quarta-feira, 8 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19761: Estórias avulsas (95): O meu atribulado começo de comissão: eu, alguns homens e três viaturas carregadas de géneros alimentícios, desembarcados no Xime, e deixados para trás, com destino ao Saltinho (Martins Julião, ex-alf mil, CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > 3 de março de 2008 > A margem direita do Rio Corubal vista da antiga ponte Craveiro Lopes. Nesta margem, e sobranceira ao rio e à ponte, ficava o aquartelamento do Saltinho, a cerca de 75 km do Xime.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [€dição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de 2 de maio de 2019, do Martins Julião (ex-alf mil, CCAÇ 2701, Saltinho,  1970/72), membro da nossa Tabanca Grande desde 23 de julho de 2006 (*), e  um dos "históricos" do nosso I Encontro Nacional, na Ameira, Montemor-o-Novo (**), mas de quem, espantosamente, não temos nenhuma foto, à civil ou à militar...

Caro camarada Luis,

Ainda estou vivo por enquanto, mas com alguns problemas de saúde e outros que me têm mantido afastado dos convívios anuais.


Sou o ex-alferes Martins Julião da antiga Caç 2701 - Saltinho (1970/72). 
Aqui te envio uma memória desses tempos.

Um enorme abraço par ti e para todos os camaradas do Blogue. 

Martins Julião


2. UMA ESQUECIDA MEMÓRIA SUBITAMENTE LEMBRADA (***)

por Martins Julião

O calor era o da Guiné: quente, abafado, húmido, pegajoso e quase irrespirável, para os soldados acabados de chegar.

A navegação entre Bissau e o Xime, escondia para todos o que se poderia passar; apenas sabíamos que íamos a caminho do nosso destino operacional: Saltinho.

Estávamos nos primeiros dias do distante mês de Maio de 1970.

Na LDG (Lancha de Desembarque Grande) da nossa Armada , apenas a popa era “habitável”.

O castelo da popa, onde se situava a ponte de comando da LDG, era ornado, perto das amuradas, por duas Bosfords de 40mm. O resto era um fundo chato, largo e cheio de tudo um pouco e de homens, no maior dos amontoados: viaturas, géneros alimentares e outros, munições, outras tralhas e muitas centenas de homens armados de espingarda G3, quatro cartucheiras de munições e cantil.

Tínhamos pois saído de Bissau, após as sete horas da manhã, com a maré enchente e chegámos, cerca do meio dia ao Xime. A LDG seria a Montante ou a Bombarda, mas a memória já não me permite ser preciso, neste particular.

A nossa chegada foi festiva pois a artilharia do Xime estrondava os ares com a sua voz estridente e pesada, o que nos deu a entender que estávamos a chegar a uma das portas de entrada da guerra.

A nossa companhia, a CCaç 2701, desembarcou e de forma organizada aprontou-se para embarcar na coluna militar que nos levaria ao nosso destino.

A coluna era composta por um enorme número de viaturas, a maioria militar mas, também algumas civis, acompanhadas por uma escolta militar de cavalaria oriunda de Bafatá, comandada por um capitão.

Eu era, para meu azar, o Alferes mais velho e, portanto, tinha formalmente o comando, uma vez que o nosso capitão tinha ficado retido em Bissau num briefing com o nosso General Spínola, Comandante- Chefe.

Quando todos tinham tomado acento nas viaturas eis que sou abordado por dois cabos da Manutenção Militar que me estendem uns papeis, pedindo que os assinasse. Logicamente, perguntei-lhes de que se tratava ao que me informaram que, ainda dentro da LDG, se encontrava a primeira tranche de víveres para o nosso isolamento.

Espanto dos espantos!

Primeiro não fora informado desses géneros com destino ao Saltinho, depois nem sabia que teríamos de ficar isolados cerca de 4 meses, em virtude das chuvas e do estado intransitável em que ficariam as famosas “picadas”.

Tomei, de imediato, uma decisão que os meus já 17 meses de permanência no Exercito me aconselhavam : nada assinarei aqui no Xime.

Os rapazes da Manutenção Militar iriam seguir na coluna acompanhando a carga. A companhia iria proceder à sua descarga da LDG e carregaria na coluna e a conferência final seria no destino, onde então se assinariam os papeis.

