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terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24066: Notas de leitura (1556): Em "A Minha Guerra a Petróleo", por António José Pereira da Costa; Chiado Editora, 2019 - "Cerca das 281330AGO71", uma memória de guerra, uma apreciação de um facto (Carlos Vinhal)


Guiné > Região do Oio > Carta de Farim (1954) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Mansabá ea lgumas das tabancas (Mansomine, Manhau, Mantida, etc.) desactivadas no tempo da CART 2732 dentro da sua zona de acção, que a Leste, terminava na bolanha de Manhau (Vd. poste P12150, de Ernesto Duarte)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)


N
o meu primeiro comentário no Poste 24063, fiz referência ao infortúnio que atingiu o então Cap Faria Monteiro, comandante da CART 3417, quando pisou uma mina antipessoal ali para os lados de Manhau.

No seu livro "A Minha Guerra a Petróleo", o nosso camarada António José Pereira da Costa, Cor Art Ref, faz referência este incidente nas páginas 159 a 167, porque o Cap Monteiro era, e é, seu amigo. Porque a narrativa está muito pormenorizada e fiel ao acontecimento, pelo menos nas horas difíceis passadas em Mansabá e em que eu e os meus camaradas tivemos a nossa modesta intervenção, não resisti a transcrever aqui no Blogue o capítulo na íntegra. Só espero que o nosso esforço tenha minorado a extensão dos ferimentos sofridos pelo Cap Monteiro.

A propósito, o livro "A Minha Guerra a Petróleo" ainda pode ser adquirido, tendo um custo actual de 14,00€, através da WOOK, por exemplo.
São 187 páginas de leitura interessante complementada com algumas fotos.

CV
********************

Cerca das 281330AGO71[2]

Este texto não é só mais uma memória de guerra, uma apreciação de um facto que veio ter comigo. Será a maneira como observei algo que sucedeu a outra pessoa e a memória que disso guardei, influenciada por situações que vivi antes e depois. Julgo que este texto pode ser considerado uma homenagem.

Saindo de Mansabá em direcção a nascente encontrávamos três pequenas localidades abandonadas: Mansomine, Manhau e Mantida. No tempo da paz eram servidas pela estrada que seguia para Banjara - esta já a mais de 18 km de distância - e que, na altura em que por ali andei, também já fora abandonada. Não pertencia ao nosso sector. Era apenas algo de que se falava...

Nos patrulhamentos que realizávamos naquela direcção, marcou-me especialmente a visão do quartel de Manhau, abandonado e destruído. Segundo apurei, fora um destacamento da Companhia de Mansabá, ocupado quinzenalmente por um grupo de combate e um pelotão de milícia com umas condições de vida muito más e para onde era necessário levar tudo, até a água, numa viatura-tanque. Qual seria a vantagem táctica de uma posição com aquelas características? Como tantos outros "quartéis da malta", acabara abandonado e destruído "à granada de mão", por volta de 1966.

Naquela altura, ainda se reconheciam as duas fiadas de arame farpado, agora ferruegnto e quebrado aqui e além, vagamente esticado entre as últimas varas que o tinham suportado. O cavalo-de-frisa ainda se mantinha de pé, mas inútil não chegava a vedar o acesso ao interior da área quadrada, que deveria ter tido cerca de trinta a quarenta metros de lado. No interior, nenhuma construção ou mesmo restos do que pudesse ter sido uma, eram identificáveis com clareza, mas no exterior, o sistema de iluminação continuava bem representado por alguns postes: uns já caídos, outros resistindo às intempéries numa posição quase vertical. Cada poste não era mais do que um tronco de palmeira cravado no solo, ao qual havia sido adossado pela geratriz um "abat-jour" cilíndrico deveras original.

Era constituído por um bidon vazio que tinha sofrido umas pequenas, digamos, adaptações. Uma das tampas - a que ficaria para baixo - fora removida, mas a outra apenas havia sido separada da superfície lateral do cilindro em pouco mais de metade do perímetro. Depois de aberta a geratriz oposta à que fora pregada ao poste, um petromax ficava pendente da face inferior da tampa, no interior do cilindro. Julgo que assim se pretendia preservar o candeeiro dos ventos e das chuvadas, mantendo o perímetro do aquartelamento iluminado. Sempre que um dos Petromax fraquejasse, o "electricista de noite" tinha uma tarefa a cumprir. Considero este abat-jour mais uma prova do "desenrascanço nacional" e do engenho (que não arte) dos Portugueses.

Todavia, o sistema fornecia pouca iluminação para que os defensores pudessem observar a área circundante da posição. Em compensação, o In dispunha de uma visão privilegiada sobre ela, a algumas centenas de metros de distância. Agora, olhar para este "quartel" era contemplar uma espécie de peça de arqueologia militar, que entristecia se procurássemos saber o que levava a que o destacamento fosse construído, sabe-se lá com que esforço, e depois abandonado. Depois deste, era a tabanca de Mantida, onde os militares que guarneciam Manhauiriam buscar laranjas de boa qualidade e correndo os inerentes riscos. Era uma lenda, mas para que tenha surgido é necessário que, pelo menos uma vez, lá tenham ido...

Devo ter ido a Manhau e Mantida duas ou três vezes, mas para além da visão das ruínas do quartel, tenho a imagem de uns dois metros de estrada onde a erva não tinha crescido, passado mais de um ano. Tinha sido ali... segundo se dizia e eu acredito, pois - soube dpois - que, além da mina que vitimara o Monteiro, havia mais três que o furriel de minas e armadilhas tinha detonado.

Eu estava em Bissau com a Bateria Ati-aérea, quando o Joaquim Evaristo me deu a notícia. O Monteiro[4] tinha pisado uma mina anti-pessoal. Há notícias que não podem ser dadas de outra maneira: de modo brutal e com uma frase curta e, como todas do mesmo tipo, de significado imediatamente dedutível. Não sei porquê, mas não fui logo ao Hospital. O Joaquim foi e, pouco tempo depois, só medisse:
- Está sem um pé.

Logo que me foi possível fui ao Hospital e localizei-o. Estava num quarto, deitado na cama com uma perna esticada e a outra erguida e apoiada em algo que se parecia com uma almofada...

Fiquei sem saber o que dizer, mas o silêncio de poucos segundos tornou-se impossível de suportar. Nestes momentos, sabemos que é necessário dizer ou fazer qualquer coisa, mas não temos a ideia do que possa ser. Se calhar, concentramo-nos em nós e no que sentimos, quando deveríamos considerar que o ferido ou o doente grave que ali está é que deverá estar antes de tudo.

Tartamudeei qualquer coisa, nem sei o quê. Depois tentei saber como as coisas tinham sucedido. A estrada abandonada ainda conservava as rodeiras, as marcas dos pneus das viaturas que por ali tinham passado. E foi ao movimentar-se pela área entre rodeiras que encontrou a mina.

Por outras experiências que tive, sei que a surpresa inicial deu lugar ao espanto e à pergunta feita a si mesmo:

- O que sucedeu?

Depois é uma mistura de dor sentida e uma vontade de sair dali, de tudo aquilo que não seja verdade e de um turbilão de perguntas que acabam por se redizir a uma certeza: "Estou gravemente ferido. Isto também me aconteceu a mim".

- A mim? Porquê a mim?

Os outros têm muito que fazer. A nós, nada mais resta do que aguentar a dor e sentir revolta contra a falta de sorte e a irreversibilidade da situação

Dez dias depoi de ter completado 24 anos!...

À chegada dos reforços vindos de Mansabá, os enfermeiros da sua Companhia já tinham garrotado a perna e metido o soro, procedimentos habituais nestas situações. Agora eram sete quilómetros em coluna, de regresso ao quartel, num percurso em que se queria evitar solavancos, sempre excessivos para quem sofre. Porém, nesse dia chovia e, devido à pouca visibilidade, os helicópteros não voavam. Podia ser que as condições melhorassem, mas há dias em que nem os astros ajudam. Cerca das cinco da tarde confirmou-se que o héli não viria e não houve outra solução que não fosse a evacuação, em coluna auto. A espera inglória na enfermaria foi angustiante. Uma tortura que nada justificava. 

Por fim, o pessoal de enfermagem "depositou" a maca numa das viaturas e a coluna partiu em marcha moderada. Seria uma viagem até Mansoa e daí, em ambulância, até ao hospital. Todavia a viagem de Mansoa a Bissau "não estava prevista" e a coluna por ser de quase cem quilómetros, até Bissau, debaixo de chuva intensa. Já tinham passado bastantes horas e o sofrimento físico e psicológico somavam-se, numa aritmética de revolta sem fim, que só terá tido uma paragem pelas seis e meia da tarde à entrada do Hospital Militar de Bissau. Tinham decorrido cinco horas.

Ouvi a descrição do Monteiro e, não podendo ou não sabendo, dizer mais, respondi-lhe que agora "era necessário reagir". No segundo imediato apercebi-me da agressão que tinha cometido. Há coisas que, mesmo que se pensem, não se dizem e o Monteiro fez-mo sentir respondendo-me.
- Reagir? Reagir, reages tu que tens duas pernas. Agora eu só tenho uma...

Fiquei sem palavras. Uns instantes de silêncio depois, despedi-me e deixei o quarto. Além do monte de gaze que marcava agora o fim da perna fiquei impressionado com a cor das gengivas que o ferido apresentava. Brancas. Disseram-me que era do soro que lhe fora ministrado, durante muito tempo. Por mim, penso que era um indício de anemia pela perda de sangue.

