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quarta-feira, 26 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26617: História de vida (55): José Álvaro Carvalho (ex-alf mil art, BAC, Bissau, Olossato, Catió, 1963/65), fadista e guitarrista, e depois da "peluda",... "doutorado em metalomecânica pesada"


Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como > 1964 > Ilustração, in "Tridente - Memórias de um Veterano", de António Manuel Constantino Vassalo Miranda @ 12Fev2007, 29 pp. (Disponível em formato pdf, no Portal UTW - Dos Veternos da Guerra do Ultramar: https://ultramar.terraweb.biz/Livros/AntonioVassalo/OpTridenteAntonioVassalo.pdf) (com a devida védia...)


1. Nota biográfica do nosso camarada José Álvaro Carvalho, grão-tabanqueiro nº 890:

(i) nasceu há 85 anos, em Reguengo Grande, Lourinhã;

(ii) com 26 meses de tropa, acabou por ser moblizado para o CTIG por volta da primavera de 1963 (não conseguimos ainda apurar a data);

(iii) foi render um alferes de uma companhia de intervenção, de infantaria, sediada em Bissau (QG/CTIG) (não conseguimos ainda identificar qual);

(iv) irá cumprir mais uns 26 ou 27 meses, no TO da Guiné, entre o primeiro trimestre de 1963 e o início do segundo semestre de 1965;

(v) passou por Bissau, Olossato, Catió e a ilha do Como, aqui já a comandar um Pel Art, obus 8.8 (a duas bocas de fogo), com que participou, entre outras, na Op Tridente (jan-mar 1964);

(vi) em Catió esteve adido ao BCAÇ 619 (14 meses);

(vii) Cruz de Guerra, 3ª Classe, por no"período de catorze meses em que esteve destacado no Batalhão de Caçadores nº 619, foi sempre um Oficial zeloso, dedicado e muito competente, salientado-se a sua acção, principalmente, no campo operacional, em que foi utilíssimo o apoio, sempre eficaz, que soube dar com o seu pelotão em todas as operações em que interveio, nomeadamente, nas "Tridente", "Broca", "Macaco", "Tornado" e "Remate", contribuindo assim, dentro do seu âmbito, para o prestígio da Arma a que pertence";

(viii) no CTIG era popularmente conhecido pelo seu nome artístico, "Carvalhinho" (cantava o fado de Lisboa e tocava guitarra no "Cantinho da Saudade"); em Bissau, chegou a fazer espetáculos com o alf médico Luís Goes (que cantaca e tocava o "fado de Coimbra"); 

(ix) depois do regresso à vida civil, trabalhou na empresa metalomecânica 
L. Dargent Lda (onde foi diretor do departamento de trabalhos exteriores, e sócio minoritário), empresa q1ue fez, por exemplo, a montagem da superestrutura metálica e cabos de suspensão da ponte na foz do Rio Cuanza em Angola);

(x) depois do 25 de Abril, também conheceu a Sorefame e outras;

(xi) em 2019 publicou, na Chiado Book, um livro misto de autobiografia, e ficção histórica, de em prosa e em veros, mais de 700 pp. ("Livro de C.") (tem em mãos, uma nova versão, revista):

(xii) é nosso grão-tabanqueiro, desde 26/6/2024;

(xiii) autor da série "Memórias de um artilheiro" de que se publicarm 10 postes, entre julho e setembro de 2024;

(xiv) é também autor de 26 fados,  cantor e guitarrista (

(xv) autorizou-nos a publicar no blogue diversos excertos da versão difital, em revisão,   do "Livro de C", incluindo este que se segue com parte da sua vida profissional.




Angola > Ponte do rio Cuanza (em contrução), projeta pelo prof Edgar Cardoso > c. 1970/73 > O José Àlvaro Almeida de Carvalho, diretor do departamento de trabalhos externos da empresa L. Dargent Lda. Aqui ainda no início da montagem do tabuleiro da ponte...


Foto (e legenda): © José Álvaro Carvalho (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Memórias de trabalho e outras

por José Álvaro Almeida de Carvalho



Capa do "Livro de C",  de
 José Álvaro
Almeida de Carvalho (Lisboa
Chiado Books, 2019, 707 pp.)

(i) L. Dargent Lda


Tenho 78 anos de idade. Estou na reta final.

Depois de sair do serviço militar, entrei na empresa L. Dargent, Lda. uma das mais antigas da metalomecânica pesada, primeiro nos Serviços Administrativos, passando mais tarde para os Serviços Técnicos onde cheguei a director do Departamento de Trabalhos Exteriores.

Esta empresa montou o elevador de Stª. Justa, os guindastes do Porto de Leixões, a Ponte Elevatória de Alcácer do Sal, e construiu dragas de grande dimensão, várias pontes metálicas de caminho de ferro, assim como outras obras grandes e pequenas da sua especialidade. 

Era uma sociedade por quotas inteiramente privada, cheia de crédito 
no sistema bancário que nunca usou.

Tinha em média 150 operários, uma boa sala de desenho apoiada em
 técnicos competentes e uma excelente secção de serralharia mecânica de suporte à oficina.

Ainda nos serviços administrativos, interessei-me pelo que se passava nesta oficina. Em primeiro lugar pela soldadura no que me especializei com a ajuda da Welding Researche Assotiation de Londres a que a empresa se associou e o contacto assíduo com empresas como a multinacional sueca ESAB de Gotengourgo, e outras.

No fabrico e montagem de reservatórios e tubagens aprendi muito com os operários que iam trabalhar para a Chicago Bridge and Iron Company , quando regressavam e entravam de novo no anterior serviço, porque já iam nessa condição, ou com os que não regressavam mas quando vinham de férias visitavam a fábrica.

Deles recebi preciosos conhecimentos através de informações, desenhos de pequenas peças para acerto de montagem, mais evoluídas que as nossas etc.

A empresa americana de que falo, tinha um escritório em Lisboa, onde recrutava pessoal para os seus estaleiros, principalmente soldadores. Tínhamos excelentes soldadores.

Até aquela altura todas as refinarias europeias eram feitas por empresas americanas principalmente por esta, que conheci melhor. Cheguei a deslocar-me a Huelva para ver o trabalho que alguns dos nossos operários faziam na construção da sua refinaria.

Quanto ao trabalho de metalomecânica em geral, adquiri o conhecimento que acabei por ter, com os experientes e conhecedores operários encarregados e técnicos da L. Dargent Lda. que recordo com amizade e agradecimento, principalmente quanto aos trabalhos de caldeiraria, por ser impossível haver escolas para esta arte. As chapas mais pequenas com que se trabalham em caldeiraria têm geralmente 6 m, por 2 e os produtos finais podem ter a dimensão dum porta contentores, dos guindastes que os manuseiam ou dum petroleiro. Mesmo as suas componentes que se trabalham normalmente ao ar livre já são muito grandes.

A minha formação académica levou-me a frequentar a faculdade de economia, donde saí para o serviço militar. Tinha portanto conhecimentos de matemática suficientes para estudar Resistência de Materiais, que entretanto comecei a fazer nos livros do mundialmente conhecido engenheiro Timoshenko e me foi de grande utilidade, principalmente no último trabalho, que mais à frente refiro, para me entender com o sr. Professor Edgar Cardoso que o projetou e tinha um profundo conhecimento de engenharia.

Como diretor do departamento de trabalhos exteriores, dirigia no local a montagem das obras importantes como a cobertura da segunda fase da Siderurgia Nacional ou a montagem duma parte do parque de tanques de stocagem da refinaria de Leixões. No que se refere às mais pequenas, visitava semanalmente os respetivos estaleiros.

O último trabalho importante de que falo acima, foi a montagem da superestrutura metálica e cabos de suspensão da ponte na foz do Rio Cuanza em Angola. Tendo estado a residir com a família em Luanda cinco anos por este motivo.

Antes de ir para Angola ensinei a soldar com máquinas semiautomáticas 6 soldadores que já eram bons profissionais em soldadura clássica. Depois de um período de prática fi-los examinar pela Loyd’s Register of Shipping que com o Bureau Vertitas constituíam na altura as mais importantes entidades fiscalizadoras dos trabalhos da nossa especialidade na Europa. Apesar da dificuldade destes exames todos foram aprovados.

Não sabia o nível da fiscalização que ia ter e mais vale prevenir do que remediar. Levei também para Angola uma máquina de Raios X pela mesma razão. Mas a fiscalização era fraca e esta máquina nunca trabalhou. Por outro lado o Professor Edgar Cardoso tinha muita confiança na minha empresa que conhecia de longa data.

