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sexta-feira, 21 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24493: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXII: Op Safira Solitária, na véspera do Natal de 1971, "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos a sofrerem 8 mortos e 15 feridos graves (pp. 212-224)


Furriel Mamasaliu Bari (pág. 213)


Esquadrilha de Allouettes-III na BA12. 
Imagem cedida por Vítor Barata, especialista da FAP (pág. 212)


Ussumane Seca, Abdulai Djalo Cula, Aliu Djaquite, Aliu Sana Sanhé 
e Sissau Candé, em Tite, 1971 (pág. 215)



O Alferes Tomás Camará e o Furriel Anastácio Ferreira (pãg.  216)


Momentos antes do embarque para Angola, em Outubro de 1963. Em primeiro plano o Furriel Mil. Mário Dias. Atrás, da esquerda para a direita, o Furriel Artur Pires, o Soldado Abdulai Djaló e o Alferes Justino Godinho. (pãg. 217)


Um grupo de Comandos na Base Aérea de Bissalanca, de partida para Bafatá. Abdulai Djaló, de joelhos, ao lado do soldado com o lança-roquetes. Foto de finais de 1965 (pág. 218)


Capitão Almeida Bruno, ajudante-de-campo do Brigadeiro António de Spínola, fotografado no decorrer da Op Ostra Amarga,  na mata da Cobiana, em 18 Outubro 1969 (pág. 223)



Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)


Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves).


1. Continuação da publicação das memórias do Amadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digital, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (*).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.



 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXII:

Op Safira Solitária, na véspera do Natal de 1971: "ronco" e  "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  a sofrerem 8 mortos e 15 feridos graves (pp. 212-224)

Dezembro de 1971. A 1ª e a 2ª companhias foram em viaturas para a zona de Morés[1], enquanto um único grupo, o meu, ficou de reserva, em Bissalanca[2], na base aérea, à espera que algum grupo pedisse a nossa ajuda.

No primeiro dia não aconteceu nada para registar, mas no dia seguinte, dia 21, houve vários contactos com a guerrilha. Depois de ter terminado o bombardeamento da aviação, o grupo do furriel Mamasaliu Bari, que tinha tido vários feridos durante a manhã, dirigiu-se para um local onde tinha visto cair várias bombas e deparou com vários corpos esfacelados.

No momento em que chegou ao local deu-se uma troca de tiros entre o PAIGC e o grupo, sem consequências. A seguir o Mamasaliu disse alto ao fogo, um soldado, que tinha o dispositivo de dilagrama montado, procurou a cavilha da respectiva granada, viu-a e, no momento em que a recolhia do chão, inclinou o cano da G-3 para o solo. A granada defensiva caiu, explodiu e atingiu-o, a ele e o guia que o acompanhava, e feriu ainda vários companheiros. 

Em dificuldades para sair do local, Mamasaliu pediu reforço e foi, então, que foi dada ordem para o meu grupo avançar.

Quando acabei de ser lançado na zona, chamei pelo rádio o Demba, que me respondeu. O capim cobria-nos mas fizemos a junção dos dois grupos, cada um recorrendo a um tiro para o ar. Reunimos os dois grupos e, com o grupo dele à frente, começámos a progressão, com o objectivo de tirarmos o Bari do local.

Sempre a corta-mato, demos com um carreiro, com muitos sinais de passagem. Podia ser, pensámos, o caminho trilhado pelo Mamasaliu. Logo a seguir o Demba virou à esquerda e, quando cheguei a esse local com o meu grupo, seguimos atrás, virando também à esquerda. Fiquei com algumas dúvidas e consultei a carta topográfica. Pedi para se fazer um alto e fui ter com o alferes Demba.

Demba, não é por aqui!

–  É por aqui!

Bom, retomámos a marcha e, um pouco mais à frente, voltei a fazer um alto ao meu grupo.

–  O que se está a passar? 
–  perguntou o Demba.

– Eu não vou andar mais nenhum passo para a frente, sem pedirmos ao Bari para assinalar a posição dele com um tiro para o ar.

O Demba ligou o rádio e, então, pediu ao Bari que desse um tiro para melhor o localizarmos. E a resposta não demorou, o ruído do tiro ouviu-se bem, atrás de nós.

–  Estás a ver, Demba? Agora, temos que voltar para trás!

O Demba pediu desculpa e, sem demora, demos meia-volta e retomámos a marcha, agora um pouco mais rápida, até encontramos o grupo do Bari. Metemos o grupo no meio dos nossos dois, Demba à frente e o meu grupo atrás e continuámos a progressão em direcção aos cajueiros de Morés.

Eram cerca de 17h00, quando encontrámos o grupo chefiado pelo comandante da operação, o tenente Zacarias Saiegh.

Duas companhias juntas para passar a noite em Morés, num local[3] bem referenciado e muito conhecido em toda a zona. Fiquei junto ao tenente, que me disse que estava naquele sítio desde o meio-dia, à espera que os grupos se reunissem a ele. E que íamos dormir naquele local, que ninguém nem nada tirava os Comandos daqui.

–   Sabe quantos homens temos aqui? Duzentos e tal! Se nos atacarem hoje, nós vamos apanhar-lhes o material todo.

Não me faltava a confiança na força de tanta gente, mas não nos podíamos esquecer que, quanto maior é o número, maior pode ser também a derrota. Com boa pontaria ou sem boa pontaria, para acertar numa pessoa no meio da multidão basta apontar.

O que eu tinha era dúvidas, achava que havia tropa a mais naquele local, tanta que podia vir a atrapalhar.

Quando eu estava nos Comandos em Brá, no tempo do alferes Saraiva e dos outros, nós saíamos sempre em grupos pequenos e era mais fácil executar uma operação, havia menos barulho e menos riscos. Também só dávamos tiros quando era pela certa.

Quanto maior é o número de pessoas envolvidas, mais difícil uma operação ter sucesso. E ensinaram-me em Brá que sucesso era chegar de surpresa, atacar e retirar logo.

Mas, desta vez não estava a ser assim e a nossa dificuldade maior estava na coordenação dos nossos Comandos.

Fui juntar-me ao Demba, ao Vasconcelos e ao Sada e, com o seu guarda-costas Demba Demo, ficámos ali perto uns dos outros, cada um junto do respectivo grupo.

Por volta das 19h30, estávamos naquele local desde as 18 e pouco, ouvimos choros, que me pareceram de criança. E não paravam. Cada vez que menino chorava, o tenente mandava passar palavra, para ninguém abrir fogo, que devia ser população a regressar aos acampamentos, para arranjar comida para meninos

Um soldado chamado Djaquité, do grupo do Alferes Tomás Camará, trazia uma HK 21 com uma fita de balas muito comprida, que enrolava no corpo. Com o bipé montado apontou-a para fora dos cajueiros e a certa altura viu um grupo fardado que vinha na nossa direcção. Então, ele disse ao Tomás Camará:

–  Meu alferes, disse para não fazer fogo, vem um grupo armado na nossa direcção, e agora?

O Tomás respondeu que se vinha gente que abrisse fogo, o que o soldado fez, abriu uma rajada muito comprida para eles. Quando quis sair dali, para mudar de local, foi tarde de mais, uma roquetada acertou-lhe em cheio[4]. As morteiradas começaram a chover, umas atrás das outras, saímos todos dali, a correr. Não sei como foi, tinha deixado as minhas cartucheiras no local onde estivemos deitados. E agora, tinha que ir buscá-las lá. Resolvi voltar para trás.

Eu, muito antes de sermos atacados, quando ainda estava com o Saiegh, perguntei ao Abdulai Djaló o que é que ele achava de irmos dormir todos naquele local, onde o tenente tinha dito. O Abdulai respondeu-me que seria melhor não termos contacto com o IN durante a noite e não disse mais nada.

O Abdulai[5] era um soldado muito corajoso, bom combatente, era de 1961, tinha combatido sempre na guerra, desde o início.

Conhecemo-nos em Farim, éramos da mesma etnia, os nossos pais conheciam-se há muito tempo. Ele era mais antigo nos Comandos que eu, foi um dos que foi para Angola com o Alferes Saraiva e outros.