Poucos dias depois, voltei com o major Gaspar, nosso amigo e meu segundo-comandante. Ainda estou para saber o que o terá levado a aparecer, naquele dia, com as fitas das condecorações e com o brasão do Regimento de Artilharia n.º 3 (de Évora) sua unidade habitual. Era à tarde e os feridos e doentes tinham sido postos na varanda do hospital, talvez numa tentativa de lhes melhorar a disposição, se tal fosse possível...

A conversa foi curta e eu8 procurei ficar calado. O nosso amigo, talvez por ser mais velho, parecia ter maior capacidade de diálogo, mas, ao fim de alguns minutos, o silêncio acabou por surgir. O Monteiro disse, de repente e num tom que parecia subtil, mas que comportava uma crítica muito amarga e contundente:

- O meu major está muito bonito, com as condecorações!

Com o sol já baixo, ficou-me a imagem do major Gaspar com os olhos marejados, a dizer, como se se justificass:

- Calhou. Isto não é nada. Já estavam postas nesta camisa quando a vesti hoje.

Não arranjo melhor expressão para descrever a nossa saída da varanda: "Fugimos"

E chegou a véspera da evacuação para Lisboa.

De novo, o major e eu fomos ao hospital. O jantar já fora distribuído há muito e os corredores estavam desertos e escuros. Eu tinha para mim que seríamos recebidos com frieza, se não mesmo com agressividade. Porém, ao entrarmos no quarto, fomos saudados com alegria e boa disposição. Era a saída da Guiné, o retorno à "Metrópole" e à família. Era o fugir dali, um lugar onde não pertencia, para um sítio onde poderia reencontrar os seus, aqueles que havia deixado pouco mais de dois meses antes.

Fiquei surpreendido por falarmos com certo à-vontade e eu, já não me lembro a propósito de quê, disse qualquer coisa como:

- Pois é, a vida está má!

O Monteiro tratou-me pela alcunha e comentou:

- Boa piada PK! Boa piada! Olha, que até o meu coto se ri!... - e, agarrado à perna, abanava-a com as mãos.

Foi então que concluí que uns produtos daqueles que tiram as dores e dão boa disposição, talvez euforia, deveriam ter andado por ali, misturados na sopa ou mesmo em todo o resto do jantar.

O Gaspar, por seu turno, aproximou a orelha do coto entrapadíssimo e, pedindo-lhe que ligasse o transmissor, comentou a qualidade da música que estaria a ouvir.

Mais uma vez fiquei sem saber o que dizer. Não me lembro se saí por minha iniciativa, por não poder suportar o surrealismo daquela cena, ou se fui levado pelo final da visita, decretado pelo meu segundo-comandante, para meu alívio, confesso.

A partir daqui e ao longo da minha vida, fui recordando duas situações que desenterrei na memória e que envolviam pernas, as pernas do Monteiro. Uma ainda na Academia e outra já quando éramos oficiais.

Nunca tive grande jeito para um qualquer desporto em especial. Contudo, um dia descobri o basquetebol. Achei-o curioso, mas cedo concluí que deve ser dos jogos de bola mais difíceis de praticar. Ou seria "o árbitro" que me perseguia? Certo é que, sempre que eu tocava na bola fazia falta, "por passos". E não havia maneira de aprender a técnica. E aquela regra é tão apertada, convenhamos!...

Apesar disto, não desisti e resolvi aprender com o Monteiro. E uma das coisas que ele me ensinou foi que, ao receber a bola com ambas as mãos, eu deveria escolher um "pé-eixo" que, a partir daí não poderia mexer. Era como se estivesse soldado ao chão. Pelo menos, foi o que entendi. Acabei por desistir da aprendizagem, mas mantive o gosto pela modalidade, graças às indicações do meu improvisado mestre.

Recordei também a cena na Sala de Oficiais da Escola Prática de Artilharia para onde o nosso curso de tenentes tinha sido enviado para o Curso de Promoção a Capitão, que, depois, não valeu. Mas isso já são questões laterais. Uma manhã, no rádio da sala passava "Les Champs-Elysées", na voz de Joe Dassin. Bela melodia e letra curiosa e bem construída Andávamos pelos nossos vinte e dois a vinte e cinco anos e fôramos musicalmente educados na música europeia. Tínhamos cinco anos de francês, no ensino secundário, e numa música como aquela era fácil encontrar encanto. Imediatamente constituimos uma libha de seis ou sete bailadores com as mãos apoiadas no ombros do que nos ficava ao lado. Depois, em sincronismo, atirávamos alternadamente a perna direita para a esquerda e a perna esquerda para a direita, ao rítmo da música, uma gajice própria dos jovens que éramos, apesar de já todos termos um ano de África, em Angola, em Moçambique ou na Guiné para onde partíramos três e só dois haviam voltado. Naquela idade, ainda tínhamos uma certa garridice que permitia enfrentar o futuro com certo ânimo e confiança, mesmo tendo já adquirido uma certa (má) experiência da vida e sabendo que os tempos que se avizinhavam tinham tudo para ser de provação. A dada altura alguém comentou:
- Olhem só para isto! Os futuros comandantes das companhias de Artilharia que irão para o Ultramar!...

O grupo desfez-se, de imediato. Caíramos em nós. No fundo, éramos oficiais respeitáveis e conscientes dos nossos deveres e não podíamos permitir-nos a brincadeiras como aquela...

Depois da evacuação para Lisboa, tive notícias dispersas do Monteiro, até nos encontrarmos na AM na celebração dos trinta anos do nosso curso. Nessa altura, disse-me que era professor. "Professor", mas com P Grande. Por mim pensei:

- Ainda bem! Nem outra coisa era de esperar de um Homem da minha geração!

Mem-Martins, 10 de Agosto de 2018

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Notas do autor:

[2) - Esta é a maneira de referir nas comunicações militares ou em documentos escritos, algo que sucedeu cerca das 13 horas e 30 minutos do dia 28 de Agosto de 1971. Fica assim constituído o chamado "grupo data-hora".

[3] - Naquele tempo, nas unidades tipo Regimento da Metrópole, havia um "electricista de dia" nomeado por escala.

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20136: Agenda cultural (700): Convite para a sessão de autógrafos do livro "A Minha Guerra a Petróleo", da autoria de António José Pereira da Costa, dia 13 de Setembro de 2019, pelas 14h00, na Feira do Livro do Porto patente nos Jardins do Palácio de Cristal (António José Pereira da Costa)

C O N V I T E

SESSÃO DE AUTÓGRAFOS

"A MINHA GUERRA A PETRÓLEO"

ANTÓNIO JOSÉ PEREIRA DA COSTA

FEIRA DO LIVRO DO PORTO

JARDINS DO PALÁCIO DE CRISTAL

DIA 13 DE SETEMBRO ÀS 14 HORAS




1. Mensagem do nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª da CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), datada de 7 de Setembro de 2019:

Boa tarde 
Informo que no próximo dia 13 (sexta-feira) pelas 14 horas (pavilhões 72 e 73) estarei nos Jardins do Palácio de Cristal, no Porto, a promover "A Minha Guerra a Petróleo". 

Espero grande mobilização entre os ex-combatentes e não só, de modo a que o acontecimento se torne verdadeiramente memorável. 

Comprem o meu livro! É bom e barato. 
António Costa
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Nota do editor:

Último poste da série de 5 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20125: Agenda cultural (699): Convite para a sessão de autógrafos do livro Memórias Boas da Minha Guerra - Volume III, da autoria de José Ferreira, dia 11 de Setembro de 2019, pelas 18h00, na Feira do Livro do Porto patente nos Jardins do Palácio de Cristal (José Ferreira da Silva)

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19794: (In)citações (131): A dureza da nossa infância e a guerra (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto do BCAÇ 3872)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", com data de 15 de Maio de 2019:


A dureza da nossa infância e a guerra

No passado dia 17 fui à Associação 25 de Abril assistir ao lançamento de "A Minha Guerra a Petróleo" da autoria do José António Pereira da Costa. O apresentador da obra foi o Coronel Carlos Matos Gomes, ex-Comando e escritor de créditos mais que provados.

Excelente orador, deu ali uma lição histórica de literatura portuguesa, com especial incidência no que se refere ao colonial e pós colonial. Mas ao vê-lo lembrei-me de antigos camaradas de escola, que foram comandos também e com principal relevo para dois que estiveram na Guiné mais ao menos no período que eu também lá estive.

O Aníbal Gavião (Laredo de alcunha) foi meu colega na escola em Alcobaça na 1.ª classe e mais tarde na 4.ª quando regressei à vila. O Augusto foi meu colega na escola da Vestiaria entre o final da minha 1.ª classe e a 3.ª e o que aqui escrevo, acaba por se focar na história das crianças daquele tempo, com especial ênfase para as fracas condições económicas, que a grande maioria tinha que ultrapassar com escolas a quilómetros, descalços e com almoço que não passava de um pedaço de pão duro, para render, e um cubo de toucinho assado frio, que lhes servia de pequeno almoço, almoço e lanche, especialmente dos que moravam nas aldeias.

Em 1957 entrei para a escola primária de Alcobaça.
Era uma sala cheia de crianças de bata branca em frente da professora. A secretária ligeiramente para o lado direito, deixava livre a visão para o quadro preto, a cruz e as fotografias emolduradas de António Salazar e Craveiro Lopes que era presidente da República por essa altura. Reza a História, que este não era dos predilectos do regime e assim, ao contrário dos que se eternizavam no lugar, foi despachado tão depressa quanto possível.


