quinta-feira, 16 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19794: (In)citações (131): A dureza da nossa infância e a guerra (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto do BCAÇ 3872)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), autor do livro "A Tropa Vai Fazer de ti um Homem", com data de 15 de Maio de 2019:


A dureza da nossa infância e a guerra

No passado dia 17 fui à Associação 25 de Abril assistir ao lançamento de "A Minha Guerra a Petróleo" da autoria do José António Pereira da Costa. O apresentador da obra foi o Coronel Carlos Matos Gomes, ex-Comando e escritor de créditos mais que provados.

Excelente orador, deu ali uma lição histórica de literatura portuguesa, com especial incidência no que se refere ao colonial e pós colonial. Mas ao vê-lo lembrei-me de antigos camaradas de escola, que foram comandos também e com principal relevo para dois que estiveram na Guiné mais ao menos no período que eu também lá estive.

O Aníbal Gavião (Laredo de alcunha) foi meu colega na escola em Alcobaça na 1.ª classe e mais tarde na 4.ª quando regressei à vila. O Augusto foi meu colega na escola da Vestiaria entre o final da minha 1.ª classe e a 3.ª e o que aqui escrevo, acaba por se focar na história das crianças daquele tempo, com especial ênfase para as fracas condições económicas, que a grande maioria tinha que ultrapassar com escolas a quilómetros, descalços e com almoço que não passava de um pedaço de pão duro, para render, e um cubo de toucinho assado frio, que lhes servia de pequeno almoço, almoço e lanche, especialmente dos que moravam nas aldeias.

Em 1957 entrei para a escola primária de Alcobaça.
Era uma sala cheia de crianças de bata branca em frente da professora. A secretária ligeiramente para o lado direito, deixava livre a visão para o quadro preto, a cruz e as fotografias emolduradas de António Salazar e Craveiro Lopes que era presidente da República por essa altura. Reza a História, que este não era dos predilectos do regime e assim, ao contrário dos que se eternizavam no lugar, foi despachado tão depressa quanto possível.


A professora era e foi, senhora temida até ao fim da sua carreira. Conhecida por mais que uma geração e que estava castigada a dar só a primeira classe por via de algumas “carícias” feitas com mais afinco na malta pequena.

Naquele tempo a sala de aula era um sítio austero pouco convidativo, onde imperava a máxima da reguada e a cana da índia, para quem não sabia ou se esquecia de trazer os trabalhos de casa feitos, quem sujasse a bata, quem não tivesse algum material, etc.

Éramos obrigados a sair e regressar a casa com a bata vestida impecavelmente limpa, facto que me custou alguns safanões dados pela a minha mãe, pois por vezes tinha que ma lavar quando eu chegava a casa e enxugá-la sabe Deus como, para que eu me apresentasse sem mácula às nove horas do dia seguinte na escola.
A falta dela era imperdoável.

Na verdade, frequentaram comigo a escola crianças de todos os estratos sociais e a bata tornava-nos à primeira vista iguais. As diferenças eram assim mais subtis para quem não soubesse, que haveria crianças com várias batas e umas, a maioria como eu, que só tínhamos uma.
Mas juntando o feitio da professora, com o terror que a minha mãe tinha de vivermos numas águas furtadas na travessa da Cadeia, bem por cima do hoje afamado António Padeiro, que já existia naquele tempo sem tanto “pedigree” mas com a qualidade que o tempo não esmoreceu, por essas razões acabamos por ir viver para a aldeia da Vestiaria, situada a pouco mais de 3 quilómetros, mais precisamente na rua que ia para lavadouro e mais tarde, para a Rua do Loureiro. Dali até ao cruzamento entre os Casais e quem ia para o Pinhal Fanheiro ficava a escola. Palmilhávamos mais ao menos uns 1500 a 2000 metros para cada lado quer chovesse quer fizesse Sol.

A lei era taxativa e vigorava uma sobre a proibição de se andar descalço, mas quando cheguei à nova escola eu parecia um extraterrestre, pois batas e sapatos era coisa que não se via por aquelas bandas. Os garotos descalços traziam umas sacolas com uma ardósia e livro de leitura, mais uma sebenta para os trabalhos casa e assim, é fácil adivinhar o espanto que a minha mala reluzente, com caixa de lápis cadernos e livros encadernados, tudo arrumadinho, causou.
A disciplina na escola também coisa de assombrar, pois conviviam todas as classes da primeira à quarta e não eram poucos os alunos que eram maiores que a professora. A D. Emília, jovem professora de Aveiro para ali desterrada, a viver num quarto alugado, quando ia para lhes bater, eles simplesmente seguravam-lhe os braços “o quê que você quer mulher ?”, quando não saltavam simplesmente pela janela e estava o assunto arrumado.

