavaam os conselhos do deus quanto ao tratamento a seguir enquantoiam pedindo ao paciente que permanecesse  no santuário” (Charitonidou, 1978: 15. tr. de LG.).

Tudo indica, a começar pelos achados arqueológicos que se encontram hoje expostos no Museu de Epidauro (incluindo alguns instrumentos ligados à arte médico-cirúrgica), que a partir de certa altura os sacerdotes do templo passaram, também eles, a prestar directamente alguns cuidados de saúde.

Há uma estela, embora já datada do Século II d.C., cujo conteúdo é bem revelador das mudanças que entretanto se tinham operado no templo de Epidauro (e provavelmente dos demais templos de Asclépio):

  • Este já não é apenas um lugar sagrado, um local de fé e de peregrinação religiosa;
  • É também um estabelecimento sanitário;
  • A par de um centro de lazer, cada vez mais mundano, com os seus banhos de águas quentes e frias, as suas pousadas, os seus ginásios, as suas corridas e os seus jogos, para além do seu famoso teatro, construído no Século IV a.C. e considerado o melhor, o mais belo e o mais fascinante da Antiguidade.

Vale a pena citar essa inscrição votiva que nos conta a história de um tal Apellas que "sofria de hipocondria e de terríveis indigestões" (sic), dois males de que se curou seguramente depois de uma agradável estadia nas instalações hoteleiras do santuário e dos sábios conselhos médicos dos asclepíades sugerindo-lhe que mudasse de vida, de acordo com os ensinamentos da medicina hipocrática.

Esses conselhos são espantosamente tão actuais que bem poderiam ter sido dados pelo nosso médico de família:

  • Nada de stresse, nada de te irritares;
  • Cuidado com as mudanças de temperatura;
  • Faz uma alimentação saudável, variada e equilibrada (come frutas, cereais, lacticínios, legumes, etc.);
  • Come e bebe, mas sempre com muita moderação;
  • Procura ser autónomo, dispensando os cuidados de terceiros;
  • Não te esqueças de dar o teu passeio diário e de fazer exercício físico regular;
  • E, por favor, corta-me com esse tabaquinho!...

Tratava-se, em suma, de um verdadeiro programa de promoção de estilos de vida saudáveis. De facto, está lá tudo (excepto... o tabaco, que só será conhecido no Velho Mundo a partir da descoberta da América, em 1492):

 "Enquanto eu me dirigia para o Santuário, ao chegar a Egina, apareceu-me o deus Asclépio e ordenou-me que não me irritasse em demasia. Uma vez chegado ao Templo, mandou-me que passasse a cobrir a cabeça quando chovesse, a comer pão e queijo, aipo e alface, que tomasse tomar banho sem ajuda de nenhum escravo, que fizesse exercício no ginásio, que bebebesse  sumo de cidra, que desse uns passeios a pé... Enfim, o deus mandou-me gravar tudo isto numa estela em pedra. Deixei o santuário em boa saúde e reconhecido a Asclépio" (
cit. por Charitonidou, 1978: 15, tr. de LG).

 A invasão da Grécia pelos Godos levou à devastação, em 395, do santuário, que depois seria definitivamente encerrado por ordem do imperador bizantino Teodósio II (em 426), em nome do proselitismo cristão e da luta contra o paganismo. Mas Asclépio, o deus-médico, o seu culto e os seus templos (a começar pelo de Epidauro, o mais belo e o mais célebre de todos) continuam, ainda hoje, a exercer um grande fascínio sobre nós, sendo uma referência obrigatória para a compreensão da história da medicina, das profissões, das instituições, das representações e das práticas de saúde no Ocidente.

Há que fazer, em todo o caso, uma distinção entre as práticas médicas laicas e as práticas médicas religiosas na Grécia Antiga. É justamente com a medicina racional hipocrática que se fará a ruptura em relação à medicina mágico-religiosa, associada ao culto de Asclépio.

Em todo caso, o termo asclepíades (originalmente, um sacerdote do asclepeion) vai popularizar-se em Roma como sinónimo de médico, como apelido de médicos e até como nome próprio. 

Antes de Galeno, é Asclepíades (muito provavelmente um pseudónimo) o primeiro médico grego a conhecer a glória e o sucesso em Roma, onde chega em 91 a. C. (Sournia, 1995, p. 58). Recorde-se que os romanos consideravam indigno de um cidadão a prática da arte de curar, razão por que esta estava na mãos dos escravos (a cirurgia) ou dos gregos (a medicina).

Em termos escultóricos, a figura mitológica de Ascéplio era simbolizada por um homem jovem, só ou em família, de pé, apoiado num cajado no qual está enroscada a serpente. Tinha, pelo menos, dois filhos, que também eram médicos, e duas filhas, Higia e Panaceia.

Para os gregos, estas duas figuras personificavam a saúde e a terapêutica, respectivamente, ou sejam, duas artes bem distintas: a de curar a doença (Panaceia) e a de proteger e promover a saúde (Higia).
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Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série > 



20 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24328: Manuscrito(s) (Luís Graça) (225): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IVA: Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras

4 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24281: Manuscrito(s) (Luís Graça) (223): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte III C: Contestação da Iatrogénese, da Medicina Defensiva e do Encarniçamento Terapêutico

3 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24189: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles? - Parte IIIB: Quando o pobre come frango, um dos dois está doente

28 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24173: Manuscrito(s) (Luís Graça) (220): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIIA: Hospital, o triunfo da hospitalidade e da caridade... mas "o peixe e o hóspede ao fim de três dias fedem"

23 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24164: Manuscrito(s) (Luís Graça) (218): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIB: "Com malvas e água fria faz-se um boticário num dia"

20 de março de 2023 Guiné 61/74 - P24155: Manuscrito(s) (Luís Graça) (217): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte IIA: 'Deus Cura os Doentes e o Médico Recebe o Dinheiro"

17 de março de 2023 > Guiné 61/74 - P24148: Manuscrito(s) (Luís Graça) (216): Provérbios populares sobre a doença, a medicina, a saúde, a vida e a morte: o que podemos aprender com eles ? - Parte I: "Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dá tudo"

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