Quanto a estes soldadores, com a carta da Loyd’s na mão, começaram a ser solicitados para trabalharem nos estaleiros do Médio Oriente. De quando em quando vinha um pedir para o fazer. Nunca tive coragem para lhes dificultar a vida. Iam ganhar muito mais e possivelmente obter know how diferente do que estavam habituados. Só um ficou, o mais velho, que me fez companhia até ao fim.

Esta situação originou a que já depois de executado um pouco mais de metade do trabalho, sempre que se montava uma viga principal (14 m de comprimento e 14 tons de peso), entregava o estaleiro ao encarregado e passava 3 dias a soldá-la dum lado, com o soldador que ficou no outro. Eram soldadas ainda suspensas do guindaste que as levantava do rio. Assim se fez o trabalho até ao fim.

O encarregado de que falo, era um soldador que em tempos tinha pedido para trabalhar num estaleiro do Médio Oriente, que passados alguns anos regressou e foi promovido a encarregado. Quando fui para Angola acompanhou-me nessa qualidade e foi o meu braço direito durante toda a obra.

As vigas a que atrás me refiro foram fabricadas em Lisboa nas oficinas da empresa a partir de chapa importada da Alemanha.

Este trabalho foi no geral concluído em março de 1974, tendo entrado em acabamentos a partir dessa altura.

(ii) Construtora Moderna

Passei dia 25 de Abril desse ano aí e regressei algum tempo depois.

Andei a ir e vir a Angola até deixar de ser necessário, após o que ingressei na empresa Construtora Moderna,  situada na margem Sul perto da povoação do Fogueteiro.

A empresa a que eu pertencia tinha sido extinta e os seus operários integrados nesta, a qual fora construída e equipada pela Sacor, a grande gasolineira da época, de grande capacidade financeira e que Marcelo Caetano obrigou a vender, por não ter comprovada capacidade para a sua gestão, ficando a Sorefame com a maioria do capital e L. Dargent, Lda. com uma pequena parte.

Fiquei orgulhoso e entusiasmado quando entrei para a equipa de direção desta oficina, que tinha 400 operários incluindo mais de 100 que eu bem conhecia. Mas foi sol de pouca dura.

Tinha 3 halls com 30 metros de elevação e mais de 200 metros de comprimento cada. Havia em cada um, duas pontes rolantes bem dimensionadas, para movimentarem materiais e peças do armazém para os postos de trabalho e entre estes. 

Estava equipada com o que de melhor havia na época para oficinas de caldeiraria (para quem não sabe, caldeiraria deriva do verbo caldear que significa aquecer duas partes de ferro ao rubro e juntá-las uma à outra, batendo-lhes com força a formar uma. Refere-se há muito a todos os trabalhos em aço de espessura superior a 3mm. O trabalho em espessuras inferiores chama-se de serralharia).

As principais obras a decorrer consistiam a primeira, no fabrico de pernas tubulares com 60 metros de comprimento e três de diâmetro em chapa com 30mm de espessura para duas torres de petróleo da Mobil, uma subempreitada da Sorefame.

Esta obra começou a sofrer da particularidade de todas as semanas diminuir o ritmo de produção. Chamava-se a Comissão de Trabalhadores que,  depois de explicada a gravidade do assunto, a importância que a obra tinha para a indústria e para o país, respondia sempre: “Estamos aqui para defender os trabalhadores e não para os atacar”. Nunca entendi este raciocínio.

Quanto à outra obra grande em execução, a construção de vigas em T com 16 m de comprimento de 40 x 20 cm a partir de chapa de 12 mm de espessura, para a reparação dum navio sueco que se encontrava no porto, acontecia o seguinte:

No primeiro dia, vi uma chapa de 16 m x 2.5 m x 0.012 m com o peso aproximado de 5000 kg suspensa de duas pontes rolantes, que a transportavam perigosamente, por cima de vários postos de trabalho.

Conclui que a preparação devia estar mal feita.

Em caldeiraria a preparação é constituída pelas fichas e instruções entregues nos postos de trabalho, onde se descreve o trabalho a fazer. Estas fichas eram feitas nos departamentos de Preparação e Traçagem. Antigamente chamavam-se simplesmente de Traçagem, por ser esse o seu objectivo principal, já que os desenhos provenientes das salas de desenho, não indicam como executar as peças.

Os desenhadores em geral não sabem fazer o trabalho de traçagem, que tem muitas características próprias e métodos empíricos, alguns antigos, como por exemplo a marcação em plano da chapa que depois de enrolada irá formar um tubo que intercepta outro em determinado angulo. O corte dum dos seus lados tem percurso sinusoidal surpreendente.

O primeiro traçador que houve em Portugal veio da Bélgica e foi mais tarde o fundador da empresa onde trabalhei a maior parte da minha vida. Penso que viveu duas gerações antes da minha e o seu nome era Lambert Dargent.

A primeira ficha da obra a que pertencia a chapa referida, indicava que este posto de trabalho traria do armazém uma chapa standard de 12 m x 2,5 m x 0.012 m e uma de 4 m x 2,5 m x 0.012 m , soldava-as uma à outra formando uma que enviava para a máquina de corte.

Se a preparação estivesse bem feita estas duas chapas deveriam ser cortadas em barras primeiro e soldadas depois no sentido longitudinal para atingirem os 16 m. Acresce que o caminho de rolamento da máquina de corte só tinha 14 m e para cortar uma chapa de 16 m , até aos 14 m o trabalho fazia-se com rapidez mas depois era feito com métodos ancestrais do que resultava que a máquina em vez de cortar 20 chapas por dia, só cortava duas ou três.

(iii) Sorefame

Eu dependia do diretor de produção da Sorefame. Pouco depois, este senhor, acusou-me numa assembleia da direção de não acompanhar devidamente esta obra, já ameaçada com multas de incumprimento pelo cliente.

Esclareci a situação e o que havia a fazer era substituir a preparação existente por uma nova bem feita. Ele afirmou que ou as coisas eram executadas como eu dissesse, ou não punha lá mais os pés.

Isto originou a que fosse chamado a uma assembleia de trabalhadores onde me foi perguntado porque queria alterar coisas que estavam bem feitas. Respondi a esta pergunta anunciando a minha saída da empresa.

Em pouco tempo já tinham acontecido alguns factos que,  somados, me fizeram pensar que ela iria soçobrar a curto ou médio prazo, como aconteceu.

(iv) Mague, Lisnave, Setenave... e tudo o vento levou

Mas, estava longe de saber que iria acontecer o mesmo a toda a indústria metalomecânica, incluindo os grandes estaleiros navais, a Sorefame na Amadora , e várias outras, como a Mague em Alverca, - especializada em aparelhos de elevação, que fez a maior parte dos guindastes para contentores do porto de Lisboa, o enorme pórtico de 300 toneladas da Lisnave, e muitos aparelhos desta especialidade para outros países. Nesta altura, fabricava guindastes de contentores para o Porto de Estocolmo, mas já tinha começado a ter problemas.

Beneficiando destas empresas maiores, havia outras médias e pequenas ligadas por subempreitadas e acordos de trabalho, por terem custos de estrutura menores e praticando preços para obras pequenas ou partes de obra, convidativos.

Desaparecidas as primeiras, começaram pouco depois a desaparecer as segundas. Um castelo de cartas.

A Mague de que falei acima, nasceu da necessidade duma oficina de reparação de equipamentos de construção civil para trabalhos de grande dimensão como a construção de barragens, na empresa “Moniz da Maia & Vaz Guedes”, que construiu a Barragem de Castelo de Bode.

Terminada esta construção, já tinha equipamentos e know how suficientes para se tornar independente e concorrer em construções de engenharia mecânica pesada, como aparelhos de elevação e turbinas, que veio a fabricar para todo o mundo como já disse. Adotou o nome de Mague formado por carateres dos nomes Moniz da Maia e Vaz Guedes.

Chegou a ter milhares de operários e em subempreitadas e ligações de trabalho a ocupar outros tantos.

A soldadura foi descoberta em 1911, passado tempo viu-se que um pingo de soldadura resistia tanto como um rebite e era muito mais barato. A pouco e pouco a construção em aço incluindo a naval deixou de ser rebitada, e passou a ser soldada, ao mesmo tempo as siderurgias começaram a produzir aços mais homogéneos com menos carbono e inclusões de produtos nocivos, como o enxofre, e portanto mais resistentes e soldáveis.

Mas a soldadura não fica capaz se efetuada a 0º C de temperatura e no Norte da Europa esta temperatura é frequente. Em Lisboa solda-se todo o ano.

Foi este motivo, somado à excelente posição estratégica do seu Porto e ótimas condições naturais, que fez com que três estaleiros suecos e dois holandeses se aliassem a três nacionais e a um banco, para construírem o grande estaleiro de reparações navais da Margueira, a Lisnave, que chegou a ser o mais importante do mundo no seu tampo nessa área de atividade. A sua maior doca a doca13 podia por em seco navios com que deslocassem 1 milhão de toneladas.