Nunca foi graduado porque era o indisciplinado número um, em todos os grupos por onde tinha passado. Nenhum comandante de grupo o aguentava mais que um mês. Levavam-no ao comandante a dizerem que não o podiam comandar, o comandante de companhia mandava-o para outro grupo e foi assim conhecendo quase todos os grupos, sempre a fazer as mesmas coisas.

Até que um dia, o comandante da 1ª Companhia ficou com ele. Quando o Saiegh saía, o Abdulai saía com ele, era o guarda-costas do tenente. Quando o comandante não saía, se o Abdulai não quisesse também não saía. Por isso ele nunca foi graduado.

Quando cheguei ao local, o Abdulai estava sentado ao lado do Tenente Saiegh e, depois de ouvir a ordem de passar a noite naquele local, fui juntar-me aos meus colegas.

Quando começou a chuva de morteiros levantámo-nos para abandonar o local. Mas já era um pouco tarde, devíamos ter abandonado aquele local mais cedo. Quando voltei atrás para recuperar as cartucheiras, o pessoal do PAIGC lançou dois “very-lights” seguidos. De trás de um cajueiro, com a iluminação, consegui ver onde as cartucheiras estavam. Quando a luz do “very-light” se apagou, corri para o local e agarrei-as. Na altura em que estava a regressar ao local onde estava antes, caíram duas morteiradas seguidas, entre o local onde eu me encontrava e o sítio onde estavam os meus companheiros. Continuei a andar até à saída dos cajueiros, quando vi um corpo deitado à minha frente, que na precipitação de sair dali nem reparei quem era. Depois voltei atrás. Nesta altura, ainda não sabia que era o cadáver do Demba Demo, guarda-costas de Sada Candé.

Soube depois, que também Sada Candé tinha perguntado ao Demba do que pensava ir acontecer nessa noite. Mas ele não respondeu, nem uma, nem duas vezes. Só à terceira vez que o Sada perguntou se ele não tinha ouvido, então Demba disse que não tinha ouvido, mas que pedia a Deus, que nessa noite não houvesse confronto.

Estendido no chão ali à minha frente, estava um cadáver. Vi dois soldados a rastejar e perguntei-lhes de que companhia eram. Da 2ª, responderam.

–    Vocês estão feridos? Não estão? Então deixem-me passar!

Puseram-se a pé e começaram a correr à minha frente. E quando já estávamos a sair da zona dos cajueiros, onde a chuva de granadas de morteiro continuava a cair, ouvi um gemido.

A voz parecia-me do Abdulai Djaló. Quando eu andava à procura, perguntando quem era que gemia, ouvi a voz do Abdulai a dizer que estava ferido. Encontrei-o sentado. Disse-me que tinha as pernas partidas.

Quando me pus a observar o que ele tinha, estava muito escuro, apalpei-lhe as pernas para ver da gravidade do ferimento e reparei que o Abdulai tinha as pernas feridas, dos pés às ancas, tudo esfacelado e partido. Pensei que não iria viver mais que alguns minutos.

–  Não me deixem aqui   
–  disse-me ele.

–  Não te deixo cá, ficas garantido, vou buscar reforço para te levar para um local mais seguro.


Corri para o Saiegh e disse-lhe que o Abdulai estava com feridas muito graves e que estava também um corpo perto dele, não descobri quem. Arranjei sete homens que foram comigo até ao local, sempre a corrermos, e quando olhei para trás só estava um comigo, o 1º cabo Mussa Djamanca, da 1ª CCmds.

Que é que aconteceu aos outros? Voltámos ao Saiegh, eu e o cabo, à procura dos outros. Esta história repetiu-se e da última vez ouvimos alguém chamar o comandante, pelo nome que era chamado em casa, pelo irmão e parentes da sua mãe.

Quando chegámos junto do tenente,  disse-lhe que tinham fugido todos, só estava eu e o Mussa. E acrescentei que tinha ouvido alguém chamar pelo Zick, o nome por que era tratado o Saiegh em família.

 
–  Onde ouviste? –  perguntou o Saiegh.

 –  Nos cajueiros!


Então, ele perguntou se alguém tinha visto o irmão dele, depois do ataque. Ninguém tinha visto. Passou para a frente e disse:

–   Porra, vamos embora, ninguém fica!

Segui-o até ao local onde estava o Abdulai Djaló e um corpo, o do Demba Dembo. Mostrei-lhe o local e, como não se via nada, ele perguntou-me de quem era esse corpo.

–  Não sei, não se vê nada com esta escuridão é difícil reconhecer de quem é o corpo. 

Quando estávamos nesta conversa, ouvimos chamar Zick. Então, ele, rápido, disse:

–  Amadu, levem daqui o Djaló e o corpo, enquanto nós vamos buscar o ferido aos cajueiros.

Para levarmos o Abdulai eram precisos quatro homens. Como os pés estavam desfeitos, não podíamos arrastá-lo pelo chão, duas pessoas pegaram nos braços e levámo-lo até debaixo de um mangueiro, onde estava o Saiegh. Quando o depositámos no chão, o Abdulai perguntou-me quando vinha o heli buscar os feridos.

–  Agora não pode ser, Abdulai, só de manhã.

–  Não aguento, vou morrer aqui!

–  Por que não aguentas, Abdulai?

–  Estou a perder muito sangue!

Na altura, tínhamos três feridos deitados neste local. Eram eles, o Abdulai Djaló, o Samba Bangura e o Vicente Malefo, todos atingidos nas pernas. Como gemiam alto, pedi ao enfermeiro, que era um Comando também, chamado Samba Tala, para dar umas picadas neles todos, para parar a hemorragia e para lhes tirar as dores. 

 Abdulai foi o primeiro a quem o enfermeiro deu uma injecção e ouvi-o dizer:

– Allahu Akbar,Allahu Akbar,Allahu Akbar!!! (**)

Quando acabou de falar no nome de Deus três vezes, calou-se de uma vez, boca e olhos abertos, olhando fixo. Abdulai tinha acabado de morrer.

Então, abandonei o local e fui ao encontro do Zacarias Saiegh. Nem me deixou sentar.

–  Trata-me aí do Malefo, está a fazer muito barulho.

Fui para junto dele, voltei a chamar o Samba Tala e pedi-lhe para lhe dar uma picada. Momentos depois, calou-se, não gemeu mais, já não devia ter dores. Isto tudo passou-se entre as 19h30 e as 21h00. A partir desta hora houve um silêncio total.

Entre as 02 e as 03h00[6], o PAIGC tentou acabar connosco. Tiros de canhão sem recuo e de armas automáticas amarraram-nos ao chão, ninguém conseguia levantar a cabeça. Quando o tiroteio acalmou, vi um militar da nossa companhia a correr. Insultei-o e mandei-o voltar para trás. Regressou para o pé de mim, a dizer:

–   Meu sargento, já foram todos, o comandante não está ali. Venha ver se está lá alguém nosso!

Levantei-me, fui atrás dele até ao local onde estava o comandante. Ninguém, ninguém estava ali, só os corpos. Continuámos a sair dali, a pouca distância um do outro e encontrámos um pequeno grupo de quatro companheiros. Éramos um grupo de sargentos: eu, os 2ºs Sargentos Vasconcelos e o Damo Baldé e os Furriéis Mamadu Djaquité, Facene Sama e Abu Seide. Corremos uma curta distância, talvez 100 metros. Parámos, não podíamos ir mais longe, os feridos estavam para trás.

–  Vamos para o lado das bananeiras 
–   disse-me o Vasconcelos. 

–  Para as bananeiras, não  –  disse eu. –  Se eles passarem por aqui, para onde podiam fazer fogo? Para as bananeiras, que é um local bom para pessoal se esconder, ou não?

–  Então, para onde vamos?

–  Ficar aqui, neste local descampado, sem árvores. Não tem nada, nada que leve a desconfiar que está aqui gente!

Concordaram. Aqui ficámos até às 05h00, mais minuto menos minuto. Estava a romper a aurora, tirei um cigarro, raspei um fósforo e disse para o lado que ia fumar um cigarro, que já era de manhã. Pediram todos logo licença para fumar também. Desloquei-me para o local onde tínhamos deixado os feridos.

