quarta-feira, 1 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19734: Antropologia (29): Valentim Fernandes e o seu monumento literário “Descrição da Costa Ocidental de África, 1506-1510” (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Novembro de 2016:

Queridos amigos,
Ando há meses a juntar material sobre as primeiríssimas descrições e relatos que envolvem a Guiné dos rios de Cabo Verde, a Senegâmbia, Terra dos Negros, entre muitas outras designações. Valentim Fernandes é reconhecido como autor fundamental pelo vigor da sua narrativa, com a excecional vantagem de ir confirmando o que relatos portugueses anteriores mostravam deste admirável mundo da passagem dos homens pardos para a Terra dos Negros, fixou locais, usos e costumes, tal como a alimentação e a representação do poder dos reis.
A Valentim Fernandes e deve muito pela minúcia dos dados etnológicos e antropológicos e o colorido da escrita. Vale a pena lê-lo, é um encanto.

Um abraço do
Mário


Valentim Fernandes e o seu monumento literário 
“Descrição da Costa Ocidental de África, 1506-1510” (1)

Beja Santos

Em 1951, o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa publicava uma obra fundamental da literatura de viagens quinhentista de autoria de Valentim Fernandes, também conhecido por Valentino de Morávia, era natural da Alemanha, tipógrafo de profissão, veio para Portugal nos últimos anos do século XV e trabalhou associado a outra impressora, também alemão, Nicolau de Saxónia. Três importantes estudiosos apresentavam o documento: Théodore Monod, Avelino Teixeira da Mota e Raymond Mauny. Tratava-se de um acontecimento, ir repescar um manuscrito conservado na biblioteca de Munique e que tem a originalidade histórica de referir o Senegal, o litoral da futura Guiné Portuguesa, as ilhas de Cabo Verde, S. Tomé e Ano Bom. É uma escrita cheia de vivacidade, onde se descrevem plantas e animais, costumes indígenas, ritos religiosos e onde se regista com clareza o conhecimento exato e profundo que os portugueses já tinham da costa da Guiné, do Senegal e da Serra Leoa. Valentim Fernandes escreveu no seu próprio punho o documento, desenhou as cartas que Conrad Peutinger compilou em volume, hoje na biblioteca de Munique.

Fontoura da Costa refere-se nestes termos a Valentim Fernandes: “Foi um dos grandes admiradores da expansão portuguesa. Deixou um dos maiores monumentos literários escritos no início do século XVI, acerca dessa expansão… É sobretudo como coleccionador de relatos sobre as regiões descobertas pelos portugueses, incluindo descrições de viagens e roteiros, que Valentim Fernandes mostra verdadeiramente todo o seu interesse pela expansão mundial dos portugueses. É unanimemente reconhecido como fundamental para a história de África Ocidental. É considerado como fonte primária para uma infinidade de factos relativos à geografia e às populações da África Ocidental".

Nesta recensão vamo-nos cingir ao que Valentim Fernandes aporta sobre a região compreendida entre o Senegal e o Cabo do Monte (atual Libéria) do ponto de vista político, etnológico, científico e comercial.

Já estamos na sua narrativa entre o rio Senegal e o Cabo Roxo. Quando chegaram ao rio Senegal (Çanaga), mais tarde, André Álvares de Almada escreverá Sanagá, ele escreve:  
“Indo avante acharam o mar barrento, sondaram e acharam a água doce de que todos beberam, lançaram âncoras, indo num batel viram uma choça onde tomaram um negrinho e acharam um moço de dentro (do interior) e um escudo redondo feito de orelha de elefante. A este moço fez o Infante D. Henrique aprender letras para clérigo para o mandar pregar a fé de Cristo".

Refere que o rio Çanaga separa os Azenegues Mouros dos Jolofos (é igual a Jalofo), reino que começa na outra margem e diz que neste rio se resgata pouco ouro mas há muitos escravos negros. Observe-se que as descrições contemporâneas ou anteriores a Valentim Fernandes são bem claras dos homens pardos antes de se chegar à terra dos negros. Falando dos Jolofos, observa as suas práticas idolátricas: tomam uma panela de barro velha e lançam nela sangue de galinha e penas e água suja e a cobrem e põem a dita panela entre portas numa casinha feita de palha. Mais adiante diz que nesta terra e no território dos Mandingas há judeus que são negros como a gente da terra, não têm sinagogas e não usam das cerimónias dos outros judeus.

E segue-se um curioso reportório sobre costumes alimentares. Comem carne de muitos animais, têm muitas vacas que são como as nossas, porém pequenas, há também cabras, gamos, lebres, galinhas, elefantes e búfalos. Comem arroz e milho zaburro, cuscuz, que é feito também de milho zaburro. Praticam a pescaria, onde revelam destreza e valentia. Nas suas bebidas constam o vinho de mel, de milho e de palmeira, e tem uma observação curiosa: “Há palmeiras nesta terra, grandes como as de Espanha”.

Faz uma descrição de Cabo Verde continental e depois prossegue entre o Cabo Verde e o rio da Gâmbia, dizendo que as nações não estão muito sujeitas ao rei de Çanaga nem têm rei nem senhor. São homens muito negros e dispostos de corpo. A terra está cheia de matos e arvoredos e cheias de ribeiras.
O rei de Çanaga tentou muitas vezes entrar nestas nações para as subjugar e foi sempre vencido por elas. E aqui apresenta os Barbacins como muito negros e seguidores da seita de Mafoma. É um observador que procura matizar e distinguir cuidadosamente, diz que todas estas terras têm navios para atravessar os rios, essas embarcações chamam-se almadias. E depois descreve a guerra entre os Jolofos. E assim se chega ao rio de Gâmbia, onde começa o reino dos Mandingas. O rei dos Mandingas chama-se Mandimansa porque os da terra pela sua linguagem chamam à província de Mandingas por Mandi. Este rei é senhor de muitos vassalos e pagam muitos tributos. Descreve com enorme poder de observação a justiça do Mandingas. E faz referências ao comércio. Os portugueses levam para lá manilhas de latão, contas e pano vermelho e mantas do Alentejo e algodão que transportam das ilhas de Cabo Verde e cavalos, um cavalo é trocado por sete negros. E deixa claro que nesta terra não há moeda como em toda a Guiné.

Veremos a seguir, numa narrativa vivacíssima, tudo o que Valentim Fernandes observa e comenta, e entraremos no rio de S. Domingos.

(Continua)

Mapa da África Ocidental retirado com a devida vénia do site SA History

Ex Libris de Valentim Fernandes

Nú Barreto nasceu em São Domingos, em 1966, vive e trabalha em Torcy, França. Estudou na Gobelins, em Paris. Expõe desde finais da década de 1990
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18962: Antropologia (28): Os sírio-libaneses na Guiné Portuguesa, 1910-1926; Dissertação de Mestrado em Antropologia Social por Olívia Gonçalves Janequine (Mário Beja Santos)

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