Foi também o mesmo principio que esteve na origem da instalação no porto de Setúbal da Setenave para a construção naval de petroleiros ou navios de grande dimensão.

A Lisnave foi oficialmente constituída a 11 de Setembro de 1961.

Em 1969 já detinha 39% da reparação mundial de navios até 300 000 toneladas.

Em 1970, 96% dos navios reparados pertenciam a armadores estrangeiros.

Neste ano iniciou um novo tipo de actividades, com a construção de grandes secções, proas e partes centrais de navios.

Entra assim num campo mais elevado de tecnologia, que lhe irá permitir efectuar reparações mais complexas, assim como Jumboizing (termo aplicado ao aumento de capacidade de carga dos navios, por acrescento de uma nova secção).

Ainda neste ano, o estaleiro da Margueira aumentou a sua produção 41% relativamente ao ano anterior.

No ano de 1973, a empresa tinha 7700 trabalhadores. Em 1974 teve inicio a sua decadência até à extinção.

A construção do estaleiro da Setenave começou nos inícios de 1972 e um dos seus administradores, afirmou à imprensa que seria um investimento de 2,5 milhões de contos, para 6.000 trabalhadores na fase plena.

Efectivamente a construção naval arrancou em 1973. Mas no ano seguinte aconteceu o 25 de Abril de 74 e, a partir dessa data, a Setenave passou a ser uma caldeirada politica laboral.

A empresa Sociedades Reunidas de Fabricações Metálicas, S. A. R. L., foi uma sociedade anónima de responsabilidade limitada portuguesa, especializada na construção de componentes eléctricos e mecânicos pesados. Foi fundada em 1943 e dedicou-se, inicialmente, ao fabrico de equipamentos hidromecânicos, cuja procura era elevada devido ao programa de construção de barragens hidroelétricas no âmbito da industrialização do país.

Afirmou-se mais tarde quando essa atividade deixou de ser necessária, como um importante construtor de material circulante ferroviário, em parceria com várias empresas internacionais.

Nos princípios da década de 50, a CP afirmou a sua intenção de adquirir carruagens metálicas de aço inoxidável canelado.

Para responder a tal necessidade, a Sorefame  associou-se à empresa americana Budd Company, que detinha a patente para a construção deste material, tendo recebido uma licença de fabrico e os conhecimentos técnicos necessários. Era a única empresa a fazê-lo na Europa.

Fabricou importantes encomendas de automotoras de vários tipos, normais e triplas, assim como locotratoras, carruagens e locomotivas eléctricas para a CP e mais tarde para o Metro e Carris.

Forneceu também equipamentos destes para a África do Sul.

Chegou a ter, no início dos anos 80, mais de 4.100 trabalhadores e uma base tecnológica e de engenharia própria, conceituada.

Fabricou também 200 carruagens para o material circulante do Metropolitano de Chicago, encomendadas pela Boeing em 1974.

Neste ano, recebeu também uma encomenda da Alsthom para o fabrico de 30 locomotivas, de 2800 CV, para a Rodésia. Tendo realizado a sua montagem com os motores e restantes equipamentos enviados por essa empresa.

A Revolução de 25 de Abril de 1974 veio trazer um clima de instabilidade social e política, que a atingiu fortemente. Começaram a realizar-se greves consecutivas que deram inicio ao seu declínio.

Foi totalmente extinta em 2001.

(v) Listrafego

Algum tempo após sair da metalomecânica pesada,  fui trabalhar para uma pequena empresa que operava no porto de Lisboa especializada na reparação de contentores.

Nessa altura o trafego portuário era intenso e não havia mãos a medir. A empresa embora só com trinta operários faturava mensalmente um valor muito elevado para a sua dimensão.

Tinha o seu escritório principal numa rua perto do Saldanha e um estaleiro com escritório, armazém de peças e ferramentas no grande parque de contentores do porto, a Listrafego, onde passei a trabalhar. Todos os dias o pessoal partia daqui numa carrinha para as zonas de trabalho do porto e por vezes para parques dos arredores da cidade, em Camarate, em Loures, em Sacavém e outros, uma vez que o trafego era muito intenso e estava esgotada a capacidade necessária de armazenamento.

Parecia ser esta a altura de executar finalmente o projecto antigo de ligar o porto de Lisboa ao de Setúbal fazendo um canal entre o Tejo e o Sado. Este canal já se encontrava assinalado nas cartas de navegação e podia ser feito com o dinheiro gasto a construir um troço de autoestrada, formando-se assim a infraestrutura portuária mais importante da Europa.

Mas não foi o que aconteceu. O que aconteceu foi que uma vez por semana havia um plenário de trabalhadores e o porto parava. Os custos aumentaram e obrigaram os navios a procurarem outras paragens.

O espaço começou a ser excedentário. O trabalho a ser reduzido. A empresa para a qual trabalhava ia ficando mais pequena à medida que os trabalhadores pensaram com razão, já não estar ali o seu futuro. Eu disse no escritório do Saldanha que quando houvesse tantos gerentes como operários me vinha embora. Saí quando havia quatro e quatro gerentes.

Foi no meu local de trabalho e de muita outra gente que nasceu a Expo 98, um barrete bonito.

A metalomecânica pesada e uma importante parte da média e ligeira frequentemente suas subempreiteiras, associadas ou subalternas, assim como o Porto de Lisboa, contribuíam com uma quota elevadíssima para a riqueza do país, sendo os seus serviços principalmente pagos em divisas. Sustentavam milhares de famílias.

Quando se despreza o know how como foi desprezado ultimamente no nosso país que não nos pôs na miséria por termos a ajuda da CEE,  não se conhecem situações como a que passei nos meus primeiros anos de metalomecânico quando me interessei por acompanhar as primeiras obras da oficina. 

A primeira foi o fabrico de 3 caldeiras de 600 cv cada para a Sociedade Central de Cervejas de Via Longa. Estas caldeiras como julgo que todas as que se fabricaram foram feitas sob licença duma empresa Norte Americana da especialidade á qual se pagaram os necessários royalties.

Juntamente com os desenhos de fabrico que se receberam, vinham também as necessárias instruções e o tempo em horas necessário para a execução de cada tarefa. O exame destes documentos provocou-me a genial ideia de que como pagávamos 5 vezes menos que os americanos, quando fizéssemos em 5 horas o que eles faziam numa poderíamos colaborar com eles em pé de igualdade, parceria, subempreitada etc.

Por este motivo acompanhei atentamente esta obra. Tínhamos operários muito competentes e experientes, as máquinas principais eram as mesmas, uma calandra boa e um engenho de furar de precisão para furos de 50mm em chapa de 40mm de espessura o qual tínhamos adquirido havia pouco tempo.

No final da obra conclui que tínhamos feito em 16 horas o que eles faziam numa e por qualquer razão não tinham concorrido ao seu fabrico, ou porque consideravam sermos o seu parceiro cá e lhes compensava só os royalties, ou qualquer outra.

Foi este o meu primeiro balde de água fria na metalomecânica. Houve depois muitos outros que me escuso de contar.

É por isso que depois de assistir a ser ignorado e despezado, o know how pacientemente adquirido ao longo de dezenas de anos e a ligeireza com que um tão grande volume de postos de trabalho e correspondente riqueza foi tratado, peço desculpa aos meus amigos socialistas, mas tenho a maior dificuldade em não concordar com as palavras da srª Tatcher quando discursou na greve dos mineiros em Manchester:- “ Os sindicatos em vez de defenderem os postos de trabalho, destroem-nos. Nunca mais nos livramos do maldito socialismo.”

Definir como objectivo acabar com os patrões foi trágico porque havia patrões maus, bons, justos, injustos, que corrompiam e que não, que sobreviviam ou estavam em sério risco, etc. , mas tinham todos duas coisas em comum. A primeira é a de que arriscavam na actividade o seu património, a sobrevivência da família e a segunda é que criavam a parte mais importante da riqueza do país.

Muito do que nós perdíamos era ganho por outros. Penso que houve influências discretas neste processo, que obtiveram os ganhos correspondentes. A história o dirá.

Julgo assim que depois do que se passou nos temos que habituar à escassez generalizada e a praticar níveis de vida mais modestos. Só espero que sejam dignos.

Embora simpatizasse com as ideias socialistas, toda a minha vida lutei pela produção, por isso entendo que quando um posto de trabalho é eliminado leva com ele know how difícil de se voltar a obter.

Um dia, a minha filha mais nova, sabendo-me um mau socialista, perguntou-me com malandrice:

- Ó pai, porque será que a maior parte dos homens cultos são de esquerda?