Eu tinha ouvido tiros dirigidos para o local onde estavam os feridos e, mais tarde fogo sobre a zona dos mangueiros. Foi nesta altura que acabaram com Malefo, deram-lhe um tiro no peito. E, no regresso, fizeram a mesma coisa, abriram fogo na zona das bananeiras, que até começou um pequeno incêndio, que não durou muito, felizmente.

Fomos avançando, para ver se descobríamos algum companheiro nosso. Ouvimos alguém responder à nossa chamada, era o Samba Bangura.

Dirigi-me ao frriel Mamadu Djaquité, muito conhecido entre nós por Pélé e pedi-lhe para o irem buscar, enquanto eu ia procurar o Malefo. Encontrei-o morto, com um tiro no peito.

Naquela ocasião estava a chegar-se a nós, um grupo de cerca de vinte companheiros, com o respectivo comandante, que andava também à nossa procura e se vinham reunir a nós.

Eram quase 06h00, quando ouvimos o ruído de uma avioneta a sobrevoar a  zona. Chamaram-nos por rádio, pedindo que assinalássemos a nossa posição. E depois, ouvimos da avioneta chamarem o helicanhão, indicando-lhe onde nós estávamos. 

Apareceu no ar outro heli, que vim a saber que trazia o major Almeida Bruno, eram para aí 06h30, os dois helis no ar, em cima de nós. E foi, a partir desta altura, que o major Bruno tomou conta das operações. Em primeiro lugar as evacuações dos feridos, depois os mortos e a seguir recuperar o pessoal das companhias.

O major virou-se para mim e disse:

–  Amadu, ficas com o teu grupo a montar a segurança, enquanto trato da retirada das companhias para Mansabá, para seguirem depois, em coluna, para Bissau.

Montei a segurança e, quando estavam a entrar os últimos, avisou-nos:

–   Como estão a ver, a partir de agora somos só um grupo, estamos sem segurança. Portanto, temos que ser muito rápidos, quando chegarem os helis, corremos todos, ocupamos os lugares, sem hesitações.

Quando os helis levantaram com o penúltimo grupo, preparámo-nos e ficámos à espera. Depois, quando pousaram, arrancámos ordenadamente. Quando o heli em que eu ia estava a levantar, fiquei a olhar cá para baixo, para os cajueiros, até desaparecerem de vista. Da minha vista desapareceu, da minha memória não, ficou lá gravada aquela noite, até hoje.

O erro cometido pelo tenente Saiegh e pelos quadros todos foi fatal para todos nós. Para os que morreram foi completamente fatal, morreram ingloriamente. Para os que sobreviveram, como eu, foi fatal porque foi um momento que não recordo como glorioso. Saí dali com o sentimento de que tinha sofrido uma derrota. Mas é a guerra e a guerra é mesmo assim.

As nossas normas de Comandos foram completamente violadas. Um pequeno alto, um alto provisório, um bivaque clandestino. Tudo o que gastarmos, nem que sejam horas e horas na preparação, tem que ser respeitado. Se não respeitarmos, se cometermos um erro, pode perder-se uma vida.

Nós cometemos vários erros naquela noite. Tivemos cinco mortos[7] nos cajueiros, um ferido muito grave, catorze graves e vários[8] ligeiros, que nem contámos. Os mortos, sim, contámos: Aliu Djaquité, Quintino Gomes, Demba Dembo, Abdulai Djaló e Vicente Malefo. O ferido grave foi o Sam Bangorá. Dos feridos ligeiros não importa falar, nem me lembro quem foram.


Eu saí dali sem uma arranhadura.

Conforme escrevi atrás, o meu grupo ficou com o major Almeida Bruno no terreno. Íamos ser os últimos a retirar. Era perigoso, o local estava bem no centro de Morés, perto do quartel-general do PAIGC, segundo se dizia e, à volta, havia dezenas de pequenos acampamentos. 

Era uma boa altura para eles concentrarem todo o fogo em cima de tão pouca gente. Força para isso, eles tinham. Morteiros, armas pesadas, canhões sem recuo, armas automáticas, naquela área não lhes faltava material. Por isso, eu estava consciente que a retirada nos poderia custar algumas vidas mais. Mas, para além de nós, que estávamos numa clareira e com pouca natureza para nos abrigarmos, tínhamos em cima de nós, pronto a disparar o helicanhão. E ainda os bombardeiros, mortos por entrarem na guerra.

Mas eles deviam estar satisfeitos com os estragos que nos causaram, para além do que devem ter sofrido também. Certo é que, numa guerra destas, nem há vitórias nem derrotas completas. O Oio foi uma das primeiras zonas, onde o PAIGC reclamou área libertada, quase ainda no início da guerra.

Quando os helis levantaram para Bissau, íamos calados a olhar para os cajueiros até desaparecerem da nossa vista, mas as imagens da noite estavam gravadas definitivamente nas nossas memórias. 

Para mim, o dia 24 de Dezembro de 1971, é uma data inesquecível. Uma data amarga, para mim e para muitas famílias. A tristeza invadiu as nossas famílias, os nossos amigos e a gente de Bissau, que nos conhecia.

Chegámos ainda antes do meio-dia, com os familiares à nossa espera. Dos que ainda vinham em coluna de Mansabá, não tínhamos ainda resposta para lhes dar. Mesmo que os acalmássemos e disséssemos que estavam bem, não acreditavam. Assim era melhor ficarmos calados e esperarmos a chegada deles.

Não pude deixar de pensar e recordar, no voo de regresso do meu grupo a Bissau, nos companheiros que terminaram as carreiras e as suas vidas naquele local, chamado Morés.

O inimigo mereceu esta vitória sobre os Comandos? Se encararmos a negligência com que foi escolhido o local para passarmos a noite naquele local dos cajueiros, onde o Saiegh nos aguardava desde o meio dia, se pensarmos bem na desobediência às nossas regras de combate, então foi bem merecida a nossa derrota.

Os nossos instrutores nunca nos disseram para nos sentirmos mais confiantes se fossemos muitos. A nossa preparação era para nos tornar homens mais duros, mais fortes, mais eficazes. Mas que nunca nos devíamos considerar nem melhores nem piores, apenas diferentes. Numa palavra: Comandos. (***)

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Notas do autor ou do editor literário (VB)


[1] Nota do editor: operação “Safira Solitária”, 20/24 Dezembro 1971.

[2] Base aérea em Bissalanca, arredores de Bissau.

[3] Nas imediações do itinerário entre Bissorã e Mansabá.

[4] Nota do editor: o Soldado Aliu Jaquité, da 1ªCCmds, “na noite de 23/24 Dezembro, após receber ordem para retirar, respondeu que um Comando só retira pelos braços de um camarada. Tendo avistado alguns elementos IN a meia dúzia de metros da sua posição, abriu fogo com a sua arma ligeira, abatendo-os, tendo sido por isso referenciado, sendo morto de seguida por uma granada de RPG-2.” Relatório da operação “Safira Solitária”.

 [5] Em árabe, Abdulai quer dizer “Escravo de Deus”

[6] Nota do editor: 22 Dezembro 1971.

[7] Nota do editor: oito no total, segundo o relatório da operação “Safira Solitária” (***)

[8] Nota do editor: quarenta e cinco, segundo o relatório.

[ Seleção / adaptação / revisão / fixação de texto / negritos, para efeitos de publicação deste poste no blogue: L.G.] (****)

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(**)  Deus é Grande, em árabe.

(***) O "pessimismo" do Amadu Djaló contrasta com o louvor dado, já em 1972, à 1ª e 2ª CCmds Adricanos,  pelo gen Spínola pelo seu brilhante e audacioso desempenho operacional, até então, com destaque para a Op Safira Solitária...Oportunamente faremos um poste com o teor desse louvor.

(****) Operação "Safira Solitária" - 20 a 24Dez1971:

Na região de Morés-Santambato- Tambato-Gã Farã- Talicó-Cambajo--larom-Siure, 04 e COP 6, forças da lª e 2CCmds Afr efectuaram ma nomadização. O ln reagiu por 21 vezes à penetração e progressão das NT, com maior intensidade nas regiões de Cubonge e Morés.

