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quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26415: Efemérides (448): o ataque a Tite, em 23 de janeiro de 1963, há 62 anos, na versão do Arafan Mané (1945-2004), um "cabra-macho" de 17 anos que, com outros ainda mais novos (Malan Sanhá, 1947-1978), deu o primeiro tiro simbólico de um guerra estúpida e inútil (Luís Graça / José Teixeira)


Arafan Mané  (1945-2004), com uma "costureirinha", s/d.
Morreu num hospital em Madrid.
Foto do Arquivo Amílcar Cabral / Casa Counm.
Com a devida vénia......



Malan Sanhá (1945-c.1978), s/d. Com uma Kalash.
Terá sido executado no tempo do Luís Cabral.
Foto do Arquivo  Amílcar Canral
/ Casa Comum

Com a devida vénia...

 


1. É sabido que a guerra na Guiné não começou nesta data, 23 de janeiro de 1963...Mas o Amílcar Cabral e sua máquina de propaganda aproveitaram a boleia, tal como já tinham "capturado", indevidamente, outra data "histórica", o 3 de agost0 de 1959 (o "massacre do Pidjiguiti").  

Não sei o que os "hagiógrafos" de Amílcar Cabral (cujo centenário passou em 2024) dizem sobre usto:  de qualquer modo, à revelia dos órgãos do "poder político" do PAIGC (e portanto do próprio Amílcar Cabral), dois "putos", biafadas, Arafan Mané, de 17 anos,  e Malan Sanhá, de 15 anos,  lançaram um ataque aventureiro e suicida ao quartel de Tite... 

Nesta ação, em que arrastaram também elementos civis das imediações (estamos em pleno "chão biafada", pelo que eles jogavam em casa...), terão morrido 8 dos atacantes e 1 militar das NT.  

Acrescente-se que foi um precedente gravíssimo num partido que sempre fez questão, durante a "guerra de libertação",   de dizer aos quatro ventos, nos areópagos internacionais,  que  subordinava o "poder militar" ao "poder político"... Mas uma coisa é a teoria (e a propaganda), outra a "praxis" (e a dura realidade dos factos)...

A partir daqui estavam lançados os dados: Amílcar Cabral  acabou, infelizmente para ele,  e para os nossos dois povos, o  português e o guineense,  por escolher o caminho das armas (logo da violência e do terror, "revolucionários") e traçar o seu próprio  trágico destino... Ele justificava-se, argumentado que Salazar não lhe deixou outra alternativa.


2. Já aqui falámos, "ad nauseam", desta data. Inclusive há as versões de um lado (o PAIGC) (*) e do outro (as NT) (**), sobre os acontecimentos em Tite, em 23 de janeiro de 1963.

É justo lembrar hoje e aqui o magnífico trabalho que teve, há 8 anos atrás,  o nosso amigo e camarada José Teixeira (foto à direita), cofundador e régul0 da Tabanca de Matosinhos (e testemunha do absurdo da guerra na região de Forrerá, em 1968/70...), ao disponibilizar em quatro postes, publicados em finais de 2016,  um documento raro, que na altura estava "on line" (e que infelizmente já não está), contendo a "entrevista histórica", de 2001,  do homem (aliás, um miúdo de 17 anos) que deu  "o primeiro tiro" na guerra...justamente em 23 de janeiro de 1963, às 01h45 (*). 

Tiro simbólico... Já se tinham dado outros, que não ficam na História... E uns meses antes, em meados de 1962, o Amílcar Cabral iria perder o primeiro dos seus comandantes, formados na China, o Vitorino Costa, cuja cabeça será levada como troféu e instrumento de terror para Tite, pelo cap inf José  Curto, cmdt da CCAÇ 153 (Fulacunda, 1961/63).

Vale a pena reproduzir um excerto do preâmbulo que o Zé Teixeira escreveu na altura (Poste P16794), sobre "o texto e o contexto" desta entrevista de 2001, dada ao jornal "O Defensor – Orgão de Informação Geral do Estado Maior das Forças Armadas da Guiné-Bissau", e reproduzida em 2015 no sítio das "FARP – Forças Armadas Revolucionárias do Povo", por iniciativa do major Ussumane Conaté, diretor da publicação.
 
(...) Neste caso concreto, estamos a tomar conhecimento de um testemunho de alguém que vivenciou o ataque a Tite. Foi o seu comandante, mas do outro lado da barricada, logo, o relato dos acontecimentos que viveu e a visão global do ataque são à partida diferentes (e tão "respeitáveis", como os nossos relatos). São estes conjuntos de pontos de vista, diferentes entre si, e muitas vezes contraditórios, dos acontecimentos que vão permitir escrever a História.

É comum afirmar-se que a guerra colonial na ex-província da Guiné teve o seu início com um ataque a Tite na célebre noite de 22 para 23 de janeiro de 1963, Aliás, o próprio Amílcar Cabral afirmou-o uns dias depois.

Na realidade, este ataque, pela sua dimensão e resultados, com mortos e feridos de ambas as partes em contenda, assinala simbolicamente a abertura das hostilidades.

E, no entanto, foi um acontecimento fortuito, desorganizado, sem comando definido e sobretudo à revelia dos órgãos do PAICG. Assim o afirmou, em 2001, o coordenador do ataque, o então coronel Arafan Mané.

Segundo ele, a guerrilha, à data, já era um facto no Norte, no Centro Sul e Sul desde 1961. Tite já terá sido atacada em 1962. As regiões do Tombali e Quínara estavam a fervilhar numa luta surda entre as forças portuguesas e o PAIGC, com muitas mortes (assassínios) na população, da responsabilidade de ambos os intervenientes. 

Esses primeiros tempos foram de terror e contraterror, subversão e contraversão... Uma época muito mal conhecida (e pior estudada)... 

Revivo com saudade o meu amigo Samba, de Mampatá Foreá, infelizmente já falecido há muitos anos. Sargento da milícia, imã da comunidade muçulmana local (Fula). Homem culto, excelente cozinheiro, que deixou Bissau para regressar à sua terra, o Regulado Foreá, e defender o seu povo. Muitos serões passámos em amena conversa, onde a religião e o drama da Guiné eram assunto.

Recordo, apesar da poeira do tempo, uma conversa sobre a forma como o inimigo procurava conquistar aderentes à força, no início da luta. 

Eles, dizia-me, o PAIGCV, entravam, armados, pelas tabancas dentro, e tentavam convencer o chefe da tabanca a entregar os jovens para as forças da guerrilha. Se não o fizesse, era morto ali mesmo, e os homens válidos eram convidados a segui-los ou em caso de resistência eram forçados, com muitas mortes pelo meio.

Não foi por acaso que o Amílcar Cabral convocou o Congresso em Cassacá, em 1964. Um dos objetivos deste Congresso, foi acabar com as barbaridades, as arbitrariedades e os abusos de poder, praticadas por alguns chefes de guerrilha, sem qualquer preparação política, de modo a que o povo voltasse a ganhar a confiança no Partido, nos seus dirigentes e no destino da luta de libertação nacional.

Muitos anos mais tarde, em 2008 no Simpósio Internacional de Guileje, tive oportunidade de conhecer e conversar com um ex-combatente das FARP da Guiné-Bissau que me tinha atacado várias vezes em Mampatá e na estrada de Gandembel, em 1968. É dele esta frase, que recordo com emoção:

“Guerra é guerra, meu 'ermon', quando passa não deixa saudades, mas, muitas amizades, neste mundo perdido. Os antigos inimigos se procuram, para saldar as contas com um abraço sentido.” 

Dizia-me ele: "Desculpa. Eu fui apanhado na minha tabanca, tinha quinze anos."

Mas não pensemos que as autoridades portuguesas ofereciam mel e pão aos guineenses para os conquistar para a sua causa. Os factos narrados nesse Simpósip, por vítimas guineenses, que fugiram para o mato, creio que por medo (alguns) e posteriormente integraram a guerrilha, são de fazer arrepiar o mais “durão”.

Era o tempo do “chapa ou fogo” na versão mais agressiva do temido e odiado capitão José Curto por parte dos guineenses afetos ao PAIGC (*).

E, nas minhas idas à Guiné-Bissau, tenho conversado com ex-combatentes do PAIGC, onde relembram os tempos de terror imposto pelos "tugas" nas tabancas do interior, que os levou a fugirem para o mato e entrarem na luta.

Mas voltemos ao ataque a Tite para rever os acontecimentos através de relatos insuspeitos de terceiros e presenciais:

"...Em Janeiro de 1963, foi a sede do Batalhão atacada com armas automáticas e de repetição e granadas de mão. Deste ataque resultou 1 morto e 1 ferido das NT e 8 mortos confirmados e vários feridos graves IN. Depois deste ataque foram intensificados os patrulhamentos de que resultou a morte do Papa Leite, elemento IN que actuava na área e que facultou a recolha de valiosíssimos elementos da Ordem de Batalha IN..."