Ao que respondi no mesmo tom :

- Sabes porquê? Porque são esses que depois de nela caírem, conseguem dar a volta aos erros de que padece.

Fazem falta para a manter viva.

Pensei e penso que acabar com a exploração do homem pelo homem é um objectivo nobre a cumprir.

Mas a inevitabilidade da vida, que obriga a termos que comer, vestir, ter cuidados de saúde, educação, etc., tornou também inevitável a existência de meios de produção. O seu desaparecimento pode pôr-nos a pão e laranjas e ser considerado uma ameaça à sobrevivência. Não ponho aqui a questão de a quem devem pertencer, se aos particulares ou ao Estado, mas no geral, não tenho conhecimento de qualquer Estado capaz de geri-los com eficácia, sendo a meu ver, esta a razão da existência da sociedade de consumo com todas as suas monstruosidades. Posso estar enganado.

Então e agora? Agora é murmurar, gritar espernear, barafustar, etc. Pode ser que resulte, mas um caldeireiro ou um serralheiro mecânico não se fazem numa semana, nem num mês, nem num ano, nem longe duma oficina e uma oficina de caldeiraria ou serralharia mecânica idem idem, aspas aspas a multiplicar por 10.

Para quem for crente e queira ultrapassar dificuldades recomendo uma ida a Fátima a pé.

A destruição irreversível dos meios produtivos não foi só da responsabilidade das esquerdas,  como parece.

Não se pode deixar de falar na política de terra queimada que a direita praticou ou quem por ela se fez passar, alheando-se propositadamente, de tudo e de todos, não explicando que o resultado do processo em curso iria descambar onde estamos agora e no que ainda está para vir.

Podemos portanto dizer adeus aos trabalhos de construção naval, de guindastes , de pontes, de comboios, etc., assim como de fazer da infraestrutura portuária dos Portos de Lisboa e Setúbal a maior e melhor da europa.

Esta promissora e comprovada competência da nossa terra e da nossa gente é já só o sonho duma noite de Verão, chão que deu uvas.

(vi) O regresso às origens


Finalmente acabei por vir prá região onde nasci e dediquei-me algum tempo a elaborar projetos de construções pecuárias e depois turísticas que me ocuparam alguns anos.

Mais tarde comecei a elaborar projetos técnicos de betão armado para vivendas e pequenos prédios, ao serviço dum gabinete de engenharia.

Entretanto pouco depois reformei-me, mas continuei a trabalhar no mesmo durante anos. Elaborava em média a estrutura de betão armado de duas vivendas ou um pequeno prédio por semana.

A certa altura comecei a achar estranho que se construíssem tantas casas e o preço das mesmas aumentasse exponencialmente de ano para ano. Parecia-me que isto contrariava as velhas leis económicas da oferta e da procura, mas como tinha poucos conhecimentos da matéria e a vida me corria bem, fiz aquilo que os ingleses recomendam nestes casos, “wait and see”.

Mais tarde, refletindo melhor conclui que as bolhas imobiliárias tinham sido originadas pelas promessas dos políticos antes de ascenderem ao poder que depois não cumpriam na totalidade mas só em parte a qual já era suficiente para, com a constante subida de impostos e outros malefícios,  pôr as economias em derrapagem, as receitas dos governos inferiores às despesas. 

Na nossa terra houve ainda a preciosa ajuda dos sindicatos com a rápida destruição do tecido económico.

Os bancos cuja atividade começou a ser fortemente afetada, para se defenderem e manterem as altas regalias que tinham, começaram a investir com abundância no sector imobiliário, o mais fácil, garantidos pela 1ª hipoteca dos imóveis,  mais tarde também pela 2ª e até pela 3ª. Como investiam com a mesma facilidade tanto na construção como na aquisição, o valor das casas não descia. 

Nas bolsas de valores começaram a aparecer produtos tóxicos com base nestes comportamentos até que os credores em presença dos elevados encargos com que acabaram por ficar, deixaram de cumprir no todo ou em parte e as bolhas rebentaram com as muitas consequências negativas conhecidas

O milionário George Soros que se formou em economia na Inglaterra e fez fortuna na bolsa de Nova Yorque, num dos livros que escreveu (2008), criticou fortemente a atuação dos governos do Senhor Bush e da Senhora Tatcher e seus conselheiros, que recomendavam a não intervenção nos mercados, porque estes se autorregulavam de acordo com as leis da teoria económica clássica.

Na opinião deste senhor, ou os governos intervinham, ou a economia global dava uma cambalhota. Parece que está aí.

Aqui na minha terra tenho tido mais tempo para meditar. Lembro-me dum amigo do meu pai lhe dizer que quem trabalha muito não tem tempo para ganhar dinheiro.

Acho que o atual generalizado desprezo pelo trabalho se fundamenta nesta máxima.

Não era preciso que atualmente existissem junto do poder conselheiros tão bons como houve junto do rei D. João II, mas há mínimos a atingir seja no que for.

Também nunca mais soube nada do enorme tesouro que existia no Banco de Portugal em depósito ou crédito, que constava no relatório mensal do Banco Português do Atlântico de Março de 74 e era constituído por 800.000 barras de ouro de 1 kg e mais o equivalente em divisas.

quarta-feira, 12 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26576: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (37): O silêncio do rio Xaianga




Guiné > Zona leste > Região de Bafatá > O Rio Geba, o estreito (do Xime para montante) e o largo (do Xime para jusante)... c. 1970, no tempo seco... O rio era navegável de Bissau até Bafatá!... Os cartógrafos portugueses chamava-lhe Xaianga, ao Geba Estreito. Normalmente, as embarcações civis, os "barcos turras", iam até Bambadinca... As LDG ficavam pelo Xime, mas também chegaram a Bambadinca, pelo menos até a 1968... Dois pontos vulneráveis do percurso eram a Ponta Varela (na margem esquerda do Rio, entre a Foz do Corubal/Ponta do Inglês e o Xime), e o Mato Cão (entre o Xime e Bambadinca, no troço serpenteante do Geba Estreito ou Xaianga)... Era o maior rio da Guiné-Bissau: rio de planície, com cerca de 550 km de comprimento, caudaloso na época das chuvas (de abril a outubro), nasce a cerca de 40 km a nororeste da cidade de Koundara, região de Boqué, na Guiné-Conacri, corre para Norte, penetra no Senegal, para logo fazer uma longa curva para o Sul, receber as águas do rio Bidigor e desaguar em Bissau; o  seu principal afluente é o Rio Corubal

Foto do álbum do Humberto Reis, ex-fur mil op esp (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)


Foto (e legepnda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O silêncio do rio Xaianga

por Luís Graça


− Ah!, se pudéssemos identificar, selecionar, decompor e voltar a juntar o melhor de cada povo, teríamos o melhor da humanidade!... Teríamos a humanidade perfeita!...

− Não sou assim tão otimista e utópico como o vosso Amílcar Cabral... Aliás gostava de reconhecer esse "homem novo" guineense, que foi prometido nas Colinas do Boé − respondeste tu, com afabilidade e sem ironia, ao teu interlocutor, um antigo comissário político do PAIGC, da última geração dos "combatentes da liberdade da pátria".

O comissário político era, explicou-te ele, o padre ou o pastor, conduzindo um rebanho de crentes sobre o qual tem o poder de punir e perdoar. Retiveste essa metáfora sem, todavia, lhe pedir para exemplificar. Mas tencionavas mais tarde perguntar-lhe o que é que o comissário político fazia nas FARP (Forças Armadas Revolucionárias do Povo).

Achaste piada ele ter-te dito, com candura, que agora era um "ex-tudo"...

− Ex-tudo ?...

− Sim, ex-combatente da liberdade da pátria, ex-comissário político, ex-militante do PAIGC, ex-católico, ex-marido...

Só não era ex-pai, porque continuava a amar muito os seus filhos, e não eram poucos, de várias relações...

E estavas tu ali, na terra dele, agora "libertada" (uma metáfora: livre das "velhas algemas do colonialismo", rapidamente substituídas por outras, de outros "ismos"...).

Estavas tu ali, não como um "antigo inimigo" nem como um "simples turista" ou "estúpido em férias" mas como... um "amigo" do "povo guineense"...Mesmo que amigo e povo fossem conceitos nem sempre fáceis de definir ou entender.

Aproveitavas também a ocasião para "fazer as pazes" com o passado. Antes de mais, contigo próprio, que foras "obrigado a comprar a guerra que te quiseram vender"... Como não eras livre, nem mercenário, não pudeste negociar nada, muito menos o preço.

Eras "amigo da Guiné, agora Guiné-Bissau", mas não confundias o "povo" com a sua "elite dirigente", que começou por ser, em 1974, os "novos senhores da guerra". 