Foram causados ao ln 54 mortos confirmados, bastantes feridos e 83 elementos da milícias locais, todos armados, também mortos que reagiram à acção das NF. 

As NT sofreram 8 mortos, 15 feridos graves e 44 ligeiros. Recuperados 28 elementos da população, 2 esautom "Simonov", 2 eautom "Kalashnikov" com cinco carregadores, 1 esp
"Mosin-Nagant", 1 ml "MG-42", 1 "longa" e 2 gran lgfog "RPG-2".

Foi destruído um acampamento ln.

Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro III; 1.ª Edição; Lisboa (2015), pp. 293-294 (Com a devida vénia...)

segunda-feira, 26 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24433: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (2): Que Alá te proteja dos teus amigos, que dos inimigos cuidas tu!

A granada de mão defensiva
m/63, que equipava o dilagrama 
(**)


Contos com mural ao fundo (2) > Que Alá te proteja dos teus amigos, que dos inimigos cuidas tu!


por Luís Graça  (*)



A guerra. Essa coisa tão primordial que é a guerra. Que estaria inscrita no nosso ADN, a acreditar nos sociobiólogos para quem o comportamento humano
seria geneticamente determinado.

A guerra é a continuação da evolução por outros meios, dirão os entomólogos, especialistas em insetos sociais. Para eles, a morte de uma ou de um milhão de formigas (ou de seres humanos...) é-lhes totalmente indiferente. Desde que triunfe o ADN, um projecto de ADN musculado, duma "raça" nova e superior... (Onde é que o leitor já leu isto?)

A guerra, a aprendizagem da morte. Aos vinte e dois anos. A inocência que se perde para sempre, ao ver-se morrer pela primeira vez um homem ao nosso lado. De morte matada. Como o Alfa Baldé.

Que Alá te proteja dos teus amigos, que dos inimigos cuidas tu!... Mas não te protegeu, Alfa Baldé, a ti, que acabaste por ser morto pelo "fogo amigo"... Suprema ironia!... (E levavas o corpo "fechado", isto é, coberto de amuletos, os teus "mesinhos", tal como eu levava um fio de ouro com um crucifixo ao peito, mesmo não sendo crente.)

Descansa em paz, soldado de "tropa-macaca"... Sim, a  tua companhia, os teus camaradas, o teu  bando de primatas sociais, territoriais, predadores, filhos das mais desvairadas gentes, brancos e negros... eram "tropa-macaca"... Sem desprimor, sem qualquer conotação racista...

Descansa em paz, grande herói. (Não, não  usemos em vão a palavra "herói", e muito menos "grande"; está tão banalizada na guerra: os "heróis do 10 de junho", de um lado, os "heróis da liberdade da pátria", do outro... quem foram, afinal? E por onde param as suas cinzas, os seus restos mortais, as suas cruzes de guerra, as suas torres, as suas espadas?!...)

Fazias parte da nova força africana, de Herr Spínola, o "prussiano", como alguém dos "tugas" gostava de chamar-lhe, ao Comandante-Chefe. Lembras-te ainda do "Caco Baldé", o "homem grande" de Bissau?!... Tinha  uma voz de ventríloquo, quando discursava às tropas em parada, em Brá!... 

Na sua alcunha, tinha o teu apelido, "Baldé". Alegadamente, por ser amigo dos "guinéus", e em particular do teu povo, os fulas. Mas também dos manjacos e dos demais povos da tua terra, balantas, mandigas, biafadas, etc. Usava um monóculo, o "Caco", de vidro, completamente ridículo...  Dava-lhe um ar de figura de cera, uma peça de museu... Nem todos os "tugas" gostavam dele, do Com-Chefe... Talvez os soldados o admirassem, por causa  daquele autoritarismo paternalista  donde afinal muitos eram oriundos, e onde foram nados e criados... Pai e patrão... "Sua benção, meu pai e meu amo"... Muitos, afinal, eram filhos de pequenos camponeses, pais e patrões, que davam o pão, a sopa, o sopapo e a educação...

Não, não tens que te lembrar do Com-Chefe, não ligues a esta  provocação, são outros contos, outras estórias, outras lendas e narrativas, outros ajustes de contas com as velhas doridas memórias  dos "tugas", que estavam ali para defender o teu "cháo", diziam eles.

O Alfa Baldé era do regulado de Badora... É indecente um gajo esquecer o nome da tabanca de um camarada que foi o primeiro a morrer em combate. De morte matada. Morto pelo "fogo amigo".

Mas quem se lembra já da cara dos seus camaradas guineenses?!... Que tinham filhos e  mulheres  que também andavam na guerra, com a tralha às costas, os poucos haveres, os colchões, os cães, as cabras, os balaios, os alguidares, os tachos, as panelas... Ninguém se lembra... Não havia sequer um fotógrafo, um fotocine, nesse triste evento. Ficaram lá, os órfãos e as viúvas, sozinhos neste mundo. Ou talvez não: terão ficado a cargo de algum irmão mais velho, seguindo os usos e costumes do seu povo, o levirato, que já vem dos tempos bíblicos...

Descansa em paz, Alfa Baldé!... Dorme agora o teu sono eterno, debaixo do poilão secular, na tua tabanca. No chão fula, belíssimo poilão de uma triste tabanca fula, cercada de arame farpado, cavalos de frisa, trincheiras, espaldões e valas de abrigo por todos os lados. 

Tudo, afinal, por causa do Mamadu Indjai, o "Terrível". Jurou pôr o teu "chão" a ferro e fogo. E esteve quase  a consegui-lo, se não tivesse levado prematuramente uma rajada de G3 quando retirava para a península do Galo Corubal.  Não contava com os "velhinhos" de Mansambo, emboscados... Sobreviveu aos ferimentos   e foi ainda evacuado para um hospital  no estrangeiro... De um daqueles países que apoiavam o Amílcar Cabral... 

Lembras-te?  Nunca o viste, mas era o chefe do Mamadu Indjai, esse Cabral... Dizem que nasceu em Bafatá, no teu "chão", era teu vizinho.  Filho de pai cabo-verdiano e mãe guineense. Faz sentido hoje este discurso racializado, o de saber se era mais cabo-verdiano de pai ou mais guineense de mãe?

Desculpa, passa em frente, os "tugas" têm o dom de complicar as coisas simples... Mas também é verdade, para os teus camaradas fulas da companhia, o Amílcar Cabral nunca teria sido guineense...

Os teus campos, Alfa Baldé, esses,  ficaram tristes e inférteis. Já não davam o milho painço nem o fundo, nem a mancarra, nem a noz de cola, nem o arroz de sequeiro. Os homens partiram para guerra. E os mais velhos eram milícias, na tua tabanca organizada em autodefesa. 

A guerra era agora a principal ocupação de todos. E a morte um modo de vida. Compravam o arroz na Casa Gouveia ou no Rendeiro com o "patacão" da guerra.  Nem os "djubis" guardavam já os campos de mancarra, das investidas dos macacos-cães. De Mauser em punho, que a milícia agora usava a G3. Aprendiam cedo a usar uma arma, os "djubis"...

Alguns dos  guerreiros do teu povo, como tu, voltavam agora numa caixão de pinho. Restavam os macabros "jagudis" poisados no alto da morança dos mortos, cheirando a morte, pressagiando a desgraça, esperando as vísceras das vacas que iriam ser abatidas, esfoladas e comidas nas cerimónias do "choro".

Setembro de 1969. Operação Pato Marreco. Ou era a Ganso Pimpão? Ou a Pavão Real? Ou a Cisne Depenado? 

Que importa, agora, o nome de código da operação!... O Alfa Baldé morreu em linha, num golpe de mão a um acampamento. No assalto a um aquartelamento temporário do IN ("barraca", diziam eles), próximo do Poindom / Ponta do Inglês, o "matadouro" do Xime, o "fojo do lobo"...