In, Carta de 7-07-1981 do ten cor Manuel José Morgado, enviada ao director do Arquivo Histórico Militar, em resposta ao assunto " História das Unidades ".

Resumo da Actividade do BCac nº 237/BCaç nº 599 - Maio de 1963 a Maio de 1965, Caixa nº 123 - 2ª Div/4ª Sec., do AHM


O historiador José de Matos fala em quinze a vinte elementos do PAIGC, que mantêm o quartel sob fogo intenso, durante cerca de meia hora, provocando um morto e dois feridos às nossas tropas e deixando três mortos no terreno.(vd. poste P15795).

O nosso investigador de serviço ao blogue, o incansável José Martins, convidado pelo Luís Graça a investigar o ataque a Tite, concluiu:

“Arafan Mané (nome de guerra, 'Ndjamba'), militante do PAIGC, destacado Combatente da Liberdade da Pátria, é considerado o 'responsável' pelo inicio das hostilidades na Guiné, ao ter disparado a primeira rajada de metralhadora e comandado a ofensiva. Teria menos de 20 anos. Veio a falecer em 2004, em Espanha, de doença". (P10990)

Estranhamente pouco ou nada se escreveu oficialmente sobre este acontecimento tão marcante (seria?) para o desenvolvimento da guerra na Guiné.

Há o testemunho do Gabriel Moura, (vide P3294; P3298 e P3308 de 11/11/2008; 12/10/2008 e 13/10/2008 respetivamente) (**).

Foi este soldado português de Gondomar que estava de sentinela ao quartel de Tite, naquela fatídica noite, que entrou no Blogue pela mão do Carlos Silva, (seu conterrâneo e amigo) já depois do seu falecimento para contar a história que vivenciou.

 Foi o primeiro militar português, quando se encontrava de guarda ao aquartelamento, a responder ao fogo da força que atacou as instalações de Tite.

Na reação ao fogo de que foi alvo, consumiu todas as munições de que dispunha, provavelmente três carregadores, assim como utilizou as duas granadas que lhe estavam distribuídas para o serviço. Faleceu em 2004, dois anos após ter editado as suas impressões sobre o acontecimento, e por coincidência no mesmo ano da morte de Arafan Mané.

Temos agora a oportunidade de tomar conhecimento do testemunho do Arafan Mané, ou seja, a versão de quem comandava o outro lado da barricada, numa entrevista publicada em 2001 no jornal O Defensor – Orgão de Informação Geral do Estado Maior das Forças Armadas da Guiné-Bissau. Reproduzida em 2015 no sítio das FARP – Forças Armadas Revolucionárias do Povo, por iniciativa do major Ussumane Conaté, diretor da publicação. (...)

(Revisão / fixação de texto: LG)
_______________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

3 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16794: O inicio da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte I (José Teixeira)

8 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16812: O inicio da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte II (José Teixeira)

11 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16823: O início da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte III (José Teixeira)

19 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16851: O início da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) – Parte Final (José Teixeira): os frutos (amargos) da aventura...

(**) Vd. postes de;


(***) Últiimo poste da série > 14 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26389: Efemérides (448): Homenagem aos Combatentes da Guerra do Ultramar da União de Freguesias de Freigil e Miomães do Concelho de Resende (Fátima's)


sábado, 18 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26400: Por onde andam os nossos fotógrafos ? (35): Jorge Pinto (ex-alf mil, 3.ª C / BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74) - Parte V


Foto nº 1A  > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Colheita da mancarra (ou milho painço?... É sorgo, diz o nosso especialista Cherno Baldé).

Aqui os homens também trabalham! Em Fulacunda praticamente não havia atividades. Cultivava-se apenas junto ao arame que rodeava a tabanca, alguma mancarra, milho painço, pescava-se muito pouco, apanhavam-se cestos de ostras que cozinhávamos como petisco ao final do dia e havia um milícia que às vezes caçava uma gazela e nos vendia a “preço de ouro”.


Foto nº 1B  > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Colheita de sorgo.



Foto nº 2A Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Fazendo tijolos de adobe para uma morança. Durante a minha estada em Fulacunda, construíram-se apenas umas 3 moranças novas. As NT deram a sua ajuda preciosa


Foto nº 2B >  Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Fazendo tijolos de adobe para uma morança (2).


Foto nº 3 > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Fonte dentro da tabanca. Furo feito pela companhia dos “Boinas Negras”, 1968/69 (?) [CCAV 2482, "Boinas Negras",  30 de junho de 1969 / 14 de dezembro de 1970]. 





Foto nº 4 > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Horta do Tobias. Alguns soldados e gente da tabanca, sob a orientação do furriel Tobias,  dedicaram-se a esta horta que, como se vê, era bem verdejante, mesmo na época seca. Graças a ela tínhamos, couves, alfaces, pimentos e outras hortaliças.No lado esquerdo, vè-se uma picota (para retirar água de um poço).


Foto nº 5 > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) >  Avó com filho de soldado branco. Em Fulacunda, verifiquei que havia 4 crianças filhas de soldados brancos,  pertencentes a companhias anteriores. Também verifiquei que apenas uma das mães continuava a viver em Fulacunda.


Foto nº 6 > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Lavadeiras. Fonte antiga. Todos os soldados tinham a sua lavadeira. A lavagem da roupa era feita na tabanca com água retirada através do único furo (foto nº 3), feito por uma companhia de caçadores estacionada em Fulacunda em 68/69 [ou melhor, 69/70], e que penso chamar-se “Boinas Negras” [ CCAV 2482, "Boinas Negras", subunidade que esteve em Fulacunda entre 30 de Junho de 1969 e 14 de Dezembro de 1970, data em que foi rendida e partiu para Bissau]. Contudo, quando havia muita roupa para lavar, as lavadeiras deslocavam-se à fonte antiga (foto), que se localizava na parte exterior do aquartelamento e portanto sujeita a “surpresas” [acções do IN].


Foto nº 7A > Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Vista aérea do quartel (à direita) e "reordenamento" (à esquerda)


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3.ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74) > Foto nº 7 > Vista aérea da pista, da tabanca e do aquartelamento de Fulacunda... Tentativa de reconstituição de:
  • perímetro de arame farpado (a amarelo, tracejado);
  • espaldões (artilharia, armas pesadas...) e abrigos (a vermelho, círculo);
  • área cultivável em redor do arame farpado (a verde, linha)... 

No sentido su-sudeste / nor-noroeste, vê-se a pista e o heliporto...Para a esquerda era o porto fluvial .  

Pelas minhas contas, o observando a foto aérea, a tabanca de Fulacunda não teria nesta altura mais de meia centena de moranças (300 e tal pessoas): 30 moranças com telhado de zinco e umas 20 com cobertura de colmo... 

A população  vivia em economia de guerra:  homens (milícias) e mulheres (lavadeiras) dependiam da tropa. Não havia bolanhas perto.... Não havia produção de arroz (cujo preço irá triplicar em finais de 1973/74). Nem devia haver nenhum comerciante. 

A região de Qiuínara foi muito afetada pela guerra (que "oficialmente", para o PAIGC, começou em 23 de janeiro de 1963 em Tite; na verdade, começou muito antes; Tite não tinha qualquer importância, e tinha menos população que outras tabancas da região de Quínara como Bissásserma, Iusse, Enxudé, etc. Fulacunda, sim, era sede de circunscroção admonistrativa... Isoladfa, entrouu em total decadència, e hoje não terá mais de 1500 habitantes.

(Com  o ataque estúpido,  precipitado e infantil a Tite, desencadeado por um "djubi" a quem deram uma pistola, Arafan Mané, abriu-se a "caixa de Pandora", e a Guiné tornou-se um inferno para todos... Porquê, para quê, Arafan ?)

No final da guerra, as NT deveriam ter cerca de 220 homens em armas em Fulacunda: além da 3ª C / BART 6520/72 (160 homens) ,o Pel Mil 221 (30 homens) e o 31º Pel Art (3 obuses 14 cm) (30 homens). O setor S1 (Zona Sul, 1) estava sediado em Tite. Havia quartéis e destacamentos das NT em Tite,  Bissássema, Enxudé, Nova Sintra, Ganjauará, Fulacunda (mais de 1100 homens em armas, segundo a minha estimativa ).(LG)


Fotos (e legendas): © Jorge Pinto (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagemcomplementar; Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.]