Tinhas relutância, por exemplo, em apertar a mão de alguns daqueles homens, novos e antigos senhores da guerra, como o 'Nino' Vieira, que regressava ao poder depois de uma sangrenta guerra civil (a de 1998/99) e de um exílio mais ou menos dourado. E alguns ainda mais sinistros como o Quemo Mané, o Mamadu Injai, o Inocêncio Cani e outros de "segunda linha", que já tinham ido parar aos quintos  do "inferno dos combatentes"...

Acabarias por o conhecer pessoalmente, ao 'Nino' Vieira, uns dias depois, numa receção no "palácio presidencial"... Para todos os efeitos, era uma figura institucional, o presidente da república, eleito.  Um ano depois, em 2009, era miseravelmente morto. E rapidamente esquecido. 

Estranho país aquele onde facilmente se passava de herói a vilão. Nada, de resto, que tu não soubesses já, a começar pelo teu país, e a sua história recente.

Ainda tinhas dificuldade em definir o teu estatuto naquela terra a que chamavas "verde-rubra", não obstante a ambivalência das cores que eram também as cores da bandeira dos "tugas", lembrava-te o Tó Brandão, com quem começaste a simpatizar por ser um tipo "porreiro, bonacheirão". Falava-te do passado, sem azedume, embora às vezes com uma pontinha de ironia.

Não achaste a terra assim tão "verde-rubra" como há quarenta anos atrás. Nessa altura, quando desembarcaste de um velho cargueiro colonial, já era a época das chuvas. E o capim começava a crescer como os velhos campos de trigo da tua terra. Nunca gostaste da Guiné no tempo seco, tempo das queimadas e das grandes operações militares, tempo da sede e da insolação, tempo da desidratação e da exaustão, física e emocional...

Voltavas lá, quarenta anos depois, em março de 2008. Havia no ar uma aridez de deserto. O Saara ali tão longe e tão perto. 
 
Há terras que ficam na memória das nossas geografias emocionais, pelos cheiros, os sabores, as cores...

− A guerra já acabou para ti há muito − comentou o teu convidado, em tom de brincadeira.

Ele falava corretamente o português. E gabava-se de ter andado no liceu Honório Barreto, "ainda seu antepassado remoto pelo lado materno".

− E para ti, não, a guerra  ainda não acabou  ?! − interpelaste-o, mas respeitaste o silêncio ques e seguiu, algo embaraçoso.

Quem era, afinal,  esse teu cicerone, que se oferecera para mostrar as velhas ruas e casas de estilo colonial, poeirentas e esburacadas, de "Bissau Bedju", cujo traçado em linhas paralelas e perpendiculares, ainda retinhas, se bem que vagamente, na memória ?

O António Brandão ("Tó para os amigos") tinha-te sido apresentado por um amigo comum, português,  ligado à cooperação, conhecido ativista contra a guerra colonial, e incondicional admirador do Amílcar Cabral, embora agora mais crítico em relação aos seus "fracos herdeiros"...

A sua obsessão, em Bissau, era encontrar um "mãos limpas", isto é, um dirigente que não estivesse direta ou indiretamente ligado ao "narcotráfico". A sua deceção ia aumentando por aqueles dias, à medida que as suas "fontes secretas" iam confirmando as suas "suspeitas":

− Eh!, pá, até o fulano tal..., imagina!...

Tu e ele eram participantes do Simpósio Internacional de Guileje, que se realizava em Bissau, com uma visita de fim de semana ao "mítico Cantanhez". Estava-se em março de 2008. A iniciativa não era partidária, nascera da sociedade civil e propunha-se também juntar os antigos combatentes de um lado e do outro.

O Tó Brandão era não um "típico guineense". Para já, provinha da uma família cristã, mestiça, de Bafatá.

− Grumete do Geba!− esclareceu ele.

Tal como o Amílcar, que também não era um "típico guineense".

− Mais branco do que muito branco.

Era um "mundo crioulo" que te intrigava e fascinava ao mesmo tempo, aquela mistura de cores, sabores, línguas, saberes, fenótipos, florestas, tarrafos, rios, braços de mar....mas também ódios e amores.

Tinhas dificuldade em perceber (e penetrar em) aquele sistema de relações de parentesco e de poder, em que os machos e os "mais velhos" dominavam, e as próprias religiões monoteístas e proselitistas,  o cristianismo e o islamismo, não se davam mal de todo com a idiossincrasia animista... 

Não sem surpresa, deste conta que  o Tó era profundamente supersticioso e ainda usava alguns dos amuletos do tempo da guerrilha.

Por delicadeza (ou receio de melindre) não lhe quiseste fazer perguntas sobre as origens da família, embora a tua curiosidade fosse muita. Acabou por ser ele a falar-te dos seus antepassados. Tinha um bisavô algarvio, de Portimão ou Faro, não sabia ao certo... Contar-te-ia ele, já para o final da refeição.

Depois de um emocionalmente penoso, para ti, "passeio turístico" até à marginal e à zona portuária, descendo a antiga e 
tua conhecida avenida da República (avenida Amílcar Cabral, depois de 1975), nada como um almoço de pitche-patche (caldo de ostras) e de frango de chabéu, bem regado com umas "superbocks"...

O "tasco" era de um antigo soldado da manutenção militar. A esposa, cabo-verdiana, era uma cozinheira de mão cheia. O seu pitche-patche era talvez o melhor da cidade, garantia-te o Tó, que era um bom garfo e um melhor copo.

À segunda "super", o Tó Brandão já estava a tratar-te por ermon. Sem constrangimento da tua parte. O tratamento por tu, da tua parte,  não o vias como um velho tique do autoritarismo colonial, mas como uma forma de facilitar a comunicação entre dois antigos combatentes, para mais lusófonos. E sem qualquer veleidade paternalista, do teu lado, mesmo sendo tu mais velho que ele uma boa meia dúzia de anos!

Percebeste (pelo que ele deu a entender durante o almoço) que gostava de poder mandar estudar um dos seus filhos em Portugal.

− Em medicina!

Nunca tinha conseguido sequer uma bolsa de estudo para o estrangeiro.

Disseste-lhe que na altura não estava fácil entrar nas faculdades de medicina, cujas notas eram escandalosamente altíssimas... E que havia poucas vagas para os PALOP... E, a título de consolo, alertaste-o para o risco de "perder o filho": os médicos não voltavam â Guiné, ou seja, à procedência, para vir trabalhar em "condições heróicas", isto é,  miseráveis... Conhecias muitos casos.

Era crítico do regime do 'Nino' Vieira, então no poder.

− Matou o Cabral pela segunda vez!

Segundo apuraste da longa conversa desse dia, que se prolongou pela tarde dentro, o Tó já era guerrilheiro no início dos anos 70.

− Na frente do Xitole. Em 1972, ia fazer 19 anos. 

− Por um triz (ou melhor,  talvez por um ano de diferença), não nos cruzámos nos matos do Xime e do Xitole! Tu de Kalash, eu de G3 em punho.

Andara pela "barraca" da Mina / Fiofioli, já em 1972... Depois da morte de Mário Mendes, em meados desse ano, o PAIGC concentrou a maior parte das suas forças na Zona Oeste, no Norte, para atacar Guidaje, como manobra de diversão. E no Sul, para cercar e "aniquilar" Guileje...

− Havia a crença de que se Guileje caísse, a guerra estava ganha... Disse-o Cabral, antes de morrer...

As "áreas libertadas" da bacia hidrográfica do Corubal ficaram vulneráveis, à mercê dos "raides punitivos" da tropa portuguesa...O PAIGC ficou desfalcado e os "tugas" voltam a entrar na mata do Fiofioli, três anos depois da Op Lança Afiada. O Tó fora entretanto  para a barraca de Hermancono, no Senegal. Nunca mais voltou ao Leste.

Turra, foi o que eu fui... Turra, como vocês diziam...

−  Turra dum cabrão!... E insultávamo-nos uns aos outros, na mata, quando nos encontrávamo-nos, aos tiros.

−  E falávamos a mesma língua!

− Estranho, diria um observador estrangeiro, que nos estivesse a espreitar por detrás de um bissilão!

−  E, afinal, éramos todos do mesmo clube, uns do Benfica, o maior da época, mas também do Sporting,  um ou outro do Belenenses, e até do Porto .

−  Do Belenenses ?!

−  Sim, por causa do Matateu!

−  Ah!, o Matateu, mas esse já não era do nosso tempo... Não estarás a confundir com o Eusébio ? 

Afinal, tu é que não estavas a dar conta da importância  do futebol na génese e desenvolvimento da luta pela independência...