Não, não havia lobos na Guiné, as populações locais chamavam lobo à hiena... Mas é uma metáfora, "foj0 do lobo", aquelas penínsulas, na margem direita do rio Corubal, nos regulados do Xime e do Corubal: Poindom / Ponta do Inglês, Baio / Buruntoni, Galo Corubal / Satecutá... Tal como Madina / Belel, já no limite do regulado do Cuor, a norte do Enxalé...

"Fojos do lobo", triângulos assassinos, ratoeiras, matadouros... 

IN? Que estranho termo... IN, abreviatura de inimigo, usado nos relatórios de operações.  O "tuga" usava-o por força do hábito, por comodidade, por lassidão, por economia de análise. Para ti, era o "turra". Para muitos dos "tugas", era também o "turra", corruptela de "terrorista"... Em qualquer guerra, o inimigo tem que ter um nome, uma alcunha, um rosto, uma bandeira... De preferência, um nome depreciativo, que provoque asco, ódio, desprezo... Um gajo não mata por nada, tem que ter uma boa razão para matar e morrer. Tem  que aprender a odiar. Depois do ódio é mais fácil matar e morrer....

Curioso, nunca soube a tua idade, mas eras dos mais velhos, dos que não tinham idade bem definida. Os que chamávamos "homens grandes" da companhia... Não tinhas bilhete de identidade de cidadão português. Eras um fula preto, um fula forro, arrebanhado para aquela guerra. Não, não eras futa-fula, nem da antiga nobreza do Futa Djalon... 

Levaram-te a enterrar na tua aldeia, os camaradas do teu pelotão, foram  dizer-te o último adeus. Com honras militares, tiros de salva, e a bandeira verde-rubra dos "tugas" por cima do teu caixão. De pinho. Do verde pinho de Portugal. Talvez do pinhal de Leiria, que ardeu de vez num dos verões  passados. Ardeu como estão a ardeu agora as tuas florestas... para depois fazerem grandes plantações de palmeiras de dendém  ou de frutos tropicais...

Nem isto te deixaram fazer,  as coisas à maneira dos teus. Afinal, eras um soldado, regular, do exército português. "Colonialista", denunciava  a "Maria Turra", na rádio lá de Conacri... Não, não era a mulher do Cabral, como tu pensavas... Mas também não importa, já nada importa, a um crente, bom cristão ou bom muçulmano, depois de "lerpar"... (Lerpar, morrer, é a mesma coisa, para os "tugas".)

Cumprias o teu serviço militar obrigatório, como qualquer cidadão português. Tinhas, contudo, mais deveres do que direitos. Tinhas sido milícia. Tratavam-te como soldado de 2.ª classe, por não saberes ler nem escrever português... Eras do recrutamento local.  E a "Maria Turra" chamava-te 'cachorro", cão dos colonialistas... Cabral também te chamava 'cachorro', colaboracionista, à semelhança dos "darkis" na Argélia... 

Se não tivesses morrido, quatro meses depois de jurares bandeira perante o "homem grande" de Bissau, e se tivesses chegado ao fim da guerra, que estava ainda para durar, irias ter "manga de  chatice".  Nunca falámos disso... Aliás, muitas coisas ficaram por falar entre nós... Os novos senhores da guerra não gostavam de ti, que eras um "cachorro dos colonialistas", proclamava a  "Maria Turra", em portuguès e em crioulo, confirmava o Amílcar Cabral, vociferava o Mamadu Indjai no cerco a Candamã. E nos papéis que deixou espalhados pelos trilhos...

Todos os exércitos têm normas, regulamentos, protocolos... O enterro do Alfa Baldé fez-se segundo uma NEP qualquer... A burocracia militar previa tudo ou quase tudo... Não chegaram a chumbar o caixão, não houve tempo de esperar pelo "cangalheiro" de Bissau... Nem o caixão era de chumbo... A caminho da aldeia natal do falecido, em dois ou três Unimog, a tropa ia no "gosse gosse", com medo que o cadáver começasse a cheirar mal. E já cheirava... Com quarenta e tal graus ao sol e 100% de humidade, nesse setembro de 1969, o pobre do Afa Baldé já cheirava mal, já fedia...

E o "pavão" do teu "alfero" ia à frente, de peito feito ao vento, pela estrada fora... Como é que vocês lhe chamavam?... O "alfero Manga de Ronco"... (Todos os "tugas" tinham alcunhas, eu também devia ter, seguramente, mas nunca mo disseste, à minha frente... A do "alfero", se bem me lembro, era por ele gostar de fazer umas festinhas âs bajudas de "mama firma", repetindo e comprovando com o dedo, que depois  levava aos lábios: "Manga de ronco, manga de ronco!"...)

 Lá ia ele, impante, sem pudor ou qualquer remorso por te ter morto, a ti e ao prisioneiro que nos servia de guia, e ferido uma porrada de malta.

Lá ia ele, de pé no Unimog, desafiando minas, armadilhas, emboscadas, aparentemente ignorando ou escamoteando os sentimentos dos seus subordinados, a tristeza das gentes da tabanca... Desafiando os ventos da História que já sopravam fortes naquele mês de setembro e ano de 1969... 

Havia quem não gostasse dele, até os seus soldados lhe chamavam-lhe o "alfero que tem Manga de Mania"... Competia pelos favores do capitão e quiçá batia-se a uma cruz de guerra, com o "Cabra-Matchu", o outro "alfero" que era de operações especiais...

E ele até nem desgostava da alcunha, o "Manga de Ronco"... Pequeno, entroncado, primeiro classificado no CSM, o que lhe valeu uma "promoção", a entrada no COM, o curso de oficiais milicianos, na "Máfrica", a fábrica de oficiais milicianos com destino à "guerra do ultramar", diziam uns, ou "guerra colonial", diziam outros. 

Foi bom na prova de tiro, e no trampolim e na marcha. Aldrabou os psicoténicos e os instrutores. Tinha lábia. Era chico-esperto. Valente, sem dúvida. Voluntarioso, com certeza. Mas "mau oficial e  pior cavalheiro", diziam entre dentes os seus criticos.... Terá sido um erro de "casting":  não tinha qualidades de comando e liderança, para além dos punhos e da genica. Muito menos tinha ética.   Fez um discurso "patrioteiro", que ninguém terá entendido, crianças, bajudas, mulheres e velhos da tua aldeia. Nem sequer os seus próprios soldados, acabrunhados com o seu primeiro morto, de morte matada, morto por "fogo amigo", morto ironicamente pelo seu comandante.

"Honra e Glória ao bravo soldado Alfa Baldé, que deu a vida pela Pátria!"... Ele falava em português, e não havia sequer um intérprete. Nem muito menos tempo para grandes discursos. 

Honra e Glória !... Pátria?!... Não é fácil explicar o que querem dizer estes conceitos, sobretudo a ti que nunca chegaste a frequentar o posto escolar militar... Tinhas lá tu tempo de frequentar a escolinha dos "djubis"!..

Portugal, a pátria longínqua?!... "Heróis do mar, nobre povo, nação valente e imortal..". Sabias tu, ao menos,  o hino nacional?...  Nem isso, não tivestes tempo de o decorar e cantar, de cor e salteado......

Ainda te lembras de ouvir falar de Portugal, de lá longe, muito longe? 
Os senhores que vieram do Norte e do lado mar... Não, não vieram pelo deserto, pelas caravanas de dromedários (sim, que no Saara, não havia camelos). Esses, foram outros, árabes, bérberes, tuaregues, mandingas do reino do Mali, abrindo as rotas subsarianas do ouro, do marfim e da escravatura. Depois é que vieram os "tugas" e os outros europeus ocupar e retalhar, tardiamente, a tua África negra, profunda, berço de todos nós... 

Os teus antepassados da Senegâmbia  foram escravizados, muitos foram parar ao Novo Mundo, aos engenhos de açúcar e às plantações de algodão. Outros, quiçá, trabalharam nos arrozais do rio Sado. Ou eram escravos domésticos em Lisboa. Como já antes tinham sido escrvizados pelos árabes, os mouros, os mandingas do império do Mali...

Não, não tens que saber de geografia. Nem de história. Nem de geopolítica. Nem de antropologia. Muito menos  de teologia. No sítio onde tu moras agora, debaixo do teu poilão, já não te servem para nada os conhecimentos de geografia, história, geopolítica ou antropologia. E a teologia dos marabus, dos imãs e dos chernos só te vai baralhar a procura do caminho que te há de levar à eternidade...