1. O Jorge Pinto: (i) ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74; 

(ii) natural de Turquel, Alcobaça; 

(iii) professor do ensino secundário, reformado; 

(iv) membro da Tabanca Grande desde 17/4/2012, com 6 dezenas de referências no blogue;

(v) tem o melhor álbum fotográfico sobre Fulacunda, região de Quínara, chão biafada;

(vi) pela qualidade técnica e estética, pela sensibilidade sociocultural bem como pelo interesse documental dos seus "slides", estamos a republicar, depois de reeditadas, algumas das suas melhores fotos (*).

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terça-feira, 6 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18384: (In)citações (117): Devaneios com sustentação na História (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil da CCAV 703)

Península Ibérica
Com a devida vénia a Infoescola


1. Em mensagem datada de 5 de Março de 2018, o nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, BissauCufar e Buruntuma, 1964/66) enviou-nos este artigo de opinião para publicação:


Devaneios com sustentação na História

Amílcar Cabral teria sido um líder bem-aventurado, se tivesse começado por pugnar, junto da ONU e das instituições da Comunidade Internacional, a agregação da Galiza a Portugal, em troca da independência da Guiné!...

Pela facilidade com que pôs todas essas instituições do seu lado, fez da guerra o seu caminho.

A principal razão avocada: Portugal era ocupante ilegal da Guiné, havia mais de 500 anos!

Nem de facto nem de direito, senhor PAIGC (antigo), meu e nosso IN, antes de 1974.

A Guiné, abrangendo os futuros Senegal, Casamansa, Guiné-Conacri, Gâmbia e Serra Leoa, tornaram-se portugueses de direito, entre 1445-1974, pela Bula Manifestis Pontifex, de 8 de Janeiro de 1445, do Papa Nicolau V.

A Santa Sé foi detentora e geriu os poderes de Direito Internacional, até à Sociedade das Nações e à actual ONU, terminados com a fundação desta, após a II Guerra Mundial.

Continuemos a evocar a História.

Andava o nosso rei Afonso V, o Africano, a marchar por Castela com o Exército Português, encorajado a dar batalha aos “reis católicos” Isabel e Fernando, na sua ânsia pela dilatação do Portugal europeu, mas teve de pedir reforços ao filho, Príncipe João (futuro rei D. João II), para se poder apurar o vencedor da Batalha do Toro. O príncipe foi resolver habilmente a batalha a seu favor, os beligerantes chegaram a “capítulos” e o Rei Fernando permutou a Galiza com a desistência de Afonso V do seu expansionismo.

A Rainha Isabel não concordou, desautorizou o marido, mandou defender a Galiza e mandou os seus melhores capitães fazer guerra de corso aos interesses portugueses nos mares da Guiné, objectivada ao seu enfraquecimento.

Em reacção, D. Afonso V reiterou o pedido de reforços ao príncipe que, em vez de mandar tropas, mandou uma lição política e estratégica ao pai: “Desista da Galiza; o futuro de Portugal está traçado no mar”.

O Príncipe D. João desempenhava a regência e assumia a gestão dos assuntos da Guiné, desde os 19 anos. O PAIGC teve o Nino Vieira, o Arafan Mané, o Pansau Na Isna, etc. mas não teve o exclusivo dos iniciados aos 19 anos…

E, para pôr termo a essa guerra de corso e ficar com a Guiné, Portugal teve de deixar a Galiza e de reiterar a desistência da sua expansão à Espanha.

A independência da Guiné seria ética, justa, se Portugal recebesse a Galiza em troca. Mas o prejuízo sobrou só para Portugal.

Assim, se houvesse moral nas relações internacionais ou se ela não estivesse sujeita a tantas contingências e avarias, Amílcar Cabral sentir-se-ia obrigado a aplicar o seu talento diplomático e o seu poder de sedução junto da ONU e das instituições da Comunidade Internacional, nesse sentido.

Se Cabral tivesse de recorrer à guerra, seria um justum bellum, segundo o Luís Graça, o seu teatro seria a Galiza e não a Guiné. Teria os mais de 300 km da linha de fronteira no Minho e Trás-os-Montes, para dar largas à sua eficiência em corredores e infiltrações, e teria contado com os comandos, fusos, páras e pilav's tugas, sobre a terra e sobre o mar galegos, que não teve do seu lado, sobre a terra e sobre os rios da Guiné; poderia ter mantido o casamento com uma portuguesa e uma casa em Chaves. A Guiné seria uma Suíça africana, com lei e ordem e, ao invés dos guineenses, os galegos, os portugueses e os guineenses retribuíam-lhe o feito, com gratidão e estima e os próprios independentistas da Catalunha lhe reconheceriam o seu meio caminho andado.

A imitação por aqueles da Declaração independentista do PAIGC no Boé correu bem, mas com consequências – dos seus promotores, o principal fugiu e alguns foram hospedados na cadeia.

Moral da história: os veteranos da sua guerra, de ambos os campos, andam com a imagem churcilliana de uma Guiné de sangue, suor e lágrimas, colada às suas almas; e por que não a ver por outros prismas?…
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de fevereiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18295: (In)citações (116): A 'mindjer grandi' Anabela Pires, de visita a Iemberém, até 2ª feira... Vai ser confrontada com uma série de memórias dolorosas: as perdas sucessivas dos nossos amigos comuns Cadi, Pepito, Alicinha... Esperemos que tenha notícias do nosso grã-tabanqueiro António Baldé, que voltou de mãos vazias, de Alfragide para Caboxanque, com o sonho desfeito de ser apicultor e dar um futuro melhor à Cadi e à Alicinha

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16851: O início da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) – Parte Final (José Teixeira): os frutos (amargos) da aventura...


Guiné > Região de Quínara > Tite > Julho de 1965 > O Santos Oliveira, em pacato  passeio pela tabanca


Guiné > Região de Quínara > Tite > Agosto/setembro de 1965 > Uma cena de caça


Guiné > Região de Quínara > Tite > Julho de 1965 > Uma DO27 (Dornier) na pista de reabastecimento.

Fotos do álbum do nosso camarada, grã-tabanquerio da primeira hora, de Santos Oliveira, ex-2.º  sgrt mil armas pesadas inf, Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66). Esteve em Tite ao tempo do BCAÇ 1860 (Tite, abril de 1965/abril de 1967)

Fotos (e legendas): © Santos Oliveira (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




O Zé Teixeira, em 2008, em Iemberém,
com  população local. Foto de Luís Graça (2008)
O início da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) – Parte Final (José Teixeira): os frutos (amargos) da aventura...



1. Preâmbulo

Todos nós, os que passamos pela guerra (e em particular pelo TO da Guiné), temos vindo com o tempo, a tentar passar aos vindouros as situações vividas (, "com sangue, suor e lágrimas"...)  num  ambiente hostil e agressivo, próprio dos confrontos militares . É o nosso ponto de vista. Com mais ou menos romantismo; com mais ou menos realismo, vamos escrevendo o que a nossa memória registou.

É comum ouvirmos camaradas nossos contar testemunhos de situações que vivemos em conjunto e encontrarmos diferenças, às vezes pormenores que nos escaparam ou a que não demos atenção. Foram situações (ataques, flagelações, emboscadas, explosões de minas e armadilhas, etc.) vividas em comum, mas analisadas por outro ponto de vista. Alguém com outra base académica ou cultural, ou até com outra visão politica e militar da situação, é capaz de "ver" e "narrar" os acontecimentos de outra maneira... O local e ângulo de onde se está a vivenciar o acontecimento, afeta a informação registada na memória (e depois a narrativa, a reconstituição, o depouimento...).

Neste caso concreto, estamos a tomar conhecimento de um testemunho de alguém que vivenciou o ataque a Tite, de 22 para 23 de janeiro de 1963, data (polémica) do in´´iio "oficial" da guerra colonial (ou de "libertação", para os nacionalistas). Foi o seu comandante, mas do outro lado da barricada, logo, o relato dos acontecimentos que viveu e a visão global do ataque são à partida diferentes da "narrativa" daqueles que,  na altura, defendiam a bandeira verde e rubra. Pontos de vista diferentes, mas tespeitáveis, já que tal como a moeda, a "verdade" tem um verso e um reverso.  São estes conjuntos de ponto de vista, diferentes entre si, dos acontecimentos que vão permitir escrever a História.

Estranhamente pouco ou nada se tem escrito, oficialmente,  sobre este acontecimento tão marcante, (seria?) para o desenvolvimento da guerra na Guiné.

