quarta-feira, 8 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19763: Antropologia (30): Valentim Fernandes e o seu monumento literário “Descrição da Costa Ocidental de África, 1506-1510” (2) (Mário Beja Santos)

Excerto do manuscrito de Valentim Fernandes extraído do blogue Quadrivium


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Novembro de 2016:
Queridos amigos,
O viajante Valentim Fernandes legou-nos uma narrativa que é um documento histórico, trata-se de um manuscrito que abarca o Senegal, a região correspondente à Guiné Portuguesa, a Serra Leoa, e muito mais. É meu propósito fazer uma compilação para onde convirjam nomes maiores da literatura de viagens, isto a propósito da Guiné: Zurara, Donelha, Cadamosto, Duarte Pacheco Pereira, Valentim Fernandes, e os que se seguem. É uma tremenda lacuna não se oferecer ao leitor contemporâneo uma sequência de olhares, descrições e panoramas que deem uma melhor compreensão às mentalidades destes homens da idade moderna, um fio condutor que gere mais chaves explicativas para o conhecimento da Guiné e dos guineenses.

Um abraço do
Mário


Valentim Fernandes e o seu monumento literário 
“Descrição da Costa Ocidental de África, 1506-1510” (2)

Beja Santos

Em 1951, o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa publicava uma obra fundamental da literatura de viagens quinhentista de autoria de Valentim Fernandes, também conhecido por Valentino de Morávia, era natural da Alemanha, tipógrafo de profissão, veio para Portugal nos últimos anos do século XV e trabalhou associado a outro impressor, também alemão, Nicolau de Saxónia. Três importantes estudiosos apresentavam o documento: Théodore Monod, Avelino Teixeira da Mota e Raymond Mauny. Tratava-se de um acontecimento, ir repescar um manuscrito conservado na Biblioteca de Munique e que tem a originalidade histórica de referir o Senegal, o litoral da futura Guiné Portuguesa, as ilhas de Cabo Verde, S. Tomé e Ano Bom. É uma escrita cheia de vivacidade, onde se descrevem plantas e animais, costumes indígenas, ritos religiosos e onde se regista com clareza o conhecimento exato e profundo que os portugueses já tinham da costa da Guiné, do Senegal e da Serra Leoa. Valentim Fernandes escreveu no seu próprio punho o documento, desenhou as cartas que Conrad Peutinger compilou em volume, hoje na biblioteca de Munique.

Dando continuação a esta espantosa narrativa, importa recordar que Valentim Fernandes é um viajante profundamente atento aquilo que hoje, em termos disciplinares, abarca a antropologia, a etnologia e a etnografia. A viagem em plena Terra dos Negros leva-o a observar e a pedir explicações sobre a justiça dos Mandingas. E faz um largo comentário que se inicia do seguinte modo: "Qualquer malefício que algum negro fizer ou furto de se seja acusado, corta-lhe o rei a cabeça e manda-lhe tomar toda a sua fazenda e toda a sua geração, assim que por causa do malfeitor ficam todos os seus parentes destruídos”. E anota o que interessa comprar na região: “As coisas que destas terras trazem são papagaios verdes, ouro, porém pouco, escravos e escravas, panos de algodão, coiros”. Está igualmente atento a usos e costumes, aos modos de comunicação quando os nativos se encontram: “Costume entre eles é assim dos grandes como dos pequenos que quando um se acha com o outro depois de muito tempos se não virem como cá nos abraçamos eles se põem em joelhos e os cotovelos em terra e com as mãos cobrem os olhos, e dão com os cotovelos no chão muitas vezes, e depois de no chão com um cotovelo e com o outro alça terra e a lança trás de si ou em cima de si”. Valentim Fernandes terá o todo pela parte, certamente que lhe deram a saber que os Mandingas eram mais que preponderantes, praticamente senhores absolutos da região: “Esta geração de Mandingas é a maior geração de uma língua que não há outra tão grande em toda a Guiné”. E apreciou algo que ainda hoje é visível desta zona da África Ocidental: “As mulheres desta terra e em toda a Guiné roçam e cavam e semeiam e mantêm o marido e fiam algodão e fazem muitos panos de algodão assim para se vestirem como para vender”. E chega o momento de apresentar a fauna: “Alifantes há em Mandinga muitos e por isso são grandes monteiros que os matam com arpões postos numa haste de lança e os arremessam. Búfalos há muitos e bravos. Onças muitas. Gatos muitos, com rabos longos e de desvairadas feições e maneiras de cores. Corças muitas. Gazelas ruivas em grandes manadas. Lebres há muitas. Coelhos nenhuns. Vacas poucas e pequenas. Há porcos monteses”. Interessa-se também pela fauna marítima: “Lagartos e muitos grandes são de 30 pés em lombo e quando homens ou mulheres ou vacas vêm para o rio estes lagartos os matam e comem-nos.
Os guinéus matam os lagartos desta maneira. Os pescadores quando vêem o lagarto dormir em terra estando eles em almadias (canoas) espantam-no e o lagarto espantado vai a correr para a água e se mete no fundo na lama e o pescador onde vê bulir para cima a água sabe que ali jaz o lagarto e introduz numa haste comprida, arpão de ferro longo e põe-lhe uma boia na haste com cordel, e logo vai fugindo ao lagarto e se torna a meter debaixo do fundo. Então o segue o pescador e lhe assenta o arpão. E assim tantas vezes até que o cansa e o mata”. E descreve finalmente os frutos e demais alimentos: frutos que parecem maçãs, coco, limões, trigo, feijões brancos, cera e mel.