Insha'Allah, algum senhor da guerra, do teu país, não venha um dia destes autorizar o abate do teu poilão, a troco de um punhado de yuans (ou iuanes), o patacão chinês, a nova moeda com que se tenta subornar os novos líderes do teu povo... 

Sabes, dizem que estão a dar cabo das florestas da tua terra, da tua África. O deserto do Saara já espreita às portas do "chão" felupe, mais a Norte. Os "madeireiros" não têm pátria nem ideologia. E já não usam machados. Abatem uma árvore centenária enquanto o crocodilo do Cacheu engole um macaco-cão. Como outrora os velhos carvalhos da Europa ou as sequoias da América.

Bolas! Um gajo não se recordar do nome da aldeia do Alfa Baldé, no "chão" fula!... Nem sequer os seus mangueiros e os seus poilões... A secção que eu comandava, esteve lá uma semana ou duas, um mês antes do Alfa Baldé morrer. Essa tabanca, pelas notas, amarelecidas, do meu diário, ficava no limite do regulado de Badora, a sul, já a confinar com o regulado do Corubal.

O Alfa Baldé esteve lá comigo. Vinha-me a ajudar a acender o lume ao fim da tarde, para aquecermos as rações de combate, eu e o transmissões... Ou grelhar um frango ou um naco naco de carne de caça..... Partilhava com ele a ceia, antes que o sol incendiasse o céu e a savana. (À noite apagavam-se todas as fogueiras, por causa dos "snippers" do Mamadu Indjai. Estava em vigor o "black out" total. Até o cigarro era proibido.)

Esqueci o nome da tua tabanca mas o teu nome, esse não esqueci, Alfa Baldé, apontador de dilagrama, o melhor da companhia. Esqueci foi o lugar onde nasceste e te fomos enterrar, talvez Sinchã ou Saré qualquer-coisa, é imperdoável... (Nem sequer uma chapa de metal, com o teu nome e número mecanográfico, lá deixaram cravada no teu poilão!)

Passámos lá uns belos dias, eu, tu e a nossa secção. Felizmente que o Mamadu Indjai não nos importunou dessa vez , mas andou a pôr o vizinho regulado do Corubal a ferro e fogo, como ele jurou... Jurou, cumpriu e fez cumprir. 

Mamadu Indjai, um senhor da guerra do PAIGC, que acabará também miseravelmente fuzilado nas matas do Boé, em 1973, depois de atentar contra a vida do seu chefe, o "pai da Pátria"... (Pátria... como explicar-te?!... Não é fácil.) 

Mas era também um"cabra-matchu",  valente, "herói da luta de libertação", esse Mamadu Indjai... É assim, querido Alfa, todas as revoluções devoram os seus filhos: Cabral, Indjai, Mané, 'Nino'... Ontem, como hoje. Na tua terra ou na minha.

Falavas pouco e mal o português, mas eras um exímio caçador, e um terrível "snipper" (a 50 metros eras capaz de arrancar a cabeça de um inimigo, se tu fosses apontador do lança-granadas-foguete 37 mm; mas o "pimpão" do teu comandante, estupidamente, obrigou-te a ser apontador de dilagrama, o que tu nunca gostaste)... 

Snipper, black-out, casting...são palavras de outras língua, o inglês, esquece. Mas o que agora queria dizer-te, Alfa Baldé, cinquenta anos depois da tua morte, e é isso que importa, é que chorei por ti, confesso que chorei por ti, que morreste a meu lado, e que levavas um prisioneiro, teu irmão, pela mão. Não sei se um balanta, biafada ou mandinga é teu irmão, tu que és fula preto... Mas deixa lá...  

É uma vergonha um gajo, um "cabra-macho" de um "tuga", vir aqui dizer que chorou por outro homem, combatente, seu camarada de armas. Um homem não chora, dizia o meu pai, o meu velho, que escondia a lágrima fácil com os seus ditos de ocasião  e os seus trejeitos.....

Tu que nem sequer eras meu irmão, nem grande nem pequeno. Eras apenas meu camarada de armas. Nem tinhas a mesma cor de pele. Nem a mesma religião. Nem a mesma língua. Nem talvez a mesma pátria.(Não posos falar pir ti e pelos teus sentimentos.) Nem o mesmo continente. Não comias carne de porco. Nem bebias "água de Lisboa". Eras apenas um "guinéu", soldado de 2.ª classe, exímio caçador e o melhor apontador de dilagrama (e de LGFog 37 mm)  da companhia. E o primeiro a morrer em combate, "vítima de fogo amigo", que estranha ironia!...

Ganhava, o Alfa Baldé, 600 pesos de pré, o equivalente a um saco de arroz por mês para alimentar a família numerosa, mais 24$50 por dia, por ser desarranchado. "Manga de patacão", dizia o sacana do sorja da secretaria que, antes de partir para a Escola Central de Sargentos, ainda queria "embrulhar em papel selado"  uns. "sacanas de uns nharros" que não lhe bateram a pala... E que, depois, queria fazer pagar o caixão de pinho do Alfa Baldé com o dinheiro do ronco que a companhia ganhara na tal operação Pato Marreco. (Ou era a Ganso Pimpão? Ou a Pavão Real? Ou a Cisne Depenado?)... Trinta ou quarenta contos de material apreendido aos "turras, nessa operação, valiam hoje qualquer  coisa como 10 mil a 13,5 mil euros... O capitão que, apesar de tudo era um gajo dcecente, recusou-se a aceitar essa sórdida contabilidade do deve e haver da tropa... Um herói de Portugal tinha direito a um caixão, mesmo foleiro, de pinho...

Não, não eras um homem de grandes falas, e o teu léxico em português era bem escasso para a gente poder manter um diálogo aprofundado sobre a tua vida e a do teu povo, e a sua história. Eu fazia muitas perguntas, às quais nem sempre sabias responder. E,  se respondias, eras lacónico...

Para mim, eras apenas um homem, da subespécie "Homo Sapiens Sapiens". A única que chegara até aos nossos dias. E que, convém recordá-lo, nascera do seio úbere da Mãe África. Somos todos descendentes de africanos que acabaram por colonizar e povoar o planeta.

Tu foste o primeiro homem, género "Homo", espécie "Homo Sapiens",  subespécie "Homo Sapiens Sapiens", que eu vi morrer a meu lado. Nunca mais chorei por ninguém, por mais nenhum morto, acredita. Chorei por ti, Alfa Baldé. Chorei de raiva, de impotência e de dor.

Nascemos meninos, tu e eu, e o Conté, o nosso guia-prisioneiro, mas fizeram-nos soldados. Azar o meu e o teu, e o do Conté, por termos nascido no sítio errado, no tempo errado.

Imagino-te "djubi", à volta da fogueira, na morança do "cherno" da tua tabanca, decorando o Corão. Uma das cenas mais lindas que eu trouxe da tua tabanca, e que eu guardo na minha memória, os "djubis" à volta da fogueira, ao fim da tarde, soletrando as letras das tabuínhas em árabe. 

Lembras-te de ainda teres querido aprender as letras dos "tugas", o alfabeto latino, para poderes ser soldado arvorado e um dia chegares a 1.º cabo como o  Gomes, que era tua etnia, ou o Sampaio, que era papel de Bissau, ou o Lopes, que era cabo-verdiano da ilha da Brava. Mas a atividade operacional da companhia era intensa e muito pouco tempo sobrava para poderes frequentar a escola, o posto escolar militar, do furriel Veloso. Além disso, tinhas uma família, duas mulheres, dois filhos, um terceiro a caminho... Chegavas cansado e esfomeado à tua morança, fora do quartel onde estávamos sediados.

"Fight or flight". Luta ou foge, "tuga". Não precisei de fugir nem de lutar. Recusei o egoísmo genético. Recusei a lógica absurda, simplista, dicotómica, de matar ou morrer. Recusei o cinismo. Recusei a G3 em posição automática.
Recusei a fria e calculista resignação com que se juntavam e amortalhavam
os cadáveres seguintes. E se contavam nas paredes da caserna os dias que faltavam para a peluda.