−  Tivemos vários futebolistas na luta, do Lino Correia ao Bobo Queita.. E o próprio Amílcar Cabral, dizem que chegou a prestar provas no Benfica. Sabias ?

 −  A sério ?!...Não se pode ignorar a bola... Ainda vi hoje uns quantos  djubis, á saída do hotel, com a camisola do Ronaldo!...

−  E então diz-me lá porque razão andámos a guerrear este tempo todo ?

−  Tó, o homem grande de Lisboa, primeiro o Salazar, e depois o Caetano, não se entenderam com o Cabral... Foi pena.

−  Talvez o Spínola tivesse conseguido, se o Cabral não tivesse sido morto.

Contrariamente à maioria dos combatentes, militantes e simpatizantes do PAIGc , o Tó não atribuía a morte de Cabral ao Spínola nem aos "tugas".

Julgavas que ele não disse isso só para te agradar ... Veladamente,  o Tó deu-te a entender que o 'Nino' Vieira, o primo Osvaldo Vieira e o Sékou Touré teriam as "mãos sujas de sangue". Mas o 'Nino'  ainda estava vivo e não longe do restaurante, pelo que o Tó não queria aprofundar o assunto que o incomodava... Deduziste o que ele te queria dizer:  sabiam do complô,  nada fizeram para o neutralizar e provavelmente também eram cúmplices...

Não resististe a querer saber algo mais sobre a infância e a adolescência do Tó, depois de, conversa puxa conversa, de terem chegado à conclusão de que tinham andado ambos pelos mesmos sítios, embora em anos diferentes. 

 Mandaste vir mais cerveja para destaramelar a  língua...

−  Como é que chegaste afinal a comissário político, um cargo mais importante do que comandante de bigrupo ?  −  quiseste tu saber...

Ele preferia falar da origem da família... Sobre o bisavô, desterrado para Cabo Verde, ele disse-te que sabia pouco, ou o que a mãe lhe contara,  ainda em pequeno, quando sonhou que ele "ainda viria a ser seria padre e talvez até bispo"...

Era cabo-verdiana e muito devota a Nossa Senhora de Fátima.

 −  Uma santa pelo que aturou ao meu pai... E, claro, como boa africana,  também consultava os búzios...

O Tó nunca tinha estado em Portugal mas sabia muitas coisas da história e da geografia, do tempo da escola, sobre a terra do bisavô,  "o Algarve, que fora dos mouros", isto é, "dos africanos"...

A senhora, Nha Luana,  tinha medo de morrer ainda nova e de levar para o  outro mundo os segredos da história da família do lado paterno. Achava que tinha obrigação de transmitir essas memórias aos filhos mais letrados, que eram também os mais novos... Ela e o Tó eram muito chegados, para não dizer cúmplices...                                                                                                       
Assim, o Tó sabia que o bisavô (de que já não se lembrava o nome, nem nunca vira nenhuma foto)  fora deportado para a ilha do Fogo. Alegadamente por se ter amotinado no navio de guerra a cuja guarnição pertencia. Teria chegado a Cabo Verde por volta de 1895, "no tempo dos reis" (pelas tuas contas).

O Tó não sabia explicar o que se passara a bordo, a memória da família não chegava a tanto pormenor, mas parece que o marinheiro-fogueiro já tinha nessa época "ideias republicanas". 

À melhor oportunidade teria fugido da ilha onde lhe fora fixada residência. Numa leva de contratados para São Tomé, para as roças de cacau, acabou por seguir a bordo num vapor que fazia escala em Bolama (capital da Guiné a partir de 1879, acrescentaste tu).

Não ia de todo clandestino, terá beneficiado da cumplicidade  de um conterrâneo (ou antigo camarada da marinha de guerra) que o escondeu num beliche. A viagem, de resto, não era longe. 

Com a falta de "colonos brancos", não foi difícil arranjar trabalho na loja de um antigo deportado, ali estabelecido como comerciante e que  também tinha uma ponta na extremidade sul da ilha.

Nos primeiros tempos ficou afastado da vila de Bolama (só cidade a partir de 1913),  à frente de  destilaria de aguardente de cana. Os seus conhecimentos de fogueiro da marinha foram-lhe úteis.

Acabou por casar com uma bijagó de Bubaque  educada nas missões católicas. A mulher grande deu-lhe um bando de filhos, fora os que arranjou noutras moranças e camas. Parece que mais tarde dedicou-se à marinhagem num barco a vapor que fazia a cabotagem entre Bissau, Bolama e Bubaque. Acabou por trazer a família para Bissau e depois para o presídio do Geba.

O avô do Brandão vamos  encontrá-lo  a combater ao lado do capitão  Teixeira Pinto, do tenente Sousa Guerra e do Abdul Injai, comandante das tropas irregulares, na campanha contra os papéis e os grumetes da ilha de Bissau, em meados de 1915.

− Esse avô terá salvo a vida do capitão-diabo, quando este foi ferido. Contou-me a minha mãe, que ainda não era nascida. 

Louvado por feitos em combate, acabou por seguir a carreira militar e chegar ao posto de sargento, no final da I Grande Guerra.  

O pai do Brandão, por sua vez, foi soldado em Bolama, numa companhia de caçadores indígenas no início dos anos 40.  Terá estado em Angola (ou Macau, já não podes precisar de memória), durante a II Guerra Mundial, como expedicionário.  Esteve tentado a lá ficar mas as saudades da família (já era casado, e com filhos)  eram muitas.

Quando voltou, foi trabalhar para a Casa Gouveia, em Bafatá, vilória que, graças ao florescente comércio da mancarra, já há muito havia suplantado a decadente Geba e todas as demais terra do Leste.

−  Nasci em Bafatá, onde é hoje o bairro da Rocha...

E é aqui, por volta de 1953, que começa a história de vida do Tó Brandão...

− Brandão ?!...

−  Sim, apelido do meu padrinho de batismo: era ponteiro em Bambadinca e parente da minha mãe, cabo-verdiana. 

Era um colono respeitado, nacionalista, cuja casa o Amílcar Cabral frequentava  nos anos em que trabalhou na Guiné como engenheiro agrónomo.

− E a esposa do Cabral, que era branca, chegou a pegar-me ao colo, contou-me a minha mãe.

Toda a gente se conhecia na Guiné nos anos 50. E a mãe do Tó tinha sido sido empregada da família Brandão. Também ela educada nas missões católicas, em Bambadinca. 

Foi graças aos missionários católicos, italianos, de Bafatá,  que o Tó conseguiu fazer mais do que a 4ª classe.

−  Mandaram-me para o liceu de Bissau. Não havia mais nenhum.

Era um rapaz inteligente, vivaço mas humilde. Devem ter pensado que daria um bom padre. Feito o quinto  ano (e ainda antes do sétimo) , tencionavam mandá-lo para Roma, para aprender latim e grego aprofundar a  filosofia e iniciar a teologia.

−  Estava entusiasmado... Ia conhecer o Papa! E, claro, as belas romanas...

Os pais (e sobretudo a mãe)  viram com bons olhos esta benção do céu.  Tinha os irmãos mais velhos em Bissau, não seria difícil a adaptação.

Mas Deus põe e o homem dispõe...

***

− E isso da JAAC, a Juventude Africana Amílcar Cabral, foi a sério ? − perguntaste tu.

Explicou-te que inicialmente fora uma "brincadeira de putos" mas depois levada longe demais até ao ponto de não-retorno.  

Andar na Mocidade Portuguesa era uma "seca", o que ele queria eram as farras, as "mininas", os bailaricos com os gira-discos (uma novidade e um luxo nessa época), na casa uns dos outros, os mais abastados, e sobretudo longe do olhar dos professores e dos "nossos mais velhos"...

Em 1968, tinha o Brandão quinze anos e completava, com sucesso, o quinto ano. O Amílcar Cabral gozava de muito prestígio, "a nível internacional e até nacional".

−  Tinha derrotado o Schulz!

Ele pronunciava "Schultz". E a resposta, como já ouviras a outros guineenses, é que este governador e comandante dos "tugas" não era português mas "alemão" (sic).

−  A prova é que o Spínola veio tomar conta do lugar dele. O Salazar tinha pressa em acabar a guerra...

−  Pressa ? −  comentaste tu. −  Ele achava que ainda iria a tempo de ver a História e os Aliados do Ocidente dar-lhe razão! 

A libertação dos "tarrafalistas", entre eles o histórico Rafael Barbosa, muito popular em Bissau, gerou um clima de euforia (mas também de desconforto e desconfiança) entre militantes e simpatizantes do PAIGC.

Continuou a haver infiltrações da PIDE nas células estudantis e nos bairros populares de Bissau.  Alguns venderam-se por um "prato de bianda", garantiu-te o Brandão. 