A professora era e foi, senhora temida até ao fim da sua carreira. Conhecida por mais que uma geração e que estava castigada a dar só a primeira classe por via de algumas “carícias” feitas com mais afinco na malta pequena.

Naquele tempo a sala de aula era um sítio austero pouco convidativo, onde imperava a máxima da reguada e a cana da índia, para quem não sabia ou se esquecia de trazer os trabalhos de casa feitos, quem sujasse a bata, quem não tivesse algum material, etc.

Éramos obrigados a sair e regressar a casa com a bata vestida impecavelmente limpa, facto que me custou alguns safanões dados pela a minha mãe, pois por vezes tinha que ma lavar quando eu chegava a casa e enxugá-la sabe Deus como, para que eu me apresentasse sem mácula às nove horas do dia seguinte na escola.
A falta dela era imperdoável.

Na verdade, frequentaram comigo a escola crianças de todos os estratos sociais e a bata tornava-nos à primeira vista iguais. As diferenças eram assim mais subtis para quem não soubesse, que haveria crianças com várias batas e umas, a maioria como eu, que só tínhamos uma.
Mas juntando o feitio da professora, com o terror que a minha mãe tinha de vivermos numas águas furtadas na travessa da Cadeia, bem por cima do hoje afamado António Padeiro, que já existia naquele tempo sem tanto “pedigree” mas com a qualidade que o tempo não esmoreceu, por essas razões acabamos por ir viver para a aldeia da Vestiaria, situada a pouco mais de 3 quilómetros, mais precisamente na rua que ia para lavadouro e mais tarde, para a Rua do Loureiro. Dali até ao cruzamento entre os Casais e quem ia para o Pinhal Fanheiro ficava a escola. Palmilhávamos mais ao menos uns 1500 a 2000 metros para cada lado quer chovesse quer fizesse Sol.

A lei era taxativa e vigorava uma sobre a proibição de se andar descalço, mas quando cheguei à nova escola eu parecia um extraterrestre, pois batas e sapatos era coisa que não se via por aquelas bandas. Os garotos descalços traziam umas sacolas com uma ardósia e livro de leitura, mais uma sebenta para os trabalhos casa e assim, é fácil adivinhar o espanto que a minha mala reluzente, com caixa de lápis cadernos e livros encadernados, tudo arrumadinho, causou.
A disciplina na escola também coisa de assombrar, pois conviviam todas as classes da primeira à quarta e não eram poucos os alunos que eram maiores que a professora. A D. Emília, jovem professora de Aveiro para ali desterrada, a viver num quarto alugado, quando ia para lhes bater, eles simplesmente seguravam-lhe os braços “o quê que você quer mulher ?”, quando não saltavam simplesmente pela janela e estava o assunto arrumado.

Não raramente eram as mães que os levavam de volta à escola por medo de represálias, uma vez que a escola era obrigatória e se não fosse isso, teriam muito que lhes dar a fazer no campo ou à volta do gado, na vez de andarem a alimentar a boa vida do rapaz a passear os livros.
As mães de alguns alunos quando chamadas à escola por algo que o filho tivesse feito, usavam da sua autoridade aplicando-a à pancada. Condenação e castigo, que eles levavam logo ali com um sarrafo seco de videira, agarrados por um braço e saltando ao ritmo das bordoadas.
- “Sra professora, você arreie-lhe com força, arreie-lhe” - e iam-se embora a maldizer a sorte, o rapaz, mais a escola, que assim ele nunca mais ia trabalhar.
No fundo era a grande chatice pois sem a 4.ª classe ninguém lhe podia dar emprego, se não ficava assim mesmo, pois para a enxada não era preciso saber o abecedário nem geometria.

Comigo andaram o Zé Loureço e o Coelho, que assentaram praça no CICA4 no mesmo dia que eu. O Mário Farelo, o “Escalracho”, os irmãos Manel e Augusto, o Mendes que me ia furando um olho com uma cana acabada de arrancar da vinha ao lado da escola, quando fez dela uma lança. O Manel e o Augusto, estes dois irmãos mais o “Escalracho”, eram por assim dizer responsáveis por todas as malandrices que se faziam e mesmo quando não eram eles, que roubavam a fruta ou roubavam os ovos da capoeira, era certo e sabido que eram os suspeitos e culpados costume.

A vida da escola era assim colorida e assim fui passado de classe à medida que me iam confundindo no aspecto geral, perdi o brilho e o brio, deixando a bata em casa, com a mala toda esfolada ao estilo de quem te viu e quem te vê.

Voltei para Alcobaça a tempo de fazer a quarta classe. Os meus colegas mais velhos foram trabalhar para os fornos da Crisal ou em oficinas na vila, outros por lá ficaram no amanho das terras. Perdi o contacto com a esmagadora maioria deles e se não fora a tropa nunca mais veria outros tantos. O Manuel trabalhou numa marcenaria lá para os lados da Fonte Nova e o irmão mais novo Augusto, encontrei-me com ele no avião que nos trouxe de férias à Metrópole. Era dos Comandos o que não me admirou dado o espírito voluntarioso e belicoso que lhe conheci. Ostentava orgulhosamente os símbolos da 35.ª ou 38.ª, possivelmente esteve envolvido nas operações em Copá e Canquelifá ou mesmo Guidage.

Voltei a viajar com ele no regresso das férias e bebemos uns whiskies para nos prepararmos para o impacto do arame farpado do aeroporto de Bissau e aí chegados, abrasados pelo o impacto do calor ele foi para os Comandos e eu para os Adidos de má memória.
Não tenho ideia de o ter voltado a ver mas duma coisa não tenho dúvida, é que foi naquela vida dura que se forjaram os nossos jovens, o que lhes permitiu aguentar a dureza daquela guerra durante tantos anos.

Mesa de Honra com: Coronel Carlos Matos Gomes, Coronel Vasco Lourenço e o autor de "A Minha Guerra a Petróleo", Coronel António José Pereira da Costa

Na mesa de honra, no lançamento do livro do Coronel António José Pereira da Costa, estavam três soldados que participaram no 25 de Abril, data que como sabemos, embora sujeita aos detratores de todas as latitudes, continua a ser o primeiro dia de liberdade do resto das nossas vidas.
Um muito obrigado por isso.

Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19767: (In)citações (130): As Comemorações de Abril, A Memória e a História (José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679)

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19752: Notas de leitura (1175): A Minha Guerra a Petróleo, por António José Pereira da Costa, Chiado Books, 2019 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Maio de 2019:

Queridos amigos,

O que se escreve no blogue tem por natureza uma carga fragmentária, mesmo que se imprima é matéria avulsa, nem sempre congruente. António José Pereira da Costa, aquele coronel de artilharia que regularmente lança umas cargas de obus dentro da nossa multidão, fez bem em ordenar as suas memórias de Cacine e Cacoca e do Xime e Mansabá, com prelúdio e fecho da sua inteira lavra, onde tece incomodidades, como o nosso sofrimento quando regressávamos das nossas aventuras de um certo TO daquela PU ou, finalmente, questiona o que se andou por ali a fazer e se poderíamos ter feito algo para que as coisas não tivessem acontecido como aconteceram.
Precisa-se, e muito, desta sinceridade e desapego fanático, na análise das coisas.

Um abraço do
Mário


Por lá chafurdei na lama das lalas, debati-me no turbilhão dos tornados…

Beja Santos

O nosso ativista confrade António José Pereira da Costa pôs o tacho ao lume, acalorou aquele cadinho de memórias que atravessaram as suas duas comissões pela Guiné, o blogue teve acesso a esses rastos de calor. Agora temos livro à disposição da totalidade dos interessados: “A Minha Guerra a Petróleo”, por António José Pereira da Costa, Chiado Books, fevereiro de 2019. Recordo-me de ao ter escrito “Adeus, até ao meu regresso”, na Âncora Editora, 2012, ter pespegado na contracapa algo como isto:  

“Até ao lavar dos cestos, até estar vivo o último militar que combateu na Guiné, há que contar com as surpresas da vindima. Devemos estar preparados para surpresas dessa gente que, décadas atrás, caminhou na farroba de lala, entre cipós e tabás, patinhando no tarrafo, que guardou na memória das emboscadas em florestas secas densas e que resistiu à fúria das flagelações, aos gritos dos feridos e aos lamentos de quem perdeu, mesmo ali ao pé, os seus camaradas. Este género literário está muito longe de ter fechado para obras. Porque a fantasia muitas vezes disfarçou-se da cruenta realidade, jamais esquecida”.

E se intitulo este texto, cujo objeto de análise é o livro do confrade Pereira da Costa, julgo-o merecedor do parágrafo mais lindo que conheço de toda a literatura da guerra da Guiné, extraído do livro “O Capitão Nemo e Eu”, por Álvaro Guerra, data de 1973:

“Por lá chafurdei na lama das lalas, debati-me no turbilhão dos tornados, derreti-me na fornalha de um sol quase invisível, dissolvi-me na chuva vertical, e amei como um danado aquela terra que me injetou a febre, me secou, me expulsou a tiro. Mas nunca o preço do amor é excessivo, nem a presença da morte o pode aniquilar”.

De memórias se trata de alguém que palmilhou a Guiné no período de 1968 a 1969 e de 1971 a 1973. Diz ser contra as descrições romanceadas, visa uma clara certidão da verdade sobre a sua guerra a petróleo, há aqui uma carga simbólica dessa máquina barulhenta, de acendimento complicado, a exigir um certo treino, se houvesse avaria, chamava-se o funileiro ou picheleiro, portanto uma máquina eivada de defeitos e virtudes, um pouco como a vida militar.

