sexta-feira, 17 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19797: Notas de leitura (1178): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (6) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
O BCAV 490 arribou à Guiné, descobriram o calor de estufa, o desconforto de viver aquartelado, vão agora partir, cada Companhia para seu lado, percebe-se que o vate alinha na CCAV 488, vai dizer cobras e lagartos da comida, conviria que nos esclarecessem por onde se repartiram, onde ficou inicialmente a sede do batalhão, quando começaram a levar pancadaria, mais adiante irá falar da primeira emboscada.
Hoje associamos o escritor Álvaro Guerra, contemporâneo de Santos Andrade, no desembarque em Bissau, com os bizarros primeiros tiros, logo a seguir daremos a palavra a alguém que nos faz companhia na blogue, o Zé Brás e o seu incontornável romance "Vindimas no Capim".

Até à próxima, com um abraço,
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (6)

Beja Santos

“Até que cheguei à Guiné,
a viagem foi regular.
Na fábrica abandonada
vim eu aqui aquartelar.

Houve rapazes a enjoar
dos balanços que o barco dava.
Eu era um dos que estranhava,
mas não cheguei a vomitar.
Só me vinha o mal-estar.
Depois de beber o café,
passeava até à ré,
fazia apetite à comida.
E foram 5 dias nesta vida
até que cheguei à Guiné.

Aos 4 dias de jornada,
vínhamos bem viajando,
uma cabeçada íamos levando
no meio da água salgada.
Do barco não se aproveitava nada
se tivéssemos tido esse azar.
Isso dava que falar:
a morte de tanto indivíduo!
Como isso não foi sucedido,
a viagem foi regular.

O barco esteve ancorado
até que nós desembarcámos
e em seguida nós chegámos
a este quartel mal arranjado,
com carros velhos por todo o lado.
Que coisa disparatada!
Só na parte da madrugada
nós conseguimos dormir
com tanto mosquito a zumbir,
na fábrica abandonada.

O calor não se aguentava
aqui dentro do quartel
o nosso Tenente-Coronel
disso não se importava,
e serviços nos destinava,
não nos podíamos desenfiar
fartávamo-nos de trabalhar,
a carregar camionetas de entulho
e a 27 do mês de julho
vim eu aqui aquartelar.”

********************

A viagem e o desembarque em Bissau são dois momentos clássicos na literatura memorial da guerra. Irá fazer-nos companhia agora o escritor Álvaro Guerra que combateu e foi ferido na Guiné e que legou no conjunto das obras iniciais uma série de referências à sua comissão. Em “Memória” tem um parágrafo de rara beleza:  
“Nasci na pátria do ódio gentil, na pátria da paz e do sono, do idílio de uma seringa cheia de medo com uma veia cheia de velho sangue, uma veia sossegada e antiga, sem dores de me parir. Cresci entre as histórias mentirosas e as mezinhas mitológicas de adiar mortes serenas, milhões de tranquilíssimas mortes conformadas, ao som do fado-hino e da saudade de destino”.
Nesta fase da sua vida literária, Álvaro Guerra revelou-se um aficionado, direi incondicional, do novo romance, corrente em que a França esteve na vanguarda com nomes de coturno mundial como Marguerite Duras, Alain Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute e Claude Simon. Escrita de fragmentos, parágrafos velozes, com tiquetaques, regressos permanentes, remissões a beirar o surreal. Vejamos como arranca este romance Memória:
“no calor morria e nesse medo matava rasgando capim folhas lianas a tiros de raiva e metal escaldante metralha a abrir o caminho para hoje percorrido comigo desde o meu corpo espalmado na terra a beber o suor e o sangue e os olhos fechados invocavam imagens e logo se abriam para a dor real naquele longe de casa que eu era rastejando entre os silvos e explosões zumbidos aos ouvidos meus sentidos todos na fusão com o nada e desesperado disso que eu sabia ser tarde para a escolha que não fiz…”.