Na parte da entrevista que se segue, o entrevistado assume que o ataque a Tite foi uma aventura, a qual serviu de alerta para as tropas portuguesas. Na realidade, podia ter sido uma grande catástrofe para os guineenses envolvidos pela sua ingenuidade de fazer avançar cerca de 150 africanos (!) – diz ele – com reduzido armamento e nenhuma formação nem prática de combate, contra uma instituição militar devidamente apetrechada e homens bem trenados no manuseamento de armas. Valeu-lhes o ato de surpresa e creio mesmo que a população local envolvida fugiu a sete pés, mal se iniciou o tiroteio.

Com este "ato de loucura", o PAIGC terá ganhado mais alguns aderentes e talvez notícias de primeira página nos jornais, por esse mundo fora, vacinado contra o colonialismo via URSS e EUA, as grandes potências em conflito latente, empenhadas em “abocanhar” a África e a afirmar a sua hegemonia geopolítica,,,. Claro que foi um ato que deu “gás” aos militantes do PAIGC, fazendo sentir que era possível lutar contra os "tugas" (sic), de "armas na mão", bastante para isso terem armas, pois que vontade não lhes  faltava.

Mas,  como acontecimento de guerra, o ataque a Tite não passou de um fracasso, para ambos os lados da barricada. Desgraçadamente, foi o início de uma escalada que só parou 11 anos depois... e que nos envolveu a todos.

A três anos de morrer, Arafam Mané faz também o balanço de uma vida:  "filho de camponês", com passagem pela escola do maoismo, e tendo conhecido as misérias e as grandezas da luta de libertação nacional, da independência, do exercício da governação e das lutas fratricidas no seio do PAIGC, Arafam Mané termina a entrevista em tom "politicamente correto", mas nem por isso menos "coerente" e "humano" e até com uma ponta de "amargura":

Isso para mim, é um grande orgulho. Vejo que, de facto fiz algo de importante para este país a Guiné-Bissau. Mesmo, se morrer hoje não ficarei arrependido. Cada um de nós conhece bem o que é a vida de um camponês. O filho do camponês é sempre condenado na sociedade dos intelectuais mesmo nos países mais desenvolvidos do mundo. Somente nos países socialistas é que vimos que o filho do camponês tem valor. Eis as recordações palpáveis que tenho sobre o ataque de Tite.

Em todo o caso, convirá dizer que esta versão dos acontecimentos de 23 de janeiro de 1963 não é consensual entre os próprios protagonistas (***)... Como sói dizer-se, quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto... Por exemplo, não fica esclarecido quem é que "comandou" a operação, se fosse o Malam Sanhá ou so seu adjunto, o Arafam Mané...Como os dois já morreram, nunca mais irão esclarecer esta minha pequena dúvida...



II. Sinopse da entrevista – Parte Final

Arafam Mané com uma "costureirinha", c. 1963. Foto
do Arquivo Amílcar Cabral / Casa Counm.
Com a devida vénia......


No texto anterior o entrevistado dizia, continuando a responder à pergunta, " Mas como é que conseguiram penetrar facilmente no interior do quartel?"

“A nossa missão podia ter maior sucesso se um dos nossos companheiros não tivesse falhado no cumprimento da ordem. Não obstante tudo, a operação planeada para esse dia não podia ser adiada custe o que custasse. Considero que o acto foi uma aventura que serviu de alerta para os tugas; porque queríamos que soubessem que voltamos com força para a zona. Foi uma guerra psicológica porque, na realidade, nós não tínhamos uma força palpável. Mas essa acção desorientou as tropas coloniais que a partir daquele momento receavam sair do quartel para fazer patrulhas.”

E continuava:

"No entretanto, após esta corajosa operação, mais de 300 jovens voluntários aderiram ao movimento de guerrilheiros para, do nosso lado, lutar contra os colonialistas portugueses. Não havia armas nem tão pouco baionetas mas esta realidade não desanimou os jovens cujo número de aderentes crescia constantemente na minha barraca [acampamento temporário]."

Publicamos a seguir a resposta de Arafam Mané às duas questões finais.


III. Entrevista com o coronel Arafam Mané - Parte IV ( e última)

Esta entrevista foi concedida em 2001 ao jornal “O Defensor”, órgão, de periodicidade mensal, das FARP - Forças Armadas Revolucionárias do Povo, Guiné-Bissau, no quadro da recolha de depoimentos dos Combatentes da Liberdade da Pátria sobre os acontecimentos históricos que marcaram a luta armada de libertação nacional, entrevista essa reproduzida no sítio das FARP, em novembro de 2015.

Excertos transcritos com a devida vénia.(A entrevista completa pode ser lida aqui. no sítio das FARP, Guiné-Bissau.)

(Continuação)

O Defensor – Coronel, o que pensa que poderia acontecer durante a operação 
se o vosso comando inexperiente
 tivesse armas de fogo suficientes?



Malan Sanhá, c. 1963.
Foto do Arquivo  Amílcar Canral
/ Casa Comum

Com a devida vénia...
Coronel ADM :

Penso que a falta de armas ou a sua insuficiência na altura da operação de Tite foi uma coisa positiva, porque se houvesse muitas armas, isso teria talvez constituído um golpe fatal para o nosso próprio comando que, certamente, devido a falta de experiência sobre o uso de armas poderia provocar vítimas nas nossas fileiras mesmo, como referiu o célebre cantor guineense José Carlos Schwarz,“caçador desconhecido falhou e virou a sua arma contra a aldeia”.

Se não fosse a falta de experiência, teríamos ocupado Tite naquele dia, porque as tropas coloniais,  surpreendidas pela operação,  tinham já fugido. 

Do nosso lado, a única baixa do assalto foi o meu guarda costa Wagna Bomba, natural de Gambala, que sucumbiu atingido por balas do inimigo. Do lado do inimigo, não posso avançar um número preciso de vítimas mas deve ter sido considerável, porque o camarada Malam Sanhá conseguiu lançar uma granada dentro da caserna onde dormiam soldados. Foi um sucesso, camarada jornalista.

Portanto, depois da operação em Tite, os ataques da guerrilha se multiplicaram, alastrando-se para os diferentes pontos do sul.

A notícia sobre o início da luta armada contra os colonialistas portugueses, como já disse anteriormente,  foi tornada pública por Amílcar Cabral em Londres (Inglaterra), numa Conferencia de Imprensa. Em África, a notícia foi imediatamente publicitada pelas Rádios de Conacri, Rádio Nacional do Senegal e mais tarde pela “Rádio Libertação” do PAIGC.

A divulgação dessa notícia nos órgãos de comunicação social levantou o moral no seio dos camaradas e a vontade de lutar fortemente para libertar o nosso povo. Enquanto para os "tugas", a divulgação da notícia constituiu uma dor de cabeça.


O Defensor  - Mas no fundo 
qual foi a reacção de Amílcar Cabral 
logo que foi informado do ataque 
contra o quartel de Tite?


Coronel ADM :

 Foi positiva. Fui logo promovido ao posto de Comandante Regional. E, antes da minha ida para a República Popular da China, que ocorreu em Abril de 1963, consegui mobilizar um número considerável de camaradas para a luta. Tive inclusive contactos com Bissau na pessoa de Rafael Barbosa que na altura era grande membro do Comité Central do PAIGC.


FACTOS HISTÓRICOS INESQUECÍVEIS 

São recordações de encorajamento, isso porque depois da operação as nossas populações chegaram a conclusão de que, afinal, nós naquela altura não podíamos fazer nada porque não tínhamos armas. Reconheceram, por outro lado, que nós podíamos ser bons soldados se tivéssemos armamento. Depois dessa acção, passamos a receber géneros da população e recebemos também medicamentos.

Houve igualmente o congresso de Cassacá que deu o acento tónico que a população esperava do grande partido. O congresso permitiu acabar com as barbaridades praticadas por alguns camaradas, reorganizar a nossa luta armada, entre outros. O povo voltou a ganhar a confiança no partido, nos seus dirigentes e no destino da Luta de Libertação Nacional.

Mas a maior satisfação que tenho é, precisamente, o facto de ver hoje os camaradas que ontem eram camponeses analfabetos que tinham como vestuários “lopé” (tanga), panos rodeados no corpo com os pés descalços, tornarem-se agora grandes oficiais das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP), outros são Engenheiros, Aviadores (Pilotos), Médicos, Deputados, Condutores, pilotos de barcos...

Isso para mim, é um grande orgulho. Vejo que, de facto fiz algo de importante para este país a Guiné-Bissau. Mesmo, se morrer hoje não ficarei arrependido. Cada um de nós conhece bem o que é a vida de um camponês. O filho do camponês é sempre condenado na sociedade dos intelectuais mesmo nos países mais desenvolvidos do mundo. Somente nos países socialistas é que vimos que o filho do camponês tem valor. Eis as recordações palpáveis que tenho sobre o ataque de Tite.