Discreteia sobre os ex-combatentes e recorda algo que continua muito maltratado que era o nosso choque à chegada, qualquer um de nós tem uma história para contar de um retorno à vida civil, o querer comunicar a nossa experiência a alguém que, mesmo compadecido com a carga de provações que descrevíamos, recebia aqueles conteúdos como provenientes de uma outra galáxia, o que sabiam da chamada guerra do Ultramar era que havia ações de policiamento, às vezes uns falecimentos dados em combate, e os residentes próximos do Hospital Militar Principal ou do anexo sito na Rua Artilharia 1 encontravam-se com deficientes nas proximidades, jovens sem braços ou pernas, rostos estranhos, azulados, às vezes com os olhos vazos.

Estamos em 1968, o jovem alferes de artilharia vai para Cacoca e Cacine, fala em Sangonhá, estamos perto da fronteira com a República da Guiné, Cacoca e Sangonhá eram consideradas ao tempo do Comandante-Chefe Arnaldo Schulz como posições-chave, intimidatórias, faziam parte de um sistema defensivo e vigilante envolvendo Cacine e Cameconde, Sangonhá e Cacoca, Gadamael e Ganturé, Guileje, Mejo e Gandembel e Ponte do Balana, até Buba. Spínola reduziu o número de quartéis, a população foi realojada, num desses atos migratórios, em dia de atmosfera húmida a prever chuva tropical, acontece o seguinte, como o autor relata:

“Senti, então, um toque no braço. Quando me virei para ver quem era, ela disse:
- Meimuna pariu um fio qui tin dez dia. Quer pá nossarfere arranja mim lugar sintada.
Transportava nos braços, com grande cuidado, um enrolamento de mantas que deveria conter qualquer coisa de precioso. Eu não vi o que fosse, mesmo quando mo emprestou, por alguns segundos. Acompanhei-a ao Unimog onde iria e ajudei-a a subir para o lugar ao lado do condutor. Encostei o embrulho ao peito e ela apoiou-se com dificuldade naquela espécie de degrau circular que a roda tinha, depois no próprio pneu, usando o meu ombro como corrimão. Sentou-se no banco de lona e eu passei-lhe o pacote que deixou calor no meu peito. Ali perto, um grupo de homens – dos grandes – assistiu à cena e eu, ainda hoje, rendo homenagem àquela mulher que fez valer os seus direitos de mãe.”

É uma escrita subtil, enxuta de farroncas, por vezes mordaz, a relação com o humano, o fascínio pela expressão cultural local dominam estas memórias, basta atender à seleção de imagens, a história da catraia em estado de subnutrição, o que anota sobre caçadores e guias, o relacionamento com os civis. Passamos agora para 1968, o Capitão Pereira da Costa muda de azimute, vemo-lo agora no Xime, começa por nos descrever os seus guias picadores, o que diz de Mancaman Biai, posso certificá-lo, acompanhou-me em duas operações:

“Era alto, bastante magro e vestia sempre à moda muçulmana tradicional. Falava baixo, parecia medir as palavras ou digerir as perguntas que lhe fizessem ou as deixas do interlocutor. Só depois de ter estudado bem o que lhe fora dito, respondia. Dir-se-ia que não queria ser apanhado em falso ou em contradições”.

 Posso corroborar. A meio da manhã de 7 de março de 1970, mandei chamar Mancaman e transmiti-lhe que precisava dos seus serviços a partir da meia-noite. Não mencionei objetivo, não falei nem em Madina Colhido, Ponta Varela, Baio ou Buruntoni, disse-lhe simplesmente que precisava dos seus preciosos conhecimentos, conversaríamos de madrugada, altura em que lhe disse que iríamos atravessar o Poidon pela bolanha, ele que escolhesse o melhor itinerário. O único comentário que fez é que nunca fizera uma operação pela bolanha, não sabia bem o caminho, havia pouca lua, daria o seu melhor. E deu mesmo. Cinco horas depois entrávamos nos depósitos de arroz do Poidon debaixo de uma chuva de granadas de morteiro 81, um fogo ensurdecedor que inibiu qualquer resposta daquele grupo. Incendiadas as casas e o arroz, voltei a pedir a Mancaman que viéssemos diretamente para o Xime, foi lesto, competente, jamais o esqueci. Em 2010, quando por ali passei, a caminho da Ponta do Inglês, pude confirmar o que o autor aqui nos diz, estava vivo, foi um reencontro muito feliz.

Confirmo o que o autor nos descreve sobre a messe de oficiais do quartel do Xime e tudo o mais. Dá-nos um retrato patusco de vários oficiais, é severo na apreciação de uma decisão do oficial de operações do batalhão que queria ir à viva força ao Enxalé, tudo acabou num desastre nessa obstinação que contrariava a natureza, sempre tocante com a adversidade, é sóbrio na saudação de despedida a um militar:

“Ao fim da tarde do dia seguinte, apareceu o corpo do soldado José Maria da Silva e Sousa a boiar no rio, junto ao cais do Xime. Éramos oito a tirá-lo de lá e eu volto aqui a render a minha homenagem à generosidade do alferes Gomes quando quis extrair do corpo a água que impediu que o Sousa fosse sepultado dentro de um caixão. Desceu à terra, dois dias depois, com as honras militares a que tinha direito, no cemitério de Bambadinca, e só voltou à sua terra em 2009”.

Vou deter-me aqui, não quero tirar o prazer da festa a ninguém, o nosso capitão vai partir para Mansabá, tem muito mais memórias para contar, aqui recebeu jornalistas que vinham acompanhados pelo Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, acena-nos com longo adeus sobre o que andámos a fazer por África, não há para ali nem azedume naqueles últimos parágrafos: 

“Fomos os homens que estavam à hora errada à esquina errada da História. Nadámos num troço de águas revoltas do rio do tempo. Éramos uma espécie de bombeiros que chegavam tarde a um incêndio numa floresta, batida por vento forte. Podem crer que, desde a primeira hora, a guerra estava perdida.”
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19739: Notas de leitura (1174): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (4) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Guiné 61/74 - P18811: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (22): A Mina

1. Em mensagem de 25 de Junho de 2018, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª da CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos mais um acontecimento da sua Guerra a Petróleo onde não faltam jornalistas estrangeiros de visita a Mansabá e o rebentamento de uma mina, que danificou uma Berliet, lá para os lados do Bironque.


Itinerário Mansabá-Farim, com o Bironque sensivelmente a meio caminho
© Infografia Luís Graça & Camaradas da Guiné


A Minha Guerra a Petróleo (22)

A Mina

Talvez por estar ligada a Bissau por estrada asfaltada, Mansabá tornou-se um destino para o turismo bélico-jornalístico, aí por volta de Dezembro de 1972, Janeiro de 1973. Um dia, recebi uma mensagem que me informava de que a CArt 3567 seria visitada por um jornalista e professor da Universidade de Harvard. Fiquei naturalmente surpreendido, mas não preparei recepção especial. Pensei que era mais positivo que o visitante visse um dia de actividade normal. Que viria um americano fazer à Guiné, quando as coisas já estavam a correr tão mal no Vietname, de tal sorte que nos Estados Unidos, a contestação à guerra subia diariamente de tom? Um dia, próximo da hora de almoço, uma coluna vinda de Mansoa trouxe o tal professor, acompanhado pelo Capitão Otelo Saraiva de Carvalho. Era um rapaz na casa dos trinta anos, jovial e ávido por saber. Fez-me perguntas, às quais fui respondendo, procurando dar-lhe uma ideia tão real quanto possível da situação. Pelo meu tempo de permanência no “TO daquela PU” não me apetecia, sequer, tentar apresentar-lhe uma situação que não correspondesse à realidade. Todavia, logo no início da conversa, impôs-me uma condição: ao almoço não queria que lhe dessem nem frango, nem bife. Acabara de me inutilizar as duas ementas festivas mais comuns nas “unidades do mato”.

Não me recordo do que era o almoço do dia, mas dispus-me a servi-lo “à la carte”, desde que o nosso depósito géneros pudesse satisfazer-lhe o capricho. Não enjeitou a sopa nem as fatias de casqueiro, mas optou por uma lata de sardinhas em azeite com batatas cozidas, que comeu com uma satisfação muito evidente. Tinha uma certa razão, já que, em todos os sítios onde tinha ido, o que lhe davam para comer era frango assado ou bife com batatas fritas e este último, muitas vezes, parecia extraído da cabeça da rês… Ainda lhe expliquei que aquela iguaria não fazia muito o nosso estilo, em virtude do número de vezes que já a tínhamos experimentado, mas ele respondeu-me no seu melhor português que “esta pessoa prefere sardinhas enlatadas em azeite”.

Após a refeição, passeámos no quartel, trocámos ideias e o visitante regressou a Bissau. Pareceu-me que ia bem impressionado.

Uma ou duas semanas depois – a 9 de Janeiro de 1973 – nova mensagem de teor idêntico, mas agora era uma jornalista norueguesa. A avaliar pela idade do jornalista anterior, começaram as conjecturas acerca da visitante seguinte. Para já era uma nórdica, o que, na nossa escala de conhecimento da Europa, significaria alguém alta, loura, de olhos azuis e com uma certa desenvoltura física… Mas, neste caso, não seria bem assim.