Estamos agora no Cabo Santa Maria, ponta do rio Cantor. Fala dos Barbacins, Jolofos, Mandingas e Tucurães. Prossegue a viagem pelo rio Casamansa que ele apresenta assim: “É um rio de muito resgate. E vão os navios por este rio acima até 18 léguas e ali é o reino de Casamansa. Neste reino há muita gente misturada de todas as gerações como Mandingas, Felupes e Balangas. Os moradores deste reino são tecelões e fazem panos de muitas maneiras e cores. O rei é de geração Mandinga e se chama Casamansa”.

Nos termos deste livro, a que acaba a narrativa do Rio Senegal ao Cabo Roxo, feita pelos dois investigadores Théodore Monod e Raymond Mauny. A descrição seguinte “Do Cabo Roxo ao Cabo de Monte” é da responsabilidade de Avelino Teixeira da Mota.
Chegámos ao que é hoje a Guiné Portuguesa, e Valentim Fernandes escreve: “Rio de São Domingos é um rio em que entram navios por ele acima 60 léguas. Por aqui vêm os navios das ilhas do Cabo Verde para fazer o resgate do seu algodão para panos assim como em Casamansa”.

Sempre atento aos costumes e modos de viver, observa: “Têm costume nesta terra que de 8 em 8 dias se faz uma feira a qual quando em uma semana se faz em terça-feira outra semana se faz em segunda. Vem a esta feira gente de 15 a 20 léguas em derredor”. Faz uma larga referência aos Banhuns e dá conta do que está perto de S. Domingos: "em frente deste esteiro deste rio de São Domingos contra a banda do Sul está uma terra que se chama Caticheo (Cacheu) e tem rei sobre si. Tem também feira e vão à feira dos Banhuns e os Banhuns a estes”.

A viagem prossegue, chegam ao canal de Geba: “Rio Grande chama-se assim por ser muito grande e de grande largura e há na boca dele 8 ou 10 léguas e é rio de grande força de água e de grandes correntes". Descreve os negros do rio Grande e a viagem continua pelos Bijagós, daqui partem para a Serra Leoa.

Devemos a Valentim Fernandes uma correnteza espantosa de observações, é um grande pioneiro da literatura das viagens, aguçado pela curiosidade e certamente interessado em trazer um reportório informativo que lhe desse notoriedade.

Mapa da África Ocidental retirado com a devida vénia do site SA History
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Nota do editor

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