IV. Comentário final

Vejo nesta entrevista um documento histórico de relevante interesse, pois acaba por desmistifica um acontecimento propalado aos quatro ventos como um verdadeiro ato de guerra, heróico e grandiloquente... Afinal não passou de uma "aventura", uma ação, tosca,  que escapou à própria direção política do PAIGC, quase sem consequências imediatas, a não ser a de alertar as tropas portuguesas...

Em todo  caso, e usando a terminologia dos historiadores da guerra colonial Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, mal ou bem o "ataque a Tite" marca o fim da "fase pré-insurreccional e de doutrinação políticia (in; Afonso, A, e Matos Gomes, C. - Guerra colonial; Angola, Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d, p. 421),

O PAIGC estava em fase de mentalização e mobilização das populações, e de organização das suas estruturas enquanto  a tropa portuguesa ainda “dormia na forma”. 

Por outro lado, está bem patente o medo que os militares portugueses impunham sobre as populações através de atos violentos na tentativa de travar o avanço do movimento independentista.

Hesitei em por o texto no nosso blogue, com receio de que iria abrir "velhas feridas mal curadas". Por outro lado o seu valor histórico impunha que fosse dado a público, mas para meu sossego passou incólume, sem o mais pequeno contraditório, o que me preocupa, confesso.


[Introdução, seleção, notas, incluindo parênteses retos, revisão e fixação de texto: Zé Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf]
____________

Notas do editor:

(*) Postes anteriores da série:

3 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16794: O inicio da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte I (José Teixeira)

8 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16812: O inicio da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte II (José Teixeira)

11 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16823: O início da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte III (José Teixeira)

(**) Vd. portal noticioso > Guiné-Bissau > 24/1/2013 >23 de janeiro, dia de início da luta armada de libertação nacional, celebrado no país

(...) Bissau (Rádio Bombolom-FM, 23 de Janeiro de 2013) – A Guiné Bissau marcou ontem, quarta-feira, cinquenta anos do início da luta armada de libertação nacional a 23 de janeiro de 1963 no quartel de Tite, região de Quínara, no sul da capital, Bissau.

Em homenagem a esse acontecimento histórico do país, o Estado-Maior General das Forças Armadas, através da Divisão para os Assuntos Cívicos e Sociais e Relações Públicas, promoveu uma palestra subordinada “Início da Luta Armada pela Independência da Guiné e Cabo Verde”.

Um dos participantes nesse primeiro ataque com armas de fogo contra um reduto militar português na então Província Ultramarina da Guiné, Daúda Bangura (Comissário Político), lembra ainda dos nomes de heróis que haviam constitudo o grupo de assalto, entre eles, Arafam Mané (na altura Adjunto de Comandante), Malam Sanhã (na altura Comandante Geral da Operação) e Tchambu Mané, que era Comandante de Grupo.

Apesar de o assalto ter sido de surpresa para as tropas portuguesas, Daúda Bangura lembra que na operação, o grupo sofreu duas baixas, nas pessoas dos guerrilheiros NFamará Dabó e Malam Dabó. (...)

domingo, 11 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16823: O início da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte III (José Teixeira)


Guiné > Região de Quínara > Carta de Tite > Escala 1/50  mil (1955) > Posição relativa de Tite, Enxudé e Jabadá... Dizem que foi aqui que a guerra começou...

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2016)


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cantanhez > Iemberém > 2 de Março de 2008 > O Zé Teixeira, o Esquilo Sorridente, um homem solidário mas também bendito, entre as mulheres.. ..É nosso grã-tabanqueiro da primeira hora, tem mais de 300 referências no nosso blogue; foi 1.º cabo aux enf, CCAÇ 2381, "Os Maiorais", Buba, QueboMampatá e Empada, 1968/70; é um dos profundos conhecedores da Guiné-Bissau e das suas gentes.

Foto: © Luís Graça (2008). Todo os Direitos reservados.


O inicio da Guerra Colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam Mané (1945-2004) -Parte III (José Teixeira) (*)
 

1. Preâmbulo

Todos nós, os que passamos pela guerra, temos vindo com o tempo, a tentar passar aos vindouros as situações vivenciadas no ambiente agressivo da guerra. É o nosso ponto de vista. Com mais ou menos romantismo; com mais ou menos realismo, vamos escrevendo o que a nossa memória registou. E seguramente colocámos em "cacifos" diferentes as boas e as más recordações...

É comum ouvirmos camaradas nossos contar testemunhos de situações que vivemos em conjunto e encontrarmos diferenças, ou pormenores que desconhecíamos. Foram vividas em comum, mas analisadas por outro ponto de vista. Alguém com outra base académica ou cultural, ou até com outra visão politica e militar da situação. O local e angulo de onde se está a vivenciar o acontecimento, afeta a informação registada na memória.

Neste caso concreto, estamos a tomar conhecimento de um testemunho de alguém que vivenciou o ataque a Tite. Mais; alguém que coamdou esse ataque, um jovem então com 17/18 anos, Arafam Mané...Estando do  "outro lado da barricada",  o relato dos acontecimentos que viveu e a visão global do ataque são à partida diferentes (mas  respeitáveis). 

Foi um período de terror e contraterror. Mas são estes conjuntos de pontos de vista, diferentes entre si, dos acontecimentos que vão permitir escrever a História.

Estranhamente (ou não), ainda há pouca investigação de arquivo sobre este acontecimento tão marcante, o 23 de janeiro de 1963, que terá sido a "bola de neve" que levou ao desenvolvimento da luta armada e à escalada da guerra na Guiné.

Os nossos editores têm, entretanto, um documento completo do nosso falecido camarada Gabriel Moura sobre este período, enviado pela sua filha para publicação, a título póstumo. Desse texto, em pdf, já se publicaram, em tempos alguns postes, graças à preciosa colaboração do nosso camarada Carlos Silva, amigo e conterrâneo do Gabriel Moura...

Gabriel Moura, natural de Gondomar, foi mobilizado pelo Regimento de Infantaria nº 6, do Porto, para o Pelotão de Morteiros nº 19, tendo sido "o primeiro militar português, quando se encontrava de guarda ao aquartemanento, a responder ao fogo da força que atacou as instalações de Tite". Reagindo instintivamente ao fogo de que foi alvo, "consumiu todas as munições de que dispunha, provavelmente três carragadores, assim como utilizou as duas granadas que lhe estavam distribuídas para o serviço". (**)

O seu testemunho é uma "peça histórica". Estranha coincidência, faleceu em 2004, dois anos após ter editado o depoimento  sobre o acontecimento, e no mesmo ano da morte de Arafan Mané (**).

 
II. Sinopse da entrevista – Parte III

O entrevistado continua a falar do capitão Curto e da forma como este oficial do exército português
atuava com os nativos em busca de possíveis militantes do PAIGC infiltrados nas tabancas do Sul. « Na altura ele era o comandante da CCAÇ 153 (Fulacunda, 1961/63), tinha oi posto de capitão e estava em vias de regressar à metrópole para frequentar o curso de oficiais superiores.

Segundo Arafam Mané, as relações entre as tropas portuguesas (que tentavam manter "a lei e a ordem") e as populações da região, eram caracterizadas por grande desconfiança e violência (prisões arbitrárias,  interragatórios,  etc.). Os presumíveis terroristas que escapavam à “chapa” eram conduzidos para a prisão do quartel em Tite, onde à data do ataque estaria um grupo numeroso de prisioneiros (uma centena, segundo o testemunho do Gabriel Moura), suspeitos de simpatias ou colaboração com o PAIGC.. Portanto, pode-se dizer que Tite, na altura, era um  verdadeiro "barril de pólvora",

Da parte do PAIGC, não havia ainda nenhuma estrutura militar  organizada, mas já havia uma forte consciência da necessidade de fazerem guerrilha para se oporem aos alegados abusos e arbitrariedades sobre a população indefesa.

É fácil concluir que o grupo atacante partiu do ponto zero, dispondo apenas de algumas armas e munições, sem apoio logístico, sem transportes ou enfermeiro. Eram animados apenas de uma grande vontade de mostrar que estavam dispostos a ir para a luta e fazer frente ao capitão Curto, o "tuga" mas temido na altura nas regiões de Quínara e de Tombali (e que até há uns anos atrás estava no "imaginário"  daquela guerra e das populações do sul).

Creio não exagerar ao afirmar que havia um certo "romantismo" por parte destes jovens, com pouca prepação e fraca escolaridade. A certo ponto da entrevista ao ser-lhe perguntado como conseguiram entrar dentro do quartel, Arafam Mané  diz:  “Foi num passeio normal, mas durante o qual evitamos fazer barulhos”.