 Claro que às tantas o Tó começou a faltar às aulas e a comprometer-se com alguns rapazes e raparigas que, viria mais tarde a saber, pertenciam à célula clandestina da JAAC no liceu.

Por influência do grupo, nas horas vagas já estava a distribuir papéis e a participar em reuniões , mais ou menos clandestinas, em se que falava dos problemas estudantis e dos progressos da luta do PAIGC... 

Começaram a catalogá-lo como "simpatizante" e às tantas já tinha, sem saber como nem porquê, a "chapa do Partido"... De repente, deu-se conta de que não estava nada interessado em pegar numa Kalash e ir para o mato combater a tropa dos "tugas" onde tinha amigos, sobretudo guineenses e cabo-verdianos (!).

É verdade que, naquele tempo, não tinha inimigos, só não gostava dos fulas que eram cipaios da administração do Guerra Ribeiro, e que serviam para dar porrada ao pessoal que entrava em Bafatá descalço!... Mas isso não era razão bastante para andarem a matar-se uns aos outros...  Tinha, de resto, amigos de várias etnias na escola primária.

Alguns colegas do liceu começaram, entretanto,  a ser chamados para a tropa. O medo instalou-se.  Um ou outro  mais afoito acabou por ir parar a Dacar e juntar-se ao PAIGC.

Em 1969 as coisas começaram a dar para o torto. Uma das "mininas" do grupo, aluna do liceu, foi detida pela PIDE... E deu à língua. Houve prisões. O Tó teve que "passar à clandestinidade".

A mãe e os irmãos mais velhos e os missionários católicos do PIME tinham em Bissau os seus "espiões" de modo a não deixar o Tó "pôr o  pé em ramo verde".

Não chegou a fazer o 7º ano. Começou a fazer "trabalho político" com uma miúda que depois viria, mais tarde, a ser a mãe dos seus dois primeiros filhos. Viviam no Cupelon de Baixo, paredes meias com o quartel-geral, em Santa Luzia.

O controleiro da célula do bairro cedo se apercebeu de quão valioso e promissor era o "miúdo". Foi o próprio Amílcar Cabral quem fez questão, depois de saber da sua história, em recebê-lo em Conacri.  E foi ele quem o entrevistou para pôr a prova as qualidades do novo membro do Partido, antes de o mandar para Cuba, mesmo sem o "batismo de fogo"...

− Tinha lá os balantas, os homens do mato,  para matar e morrer − comentaste tu com indisfarçável ironia. 

 Instintivamente o Amílcar Cabral − disseste tu para os teus botões − procurava poupar os melhores dos seus futuros quadros.

Foi para Cuba sem deixar rasto, sem se despedir da mãe e dos irmãos. Ela nunca lhe perdoou, até quase à hora da morte.  Apesar de conhecer o Amílcar, que tinha ascendência cabo-verdiana, e era mais novo quatro anos, ela não gostava dele.  Estava convencida, mesmo sem fundamento,  de que tinham sido "eles", os tipos do PAIGC,  que haviam raptado e morto o marido na fronteira do Senegal, ainda antes do início da guerra.

***
−  E Cuba ?

−  Bem, na altura, eu ia de olhos tapados, comprei tudo o que me quiseram vender. E também acreditei piamente na sinceridade dos internacionalistas cubanos... Vim depois a saber que, muitos deles, coitados, faziam pela vida, tal como eu... A guerra era um modo de vida.

Não quis falar muito mais,  do tempo da luta.  Participou na Op Amilcar Cabral. Só não quis dizer onde, no Norte ou no Sul. Estás mais inclinado para Guidaje. 

Também já era tarde e "amanhã é dia de trabalho"...Pediu-te para levares uma pequena "encomenda" para Lisboa... E até lá ainda se encontrariam no hotel onde decorria o simpósio.

Cruzando esta com conversas ulteriores, ficaste a saber que o Tó não tinha estudado mais. Ia-se inscrever no 7º ano, quando passou à clandestinidade.  

Agora com 55 anos já "não tinha cabeça". A vida política não o interessava mais. Estava "triste" com o rumo que as coisas seguiram no seu país. "Ingénuo" (o termo era dele), pensava que, depois da independência, por um simples toque de magia, iriam abrir-se, de par em par, as portas do progresso, da liberdade e da justiça. 

Não estava arrependido pelos anos que andou no mato, na luta pela independência da sua terra. Mas tinha agora pudor em falar desse tempo. Os mais novos não mostravam gratidão pelo sacrifício de seus pais. Por outro lado, recebia uma miserável  pensão (que chegava ao seu bolso, tarde e a más horas). O Governo tratava mal os antigos combatentes. 

Temia a velhice, apesar da sua família extensa e solidária onde, apesar de tudo, não havia memória  de se passar fome. Mesmo quando o pai desapareceu... Temia as doenças da velhice.

Trabalhava numa ONGD, estrangeira, uma "grande empresa", de um pais europeu. (Por razões obvias, não vais aqui identificá-la.)

Mas nunca se sabia até quando "eles" continuavam a apostar  na Guiné-Bissau. Os golpes de Estado, a droga, a instabilidade política, o peso dos militares, a corrupção, etc., não ajudavam a promover a imagem do país que continuavam no fundo da tabela...

Era já tarde quando voltaste ao Hotel 24 de Setembro. Os dias ali eram curtos. E à noite não havia iluminação pública. Bissau parecia uma cidade sitiada, em quase total "black out".  Recorria-se ao gerador, os particulares, os hotéis, os restaurantes.

Foste a pensar na história do Tó Brandão. Nem sequer sabias o nome de guerra dele. Não acreditavas em tudo o que ele te contara. Davas o devido desconto. Mas, no essencial, parecia ser uma história verosímil, incluindo a perseguição aos "colaboracionistas", aos "cães dos colonialistas",  ainda antes da partida do último soldado português.

Era uma "grumete", dividido por duas culturas, dois amores, dois mundos (mesmo que nunca tivesse  chegado a conhecer Portugal, tinha um secreto amor às raízes do bisavô , bem como a Cabo Verde, terra da mãe...)

Ao menos estava vivo, tinha sobrevivido a alguns momentos dramáticos da história recente do seu país ... Se tivesse ido para os comandos africanos, por exemplo,  hoje estaria morto como dezenas e dezenas de graduados do célebre batalhão que o Spínola criara... Teve lá amigos seus. Disse-te os nomes (que não fixaste). Teve amigos de um lado e do outro, o que ainda era mais dilacerante.

Triste episódio, esse, que manchara o regime de Luís Cabral...

−  Triste episódio ? 

Talvez um dia arranjasse alguém que lhe escrevesse as suas memória. Não era dado a escrever. Preferia falar. Mas não ali, na terra dele.

−  Um dia, Tó... Talvez em Lisboa, não  ?!

Sorriu.

***

Tu e ele ficaram amigos. Houve ali, pelo menos, empatia entre os dois. Cumplicidade.  Mantiveram contacto mais ou menos regular por mail e pelo WathsApp.  Nos últimos anos mais esporadicamente. Foste sabendo dele.  Até à pandemia. Deixaste de ter notícias dele por essa altura, que foi fatídica para todo o mundo. E a ONGD onde ele trabalhava também passou por muitas dificuldades.

Entretanto a mãe já tinha morrido  em Cabo Verde, com 90 e tal anos (ela seria de 1920). O Tó tivera um filho a estudar em Bragança, na Escola Superior Agrária. Terá viajado para o Brasil e perdeste o seu contacto.  

Tal como o pai, o Tó Brandão terá desaparecido por volta de 2020/21. Sem deixar rasto. Acontecimentos estranhos naquela terra. Podem as pessoas desaparecer sem deixar rasto ? 

Nunca mais lá voltaste, à Guiné-Bissau. Os rios da Guiné não falam, mas são caudalosos e lamacentos no tempo das chuvas. Lembravas-te, no Mato Cão, o estranho silêncio do rio Xaianga, seguido do poderoso macaréu,  na maré-cheia, que assustava homens e bichos.

Perguntaras-lhe se ele tinha inimigos...

− Mas quem os não tem hoje na Guiné-Bissau ?

Sabias que a mãe tinha regressado a Cabo Verde, depois do golpe de Estado de 'Nino' Vieira. A família dispersara-se: houve irmãos que emigraram para Cabo Verde, Portugal e Holanda; outros dois ficaram em Bissau, um trabalhava nos Armazéns do Povo (no mesmo edifício da antiga Casa Gouveia); outro teria montado um negócio por conta própria.