Cinquenta anos depois, meio século, dois terços da esperança média de vida de um homem do hemisfério norte, venho dizer aqui em voz alta, 
as palavras que ninguém disse ao Alfa Baldé, no grotesco enterro que lhe fizeram em Sinchã ou Saré qualquer-coisa, a sua terra natal. 

E de repente, o capim. O capim alto. O sangue. 

Dilagrama
O capim pisado e empapado de sangue. Pobre Alfa, morto pelo teu próprio  dilagrama", erradamente empunhado pelo teu comandante.  Alguém branqueou a tua morte no relatório da operação. Alguém quis salvar a honra da companhia. Alguém safou o teu comandante de pelotão de uma eventual porrada do Spínola. Um dilagrama rebentou no ar, na tua cara e na minha cara e na cara dos nossos camaradas de secção. E na cara do Conté. O teu dilagrama, empunhado pelo "alfero Manga de Ronco".

O que é que lhe terá dado, ao teu "alfero", para à última hora ter decidido tirar-te o dilagrama e ter-te confiado o prisioneiro, Conté, que estava à guarda do Mamadu Camará?!

Disseram-te, na instrução da tropa, que não podias (nem nunca deverias) julgar um oficial, teu superior hierárquico, teu comandante de pelotão ou de companhia. É verdade ele, um dia 
destes, vai morrer na cama, se é que ainda está vivo!... Sem qualquer remorso na consciência "por te ter morto", a ti e ao Conté, e ter provocado vários feridos graves, quando a companhia estava em linha no assalto a uma "barraca" dos "turras"... 

"Homicídio involuntário"? Não, "acidente com arma de fogo", é mais indolor... 
Muito provavelmente o alferes vai morrer em paz e contar aos netos que foi um "herói de guerra do ultramar", com direito a nome de rua lá na aldeia do nordeste transmontano onde ele nascera...

"Acidente com arma de fogo" (segundo o relatório elaborado pelo capitão)
no auge da batalha, quando a companhia avançava em linha, no assalto ao acampamento do IN, levando o Alfa Baldé, pela corda, o guia, que era "turra", prisioneiro, e que lhe fora confiado à última hora. Porque o seu posto era o de soldado, apontador de dilagrama. E era o melhor da companhia.

O que se passou na cabeça do "alfero" que empunhou indevidamente o dilagrama
e largou-o no ar quando, inadvertidamente, saltou a cavilha de segurança?... "Falha técnica" ou "erro humano"? Na tropa há sempre uma explicação para os desastres...


Mais novo do que tu,  o teu "turra" era um jovem mandinga ou biafada (tanto faz, já não me recordo), que apanháramos a norte do Enxalé, tão crente como tu, tão observador dos preceitos corânicos como tu, meu querido "nharro". (Desculpa tratar-te assim,  o termo tem hoje uma conotação racista, mas era coloquial  naquele tempo, "tuga" e "nharro" eram usados sem sentido de ofensa...)

Rebentou, de imediato, a fuzilaria quando o dilagrama explodiu na cara do pessoal. A tua, a nossa, secção já não pôde avançar mais. Tu tiveste morte quase instantânea, ainda balbuciaste umas palavras em fula, que ninguém consegui ouvir e muito menos fixar. Deves ter chamado pela tua mãe, como todos os soldados do mundo na hora da morte... Quando chegou o 1.º cabo auxiliar de enfermagem, o Fafe, para te estancar o sangue e pôr o soro nas veias, já era tarde demais... Um estilhaço de ferro em brasa,  varara-te o coração. O "turra", esse, não morreu logo, mas ficou a agonizar no chão... Ninguém o levou, muito menos o helicóptero... O Fafe abreviu-lhe a mortye dolorosa, com uma dose de morfina... Ficou, ali, à porta da sua antiga "barraca", a agonizar... Ele que nos levara até lá, sem nos tentar enganar, embora temendo que, cumprida a sua tarefa de Judas, alguém lhe pudesse dar no final um tiro atrás da nuca...

A "Maria Turra", em Conacri, irá depois acusar-nos de o termos executado sumariamente... e transformar o pobre do Conté  em mais um "herói da liberdade da pátria"...   Todas as guerras precisam de heróis, de um lado e do outro... Se os seus camaradas o não recolheram, junto com os despojos da batalha, em oito dias as formigas carnívoras e os "jadugis" descarnaram-no e desossaram-no...

Nunca mais lá voltei, à Guiné, Há muitos anos atrás ainda tentei, em vão, arranjar uns restos de coragem e de dignidade. Achava que tinha  uma dívida para com o Alfa Baldé. Morto, por engano. Morto pelo "fogo amigo". E  enterrado na sua tabanca do sul de Badora...

E agora, Alfa Baldé, que foste poupado à humilhação da "derrota" e não viste o teu país sentar-se de pleno direito à mesa do mundo... Que farias tu com esta independência e com esta bandeira tricolor, a da Guiné-Bissau, contra a qual lutaste sem querer, sem saber, sem poder?

Onde estarão os teus filhos, e as tuas mulheres? E os teus netos? E os homens grandes da tua tabanca? E os líderes do teu povo que te obrigaram a combater ao lado dos "tugas"?

Herr Spínola, o homem grande de Bissau, esse já morreu há uns largos anos atrás, ainda no século passado. Há vinte e tal anos.

Não lês os jornais, não chegaste a aprender o alfabeto latino e a juntar as letrinhas para poderes ler o livro da 3.ª classe, com a torre de Belém ao fundo: "Esta é a minha pátria amada"…

Pois é, o homem grande de Bissau morreu, não de morte matada, como a tua, ou a do Conté, ou a do Amílcar Cabral, ou a seu carrasco, o Inocêncio Cani, ou a do 'Nino' Vieira, ou a do Mamadu Indjai... O "Caco Baldé" morreu de acordo com a lei natural das coisas, com 86 anos. Soubeste, com certeza,também  da morte do Cabral e do 'Nino'. Ou talvez não. Nem todas as notícias da terra chegam ao céu...

Quanto ao teu régulo,  foi miseravelmente fuzilado na parada de Bambadinca, o poderoso régulo de Badora, tenente de milícias, o "Cavalo Branco", como a gente o chamava.... 

Coitado, um dia trocou o cavalo branco, símbolo da gesta heróica do Futa Djalon, por uma prosaica motorizada japonesa de 50 centímetros cúbicos...  Dizia-se que fora oferta do Schulz ou do Spínola (que chegou à tua terra em meados de 1968). Pois do Mamadu Bonco Sanhá também se dizia que era dono de centenas de cabeças de gado e de um harém, mas era mentira, de cinquenta mulheres, uma em cada aldeia de Badora… Fantasias sexistas dos "tugas" que pouco ou nada afinal sabiam, coitados,  da história e da cultura do teu povo.

Também se dizia, mas era mentira, que o puto Demba era filho dele, o Demba e mais outros "djubis" da companhia, os nossos putos de 15 e 16 anos. O Demba já morreu, também ele, o puto Demba.  Era de Taibatá e andou fugido pelo Senegal e por todo o Norte de África até chegar a Portugal. Acabou por morrer cá, na terra dos "tugas", no hospital, o terminal da morte. De sida, de turberculose, de miséria, de solidão...

Hoje os heróis do passado sucumbem sob o peso das cruzes de guerra. Ou pedem esmola nas ruas de Bissau ou de Dacar, tal como os teus filhos e netos. Ou morrem de desespero e insolação às portas do templo da deusa Europa, em Ceuta, em Melilha, em Lampedusa, em Lesbos, ou afogando-se nas profundezas do Mediterrâneo...

Que voltas o mundo deu, Alfa Baldé,  desde esse dia já distante em que a tecnologia da guerra ou a lotaria do ADN ou a insensatez de um oficial subalterno "tuga" te ceifou a vida.

Porquê tu, logo  quatro meses depois de jurares bandeira, em Bissau, na presença do general Spínola, e te comprometeres, por tua honra, a defender uma pátria que, afinal,  não era a tua (ou não era bem a tua), "até à última gota do teu sangue"?
 