Os cabos tentaram reagir a esta decisão, mas sem possibilidades de fuga e ordenei aos graduados, que mais perto de mim se encontravam, para mobilizarem uma “força” de “estivadores”, que teriam de alombar às costas o equivalente a carga para, pelo menos, três viaturas pesadas.

 Imaginem a hora de calor máximo, rapazes acabados de chegar a esta torreira e a violência do trabalho a efectuar, em correria sem nexo, uma vez que o comandante da LDG berrava que iria perder o momento da partida óptima, face à mudança da maré e o comandante da escolta berrava furibundo que tinha de dar ordem de partida à coluna.

Chamei o meu furriel vagomestre, que quando se apercebe da situação e do que pode resultar, simplesmente roda sobre os calcanhares e cai desamparado no chão, desmaiado.

Decidi nomear um novo vagomestre e um furriel operacional que ajudava nesta confusa manobra, ofereceu-se para coordenar esta operação logística. Naquele momento, deixou de ser operacional e passou à intendência da companhia, embora interinamente.

A operação muito penosa e necessariamente demorada, levou o capitão de cavalaria, comandante da escolta, a perder o norte. Para além de bater com um chicote num graduado da companhia ( furriel Santos) e me ter ameaçado com todo o tipo de arrazoados indignos de um oficial que deveria ter percebido ou deveria ter tido o bom senso de conhecer melhor a situação anómala e imprevista que se desenrolava à sua frente, preferiu ignorar atirar com todo o tipo de culpas para cima do Alferes “piriquito”.

Então, para meu espanto o senhor capitão de cavalaria dá ordem de avançar a coluna, sem termos tido tempo de finalizar a operação de “estiva”.

Ficamos sós no cais do Xime, eu alguns graduados de enorme sentido de dever e responsabilidade e os meus magníficos e esgotados rapazes , cheios de sede, uma sede que leva à loucura. Terminada a tarefa, pusemo-nos a caminho, na esteira da coluna que há muito tinha partido, sem qualquer escolta de acompanhamento.

As três ou quatro viaturas em que seguíamos estavam carregadas até cima e os homens amontoados por cima da carga, em situação de enorme perigo, quer porque não tinham estabilidade , quer porque não estavam em posição de saltar das viaturas se houvesse um ataque. Iam bebendo Coca-Cola e Fanta ferventes o que os deixava ainda com mais cede e, mais tarde, com problemas intestinais.

Ao longo do percurso fomos encontrando as forças de segurança apeadas que protegiam a passagem da coluna, emboscadas ao longo da picada, e que iam regressando às suas bases.

A noite aproximava-se e a nossa pequena coluna alcançou o Xitole, pernoitando aí, sabendo então que a coluna principal já estava no Saltinho.

Dormimos junto dos camiões para que não tivéssemos maiores desvios dos bens que transportávamos.

De manhã, bem cedo, seguimos para o Saltinho onde chegamos sem mais sobressaltos.

O Alferes, algum tempo depois foi contemplado com dois Autos de Averiguações, um vindo da Manutenção Militar, acusando-me de abuso e de “rapto” de dois cabos daquele serviço, outro resultante de uma queixa do valoroso capitão de cavalaria.

Mais tarde, mas isso é outra história recebeu um terceiro Auto, este dos Reordenamentos e dum Major, completamente parvo, que me acusava de não ter sabido construir correctamente uma escola, cuja cobertura voou com o primeiro tornado na região. Segundo sua Excelência,  o Manual de Construção era tão claro que qualquer soldado saberia como proceder, quanto mais um Alferes.

Um começo de comissão na Guiné promissor…

Martins Julião
_____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de  23 de julho de  2006 > Guiné 63/74 - P981: Tabanca Grande: Martins Julião, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72

(...) "Só há pouco tempo conheci este espaço de encontro. O Paulo Santiago (Pel Caç Nat 53, Saltinho), foi o camarada responsável pela minha apresentação aos camaradas de tertúlia.Chamo-me Martins Julião, fui Alferes Miliciano de Infantaria da CCAÇ 2701 (Saltinho, Abril de 1970/Abril de 72).Hoje sou um pequeno empresário e gerente de uma unidade industrial, após mais de 20 anos como professor do Ensino Secundário" (...).

1 comentário:

Valdemar Silva disse...

Vá lá que nem tudo correu mal, com certeza chegados ao Saltinho todos se sentiram merecedores uns bons mergulhos nos rápidos Corubal.

Valdemar Queiroz