Enquanto o Tó Brandão  estava "bem relacionado"  (chegara a diretor-geral de qualquer coisa...), a vida não piorara... Mas o Tó terá caído em desgraça nos anos 80. Nunca te contou pormenores. Valeu-lhe a ONGD para quem foi trabalhar na área da educação ambiental e como intérprete: era poliglota, falava portuguès, francês, espanhol e, claro, crioulo. Era fluente em fula, entendia o papel, o balanta e o mandinga. 

O estranho desaparecimento do pai (no rio Xaianga, ele dizia Caianga) foi outra história intrigante que ele só te contaria no último dia da tua estadia em Bissau, em março de 2008, umas horas antes de apanhares o avião para Lisboa.

Procurara-te para se despedir e concretizar o pedido algo insólito que te fizera uns dias antes: se levavas, na bagagem de porão,  um saco de cola para o irmão que vivia perto de Lisboa, na margem sul. 

Esse irmão tinha um filho que ia pedir a mão de uma "minina" a um patrício. Era da tradição oferecer noz de cola para o futuro sogro.

Não tiveste lata de dizer que não.  Por precauçáo, pediste-lhe  que te mostrasses as nozes de cola que iam no saco, que fingiste nunca ter visto no teu tempo... (Era coisa que os teus soldados andavam sempre a mascar: no mato, eliminavam ou mitigavam a sensação de fome e de fadiga, garantiam-te eles; provaste mas não te habituaste ao seu sabor acridoce e sobretudo adstringente, que te aumentava a sede.)

Em relação ao pai, empregado da Casa Gouveia...

− Nunca quis morder a mão a quem lhe dava a bianda.

Queria o Tó dizer: era fiel à Casa e aos portugueses que lhe davam o pão. Tinha uma boa posição, sabia ler e escrever, tinha carta de condução, uma camionetra distribuída. Não ganhava mal. Fazia a campanha da mancarra, percorrendo todo o leste. 

Ainda não havia guerra,  apenas umas "escaramuças" junto à fronteira do Senegal,  na região do Cacheu,  "coisa da gente manjaca". Ele só lidava com fulas e mandingas do leste, e uma ou outra tabanca balanta. Batia o leste de Sare Bacar a Gabu, do Xime ao Saltinh0, de Galomaro a Pirada. Os fulas eram seus amigos. Dos mandingas não tinha a mesma opinião. Alguns começavam a ser aliciados pelo PAIGC (aliás, ainda era o PAI, Partido Africano para a Independència).

Não se sabia o que acontecera em pormenor. Desta vez ia sozinho, sem ajudante habitual que terá ficado doente de paludismo em Bafatá. A camioneta apareceu abandonada, numa curva do rio  Xaianga (ou Caianga, como se dizia então, em 2008), quando ia caminh0 de Paunca e Sare Bacar na a zona fronteiriça. Não havia sinais de violência. Teria sido raptado ou morto ? 

A Casa Gouveia, se mandou investigar, nunca comnunicou à família as conclusões. O corpo nunca apareceu, não se fez o choro. Houve quem dissesse que ele tinha fugido para o Senegal com um saco de patacão, outr0s, seus inimigos dentro da Gouveia, insinuavam  que, à semelhança do Luís Cabral, tinha "ido no mato" (passado à clandestinidade)... O que era tudo mentira. Para mais ele tinha ainda alguns filhos pequenos a quem era preciso ajudar a criar.

A mãe do Tó nunca se conformou com o silêncio da Casa Gouveia, tão pesado como o do rio Xaianga (o maior da Guiné, que percorria três territórios),  mas não pôde fazer nada. Eles eram poderosos, os donos da Guiné. O filho mais velho também trabalhava lá. 

A história que se contava na família (teria o Tó 8 ou 9 anos) é que o pai sentira-se mal quando ia a conduzir, tinha saído para apanhar ar e acabara por cair ao rio. A verdade é que o corpo nunca apareceu.

A Gouveia terá abafado o caso. Não se sabe se a PIDE investigou. O irmão mais velho teve de substituir o pai no sustento da família.  A mãe e os irmãos mais velhos passaram a ser ainda mais hostis ao partido do Amílcar Cabral, que nessa altura andava já a fazer trabalho de sapa nas tabancas e a destruir algumas infraestruturas (postes telefónicos, etc.),

Passados uns anos a mãe do Tó vai passar por outro grande desgosto: o filho  decide "entrar na luta",  quando estava destinado a ser padre...

Quando o PAIGC se sentou à mesa do Estado, em Bissau, em 1974,  já só havia sobras... Quem as apanhou foram os primeiros a chegar a Bissau. Ele fora dos últimos... Ficaria na tropa por mais uns anos até ao golpe de Estado do 'Nino' Vieira, que lançou uma onda deveneno e  ódio contra os cabo-verdianos... 

Aos 36 anos arrumou as botas, a farda e a kalash. E entrou numa nova vida. Foi professor, foi agente comercial, andou na campanha do caju, etc. Até finalmente conhecer a ONGD que lhe deu a mão.  

Era uma daquelas ONGD com generoso financiamento estrangeiro (e, mais tarde, da CEE),l que preenchia, em muitos setores (saúde, educação, cultura, agricultura, ambiente, etc.) as funções que o frágil (e quase inexistente) aparelho de Estado guineense não conseguia cumprir. 

Viajava bastante, pela Guiné (regiões de Cacheu,Bafatá e Tombali, onde a ONGD tinham projetos).

***


− E agora, Tó ?

Bebeu mais uma golada de cerveja, pigarreou, deixou passar mais uns tantos segundos e disse-te mais ou menos isto, num longo monólogo, à laia de confissão:

−  Só tenho que me queixar das decisões que não fui eu a tomar. As que os outros tomaram por mim. 

Não quis particularizar, mas estava, se calhar, a referir-se a família, à mãe (que era uma mulher "poderosa, dominadora"), aos irmãos mais velhos, aos missionários , aos colegas de liceu que já eram paigêcistas e que o empurraram para a luta armada. E, claro, ao Amílcar Cabral que foi para ele o pai que "ele nunca tivera", o seu herói, o seu ídolo... Nunca mais o voltaria a ver desde   que, em 1969,  o mandou para formação em Cuba. Terá chorado como ninguém a sua morte, em 1973.

Confessou-te (ou deu a entender) que, no seio do Partido (como ele ainda dizia), chegou a sentir-se, por  vezes, discriminado por ser "mais branco do que preto".  

Não quis entrar en grandes detalhes sobre a sua vida no mato, nas "áreas libertadas". Como comissário político", depois de vir de Cuba, teve que mostrar que era tão ou mais "cabra-matchu" do que os "mais velhos". Teve que dar o exemplo aos outros: ser frugal, casto, disciplinado e disciplinador, respeitar as bajudas, defender a população...Tinha que garantir a "pureza ideológica", os valores do Partido... Sobretudo tinha que se impor pelo exemplo. Havia conflitos com os "mais velhos", e sobretudo com os mandingas.

− Conflitos ?... Entre camaradas ?...

Sem concretizar, o Tó referia-se aos "pequenos abusos", os privilégios dos comandantes: vinho de palma, "água de Lisboa", bajudas para dormir, "bianda com mafé", relógio de pulso, amuletos, saco-cama, medicamentos, cigarros, guarda-costas.... Percebeste o ele que queria dizer, por meias palavras.

Havia quem andasse na luta há muitos anos. Desde o princípio e, com sorte, estava vivo. Um jovem, de 19/20/21 anos,  só por ter estudos e ser comissário político, não ia mudar aquelas "cabeças duras"...

 Havia o culto do "cabra-matchu", denunciado aliás nos discursos do Amílcar Cabral. Mas o líder histórico não andava com eles no mato. Muitos nunca o tinham visto em carne e osso, só em fotografia. Conacri ficava longe. Tal como as Colinas do Boé.

Sobre os ajustes de contas com os "cães dos colonialistas", a seguir à independência, não quis falar. A expressão era usada pelo Cabral para se referir aos fulas e outros "colaboracionistas"...  O assunto incomodava-o, e tu não insististe. Era delicado demais para uma conversa entre antigos inimigos, logo nos primeiros tempos em que se conheciam.

Ainda houve tempo de ir ao cais do Pijiguiti para dar um último adeus e ouvir o silêncio do Geba, que ali já era estuário,  barrento, misturando-se com as águas azuis do Atlântico. O Xaianga, o Geba Estreito, era a montante, a partir do Xime... Um enorme braço de água que serpenteava pela Guiné e os seus dois países vizinhos... 

Tiveste pena de não poder parar no Mato Cão, no regresso da viagem ao Cantanhez, e aguardar a chegada do macaréu, quando aquela gigantesca serpente de água irrompe pelas margens lodosas, na maré-alta, com o seu rugido de meter medo... 

Que diriam aquelas margens se pudessem falar dos silêncios e dos macaréus dos últimos 500 anos de História ?

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