Note-se nesta frase da entrevista a contradição com a informação da sentinela que estava de serviço no exterior do arame farpado, o falecido camarada Gabriel Moura, (vidé P 3294; P 3298 e P 3308 de 11/11/2008; 12/10/2008 e 13/10/2008 respetivamente).onde se se pode ler: 

(...)"Até que, bem ao fundo das primeiras palhotas de Tite, começaram a ladrar alguns cães… …À medida que os cães começavam mais a ladrar, em mais quantidade e mais perto donde estava, eu caminhava sem deixar, jamais, de olhar para trás na direção do mato [que nada via, pois eu é que estava a ser iluminado, logo é que era visto. …Eu nada via, e nada sabia! ... Seriam pescadores, bêbados de qualquer batuque ou manifestação nocturna?!" (...)

O próprio Arafam Mané, em 2001, com o posto de coronel das FARP,   também se contradiz ao afirmar na entrevista, quase 40 anos depois:

“Ia connosco um 'djidiu', [tocador] de cora (músico tradicional) para cantar, animar e elogiar os camaradas, enquanto combatiam no interior da unidade”. 

Só que o “djidiu” deu ás de “vila diogo” e o combate ficou sem música, que não fosse a das espingardas e os gritos de dor.

Em resumo; foi uma aventura mal calculada, à revelia de Amílcar Cabral e da cadeia de comando do PAIGC,  e que poderia ter redundado num verdadeiro massacre, no caso do jovem Arafam Mané e seus companheiros terem conseguido chegar às instalações onde estava uma centena de presos da população, a aguardar interrogatório, e que eram guardadas pelo Armando Silva, camarada do Gabriel Moura.

III. Entrevista com o coronel Arafam Mané - Parte III


Esta entrevista foi concedida em 2001 ao jornal “O Defensor”, órgão, de periodicidade mensal, das FARP - Forças Armadas Revolucionárias do Povo, Guiné-Bissau, no quadro da recolha de depoimentos dos Combatentes da Liberdade da Pátria sobre os acontecimentos históricos que marcaram a luta armada de libertação nacional, entrevista essa reproduzida no sítio das FARP, em novembro de 2015. 

Excertos transcritos com a devida vénia.(A entrevista completa pode ser lida aqui. no sítio das FARP, Guiné-Bissau.)

(Continuação) 

No texto anterior o entrevistado dizia, continuando a responder à pergunta "Mas porque decidiram atacar o quartel de Tite quando não tinham meios bélicos suficientes e adequados?"

A “chapa” era um emblema que se entregava secretamente aos militantes do partido na clandestinidade. Porque no seio da população daquela área, havia pessoas que estavam contra o PAIGC, algumas delas denunciavam junto dos tugas os compatriotas que tinham ligações com o partido e possuíam o emblema conhecido por “chapa”.
E continuava

Então para descobrir os militantes do partido naquela zona sul do país, o capitão Curto, em certos dias agrupava os habitantes de uma aldeia num local público, e a presença de todos era obrigatória. Quando os habitantes chegavam no local do encontro, eram imediatamente rodeados por militares coloniais armados que os ordenavam a ficarem de pé e com as mãos na cabeça. Depois o capitão Curto dizia: “o que poderá salvar-vos aqui é a entrega de “chapa” (emblema). Caso contrário, serão mortos por fuzilamento.” Pois de forma irónica ele dizia assim: “Chapa ou Fogo.”

Essa era a estratégia que sempre usava para descobrir os militantes do partido. Então, quem tivesse medo das ameaças e entregasse o emblema era imediatamente preso e torturado. E quem ousava resistir contra as ameaças era fuzilado publicamente no local.

Portanto, o retrato de todas estas práticas revela que as relações entre os "tugas" e as populações locais do sul eram relações de terror, marcadas por torturas, menosprezo, matança e humilhações. Com esse tipo de comportamento as populações viviam sempre amedrontadas.

Então, do meu ponto de vista, para tranquilizar os espíritos e manter a nossa confiança no seio das populações que sofriam por causa do partido, pensei que era de facto imperativo desencadear a operação contra o quartel de Tite. Com a realização da primeira acção as populações ganharam a confiança no partido e juntaram-se a nós.


O Defensor – Qual foi a impressão dos "tugas" 
sobre este ataque?

Coronel ADM - Foi uma grande surpresa para os "tugas". Eles não sabiam, nem podiam imaginar que nós tínhamos armas e que um dia os atacaríamos. Por outro, esse acontecimento foi uma coincidência histórica, com o que aconteceu em Angola e em Moçambique.

No que diz respeito as dificuldades encontradas antes da operação, elas eram de ordem logística, porque não tínhamos munições nem enfermeiro e nem transportes. Não tínhamos nada. Realizamos a operação graças a nossa coragem e patriotismo. 


Por outro lado, devido a falta de experiência, a operação foi feita sem que tivesse havido reconhecimento prévio do terreno. Somente uma mulher grande de Quínara que foi até o interior do quartel observar os movimentos dos militares coloniais.

O Defensor - Mas como é que conseguiram 
penetrar facilmente no interior do quartel?

Coronel ADM - Foi num passeio normal mas durante o qual evitamos fazer barulhos. Uma vez no interior das instalações coloniais, eu fui encostar-me no ângulo de uma das casernas, enquanto o camarada Quemo Mané foi emboscar-se em frente da porta da residência do Major [Pina], Comandante da unidade [, com o objetiovo de o assassinar].

A nossa missão podia ter maior sucesso se um dos nossos companheiros não tivesse falhado no cumprimento da ordem. Não obstante tudo, a operação planeada para esse dia não podia ser adiada, cust[ass]e o que custasse. 


Considero que o ato foi uma aventura que serviu de alerta para os "tugas"; porque queríamos que soubessem que voltá[va]mos com força para a zona. Foi uma guerra psicológica porque, na realidade, nós não tínhamos uma força palpável. Mas essa ação desorientou as tropas coloniais que a partir daquele momento receavam sair do quartel para fazer patrulhas.

Continua

[Introdução, seleção, notas, inckluindo parênteses retos, revisão e fixação de texto: Zé Teixeira]
_________________

Notas do editor:

(*) Vd. postes anteriores:

8 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16812: O inicio da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte II (José Teixeira)

3 de dezembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16794: O inicio da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte I (José Teixeira)

(**) Vd. poste de 23 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10990: Efemérides (116): 50 anos anos da guerra colonial no CTIG ? 23 de janeiro de 1963, o fim do princípio ou o princípio do fim (José Martins / Carlos Silva)

Vd. também:

11 de outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3294: O ataque a Tite, em 23 de Janeiro de 1963 (Parte I) (Carlos Silva / Gabriel Moura )

Gabriel Moura: (,,,) "De facto, desde o primeiro minuto da minha vigia, senti, como se diz na gíria, 'um arrepio pelas costas abaixo', que me causou uma desagradável sensação e um pressentimento deveras esquisito, face ao aparentemente, e de acordo com o zero de informação de que os responsáveis davam às tropas, nada havia a recear!

Como de costume, naquela noite [de 22 +ara 23 de janeiro de 1963}, éramos três militares em vigia: eu, como referi, na frente do aquartelamento, percorrendo para baixo e para cima com as luzes a 'bater-me nas costas' e do lado do mato, negro como carvão. Outro colega, [ver excerto do Diário cedido por Armando Silva (...).] fazia a vigia na porta da prisão, [dentro do aquartelamento] onde estavam mais de cem pretos presos. Outro ainda, fazia a vigia do lado do Calino mas pela parte de dentro do arame farpado. Somente eu é que fazia a vigia pela parte de fora do arame farpado." (...) 


12 de outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3298: O ataque a Tite, em 23 de Janeiro de 1963 (Parte II) (Carlos Silva / Gabriel Moura)

Gabriel Moura: (...) "Nestes minutos de início, todas as reacções do interior do aquartelamento, perante os atacantes que conseguiram entrar no aquartelamento foi lento e há medida que cada um dos militares ia acordando e saltava da " tarimba " [cama], em cuecas, para ver o que se passava.

Uns pensavam que era mais um dos casos " banais " da tentativa de fuga de um preto da "cerca " [prisão do aquartelamento] e que o militar de guarda à prisão o tinha abatido ou disparado para o intimidar a não fugir. Estas situações faziam com que, sempre que se ouvissem tiros ou até rajadas, já ninguém se punha a pé para ver e normalmente, a exclamação era: "Filho da p... que me acordaste" - " mais um que não faz mal a ninguém..." ou expressões próximas, conforme a interpretação e o aborrecimento de cada.