E agora deixa-me dizer-te, amigo e camarada, à laia de despedida: não sei se um dia ainda terei forças para voltar à tua terra, ao teu "chão". Já estou a ficar velho de mais para poder voltar a viajar para esses sítios de África. Mas se porventura o fizer, gostaria ainda de descobrir o nome da tua aldeia, e de procurar-te e de ter tempo para conversar contigo, só tu e eu, debaixo do teu poilão. Oxalá, Insha'Allah!


Nota do autor: 

Neste conto, os nomes são quase todos fictícios (exceto o do régulo de Badora, e os "históricos" do PAIGC)  mas os factos (e os topónimos) são verdadeiros, no essencial. Acontece que o Mundo é Pequeno, e a nossa Tabanca é... Grande!... Outra advertència: estews contos com mural ao fundo foram escritos em tom intimista, mas para serem lidos em voz alta, esperando-se que o eco da voz do leitor vai bater no tal "mural ao fundo"... Se o leitor quiser "grafitar" o mural, o autor também lhe fica grato. Afinal, quem conta um conto, não é para lhe acrescentar um ponto, mas para ser lido ou escutado. 
 
© Luís Graça (2019). 

Última versão, profundamente revista e melhorada: 10 de junho de 2023
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(**) Ver poste de 21 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5682: Armamento (1): Morteiros, Lança-Granadas, Granadas e Dilagrama (Luís Dias)

(...) O Dilagrama era um dispositivo que, conjuntamente com a granada de mão defensiva M/63, ao qual era fixado, aplicado na espingarda automática G3, permitia-nos obter alcances superiores aos conseguidos pelo arremesso manual da granada, reduzindo os riscos para as nossas tropas na sua utilização. O Dilagrama permitia bater ângulos mortos, sendo possível o seu emprego contra elementos IN abrigados.

O Dilagrama era constituído por:
  • um adaptador da granada;
  • um tubo em forma cilíndrica;
  • uma empenagem;
  • a granada defensiva M/63 e
  • um cartucho especial propulsor.
Retirada a cavilha da granada, a alavanca de segurança ficava presa pelo retentor. Quando se premia o gatilho da arma e o cartucho era percutido, a acção de gases que se seguia impulsionava o conjunto, lançando-o pelo ar e pela acção da inércia o grampo de armar recuava, partindo o retentor, soltando-se, então, a alavanca de segurança da granada, iniciando-se a combustão do misto retardador e consequentemente a explosão, com fragmentação de todo o conjunto.

Normalmente, a granada atirada por este dispositivo, rebentava acima do solo. Num disparo a 45º, verificávamos que, efectuando uma contagem rápida de 1 a 15, o rebentamento se dava, por norma, nesta altura.

O disparo deste dispositivo dava um forte coice, em especial no dedo que dava ao gatilho, por isso, os soldados eram instruídos para efectuarem o disparo como se dedilhassem uma guitarra (só usando a ponta do dedo) e dispararem a arma apoiada no chão, prendendo-se com um dos pés a bandoleira e colocando a arma no ângulo pretendido. No entanto, em acção, a maior parte dos atiradores que me acompanhavam e que utilizavam o dilagrama, efectuaram os disparos do mesmo ao ombro, sem quaisquer problemas. (...)


Características desta arma:

  • Tipo: Dispositivo de lançamento de granada defensiva através de uma espingarda;
  • Oriem: EUA;
  • Peso: 455 g;
  • Explosivo: Composição B;
  • Fragmentação: Espiral de aço em forma de barril no interior da granada, bem como o restante conjunto, fabricado em metal;
  • Capacidade: Acção efectiva nos 15 m em redor do local da explosão;
  • Alcance máximo: 160 m.
Durante o ano de 1973, surgiu outro tipo de dispositivo (ao que creio, o FRG-RFL 40BT, de origem belga), em que a granada não era acoplada, mas fazia parte integrante do conjunto (tipo bola), no calibre de 40 mm, rebentando por impacto e, dado ser um conjunto mais leve que o conjunto anterior (355 g), o seu alcance era sensivelmente o dobro (350 m), lançando cerca de 300 fragmentos, em 30 m envolta do local da explosão. (...)

sábado, 23 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23455: (Ex)citações (411): Cuidado com o "fogo amigo", cuidado com o dilagrama, cuidado com a granada defensiva... (António J. Pereira da Costa / Luís Graça)

1. Comentários 
ao poste P23450 (*):

(i) António J. Pereira da Costa 

As granadas de mão defensivas era de difusão / utilização restrita. Eram perigosas, como se recordam, pois semeavam estilhaços ao fim 4-5 segundos depois de lançadas. Os dilagramas que as usavam tinham também uma utilização restrita, muito cuidadosa e o número de homens que os carregavam era pequeno, talvez um em cada Gr Comb,  em média. 

Em todas as minhas guerras usei uma Granada Defensiva e como armadilha e não lançada. As incendiárias eram úteis nos golpes-de-mão e as ofensivas eram uma pequena carga explosiva que se usava também em golpes-de-mão...

22 de julho de 2022 às 16:30

(ii) Tabanca Grande Luís Graça:

Concordo inteiramente contigo, Tó Zé: o primeiro morto (ou um dos primeiros mortos) da 1ª Companhia de Comandos Africanos, que estava em formação em Fá Mandinga, setor de Bambadinca, no 1.º semestre de 1970, foi um furriel, cortado ao meio ao pisar uma mina A/P... Levava o cinturão carregado de granadas defensivas... que rebentaram por simpatia.

Vi o seu corpo na nossa capela (que funcionava como casa mortuária)... Nunca levei uma granada defensiva para o mato... Alguns dos nossos, da CCAÇ 12, primeiros feridos foram provocados por falha na utilização do diligrama, num golpe de mão... Não fui atingido por milagre..."Branqueámos" o acidente para salvar a pele ao alferes... (que, por capricho, quis ser ele a levar o dilagrama)... Histórias tristes...

22 de julho de 2022 às 22:23

(iii) António J. Pereira da  Costa:

(...) Quer se queira, quer se não queira, o recurso a certas armas de apoio - morteiros 60, LGF 8.9 e dilagramas - deveria ser feito com muito cuidado e, num contacto próximo com o In não tinham aplicação imediata.  

Atenção aos dilagramas que batiam nas árvores e... caíam mais perto. Além disso, a precipitação do lançamento deu lugar a desastres. Por mim descartei o LGFog 8,9 por ser pesado, incómodo e, em emboscadas sofridas ou montadas, de utilização problemática. Contudo, em ataques "ao arame" podia revelar-se útil. Já o lança-rockts 37 mm tinha utilidade e, se bem usado, era muito eficaz. Mas este não está nas estatísticas. (...)

23 de julho de 2022 às 10:12

(iv) Tabanca Grande Luís Graça;

Ver o meu conto:

21  de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19705: A galeria dos meus heróis (28): Alfa Baldé, apontador de dilagrama, morto por "fogo amigo"... (Luís Graça)

(...) E de repente, o capim. O capim alto. O sangue. O capim pisado e empapado de sangue. Pobre Alfa, morto por um dilagrama dos nossos. Alguém branqueou a tua morte no relatório da operação. Alguém salvou a honra da companhia. Alguém safou o teu/meu comandante de uma porrada do Spínola. Um dilagrama rebentou no ar, na tua cara, nas nossas caras. Um dilagrama dos nossos. O teu dilagrama, empunhado pelo nosso "alfero"...

Não, não sei o que lhe deu, ao "alfero", para à última hora ter decidido tirar-te o dilagrama e ter-te confiado o prisioneiro, que estava à guarda do Mamadu Camará. (...)


(v) Tabanca Grande Luís Graça:

Um verdadeiro "boomerang", o dilagrama, nas matas cerradas da Guiné... Deve haver para aí muitas outras histórias de mortos e feridos graves devido ao "fogo amigo" do dilagrama... E não só: eu apanhei com o "cone de fogo" de um LGFog 8,9 (!), na resposta a uma emboscada... Podia ter lerpado, se estivesse ainda mais perto do raio da bazuca. (...) (**)