Não raramente eram as mães que os levavam de volta à escola por medo de represálias, uma vez que a escola era obrigatória e se não fosse isso, teriam muito que lhes dar a fazer no campo ou à volta do gado, na vez de andarem a alimentar a boa vida do rapaz a passear os livros.
As mães de alguns alunos quando chamadas à escola por algo que o filho tivesse feito, usavam da sua autoridade aplicando-a à pancada. Condenação e castigo, que eles levavam logo ali com um sarrafo seco de videira, agarrados por um braço e saltando ao ritmo das bordoadas.
- “Sra professora, você arreie-lhe com força, arreie-lhe” - e iam-se embora a maldizer a sorte, o rapaz, mais a escola, que assim ele nunca mais ia trabalhar.
No fundo era a grande chatice pois sem a 4.ª classe ninguém lhe podia dar emprego, se não ficava assim mesmo, pois para a enxada não era preciso saber o abecedário nem geometria.

Comigo andaram o Zé Loureço e o Coelho, que assentaram praça no CICA4 no mesmo dia que eu. O Mário Farelo, o “Escalracho”, os irmãos Manel e Augusto, o Mendes que me ia furando um olho com uma cana acabada de arrancar da vinha ao lado da escola, quando fez dela uma lança. O Manel e o Augusto, estes dois irmãos mais o “Escalracho”, eram por assim dizer responsáveis por todas as malandrices que se faziam e mesmo quando não eram eles, que roubavam a fruta ou roubavam os ovos da capoeira, era certo e sabido que eram os suspeitos e culpados costume.

A vida da escola era assim colorida e assim fui passado de classe à medida que me iam confundindo no aspecto geral, perdi o brilho e o brio, deixando a bata em casa, com a mala toda esfolada ao estilo de quem te viu e quem te vê.

Voltei para Alcobaça a tempo de fazer a quarta classe. Os meus colegas mais velhos foram trabalhar para os fornos da Crisal ou em oficinas na vila, outros por lá ficaram no amanho das terras. Perdi o contacto com a esmagadora maioria deles e se não fora a tropa nunca mais veria outros tantos. O Manuel trabalhou numa marcenaria lá para os lados da Fonte Nova e o irmão mais novo Augusto, encontrei-me com ele no avião que nos trouxe de férias à Metrópole. Era dos Comandos o que não me admirou dado o espírito voluntarioso e belicoso que lhe conheci. Ostentava orgulhosamente os símbolos da 35.ª ou 38.ª, possivelmente esteve envolvido nas operações em Copá e Canquelifá ou mesmo Guidage.

Voltei a viajar com ele no regresso das férias e bebemos uns whiskies para nos prepararmos para o impacto do arame farpado do aeroporto de Bissau e aí chegados, abrasados pelo o impacto do calor ele foi para os Comandos e eu para os Adidos de má memória.
Não tenho ideia de o ter voltado a ver mas duma coisa não tenho dúvida, é que foi naquela vida dura que se forjaram os nossos jovens, o que lhes permitiu aguentar a dureza daquela guerra durante tantos anos.

Mesa de Honra com: Coronel Carlos Matos Gomes, Coronel Vasco Lourenço e o autor de "A Minha Guerra a Petróleo", Coronel António José Pereira da Costa

Na mesa de honra, no lançamento do livro do Coronel António José Pereira da Costa, estavam três soldados que participaram no 25 de Abril, data que como sabemos, embora sujeita aos detratores de todas as latitudes, continua a ser o primeiro dia de liberdade do resto das nossas vidas.
Um muito obrigado por isso.

Juvenal Amado
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19767: (In)citações (130): As Comemorações de Abril, A Memória e a História (José Manuel Matos Dinis, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2679)

7 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Gostei, Juvenal, de ler as tuas recordaçõs do tempo de escola... Espantosamente não são diferentes das muinhas, postas em verso, num longo poema inédito, de 50 pp, que remonta a 2004, e que já na enésima versã... Aqui vai um pequeno excerto:

Autobiografia: com Bruegel, o Velho, domingo à tarde



(...) E havia a escola
(ainda não se dizia escolinha, como hoje),
a escola primária, do Conde Ferreira,
mas a gente sabia lá quem era esse tal senhor Conde!…
Lembras-te do bibe azul às riscas,
mais a sacola de serapilheira, pesada,
onde levavas o caderno de duas linhas, de caligrafia,
a caneta de aparo, o frasco de tinta azul, a tabuada,
o lápis de lousa e a ardósia, a “pedra”,
o canivete que servia de faca e aparadeira,
o pão seco com marmelada,
ou com toucinho fresco, ou salgado,
que era o presunto dos pobres.
Ah!, e o livro de leitura da 3ª classe
com os meninos, na capa, tão lindos,
com a farda da Mocidade Portuguesa,
cantando e rindo.
Não, não levavas a fisga para matar pardais,
não gostavas de armas nem de matar pardais.

