quinta-feira, 2 de maio de 2019

Guiné 61/74 - P19736: (Ex)citações (352): In illo tempore, o Alferes José Cravidão, no CISMI de Tavira (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil da CCAV 703 / BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66)


Quartel da Atalaia - Vista geral, 2010
Com a devida vénia a Património Cultural


1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66) com data de 1 de Maio de 2019:


In illo tempore:

Em que a nossa servidão ao Exército Português foi iniciada no CISMI, Tavira, sujeitos de tratamento abaixo de escravos, os seus oficiais da AM eram da “geração de Abril”, e, quase seis décadas passadas, lembramos alguns e evocamos o malogrado e então alferes José Cravidão[1].

O CISMI de Tavira foi o maior viveiro de sargentos da guerra ultramarina, não só do EP, mas também dos Movimentos de Libertação, lembro-me do monitor e inefável furriel “charrua” Jorge Tembe, que foi ministro da Agricultura do primeiro governo da FRELIMO.

A segunda incorporação de 1963 arregimentou cera de 1500 mancebos, dos quatro cantos de país, distribuídos por 4 Companhias de Instrução, comandadas pelos tenentes, Dias Pinto (miliciano), que transitará para Comandante da Guarda-Fiscal na fronteira de Vila Real de Santo António, Bernardo, que passará do posto de comando na Pontinha do MFA para perseguido deste, Serro, com prestação na descolonização de Angola e Branco, de quem perdi o rasto.

A instrução era ministrada por cerca de 20 alferes da AM [, Academia Militar], logo durões, exigentes e até sadistas, e a caserna tributou alcunhas a quatro dos que mais que se distinguiam: o Cadete era o “Patilhas”, o Simões era o “Bem-amado”, o Portugal era o “Cagarim” e o Cravidão era o “Escravidão”, esta mais por metafonia que pelo seu perfil.

O nosso trabalho, tão duro e exigente, isento de horário, dia e noite, era correspondido com péssimo passadio, a raiar a fome, e só não chegamos à subnutrição, a esqueletos humanos, graças ao “negócio” da cantina regimental e às idas aos tascos da cidade que, na circunstância, também não nos correspondia com a melhor hospitalidade.

Os programas da instrução eram comuns, era-se sargento ou oficial consoante a escolaridade formal de cada um, 2.º e 3.º ciclo liceal, respectivamente.

Além da Ordem Unida e da Ginástica de Aplicação Militar, éramos dia e noite industriados em Organização Militar – Táctica Geral – Combate – Protecção contra ataques aéreos, forças aerotransportadas, blindados e ABQ – Armamento - Tiro – Organização do Terreno – Topografia – Informações – Transmissões – Higiene – Escrituração Militar.

E ficamos versados em todas estas matérias em 4 meses! Houve poucos chumbos, teremos sido os melhores do mundo – e massivamente! Haja em vista que Hitler foi comandante-chefe das FA da poderosa Alemanha e o maior patrão da II Guerra Mundial, andou 5 anos na tropa e não passou de 1.º cabo R/D…

No referente ao passadio, o grão-de-bico chegava à boca do caldeirão autoclave em sacos de juta dependurado num cadernal, levantava uma nuvem de pó enquanto era esvaziado e por regra era servido cru; as batatas eram descarregadas aos sacos em máquinas de descasque, praticamente podres; o feijão e arroz tinham gorgulho (bichos) e este era servido como argamassa. Mas o café da manhã e o casqueiro eram aceitáveis

Os sanitários eram formados por uma bateria de bacias turcas de grés, de noite a parada era atravessada por fantasmas em pelote para os frequentar e só eram limpas e desinfectadas a creolina quando a imundice fisiológica passava da porta de acesso ao espaço. Num contexto de sururu em surdina, um lavatório colectivo amanheceu com a válvula entupida e com um grande “cagalhão” flutuante e anónimo. O alferes Cravidão estava de oficial de dia, soubemos ter posto água na fervura, a companhia mereceu o epíteto de “Companhia do Cagalhão”, mas escapou ao castigo colectivo.