A coluna de Mansoa trouxe-a, num jeep civil, acompanhada pelo meu amigo Otelo e aí aconteceu a surpresa. Era uma velhota magrinha – Inga(?) de seu nome – vestida com uma túnica leve, de cor clara, umas calças escuras um pouco justas, e calçada com umas sabrinas de pano. Vinha visivelmente cansada. Desta vez, não me foram postas questões relativas à ementa do nosso restaurante-snack, mas quando me pediu que lhe mostrasse igrejas e hospitais fiquei bastante confuso. A igreja era improvisada, sempre que o delegado do Senhor visitava a unidade, num antigo refeitório do batalhão que anteriormente tinha guarnecido a localidade, e a enfermaria, se bem que boa e muito funcional, não era propriamente um hospital. Médico, só em Mansoa.

A minha mulher e as esposas de dois furriéis estavam connosco, clandestinamente, o que a jornalista achou muito interessante1. Porém, não conseguiu estabelecer contacto com nenhuma, pois nenhuma falava inglês.

Não sei qual era a posição do governo norueguês em relação à guerra. Hoje, pela experiência que a vida me deu, creio que o povo do país teria uma muito vaga ideia do que ali se passava e os dirigentes políticos mantinham uma posição de conhecimento, mas muito contido. Nunca ouvi falar de qualquer atitude oficial de apoio ou contestação à política portuguesa por parte da Noruega. A Suécia, sabíamos nós que participava na guerra, apoiando farisaicamente o PAIGC, fornecendo-lhe material escolar e sanitário. Mas, embora próximos os países são diferentes e não é lícito misturá-los. Nós, os portugueses também estamos perto dos espanhóis, mas somos povos bem diferentes, vivendo em países diferentes…

A coluna tinha chegado um pouco atrasada e convívio luso-norueguês esteve animado e prolongou-se. Estando previsto que a viagem continuaria para Farim, a partida da coluna para Norte atrasou-se, por consequência. Além disso, a CART não tinha no seu parque um jeep operacional onde se pudesse transportar a visitante até àquela localidade, onde apanharia o avião civil para Bissau. Procurando evitar transportá-la numa viatura militar de difícil acesso para um activo elemento da terceira idade, pedi emprestado ao administrador do posto, um jeep que tinha uma particularidade: estava mal de travões.

Enfim, partimos para Farim, indo a ilustre visitante no jipe, em segundo lugar na coluna. Subitamente, já perto do K3 (Saliquinhedim, de acordo com o mapa), surgiu um pequeno avião civil que, depois de uma volta à nossa vertical, aterrou na estrada no sentido da marcha da coluna. Não seria uma manobra fácil, mas o Comandante Pombo2 realizou-a, provavelmente porque entre o Bironque e o Rio Farim, a estrada asfaltada era recta e desenvolvia-se em terreno plano e praticamente sem vegetação numa área considerável.

Assim, “devido ao adiantado da hora” os dois viajantes VIP foram recolhidos e o avião partiu para Bissau. Que fazer agora? Mandei a coluna prosseguir até à margem do rio. O batalhão ali estacionado estava para ser rendido. Daí que tivesse aproveitado a jangada onde vinha o respectivo comandante para receber a jornalista e com uma viatura apenas cruzei o rio. Ali, os meus “ferrugentos”3 arranjaram, por simples oferta, peças avulsas para reparação das nossas viaturas. Um exemplo de camaradagem entre unidades. Não nos demorámos muito em Farim. Voltámos a cruzar o rio e iniciámos a marcha para Mansabá.

Tudo corria bem e seguíamos a uma velocidade regular. Passámos a tabanca velha do Bironque e um pouco depois… uma explosão. Eu, que seguia com o furriel mecânico (o Licínio), transportando na segunda viatura, o jeep sem travões, vi uma densa nuvem da terra e fumo negro junto da roda dianteira da Berliet que seguia à frente. Todo o pessoal que seguia nela foi projectado, excepto o condutor – o Valongueiro – que permaneceu agarrado ao volante.

Todos deverão ter passado pela estranha sensação de surpresa que o alferes Silva descreveu como “uma percepção imediata de que já se estava no Além, devido à formação de poeira, fumo e escuridão”. Depois diz que “não deixou de apalpar o corpo e ter uma sensação estranha e assim pensar que desta vida já fui”; e continua dizendo que “com o desanuviar da situação de escuridão, ouviu alguns a vociferar "dignas palavras" do nosso vocabulário vernáculo, começou a aperceber-se de que ainda não tinha sido desta que "estava no Além" e mais adiante ainda confessa que “à parte, apenas como desabafo, sei que praguejei contra a jornalista norueguesa um sem fim de palavras vernáculas minhotas, que dispenso de mencionar”. Uma descrição verdadeiramente rica do efeito de surpresa, quando nos sentimos envolvidos num conjunto de sensações dadas por todos os sentidos, mas mergulhados na escuridão, o que nos reduz muitíssimo a nossa capacidade de relação com o meio que nos cerca.

Não consegui imobilizar logo o jeep, mas acabei por aproveitar a berma para esse efeito e, por sorte não atropelei ninguém. O Sá Lopes, furriel “ranger” berrava para os lados do Morés contra os elementos In responsáveis pela situação. Chamava-lhes cobardes e convidava-os a virem até ao local onde estávamos parados. Graças a Deus foi ignorado nos seus apelos e apupos e pudemos tentar resolver o problema. Havia que mudar o pneu da Berliet, mas a poli devia estar deformada pelo que a roda não rolava. Para evitar que o segundo pneu também rebentasse colocou-se-lhe debaixo, uma das grelhas laterais do motor da Berliet e assim fomos rebocando a viatura. De vez que quando, molhava-se a chapa com água ou óleo para baixar e temperatura e facilitar o deslizar da roda.

Mas havia feridos. O que mais me preocupou foi o soldado Pessoa, que tinha um fiozinho de sangue que lhe saía do ouvido. Suspeitei de traumatismo craniano. Porém, o mais grave veio a ser o cabo Trindade4, que foi evacuado para Bissau, no dia seguinte. Empilhei os seis feridos no jeep e segui para o quartel, deixando o alferes Silva a conduzir a coluna, procurando chegar depressa e com a viatura atingida, o menos danificada que fosse possível. À chegada, a minha mulher recebeu-me e, segundo me disse depois, eu tinha terra até no intervalo dos dentes. Era natural, não podendo travar entrei na nuvem de poeira negra que se levantou e, o Licínio e eu ficámos um tanto enfarruscados. Ela nunca mais se esqueceu de que quando lhe peguei num braço, deixei nele uma marca de fuligem.

 Berliet que accionou a mina anticarro na zona do Bironque

No aquartelamento, o alvoroço foi grande. Embora a explosão da mina se tivesse ouvido no quartel, foi o Valdrez, o operador de rádio de serviço, quem recebeu comunicação do sucedido e deu o alarme. A minha mulher que estava a escrever, sentada à minha secretária, foi dos primeiros a saber, já que o gabinete era próximo do posto de rádio. O furriel enfermeiro Carvalho começou a preparar a enfermaria para receber os feridos, mesmo saber quantos eram e o seu grau de gravidade. Estando um grupo de combate da companhia empenhado na segurança à construção da estrada para Bambadinca, o alferes Serras procurou organizar uma coluna de socorro com base no único grupo de combate disponível, o seu, e com as duas viaturas quase incapazes de que dispúnhamos e que só usávamos nos serviços do quartel, que teria de ficar entregue ao desfalcado pelotão de milícia. O Carvalho observou os feridos e, especialmente para o Trindade, era aconselhável a evacuação para Mansoa, onde o médico diria de sua justiça. No dia seguinte, uma nova coluna partiu com os feridos. Todos voltaram, excepto o Trindade, mas alguns vinham muito em baixo de forma. O alferes Silva e o Bateira andaram de bengala durante, pelo menos uma semana, e ainda assim andavam, quando fomos visitados por um brigadeiro do CTIG que vinha estudar da possibilidade de ser instalado em Mansabá um centro de instrução para uma companhia de comandos. Assim veio suceder, tendo sido preparada uma companhia de recompletamentos para o Batalhão de Comandos Africanos da Guiné.

Nunca tive qualquer resultado destas visitas dos tais jornalistas de estrangeiros, nem me foi dito para que publicações trabalhavam. Era um esforço que era necessário fazer para tentar – como se tal fosse possível – para modificar a opinião pública mundial…

Notas:
[1] - Um dia, antes das mulheres dos furriéis Costa e Ramos chegarem, um dos dois médicos do batalhão confidenciou à minha mulher que, na unidade, só havia uma pessoa onde poderia exercer a sua especialidade. O Dr. Pedro Carneiro era ginecologista.
[2] - O Comandante Pombo – José Luís Pombo Rodrigues (1934 – 2017) – era um piloto dos TAGP. Fora piloto da Força Aérea e havia prestado serviço na Guiné, no início da guerra.
[3] - Designação comum a mecânicos e condutores das companhias.
[4] - Manuel de Almeida Cunha Trindade
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17722: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (21): Passados que foram quase 44 anos sobre data do reconhecimento da independência da Guiné por parte de Portugal (10SET74), ocorre-me perguntar: E afinal para quê?

sábado, 2 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17722: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (21): Passados que foram quase 44 anos sobre data do reconhecimento da independência da Guiné por parte de Portugal (10SET74), ocorre-me perguntar: E afinal para quê?

Guiné-Bissau - 2008 - Cemitério Militar de Bissau - Talhão Central
Foto: © Nuno Rubim (2008) . Direitos reservados.