Por estas e outras razões, a maior parte dos militares, quer soldados ou mais graduados, todos em geral [chateados com este baralho], lá vieram cá para fora das "casernas" ver o que se passava. Salvo os colegas da "casa da guarda", talvez imbuídos pelo "subconsciente" do dever a cumprir, pois estavam de serviço e guarda, tendo as metralhadoras à mão, o instinto os impeliu para lançar mão da arma e, com ela, vir cá para fora, mais rapidamente se apercebendo do que se passava." (...)


13 de outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3308: O ataque a Tite, em 23 de Janeiro de 1963 (Parte III) (Carlos Silva / Gabriel Moura)

Gabriel Moura: (...) "[Nas horas a seguir], eram apanhados às dezenas, escondidos no capim ou na palhota. Foi uma caça que se prolongou até de manhã, onde o nascer do dia permitiu seguir rastos de sangue e localizar os atacantes feridos e outros que foram capturados e levados para a prisão de Tite, que 'encheu até ao tecto', só aos poucos foram "despachados" para Bissau e outros destinos, ilha das Galinhas [era o que constava lá por Tite], no Arquipélago de Bijagós ou, quem sabe, nem lá chegaram! [é a vida! quando há guerra!!!]

Foi uma desorganização que 'organizou'0 o maior e mais eficaz 'contra-ataque' jamais pensado e daí ter-se conseguido dar uma 'reviravolta à situação inicial'  [que se não fosse eu ter aguentado os atacantes durante aquele tempo todo, não permitindo a concretização dos seus intentos, até à reacção destempada de alguns meus colegas, nada disto era possível. Teríamos sido, na maior parte mortos ou capturados com a maior das facilidades do mundo. Disto não tenham dúvida, e podem 'puxar' por qualquer fio da meada que irá dar ao mesmo... sorte ou intervenção divina? medo? coragem? heroísmo? penso eu que!...].

Durante toda a manhã, a confusão foi grande, onde o Major Pina, nas suas funções de Comandante, começava a amealhar os 'louros', pois era esta a sua grande preocupação, preparar terreno para justificar e arranjar todo o conjunto de situações que lhe dessem dividendos [a ele e a seus pares: capitão Barreiros, capitão Morgado, alguns tenentes, alferes e sargentos, furriéis e alguns "pinga amores", soldados, que na ajuda a 'vestir as calças dos superiores' - que estavam muito transtornados, iriam receber também algumas benesses]." (...)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Guiné 63/74 - P16812: O inicio da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) - Parte II (José Teixeira)


Guiné > 1964 > PAIGC > Cassacá > I Congresso.do PAIGC, Quinta, 13 de fevereiro de 1964 - Segunda, 17 de fevereiro de 1964 > Arafam Mané e  Amílcar Cabral, em foto de grupo, durante o I Congresso.do PAIGC, em Cassacá, (Pormenor),.

Foto (e legenda): Portal Casa Comum / Fundação Mário Soares, Consult em 28 de junho de 2016. Disponível em http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=05224.000.056 (Reprodução parcial, com a devdia vénia)





Foto nº 1 > Guiné > Região de Quínara >  Tite > 1964 > Quartel de Tite,.  "O edifício da direita albergava o Centro de Transmissões. O da esquerda, não recordo bem, mas tenho a vaga ideia de serem as Cozinhas e Refeitórios das Praças."



Foto nº 2 > Guiné > Região de Quínara >  Tite > 1964 > Quartel de Tite >  "As messes de Sargentos (foto) e a de Oficiais, ficavam fora do perímetro de arame farpado (como se vê) e em frente à Porta de Armas; uma à esquerda e outra á direita."

Fotos do álbum do  nosso camarada Santos Oliveira (2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf, Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66).


Fotos: © Santos Oliveira (2008). Todos os direitos reservados.



O inicio da Guerra Colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam Mané (1945-2004) -Parte II (José Teixeira)


I. Preâmbulo

Todos nós, os que passamos pela guerra, temos vindo com o tempo, a tentar passar aos vindouros as situações vivenciadas no ambiente agressivo da guerra. É o nosso ponto de vista. Com mais ou menos romantismo; com mais ou menos realismo, vamos escrevendo o que a nossa memória registou. É comum ouvirmos camaradas nossos contar testemunhos de situações que vivemos em conjunto e encontrarmos diferenças, ou pormenores que desconhecíamos. Foram vividas em comum, mas analisadas por outro ponto de vista. Alguém,  com outra base académica ou cultural, ou até com outra visão politica e militar da situação. O local e ângulo de onde se está a vivenciar o acontecimento, afeta a informação registada na memória.

Neste caso concreto, estamos a tomar conhecimento de um testemunho de alguém que vivenciou o ataque a Tite. Foi o seu comandante, mas do outro lado da barricada, logo, o relato dos acontecimentos que viveu e a visão global do ataque são à partida diferentes e respeitáveis. São estes conjuntos de ponto de vista, diferentes entre si, dos acontecimentos que vão permitir escrever a História.

Estranhamente pouco ou nada se escreveu oficialmente sobre este acontecimento tão marcante, (seria?) para o desenvolvimento da guerra na Guiné.


II. Sinopse da entrevista - II parte


O Arafam Mané, nesta segunda parte da sua entrevista, fala-nos do capitão José Curto e confessa que a guerrilha já era um fato corrente em 1963, ou seja, tinha sido iniciada possivelmente em 1961. 

A prova mais evidente é a forma com ele descreve o capitão Curto. O medo que os guerrilheiros tinham, já nessa altura, desse oficial português, pela forma dura e violenta como se impunha era evidente, ao ponto de logo no dia 23 de janeiro [de 1963], ou seja, na manhã seguinte, depois daquela noite dura de violência e sofrimento em Tite, correr com o seu grupo de guerrilha a montar-lhe uma emboscada. 

Bastou ao comandante Arafam Mané ouvir dizer que o capitão Curto ia chegar a Tite para mobilizar os seus homens, cansados, e ainda não libertos das emoções da noite anterior.

Chega a afirmar na entrevista que o capitão português foi morto nesse mesmo dia, 23, e que  o seu corpo fora enviado de avião para Bissau. Note-se que o capitão Curto não morreu na dita emboscada e ainda hoje é vivo  (aliás, morrreria, a 30 de novembro de 2018, no posto de ten gen ref). Sabe-se que chegou á Guiné em 26 de maio de 1961 como comandante da CCaç 153 (e regressaria à metrópole em 23 de julho de 1963 (. É colocado no RI5, nas Caldas da Rainha, e no ano seguinte, em outubro de 1964 foi frequentar o curso geral de estado-maior). 

Esta companhia ficou sediada em Fulacunda e a sua ação estendia-se por todo o sul da Guiné, regiões de Quínara e Tombali. O episódio do regresso à metrópo9le do cap Curto deve ter coincidido com os acontecimentos narrados pelo entrevistado,  Arafam Mané,  que associa o seu "desaparecimento" do teatro de operações à sua  suposta morte.

Houve, de facto,  vários boatos ma altura sobre o destino do cap Curto, por exemplo, ele  próprio teve de desmentir, em entrevista 20 de Março de 1963, dada a um jornalista da ANI - Agência de Notícias e Informação, a falsa notícia da sua morte: a propaganda do PAIGC aproveitou habilmente este episódio  para o dar como prisioneiro pelo PAIGC, levado para Conacri, julgado em Tribunal Revolucionário e executado...

Nota-se,  nesta descrição da emboscada à companhia do Capitão Curto, alguma incoerência na relação com o ataque a Tite, ao mesmo tempo vem confirmar que esse ataque foi de iniciativa pessoal do jovem Arafam Mané, servindo-se da população local. Uma emboscada a uma companhia de soldados veteranos – a CCaç 153 chegara à Guiné em maio de 1961e estava marcada pelo inimigo pela sua dureza – não se faz com três armas e uma pistola e algumas armas obsoletas da população, possivelmente "longas",  como acontecera no ataque a Tite.

Era o tempo em que as Forças Armadas Portuguesas no terreno tinham a supremacia das armas e o inimigo sabia-o bem.

A forma como os guerrilheiros se passeavam pela Guiné, nas “barbas” da tropa,  também está bem patente nesta parte da entrevista em que o jovem guerrilheiro Arafam Mané, então com 17,  se dá ao luxo de pedir boleia... à tropa que andava à sua procura.

Não hesito em afirmar que houve situações destas em todo o tempo em que decorreu a guerra. Recordo o testemunho que de uma ex-guerrilheira em 2008, ao afirmar que pegava num cântaro cheio de arroz cozido à cabeça, punha-lhe a rede de pesca em cima e, quando era interpelada pela tropa, afirmava que ia à pesca na bolanha. Seguia calmamente o seu caminho ao encontro dos guerrilheiros com o “tacho” para matar a fome.