José Cravidão, alf inf
O acesso ao refeitório era por turnos e em fila indiana, havia um lavatório colectivo junto do portão de entrada, eu e outro demos conta que um brincalhão metera lama nas nossas chávenas polivalentes de alumínio, que levávamos dependurada no cinturão e saímos da fila para os lavar. O oficial de dia era o alferes Cravidão, regressado de lua-de-mel, mais calmo e sereno, a conduzir um Simca 1000, de design arredondado e novinho em folha, estava de olho em nós e ordenou, com o seu peculiar sorriso, a descair para o cínico:
- Oh, “funcionários”! Tu, tu e tu venham aqui ao paizinho. Quem os autorizou a sair da fila?

Deixou-nos pregados ao chão e já toda a gente comia quando, dando-nos o seu recado, no sotaque alentejano mais autêntico.
- Para a próximas ides comer “raspas de cornos”!

Se tivesse acontecido com o “Patilhas”, este não perdoaria a ida e volta em cambalhota em frente, do refeitório, junto a porta da Atalaia à Porta de Armas.

O tradicional juramento de caserna de “juro e jurarei, que ao pré e ao rancho nunca faltarei”, não funcionava no CISMI desse tempo.

Enquanto soldados-instruendos, percebíamos o pré de 40$00. No primeiro mês não só não recebemos como tivemos de pagar 2$50; no segundo mês, idem, e tivemos de pagar 1$00. Éramos a flor da Nação, sem a condição de escravos, mas no tempo da escravatura legal, o dono do escravo podia passar privações, mas ele era alimentado de 3 em 3 horas, por exigência da produção. Só pagava com o corpo; não pagava mais nada!

O comandante elitista foi rendido pelo major Cardeira da Silva, ex-prisioneiro da invasão da Índia Portuguesa - e tudo mudou rapidamente, para melhor, não só fomos logo reembolsados do que nos fora sonegado e cobrado, como também passamos a receber 60$00 mensais, e seremos aumentados para 90$00, após a promoção a cabos milicianos. [90 escudos, em 1963, equivaleria a 38 euros, a preços de hoje.]

Soubemos que os relatórios de oficial de dia do alferes Cravidão tinham influenciado essa melhoria.

Descansa em paz, malogrado Capitão José Cravidão!

Manuel Luís Lomba
____________

Nota do editor

[1] - Vd. poste de 26 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19718: In Memoriam: Os 47 oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar mortos na guerra do ultramar (1961-75) (cor art ref António Carlos Morais da Silva) - Parte XXII: José Jerónimo Silva Cravidão, cap inf, cmdt CCAÇ 1585 (Nema e Farim, 1966/68) (Arraiolos, 1942 - Bricamal / Farim, Guiné, 1967)... Morreu, heroicamente, em combate, no dia em que fazia 25 anos... Ninguém lhe deu uma condecoração, por mais singela que fosse.

Último poste da série de 6 de março de 2019 > Guiné 63/74 - P19557: (Ex)citações (351): Manel Pereira, amigo e camarada. Reencontro em Monte Real. (José Saúde)

5 comentários:

Valdemar Silva disse...

Luís Lomba
Interessante texto.
Na minha in illo tempore no CSM EPC Santarém, em Julho/67, tínhamos esses disciplinas e, por novas exigências operacionais, passamos a ter instrução
de Contra-Guerrilha e Psico-Social, com ensinamentos de Mao e tudo 'a população está pra guerrilha, assim como a àgua está prós peixes'.
Mas, na EPC era tudo muito limpinho/arrumadinho com o Ten. Sentieiro no Comando do Esquadrão de Instrução e o Maj. Duarte Silva no Comando Geral da Instrução, julgo que era assim.
Os 90 paus mantiveram-se por muitos anos, como que fosse um 'subsídio de desemprego' para uns bons milhares de jovens com uma ocupação bem pouco produtiva prá Nação.
Ainda não conheci nenhum estudo sobre a problemática do emprego/desemprego, não fora a ocupação no serviço militar obrigatório, nos anos da guerra nas colónias,
e na forte debandada na emigração.

Ab.
Valdemar Queiroz

Carlos Vinhal disse...