1. Em mensagem de 28 de Agosto de 2017, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª da CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos esta reflexão onde põe em causa o sacrifício de uma geração que combateu em África, numa guerra sem sentido em território desconhecido para a esmagadora maioria dos militares para além-mar mobilizados. A mesma interrogação se põe para os camaradas guineenses que durante 11 anos lutaram a nosso lado.


A Minha Guerra Petróleo (21)

E Afinal para Quê?

Passados que foram quase 44 anos sobre data do reconhecimento da independência da Guiné por parte de Portugal (10SET74), facto histórico ocorrido após onze anos de guerra, conduzida nas condições mais duras de quantas ocorreram nos três TO onde a guerrilha contra as autoridades portuguesas eclodiu e depois de ter lido alguns dos últimos posts no blog que me atingiram mais profundamente, ocorre-me perguntar:
E afinal para quê tanto esforço? Para que serviu tanto sacrifício? Valeu a pena o nosso empenhamento, (sempre que existiu) não apenas na área operacional, mas também nas outras, (e tantas foram)? Esta questão do “empenhamento” no desempenho das tarefas diárias levanta a questão fundamental da nossa intervenção em África: será que a considerávamos necessária, justificada, útil e vantajosa até? Ou pelo contrário, aceitávamo-la como uma problema – uma espécie de obstáculo a transpor – a que não podíamos fugir?

Tenho para mim e declaro já que, cada vez mais, concluo que tanto esforço e sacrifício foi totalmente inútil. Mas isso é a minha maneira de pensar… Aqui deixo algumas considerações sobre o tema. A guerra na Guiné durou 11 anos e traduziu-se essencialmente num somatório do sacrifício – físico e psíquico – de períodos de dois anos imposto aos jovens portugueses, numa altura da vida que deveria ser, como dizia Gomes Freire de Andrade, a mais bela parte da vida e durante o qual os rapazes do nosso tempo se preparavam para a vida que se iria seguir. Para além dos que foram e voltaram “bem”, temos a considerar o sacrifício dos mortos, a dor dos feridos e de todos os outros que voltaram depois de terem sido vítimas de outros tipos de sofrimento, como a prisão, por exemplo.

Hoje, coleccionamos as consequências do “conflito”, descrevemo-las em livros, em blogs e em evocações anuais ou convívios em que se recorda o sucedido. Chamam-nos os “Velhotes da Tropa”. Nesta altura já não será importante contabilizar as tais consequências, pois isso é do campo da estatística, uma ciência fria e que normalmente não acrescenta nada de novo, depois de um tratamento matemático da realidade. Os estudiosos futuros que o façam! Além disso, hoje não se pode fazer nada para melhorar o que quer que seja…

Venho apenas perguntar para que serviu tudo aquilo que passámos e cujas marcas hoje ostentamos, veladamente uns, outros exibindo-as com orgulho (provas de dever cumprido, afirmação de coragem ou de virilidade) ou, na pior das situações, por impossibilidade de as esconder.

Vou falar dos portugueses metropolitanos. Mas poderia estender a pergunta, incluindo os guineenses, que lutaram – esses de modo ininterrupto, nas suas terras e junto das suas famílias – do lado das autoridades portuguesas. E, por uma questão de justiça, ainda poderia estender as mesmas perguntas, relativamente aos guineenses (guerrilheiros do PAIGC e civis que os acompanhavam, na esperança de que, depois daquele sacrifício, a vida lhes sorriria). Se podemos apresentar um número dos que lutaram à ordem do governo, sediado em Lisboa, em relação a estes últimos não encontramos arquivos fiáveis que nos permitam estimar quantos tenham sido e, muito menos, quais desses morreram ou ficaram com as sequelas dos tipos que indiquei a cima.

Os “Metropolitanos”, arregimentados num processo contínuo e sempre crescente, podem ter começado por aceitar a ida para a guerra como um imperativo patriótico e moral. Com efeito, a História e a Geografia de Portugal que estudávamos, todos pelos mesmos manuais, e examinados, da mesma forma e com os mesmos critérios, inculcavam-nos no espírito, uma espécie de crença (não diria fé) que fazia com que tivéssemos daquelas terras um conhecimento menos que livresco mas, mesmo assim, se nos perguntassem, considerávamos que elas eram “os nossos territórios de além-mar”. O número dos que lá tinham qualquer coisa de seu era mínimo e, em boa verdade, o sentimento de posse em relação àquelas terras era algo que ninguém conseguia explicar o que fosse. Estou convencido de que este estado de espírito tinha que ver com o momento da vida em que o conhecimento nos era inculcado. Era uma ideia que íamos interiorizando e não podíamos pôr em causa – por motivos óbvios – e que íamos arrumando no nosso espírito, esperando nunca ter de a fazer vir à memória e, muito menos, que isso viesse influenciar a nossa maneira de viver. Quantos de nós tinham ido alguma vez à Guiné? E, contudo, se a Pátria precisasse, iríamos e fomos…

A censura que pesava sobre as publicações antigas acerca da Guiné impedia que tivéssemos conhecimento do que por ali se passou, ao longo de 500 anos e a que não tínhamos acesso nos tais manuais. Era uma censura estranha, já que não “cortava” textos ou impedia a publicação dos livros mas, recorrendo a uma espécie de silêncio nunca assumido, impedia que a mensagem daquelas publicações se difundisse e assim tivéssemos uma ideia concreta do que íamos encontrar e, principalmente, porquê. Hoje, quando lemos os livros e as revistas antigas, só temos que somar dois e dois, ao conectar o que encontrámos nos locais onde vivemos com as descrições que ali encontramos. As publicações de propaganda (emitidas pelo SNI e outras entidades oficiais) eram algo que tinha uma difusão muito restrita, talvez propositadamente, e não despertavam interesse. Eram coisas que “o Estado” publicava, mais por obrigação, e que acabavam por não ter utilidade na difusão da realidade.

E a “realidade” veio. Uma vez desembarcados, só poderemos falar de choque e espanto. Então a Guiné era aquilo? Era por aquilo que vínhamos arriscar-nos? Aquela terra também era Portugal? Porquê, se a diferença era tão grande? Qual era a ligação que sentíamos ter àquelas populações? Ou, reciprocamente, qual era a ligação que as populações tinham connosco? Sem possibilidade de retorno, fizemos apelo à velha capacidade de adaptação dos portugueses a qualquer meio onde se encontrem, chegando ao ponto de tentar falar a língua que era comum aos seus grupos étnicos de que ainda conhecíamos(?) vagamente os nomes. No contacto diário, nunca procurámos ensinar-lhes a nossa. Por mim, creio que recusar aprendê-la era uma das suas formas de resistir à ocupação, que só episodicamente assumiu a forma de integração. É por isso que ainda conhecemos algumas palavras em crioulo ou mesmo em fula, balanta ou outra, consoante as regiões por onde andámos. Mas o mais importante foi que, à chegada, caiu por terra o mito de “dilatação da fé”, uma vez que o número de católicos que encontrámos era ínfimo, se comparado que o dos islamitas ou animistas.

Inevitavelmente, no íntimo de cada um de nós, começaram, então, a ser postas em causa as razões para estarmos ali, naquela hora e naquelas condições. Era uma interrogação para qual cada vez menos tínhamos resposta. É inútil dizer que as perguntas deste teor, sem resposta, eram cada vez mais e as contradições se avolumavam a cada dia de comissão. Sabemos todos que a convicção – mesmo forte – das primeiras mobilizações rapidamente se perdeu e, a cada “fornada” de periquitos, era possível notar a falta de mentalização, de interesse e vontade, relativamente aos velhos que saíam com a sensação de que as coisas não tinham melhorado. Mas, no fundo, o que é que interessava se tinham melhorado? O “dever cumprido” era afinal ter estado sem fugir, ter sofrido e, com maior ou menor êxito ter suportado as investidas do inimigo ou ter obtido êxitos nas nossas acções ofensivas. Mas, em consciência, a maior parte de nós não saberia responder cabalmente se o sector que passámos aos periquitos estava melhor do que tínhamos recebido da velhice. Não falo obviamente, na melhoria das condições de vida, nos aquartelamentos, porque essas vinham do nosso ânimo, capacidade e apoio logístico conseguido.

Numa análise das outras áreas da nossa actuação, vou excluir a famigerada APsic que, antes de tudo, tinha de ser barata, o que a condenava a nem conseguir sequer seduzir os incautos, tal era o seu grau de demagogia. Mas havia outras áreas em que a nossa acção revestia aspectos gratificantes. A melhoria das condições de vida nas tabancas através (por exemplo) da abertura de poços ou construção dos chamados “reordenamentos”, onde era suposto que a população viveria melhor, pelo menos a coberto dos incêndios. No entanto, os “reords” eram também uma consequência da nossa táctica, o que faz supor que nunca teriam acontecido se a guerra não tivesse surgido. Temos também o caso do apoio sanitário que conseguíamos prestar às populações e que, algumas vezes, até estendíamos aos inimigos. E as melhorias no sistema viário, intensificadas durante o governo do General Spínola e obtidas à custa de grande esforço em todas as regiões. Já no que respeita à educação, a nossa actuação foi mais discreta e os resultados bem modestos. Nunca detectei uma grande avidez da população no acesso à instrução e cultura e, devido ao atraso em que se encontrava, seria de esperar que o desenvolvimento da educação fosse quase exigência. Recuso que se trate de características endémicas do povo. Admito antes que se tratasse de uma atitude de desconfiança, ou até de recusa, que radica no passado, talvez longínquo, e que visaria evitar a descaracterização. Seria possível a montagem de uma estrutura de escolas primárias semelhante à que existia na Metrópole? Não creio que fosse, por demasiado cara. Como sabem a “guerra” tinha que ser barata, pois o orçamento não dava para tudo. E professores/as será que os havia?

De qualquer modo, temos que concordar que é uma ideia um tanto ou quanto absurda ter de fazer uma guerra para obter melhorias sociais ou “concedê-las” em consequência da guerra. “Na Guerra Preparando a Paz”, a divisa de um dos batalhões a que pertenci é, no mínimo, um absurdo. A Paz faz-se e pratica-se. Se há guerra é porque há condições para que surja. Preparar a Paz fazendo a guerra, como muitas vezes se diz é como ficar feliz por ter adoecido e saber que o que é bom é ter saúde. Surrealismo puro!

Mas por mais que fizéssemos, há uma coisa, que ninguém pode negar: nunca ocorreu uma mudança de campo massiva da população sob controlo do inimigo, nem uma colaboração espontânea e generalizada por parte da população que estava sob nosso controlo. E a população era o alvo daquela guerra. Era o que tínhamos de conquistar de modo a negar ao inimigo a exploração das contradições que tinham levado à situação que se vivia. É dado adquirido que, na Guerra, há sempre uma parte da população com um comportamento amorfo em relação aos beligerantes, mas as mudanças operadas deveriam ter levado a uma maior aceitação do domínio das autoridades. E tal não sucedeu, por mais que nos esforçássemos.

Não entendíamos porquê mas, já naquele tempo, tínhamos a ideia de que o inimigo estaria muito mobilizado e motivado. Não tínhamos dúvidas de que o aparelho administrativo do inimigo não tinha capacidade para fazer melhor do que a nossa Administração. Também não entendíamos bem o que levava a população que apoiava o inimigo a manter-se junto dele. Sabemos agora que a deserção, de combatentes ou não combatentes, era severamente punida e que o controlo dos acompanhantes era muito apertado. Era o “partido” dos anos sessenta/setenta, nos restos do estalinismo. As sucessivas independências da África iam-no confirmando, de vez em quando. Era só ler os jornais e revistas. Claro que os nacionais poderiam ser acusados de facciosismo, mas os estrangeiros – a que tínhamos acesso – e que normalmente eram a base dos noticiários que víamos, ouvíamos e líamos, poderiam ser aceites como bastante credíveis. Em geral, a saída das autoridades coloniais, precipitava os novos países para as situações de neocolonialismo que não beneficiavam senão o partido (único) que ficava no poder. E se assim fosse em relação à Guiné, que é que poderíamos fazer para que ali fosse diferente?

Passaram 54 anos. Duas gerações! Estamos quase todos na casa dos setenta e é tempo de olhar para trás, de modo lógico, imparcial, sem ideias preconcebidas e com a coragem necessária para enfrentarmos o que passou. É bom que o façamos, antes que os doutores comecem a fazer teses, frias e sem alma, mas que encerrarão o processo. E o que eles escreverem o que está certo. Enumerei, sinteticamente o que fizemos e os resultados (pobres) que tivemos. Descrevi o modo – vicioso e atabalhoado, mas férreo – como fomos, desde a meninice, preparados para participar activamente no que sucedia. O trauma da chegada e as dificuldades em justificarmos numa auto-análise o que fazíamos e o desacerto entre nós e as populações locais que eram também portugueses, mereceu-me destaque. Acho que a convicção, uma vez adquirida, não deve ser posta em causa e, se perdida, perdeu-se tudo o resto. Resumidamente, descrevi a nossa actuação na área operacional e indiquei os sacrifícios e os traumas de toda a espécie que carregamos e que muitas vezes não são compreendidos e muito menos aceites na sociedade dos nossos dias. Por fim mostrei as consequências de um fenómeno que começou sem que nos apercebêssemos e terminou, como seria de esperar.

Como conclusão final interrogo se poderíamos ter feito algo (ou deveríamos ter feito mais) para que as coisas não sucedessem assim e tenho a certeza de que nada havia a fazer. No meu primeiro, ou segundo post, digo que éramos um grupo de bombeiros que chegavam tarde a um incêndio florestal que tinha todas as condições para arder e não tenho hoje qualquer dúvida de que tudo foi em vão. Se calhar, com um pouco de senso, poderíamos ter chegado a uma solução melhor e com menos sacrifícios dos metropolitanos e dos guineenses amigos ou inimigos. Mas, a História não se rebobina…

28 de Agosto de 2017
AJPC
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16891: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (20): Estudo sobre o bi-grupo de Mário Mendes

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16891: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (20): Estudo sobre o bi-grupo de Mário Mendes


1. Em mensagem de hoje, 28 de Dezembro de 2016, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª da CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos a sua opinião a propósito do tema tratado no Poste 16865 - (D)o outro lado do combate - Mário Mendes... da autoria do Jorge Araújo, para integrar a sua série: "A Minha Guerra a Petróleo".



A Minha Guerra Petróleo (20)

Estudo sobre bi-grupo de Mário Mendes

Olá Camaradas

Parece-me de realçar vários aspectos, partindo da mesma hipótese "académica" que o Araújo aceitou como verdadeira[1]

Tenho para mim, sem hipótese de confirmação, que o PAIGC, tinha relativa dificuldade no recompletamento das suas unidades. Assim, acho importante considerar os seguintes aspectos:
A baixíssima preparação literária. Nesse caso poderemos perguntar donde vinha a sua ânsia e convicção para combater? Aqui reside o cerne da questão e a prova de que havia razões que atingiam as camadas muito pobres da população. Creio que o racismo estaria presente. No fundo os portugueses (brancos) eram os detentores do poder que eles combatiam. A difícil Incorporação mais forte entre os nascidos entre 1941 e 1947 e muito reduzida entre os mais velhos (nascidos antes de 1941) e baixa entre os mais novos (nascidos depois de 1947). Acho natural. A "maturidade" (idade, constituição de família, conformismo) afastou-os mais velhos da luta. Os mais jovens, além de não terem o Partido por perto, já tinham "visto e sentido" a guerra e não estavam dispostos aos sacrifícios que a guerrilha impunha e que eles bem conheciam, por terem ouvido falar nas conversas de tabanca e imaginavam. A não incorporação de nascidos em 1948 não tem significado, por ser meramente casual.

A idade de adesão ao PAIGC segue mais ou menos uma tendência parecida. Os miúdos (13 e 14 anos) aderiram pouco. Eram miúdos e não teriam interesse para a "causa". A subida começa aos 15/16 anos e entra em declínio nos mais velhos (22 anos) que não se sentiam "com vida para aquilo".

Todas as outras considerações do Araújo são pertinentes. Por mim atrever-me-ia a considerar este bi-grupo como uma unidade-tipo semelhante a tantas outras e, sendo assim, poderemos questionar o que sucederia com a pouca "incorporação" que o PAIGC estava a ter. Poderia raptar rapazes e usá-los como combatentes, mas os resultados seriam pobres. No entanto, parece-me que o factor "experiência" fazia, cada vez mais a diferença, uma vez que as nossas unidades, na sua rotação constante, nunca atingiriam igual grau de experiência. Desta experiência vinha a capacidade de sobrevivência no campo de batalha de cada combatente que era cada vez maior e as unidades tendiam a manter o seu efectivo, A isto teremos que adicionar o material utilizado, cada vez mais sofisticado e em maiores quantidades e o apoio dos "internacionalistas". A guerrilha tornar-se-ia numa força militarmente muito eficaz, embora, do ponto de vista de enquadramento à população que detinha não se afirmasse senão pela coacção. Disto não temos dúvidas.

A baixa preparação literária, bem confirmada após a independência, impediria um bom enquadramento da população e o empenhamento nas tarefas do desenvolvimento sempre prometido, mas nunca realizado, e facilitaria a instalação da corrupção e do nepotismo. Poderemos afirmar que, à data do fim da guerra, o PAIGC seria uma força militar de bastante valor, mas que, na paz, viria revelar-se uma direcção política muito deficiente, como a História comprova.

PS: - Os cabo-verdianos, literariamente mais evoluídos, estão ausentes da lista nominal. E isto é um aspecto que dirá qualquer coisa. Tive dificuldade em a ler, mas creio que é assim.

António J. P. Costa
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Notas do editor

[1] - Vd. poste de 21 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16865: (D)o outro lado do combate (Jorge Araújo) (3): Mário Mendes (1943-1972): o último cmdt do PAIGC a morrer no Xime... Elementos para a sociodemografia do seu bigrupo em 1972: tinha 27.9 anos de idade e 8.9 anos de experiência de conflito...

Último poste da série de 4 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16558: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (19): Ainda a definição de literatura da Guerra Colonial ... e a crítica do filme "Cartas da Guerra"

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16558: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (19): Ainda a definição de literatura da Guerra Colonial ... e a crítica do filme "Cartas da Guerra"

 
1. Em mensagem de 30 de Setembro de 2016, o nosso camarada António José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª da CART 1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá, 1972/74), enviou-nos o seu ponto de vista acerca da literatura e cinema dedicados à Guerra Colonial para integrar a sua série: "A Minha Guerra a Petróleo".