Cabeçalho  de O Defensor, órgão das FARP - Forças Armadas Revolucionárias do Povo. Edição nº 22, dezembro de 2015, 16 pp., disponível aqui em formato pdf. O jornal, fundado em 1994, e de periodicidade mensal, tem como diretor o major Ussumane Conaté.



III. Entrevista com o coronel Arafam Mané - Parte II


Esta entrevista foi concedida em 2001 ao jornal “O Defensor”, órgão mensal das FARP - Forças Armadas Revolucionárias do Povo, Guiné-Bissua.,  no quadro da recolha de depoimentos dos Combatentes da Liberdade da Pátria sobre os acontecimentos históricos que marcaram a luta armada de libertação nacional, entrevista essa  reproduzida no sítio  das FARP,  em novembro de 2015. Excertos transcritos com a devida vénia.(A entrevista completa pode serlida aqui. no sítio das FARP, Guiné-Bissau: o linl foi entretanto desconti9nuado.)

(Continuação) (*)

O Defensor – A que hora aconteceu 
o heróico ataque ?


Coronel ADM:

O ataque foi realizado à meia-noite de 22 para 23 de janeiro de 1963. Quando terminou a operação,  considerámo-la de positiva. Regressámos ao local de concentração. Durante o assalto, o meu guarda-costas, Wagna Na Bomba, foi atingido por uma bala inimiga e foi transferido para uma tabanca balanta onde recebeu tratamentos. 

Foi nessa tabanca que formos informados da notícia que dava conta que o capitão Curto, mais conhecido no Sul pelo nome de “Chapa ou fogo”, prometeu queimar todas as tabancas circundantes de Tite até a tabanca de Bacar Conté [, sitiado hoje no Parque das Lagoas de Cufar,], caso se confirmasse o ataque perpetrado pelo grupo de guerrilheiros contra o quartel de Tite.

Então, nessa circunstância, para evitar que se concretizassem as intenções do capitão Curto, salvar a nossa pele e a vida das populações da área, resolvemos fazer uma emboscada na estrada que liga Serra Leoa e Candjabela. 

Felizmente, o inimigo que prometeu transformar várias aldeias [da Região] de Quínara em chamas devido ao ataque perpetrado pelo comando de guerrilha contra o quartel de Tite, caiu na nossa emboscada e foi atingido pelas balas dos nossos camaradas e morreu pelas 14 horas do dia 23 de janeiro de 1963. O seu corpo foi no mesmo dia recuperado e transportado de avião para Bissau. 

No dia 24 de janeiro de 1963 dirigimo-nos para S. João com o intuito de ir buscar o camarada [António Alcântara] Buscardini ]1943-1980] mas, infelizmente, não o encontrámos. Assim, resolvemos saquear o armazém da loja ]da Casa] Gouveia,  levando connosco, entre outros, muitos produtos alimentares. Levamos igualmente o empregado do armazém.

Alguns tempos após a operação fui chamado em Conacri, onde funcionava a sede do partido, o PAIGC, donde segui para a República Popular da China para receber formação militar.

Nós nunca dissemos que iniciamos a guerra contra os colonialistas portugueses com o ataque contra o quartel de Tite; foi o próprio Amílcar Cabral quem o disse. Aliás, foi ele quem tornou público o início da guerra entre os dias 27 e 28 de janeiro de 1963. As armas obtidas foram distribuídas a Malam Sanhá, Casimiro, Rui, entre outros chefes.

A pistola com a qual dei o primeiro tiro, foi-me dada pelo camarada, Luís Cabral. Era uma pistola marca Walt[h]er que recebi durante o período de mobilização. Foi assim que a luta armada começou na Guiné e continuou sem parar até a proclamação da independência do país em setembro de 1973.

Em 1962, começamos a concentrar-nos no mato. Mas a concentração era feita no maior dos segredos. Os nossos contactos com algumas zonas, assim como com o homem grande, chamado Aniceto, que Amílcar Cabral mesmo nos recomendou encontrar no sul,  realizavam-se sempre na clandestinidade. Quando encontramos o Aniceto, este nos confirmou que conhecia pessoalmente o camarada Amílcar Cabral. A guerra começou assim de forma espontânea. Foi assim que aconteceu em Angola e Moçambique.




O Defensor – Como é que se alimentava a guerrilha 
no principio da luta?


Coronel ADM:

Éramos alimentados pela população das tabancas do Sul, pois na altura não tínhamos criado bases fixas. Mas, eu pelo menos tinha uma base. Mas, apesar de não termos bases fixas, mantínhamos contactos secretos com as populações da zona, que conheciam muito bem e secretamente os pontos habituais de encontros com a guerrilha. 

De facto, quem sabia da existência desses pontos de encontros eram os chefes de tabancas e “donos de morança” [chefes de família]. À noite, para dormir mudávamos de lugares, escolhendo locais mais seguros e que ninguém conhecia.

Uma vez fui até a cidade de Bolama,  onde realizei reuniões com alguns camaradas no cemitério de Waque. Depois da reunião fui pernoitar junto das instalações dos Bombeiros. A única pessoa que sabia disso era o camarada Sabino Cabral. Quando amanheceu, fui sentar-me no jardim onde vi passar as tropas coloniais que, tendo informação da minha presença, procuravam capturar-me.

 Depois de passarem, abandonei o jardim e fui tranquilamente ter com Sabino Cabral a quem comuniquei que ia atravessar o rio no mesmo bote com os "tugas"; mas ele rejeitou a minha ideia dizendo que era perigoso. Mas assegurei-lhe que podia fazê-lo sem qualquer problema, porque nem um "tuga" me conhecia. 

Na altura, eu tinha 17 anos de idade e não tinha medo de nada. Não obstante o perigo, consegui concretizar a minha ideia de atravessar com os "tugas" no mesmo bote. Quando atravessamos o rio, as mesmas tropas coloniais me levaram de boleia até Nova Sintra.



O Defensor – Quantos guerrilheiros participaram 
nesta arriscada e histórica operação?


Coronel ADM:

Falando do efetivo que realizou a operação contra o quartel de Tite, era cerca de 150 pessoas, gente que não tinha nenhuma preparação militar nem tão pouco conhecimento nem noção da guerra. Quem tinha essa noção érmoas nós que viemos de Conacri, éramos poucos.

Recordo-me ainda de alguns camaradas que participaram na operação tais como o actual major Québa Djam Djassi, Seco Turé, Seco Djassi, Bemba, Wagna Na Bomba, entre outros. Mas todos eram elementos da população, não havia militares entre nós. O ataque durou praticamente uma hora. 

Quanto a capacidade combativa do inimigo, ela foi de cem por cento, o que lhe faltava no momento da ação era a experiência. Eles eram homens bem treinados mas não tinham grandes experiências porque talvez, nunca se tinham envolvido em situações desse género.

Em termos de equipamentos os "tugas" tinham armas, munições, transportes, meios de comunicação, fardamentos e recebiam treinos militares que na altura, nós não tínhamos. O que tínhamos era a convicção de conquistar a independência nacional.




O Defensor – Mas porque decidiram atacar o quartel de Tite 
quando não tinham meios bélicos suficientes e adequados?


Coronel ADM:

Para além deste quartel se encontrar na zona 8, que era uma área que eles controlavam, no local estava encarcerado um número importante de militantes do nosso grande partido, o PAIGC. Por outro lado, resolvemos atacar o quartel para alertar os "tugas"  sobre a nossa presença naquela aérea. Antes do ataque deste quartel as relações dos "tugas" com as populações eram uma relação de terror.

Não sei se uma vez ouviu falar do capitão Curto, mais conhecido no seio da população por “Chapa ou Fogo”. Mas o que é "Chapa ou Fogo" ? Quando regressamos de Conacri viemos com emblemas e bandeirinhas como prova da nossa militância no PAIGC. A “chapa” e a bandeirinha demonstravam também que, quem tinha o emblema era da célula do partido,  PAIGC. Recordo que em 1962 os emblemas (“chapas”) foram distribuídos em grande quantidade no sul.

A “chapa” era um emblema que se entregava secretamente aos militantes do partido na clandestinidade. Porque no seio da população daquela área, havia pessoas que estavam contra o PAIGC, algumas delas denunciavam junto dos "tugas"  os compatriotas que tinham ligações com o partido e possuíam o emblema conhecido por “chapa”.



(continua)

Introdução, seleção, notas [inckluindo parênteses retos], revisão e fixação de texto: Zé Teixeira

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Nota do editor: