1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Fevereiro de 2019:
Queridos amigos,
O momento da partida é referência obrigatória seja num romance seja na literatura memorial da guerra, é a representação da separação de dois mundos, para cá fica o mundo construído, urdido e sonhado, para lá a terra incógnita, o prognóstico é reservado. As praças vão acomodadas em porão, de um modo geral é a sua primeira viagem, muitas tonturas e vómitos, um grande transe pelo que os espera em África. Há pouco que fazer, umas simulações em caso de naufrágio, é tudo encarado como paródia. Do quarto para o quinto dia, e já se viu muita linha do horizonte, muda a temperatura, emerge um calor de estufa e súbito avistam-se uns tufos para onde a popa do paquete se encaminha, ainda não se sabe mas está próxima a demarcação entre o canal do Geba e o Atlântico, avizinha-se um barco que irá comboiar aquele paquete carregado de homens. Sobre tudo isto que se chorou, que se solução, que se engoliu na gare marítima, aqueles dias desarranjados no desalinho da expetativa, muito está escrito, insista-se.
Deu-se a primazia a um texto muito terno de Álamo Oliveira, ele veio da Terceira, na amurada, enquanto tudo apita para a partida, ele rememora a ilha e, enfim, resigna-se à sua condição de ser o João, o 127.
Um abraço do
Mário
Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (5)
Beja Santos
“Estou quase a abalar.
Minha alma está em brasa.
Aqui na minha casa
tudo ficou a chorar.
Têm pena de me deixar,
porque vou p’rá pancadaria
Ficam com pouca alegria
durante toda a ausência,
mas com calma e paciência,
hei de voltar qualquer dia.
Nas vésperas da abalada,
Fartei-me de viajar.
E, às dez e tal, a desfilar,
com a farda camuflada
a malta toda arrebentada
por causa da noite perdida,
e com um desgosto em seguida
não se fartava de cismar:
nós vamos para o Ultramar,
está na hora da partida.
Para o barco todos entraram,
de Companhia em Companhia.
Começou logo a gritaria
quando às famílias se abraçaram.
Foi a última vez que se beijaram
durante dois anos malditos.
Por isso, deram tantos gritos
com grande pena e paixão.
E ai que grande aflição:
o barco deu três apitos.
E quando o barco desatracou,
ouviram-se gritos e ais
a chorarem pelos mais
Pouco foi o que se aguentou:
toda a gente se declarou
com pena da família querida.
Foi uma coisa comovida.
Quando o Niassa apitou,
toda a gente nos acenou,
para fazer a despedida.”
São inúmeros os testemunhos da hora do embarque, inevitáveis os lenços brancos, as lágrimas e os abraços. Escolhe-se, como prosa acompanhante para os versos de Santos Andrade um trecho belíssimo de Álamo Oliveira, açoriano da ilha Terceira, em “Até Hoje (Memória de Cão)”, conheceu a sua primeira edição em 1987, com sucessivas reedições.
O alter-ego de Álamo Oliveira é João que embarca no Uíge com destino à Guiné:
“Talvez fosse febre aquele arder de Julho em Lisboa. O sol esgazeante e bravo. Meio-dia. João à beira do desmaio: uma dor nos olhos que cega. Do alto, na amurada do Uíge, esforça-se por distinguir os corpos que enformam aquela pequena multidão que se mexe e confunde, água oleosa batida por ventos sensuais, bailada, traindo os olhos, sempre o calor imperturbável, o corpo empastado de suor febril.
O navio atracado. As escadas de acesso, altas e trémulas, enchem-se de soldados, as mãos a abanar, com fúria, com tristeza, olhos vermelhos como peixe-rei, os gritos da multidão lá em baixo a morrerem de afastamento e de cansaço. Com os olhos perdidos sobre os telhados de Lisboa, João procura ignorar essa multidão que grita uivante a tragédia de ser povo e português.
Era pela ilha que João se deixava escorregar, a memória atada a todos os tempos, lugares, pessoas, sonhos intemporais.
Ilha redonda ou pão de milho, hóstia desconsagrada de franja ruída, suas gentes voltadas para o mar – o Deus do pão e da aventura e também do medo e da saudade. João vinha do lado norte mais alto e ventoso, os campos rasos e verdes, casas a brilhar de cal, pequenas, baixas, conchas perdidas na ilha perdida. Passara a infância embrulhado no cheiro saboroso que o suor empresta às pessoas, ao tempo, às coisas. Eram perfumes silvestres – muita bonina, conteiras, faias do Norte, quase bedum de esperma, queijo. Os vizinhos, iguais na vida e na morte, alimentados pelos mesmos mistérios oriundos de Deus e do Diabo, amanheciam no cerrado, anoiteciam no cerrado. Tudo simples como vida de cão.
João metido nos alvaroses de cotim, os suspensórios cruzados para manter a segurança, passava agora por esse tempo de longevidade facilmente mensurável, ao chocalhar do navio ancorado. Lá estava a infância, marco tombado pelo tempo, o rosto virado para cima, esgar de enforcado no último pensamento. Andou descalço. Descalço e limpo. Limpo e de remendos no cu, nos joelhos – fatalidade dos pobres envergonhados de serem pobres e não andarem de pé (…) ’Cento e vinte e sete!, o nosso capitão chama-te.’ A memória partida, o horror do nome em número, um vago 127 pendurado ao pescoço na chapa picotada pelo diâmetro a quebrar em caso de morte e poder, enfim ter direito ao nome. ‘O nosso capitão chama-te!’, os olhos que se abrem num despertar de insónias.
Lisboa é já uma mancha sem telhados. O sol mais fresco pela brisa. O mar, manso que nem um são-bernardo, tece ondas pequeninas como Penélope em seu tapete líquido de azul e infinito. E João, perdido naquele barco enorme, no meio de mil duzentos e cinquenta e três homens, lá ia a caminho da guerra, como se fosse voluntário dela. Destino: Guiné”.
Álamo Oliveira
Em “Os Anos da Guerra”, o escritor João de Melo inicia o seu capítulo “Gare marítima de Alcântara” com um poema clássico do arranque da literatura portuguesa, de João Zorro, seguramente alusivo a esses embarques que levavam gente nova para a guerra:
“Em Lisboa, sobre o mar
barcas novas mandei lavrar,
ai mia senhor velida!
Em Lisboa, sobre o ler
barcas novas mandei fazer,
ai mia senhor velida!
Barcas novas mandei lavrar
e no mar as mandei deitar,
ai mia senhor velida!
Barcas novas mandei fazer
e no mar as mandei meter,
ai mia senhor velida!”
O barco já está a caminho da Guiné, viagem de cinco dias, é o que Santos Andrade a seguir nos vai contar.
(continua)
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Último poste da série de 6 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19752: Notas de leitura (1175): A Minha Guerra a Petróleo, por António José Pereira da Costa, Chiado Books, 2019 (Mário Beja Santos)
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