A comissão de Álvaro Guerra foi contemporânea da comissão de Santos Andrade, daí a sintonia que é um acaso de felicidade entre este texto com desembarque e instalação e os versos do nosso poeta da BCAV 490:
“A Companhia recém-desembarcada dos três velhos aviões a hélice foi provisoriamente instalada no Liceu da Cidade que, para o efeito, se encontrava equipado com aquilo que habitualmente equipa um liceu: carteiras, mesas de professores, quadros pretos, ponteiros, giz, globos terrestres, animais empalhados, provetas, tubos de ensaio, bicos de Bunsen, estalactites e estalagmites, poliedros, frascos, boiões, um esqueleto muito pouco convincente e, ainda, como extra ali colocado para maior comodidade da tropa, alguns fartos de palha. Quando a soldadesca saltou dos camiões, o capitão ordenou a formatura e disse para terem muita atenção em não escangalhar nada do que estava lá dentro, pois aquilo era Património do Estado e ‘quem escachaporrar alguma coisa tem que s’haver comigo’, após o que se fez a distribuição dos militares pelas várias salas de aula, tendo o gabinete dos professores sido reservado aos oficiais e o laboratório aos sargentos. Montou-se imediatamente um dispositivo de segurança composto por quatro sentinelas, assim colocadas: posto 1 – extremo norte do claustro, junto à retrete das meninas; ponto 2 – porta dos contínuos e pessoal menor; posto 3 – porta da Secretaria; posto 4 – extremo sul do claustro, junto à retrete dos rapazes. Revelando o exemplar poder de adaptação, começaram os militares a disputar a palha que lhes havia de servir de colchão. Então, chegaram as cozinhas rolantes com uma refeição quente, vindas dos superlotados quartéis da cidade e, marmitas na mão, logo todos compareceram a formar uma longa bicha que chegava às imediações do bairro da lata, aliás, próximo.

Acomodados sobre a palha, entre carteiras, dispuseram-se a passar confortavelmente a sua primeira noite no liceu o que teriam conseguido se não fossem os permanentes e ferozes ataques dos mosquitos o que determinou colectiva manhã mal-humorada, com judiciosas quão oportunas observações do tenente-médico.

Cada vez melhor adaptados às circunstâncias, isto é, às carteiras e restante material ex-escolar, mosquitos e camas de palha, foi-se o mau humor adoçando de tal modo que, a meio da tarde do segundo dia, se podia ver o Cabo Serapião, ao som da guitarra do 73 e da gaita-de-beiços do 91, dançando com o esqueleto a quem tinham pintado bigodes à capitão e posto no crânio um capacete, enquanto no laboratório os sargentos assavam chouriço no bico de Bunsen e, na sala dos professores, os oficiais jogavam póquer usando como fichas as rochas e cristais do gabinete de mineralogia. Estava o Alferes Jeremias a arriscar um belo pedaço de quartzo num full de damas e valetes, quando soaram dois tiros, do lado da retrete das raparigas. Alarme geral, abrupta interrupção das actividades lúdicas e outras, apressada procura de armas, improvisada compostura de uniformes e acessórios, corrida para o exterior.

‘Além, atrás daquela cabana! Estavam dois escondidos! Disse: Alto! Quem vem lá? Abalaram a fugir. Disparei’. E acertou, pelo menos num deles, a verdade é que havia na terra castanha uma poça de sangue e pingos que se perdiam para as bandas do bairro da lata, para todos eles o primeiro sangue, para muitos o cheiro do primeiro festim a sério, a inconsciente descoberta da íntima ferocidade, uma vingança qualquer daquele apartamento forçado. No chão, junto do quadro preto, em posição de falsos ossos só possível, o esqueleto abandonado, capacete no crânio, bigodes à capitão e maxilas escancaradas, esperava um par que continuasse a dança que mal começara”

(continua)
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Notas do editor

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Último poste da série de 13 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19781: Notas de leitura (1177): "Portugal in Africa", por James Duffy, Penguin 1962 (Mário Beja Santos)

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