Caro Valdemar, talvez o fenómeno do desemprego não fosse tão premente ao tempo. Repara que havia três grandes grupos, aqueles que tinham começado a trabalhar muito cedo, os rurais, por exemplo; os estudantes e os já emigrados, conheci muitos destes últimos, principalmente entre os madeirenses e açorianos, que regressaram temporariamente a Portugal para cumprir o serviço militar.
Eu, por exemplo, já era funcionário público há dois anos quando fui incorporado.
Naquele tempo o problema da tropa era interromper as carreira académicas e profissionais aos mancebos. Depois do regresso havia que quase recomeçar tudo.
Abraço
Carlos Vinhal
Leça da Palmeira

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Manuel Luís:

Impressionante a tua "memória fotográfica":

(...) "No referente ao passadio, o grão-de-bico chegava à boca do caldeirão autoclave em sacos de juta dependurado num cadernal, levantava uma nuvem de pó enquanto era esvaziado e por regra era servido cru; as batatas eram descarregadas aos sacos em máquinas de descasque, praticamente podres; o feijão e arroz tinham gorgulho (bichos) e este era servido como argamassa. Mas o café da manhã e o casqueiro eram aceitáveis." (...)

Eis o CISMI de Tavira no seu melhor... Não é só memória fotográfica, é talento literário para reconstituir essas "cenas" por que todos passámos, e em muitos casos "recalcamos"... Mas tu vieste bater na tecla certa...Pum!!!.. É uma explosão de recordações e emoções... Tavira, para o melhor e para o pior...

Estou-te obrigado por este texto magnífico.De antologia. LG

Valdemar Silva disse...

Carlos Vinhal
Está correcto o teu ponto de vista.
Eu também já trabalhava quando entrei prá tropa. JÁ TRABALHAVA HÁ 10 ANOS!!!!. Comecei a trabalhar, e a descontar prá Caixa, no dia 01 de Abril de 1957, com doze anos feitos no dia 30 de Março anterior. E não era o único nessas condições, antes pelo contrário. Era fazer a 4ª. classe e estar pronto prá vida. Depois, uns ficavam assim e outros continuavam os estudos à noite a partir de catorze anos.
Mas, referia-me ao que se pode julgar como um estudo sobre o emprego/desemprego, caso não houvesse a tropa obrigatória e o período dos treze anos em que durou a guerra.

Um abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Manuel Luis Lomba,

Li e gostei desta narrativa, apesar de tudo, nos outros locais era quase a mesma coisa, as casernas eram assim, as brincadeiras e não só, eram mato em todo o lado.
Lá em Mafra, 1ª incorporação de 1967, não ficava longe disto, era diferente, aquilo era um imenso Convento, carregado de ratazanas, elas passeavam por cima da gente, mesmo no beliche de cima.
Não tive nada de que me queixar, primeiro porque gostava daquilo tudo, já conhecia os quarteis como as minhas mãos, só me chateavam as viagens semanais de fim de semana, o sono, era essa a minha maior mazela.
Talvez se estivesse em Tavira, a questão não se punha, nunca conseguiria vir ao Porto todas as semanas, passava o tempo todo no caminho.
Também a tropa nos 'travou' no tempo, a mim também, sou daqueles que aos 12 anos já fazia descontos para a Segurança Social - 1º desconto em 01OUT55, por isso quando entrei na tropa, já tinha 12 anos completos de descontos, já dava para me reformar, pois só era preciso nesse tempo 5 anos de contribuições, não era a SS, chamava-se então a Caixa de Previdência.
A tropa também me cerceou o meu trabalho que nunca mais o recuperei, e ainda bem, pois arranjei muitíssimo melhor, interrompeu-me o meu curso de Economia que só o voltei a retomar anos depois, nunca saberei se isso me veio a prejudicar na minha carreira, sou do curso de 63, com o então Miguel Cadilhe, que depois até foi Ministro das Finanças, não sei como ele ultrapassou isso, nem me interessa agora, mas a vida continuou, nada tenho que me queixar, cumpri o meu dever com toda a naturalidade, nada de ressentimentos, a tropa fez bem a toda a gente, fez de nós homens com uma 'endurance' para a vida que os nossos filhos e netos não têm. Correu mal àqueles e foram tantos que morreram, e vieram com as mazelas que a gente sabe. É isso que acontece hoje todos os dias, com os acidentes, os crimes, os corpos retalhados, a mente humana hoje, faz pior do que os terroristas faziam na guerra. É a minha singela opinião, que vale o que vale.

Os meus parabéns pelo este belo retrato de uma época, e vou dizer uma graça, quem de nós ainda vivos, não gostaria de voltar para trás para os verdes anos vinte, de 'vintage'?

Ab,

VT/.