A Minha Guerra Petróleo (19)

Ainda a definição de literatura da Guerra Colonial

Aqui há uns posts atrás, o Branquinho levantou uma questão pertinente que se prende com a definição de literatura da “Guerra Colonial”. Poderá parecer uma questão secundária, mas só agora, já que, para o futuro, ela deverá ser claramente estabelecida, sob pena de se tomarem obras sérias por refugo e vice-versa. E já agora, tendo em conta a recente estreia do filme “Cartas da Guerra”, parece-me oportuno estabelecer o que se deverá entender por Cinema “da Guerra Colonial”. Podemos também juntar-lhe o teatro sobre o mesmo tema, embora esta forma de arte não tenha tido a “guerra” como tema, por razões que será difícil concluir.

Tenho para mim que estas três formas de arte: literatura, cinema e teatro revestem características documentais – registo, tratamento objectivo e exposição à consideração do espectador/leitor de factos ocorridos – que não estão presentes noutras, o que lhes permite serem mais aptas para a reanálise e reconstituição do sucedido num dado momento histórico. O Livro descreve detalhadamente os factos ocorridos, enquanto o Cinema mostra-os. E, enquanto o primeiro deixa ao leitor uma liberdade de interpretação, o segundo, através da imagem móvel, permite uma maior latitude de interpretação. Quer isto dizer que o espectador dá mais de seu na interpretação e apreciação de um filme do que o leitor de uma obra literária ou até (porque não) poética. Ambos estão sempre disponíveis para a consulta, o que não sucede com o teatro – essencialmente efémero – em que cada representação é sempre uma nova narrativa, quase sempre melhor a cada exibição… Mas o teatro, por si só merece uma análise mais detalhada.

O Branquinho[1] começa por apresentar uma premissa que também considero fundamental para a definição do que é "literatura da guerra colonial" e à qual dou o meu acordo total: deixando de lado toda e qualquer postura política ou ideológica.

Das cinco definições que apresenta considero a primeira (todo e qualquer escrito sobre a guerra) demasiado vaga, aberta e imprecisa. Nela cabe tudo, até os estudos científicos ulteriores, de qualquer tipo, sempre necessários sobre uma guerra ou outro qualquer facto histórico. Convirá que seja mais precisa, de modo a que o que se define seja claramente caracterizado, pois, de outro modo não valerá a pena sequer esboçar a definição. Com efeito, a guerra pode ser abordada, especialmente por estudiosos, segundo diversos ângulos, hoje ou em qualquer outro momento do futuro. Pode ser também abordada de modo algo fantasioso, o que, se não houver aviso prévio, poderá induzir o leitor a interpretações erróneas e opiniões inexactas. Bem bastam as que surgirem, com o passar dos anos!

Também não considero relevantes as três seguintes definições que propõe, considerando que todos ou quase todos sofremos a guerra à distância, bastando para tal sermos portugueses, vivendo ou não em Portugal. Igualmente era suficiente sermos portugueses para que sofrêssemos a guerra nos espaços de guerra ou longe dos espaços de guerra. Se, para escrevermos sobre a guerra, basta termos sido portugueses num momento histórico, teremos de concordar que, mesmo tendo vivido nos espaços de guerra, tudo não passará de uma recordação que, por vezes, não vai muito para além do “ouvi dizer que”. Tratar-se-á de uma evocação da memória, mas que não se fundamenta na experiência directa do facto. A “Guerra Colonial” será assim, mais uma envolvente, mais um elemento caracterizador do ambiente que enquadra a história que o autor quer narrar. Cabem neste caso as histórias das mulheres que esperaram os maridos ou namorados, as mães e pais que sofreram com a partida e tiveram ou não a alegria do regresso ou as experiências dos que residiam nos “TO daquelas PU”.

E resta a última, que considero a mais válida pela autenticidade do relato, mesmo prevendo que cada um de nós terá a “sua” verdade, expressa na narrativa que apresentar. É dado adquirido que, o modo como se viu e viveu uma dada situação e o respectivo relato posterior, podem estar marcados pela subjectividade. Isto pode criar dúvidas ou até suspeitas sobre se as coisas terão mesmo ocorrido assim e serve, muitas vezes, de argumento para que a respectiva credibilidade seja diminuída. Porém, não é menos verdade que o abuso do recurso a esse tipo de argumento não é nada conveniente. Chamo a vossa atenção para a grande coincidência entre as descrições do mesmo facto ou situação que se viveu e que está bem patente em muitos posts do blog, escritos por vários camaradas que viveram a mesma situação. É por isso que considero que literatura de guerra colonial é aquela escrita feita somente por quem fez a guerra. Às outras, falta a experiência vivida que nada pode substituir, mesmo que o narrador se esforce muito.

Esclareço que não pretendo vedar a ninguém o direito de escrever sobre a “guerra”, mas não haja dúvidas, de que uma coisa é fazer a guerra outra coisa é sofrer (de vários modos) com a guerra. E muito mais se o que se pretende é transmitir informação sobre o sucedido. A literatura baseada no "consta que" ou no "ouvi dizer" é deficiente e nunca poderá ser aceite nem em relação a esta guerra, a outra qualquer ou a um dado facto histórico.

Fico satisfeito quando encontro estudos sobre a “guerra”, mas não podemos tomar um estudo científico como literatura. Venham eles, objectivos e bem elaborados para que tenhamos (ao menos agora) uma perspectiva do que sucedeu!

Nada nos impede de escrever um romance sobre a guerra colonial. Porém, para além da trama que fica toda ao critério do escritor (ou até cineasta e dramaturgo) tem de haver um escrúpulo muito grande, de forma a criar um ambiente autêntico onde a acção se passe. É assim que se escreve bem e não faltam exemplos no nosso país e na literatura estrangeira. Quem escreve sobre o passado deverá ter sempre realizado previamente um estudo sobre o ambiente onde a acção decorre. Sei que esse trabalho é cansativo, especialmente se for detalhado e preciso. Ainda não escrevemos nada e já nos fartámos de ler e consultar fontes. Estas actuam sobre quem escreve como linhas a não transpor, sob pena de se faltar à verdade e, consequentemente, transmitir informação falsa a quem ler o livro ou vir o filme. É como pôr soldados romanos a combater os lusitanos, usando relógios de pulso. Nada nos impede mas, se calhar não era bem assim…

Voltando agora ao cinema, chamo a atenção dos camaradas para a reconstituição de ambientes feita pelos cineastas das séries inglesas que passam na TV. É um exemplo a seguir. No que respeita à literatura poderia citar, “Guerra e Paz”, “Adeus às Armas” e tantos outros que acabaram por se eternizar, principalmente pela veracidade de tudo o que rodeia a história que o leitor “devora”.

 E acabei por vir ter ao filme “Cartas da Guerra”! Não conheço o realizador, mas vejo cinema há alguns anos. Também não sei nada de música, mas não sou surdo. E só por estas duas frases já podem ver que não gostei, mesmo nada do filme. 

Poderia perder-me em pormenores técnicos como a voz da artista que fala em voz off e que, ou necessita de regressar ao Conservatório para aprender a dizer, ou o som da sua voz foi mal captado. Por mim, desmobilizei de tentar entender o que ela dizia. Não conheço as cartas que estão na base do filme e não estive nunca em Angola.

E ditas estas “declarações de interesses” passemos àquilo que mais me desagradou, por forte suspeita de falta à verdade. Chamo a atenção dos camaradas para o fardamento utilizado, as viaturas – aquela do Unimog 1300 com as guardas levantadas e o pessoal sentado daquele modo – os oficiais com a pistola “à banda” dentro do quartel, aquele quartel… que parecenças terá com aqueles em vivemos? Em suma: a reconstituição dos ambientes está – em minha opinião – imprecisa, mesmo que tal se deva à falta de meios.

Achei, no mínimo ridículo aquela cena em que os militares progridem numa área alagada com o terreno seco ao lado. Mas o pior é o médico com a G-3 e a bolsa de primeiros socorros a tiracolo. Conheci quatro médicos em companhias operacionais, dois deles viveram mesmo no aquartelamento da companhia e nem sequer tinham arma distribuída. Nunca vi nenhum deles com a bolsa a tiracolo, embora possa aceitar que se deslocassem a aldeias para exercerem a sua arte. Aceito que as intenções do realizador tenham sido as melhores, (é óptimo que alguém vá pegando este tema) mas os resultados não foram nem sequer modestos.

Parece-me portanto que deveremos considerar como “literatura da Guerra Colonial” os textos e só estes produzidos por ex-combatentes. Aqueles textos em que a guerra esteja presente, como elemento enquadrante da acção dos personagens, serão uma forma de literatura obviamente válida, mas não me consta que os escritores americanos (por exemplo) escrevam sobre a Guerra do Viet-Nam ou a da Coreia, quando escrevem um romance cuja acção se passa nos Estados Unidos, naquelas alturas e a elas façam referências.

Em relação ao cinema entendo e dou o máximo valor ao modo como o realizador “descreve” o ambiente em que a acção decorre reconstituindo o que as personagens veriam, os utensílios que usavam, o modo como vestiam, enfim tudo o que permita que quem vê o filme se sinta dentro da cena.

Podemos considerar que as “Cartas da Guerra” poderão ser um filme sobre a Guerra Colonial, mas não creio que tenha prestado um grande serviço à divulgação e à manutenção da respectiva memória.
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Notas do editor

[1] - Vd poste de 2 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16440: Contraponto (Alberto Branquinho) (54): Literatura da guerra colonial, o que é?

Poste anterior da série de 29 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16248: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (18): Resposta ao Manuel Luís Lomba