(...) Havia o jogo dos cinco cantinhos,
e o da cabra-cega, mais o berlinde, o arco e o balão,
o abafa, as caricas, o pião,
a alegria (quando não o receio) da hora do recreio.
Que o melhor da vida era a brincadeira,
mas foi na escola e no recreio e na catequese
que aprendeste a lição:
quem comandava a vida,
e impunha a lei, a regra, a ordem e o progresso,
tinha um sino, uma sineta ou uma campainha,
a professora na escola e o padre na igreja,
que marcava as horas e os dias e as semanas e os anos…
E o sino tinha vários códigos, os da morte e os da vida…
Foi lá que te ensinaram, sem demoras,
a murro e pontapé, os mais velhos,
ou com a menina dos cinco olhos, a senhora professora,
que o lugar ao sol conquistava-se,
com sangue, suor e lágrimas,
como o pico mais alto do mundo, o Evarest:
não, não é para todos, meu menino, o lugar ao sol,
é para quem Deus quer,
e não é decididamente para os fracos, os faltosos,
os retardatários, os cábulas, os hereges, os pecadores. (...)


Valdemar Silva disse...

Do meu tempo de escola primária, lembro-me ter feito um excecional exame da 4ª. classe e os professores examinadores terem dito 'pró ano cá te esperamos no Liceu' e a minha jovem professora ter dito 'ele pró ano já vai trabalhar'.
E não seria só eu a começar a trabalhar ainda criança.
Mas eu voltei a estudar quatro anos depois, e à noite, para fazer o Curso Comercial.

Valdemar Queiroz

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Não estava muita gente na sala e o Vasco Lourenço já me tinha alertado para a cada vez mais fraca capacidade de mobilização da A25A. É pena que assim seja, mas parece que não há nada a fazer...
Porém estavas lá e eu agradeço-te muito sentidamente a ti e àqueles que comigo andaram "a pedir para as almas" e foram. E alguns deles nem sequer precisavam de ir.
Havia mesmo uma amiga que, com quase 80 anos, amarinhou as ruas do Alecrim e da Misericórdia para estar comigo.
Enviei 180 e tal mails e pedir a presença, mas... estavam aqueles e eram aqueles que me fazia falta que estivessem.
Obrigado por teres ido e desculpa por não te reconhecer pelo nome, é que... isto já não é o que foi.
António J. P. Costa


Juvenal Amado disse...

Fiz o exame da 4ª classe na escola do professor Cravo. Era assim que era conhecida a escola que era e ainda é um belíssimo edifício hoje recuperado onde julgo funcionar o agrupamento escolar.
Fica no cruzamento da rua da Gafa com a rua do hospital.
Todos os alunos do concelho faziam ali o exame da 4ª classe na presença de três examinadores se não estou em erro. Mas respondendo ao Valdemar Queiroz quanto à possibilidade de seguir para a admissão ao ensino secundário era raros os que passavam o crivo. Lembro-me de alguns amigos que fizeram o exame comigo e não tenho ideia de que algum não fosse logo trabalhar em seguida.
Quanto ao António Pereira da Costa foi uma honra estar no lançamento do seu livro, ir à Associação 25 de Abril e como cheguei cedo andei por ali a olhar para o edifício do antigo jornal Republica e a cervejaria Trindade. Procurei um alfarrabista onde cheguei a comprar livros mas não dei com ele.
Foi um bocado bem passado.

Um abraço

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Amigos e camaradas, o mundo mudou, e de que maneira. Já não reconhecemos os sítios que nos marcaram, a escola, a livraria, a tasca, a rua, os vizinhos, os amigos... Por exemplo, a minha escolinha Conde Ferreirra, dos anos de 1870... O estúpido do camarteo camarário madou-a abaixo. E hoje lá um mamarracho de repuxo seco, e o edifício do tribunal mais... o monumento aos combatentes da "guerra do ultramar"... E o velho coreto dos anos 20/30...Um idiota de um presidente da câmara, para ,mais arquiteto, mandou-o também a baixo. E pôs um calhau com a efígie de um tal Dom Lourenço, arcebispo de Braga, que era da terra dos dinossauros...

O mundo mudou, as aldeias, vilas e cidades mudaram,nós mudámos... E às vezes olhamos à volta e tudo é estranho, porque nos faltam pontos de referência fundamentais para a nossa. identidade...

A demolição da escola Conde Ferreira (masculina e feminina), na Lurinhã, foi um crime de lesa-património, imperdoável, feito em nome de um estúpido progresso... Podiam ao menos ter salvo a fachada, nem isso...

Juvenal Amado disse...

Luís o tempo passa e era de esperar que também estupidez e falta de visão dos nossos eleitos passar, devia haver o crime de lesa cultura, patrimonial a par do uso indevido de fundos. Infelizmente tudo isso foi acontecendo a par do que pensávamos irradiado pelos novos tempos e pela educação. Ao contrário disso o ressurgir de nacionalismos podres e racismo põe em risco os nossos sonhos de juventude.

Valdemar Silva disse...

Naqueles tempos, nunca consegui perceber a razão de haver, nas Escolas Primárias, salas de aulas para meninos e para meninas e mistas só para os da 4ª. classe.
Tal como no dia a dia, meninos e meninas brincam juntos, pelo menos até aos nove/dez anos, depois é que começam a criar grupos de rapazes e raparigas dado que as suas conversas começam a ser diferentes.

Valdemar Queiroz