sábado, 1 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24184: Os nossos seres, saberes e lazeres (566): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (96): Hoje, quero muito simplesmente dizer ao senhor Gulbenkian que lhe estou grato (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2023:

Queridos amigos,
Não sou capaz de conjeturar o que teria sido a minha vida sem os benefícios que auferi (e aufiro) da Fundação Calouste Gulbenkian. Recordo com alguma precisão a primeira visita que fiz ao Palácio do Marquês de Pombal em Oeiras, senti-me então desorientado com aquele ecletismo de antiguidade oriental, arte islâmica, preciosidades da Pérsia, aquela deslumbrante ourivesaria francesa, nunca vira as obras de René Lalique, o genial artífice do período da Arte Nova, até chegarmos a Burne-Jones, que prontamente me fascinou. O meu débito é interminável, é uma enorme fatura que mete música, bailado, exposições de topo de qualidade, as leituras naquela biblioteca passadas todas estas décadas é a casa de livros mais artisticamente arrojada que conheço, os ciclos de cinema e a doce recordação dos tempos adolescentes em que entrava nas bibliotecas itinerantes e as conversas entre miúdos sobre as nossas leituras. E andava ali pelos jardins quando me ocorreu que não era sem tempo que eu aqui saudasse quem tantas alegrias me proporcionou.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (96):
Hoje, quero muito simplesmente dizer ao senhor Gulbenkian que lhe estou grato (1)


Mário Beja Santos

Passeava displicentemente pelos Jardins da Gulbenkian, com a curiosidade nos trabalhos que se efetuam onde era o Centro de Arte Moderna, quando me ocorreu quanto impagável é a dívida que tenho com esta Fundação. Em adolescente, visitei uma parte do que é hoje o museu no Palácio do Marquês de Pombal em Oeiras, fiquei ofuscado com o ecletismo da coleção, o que levara um arquimilionário a juntar moedas, tapetes, peças escultóricas, ourivesaria e artes decorativas, pintura que se arrastava da Idade Média ao princípio do século XX, mobiliário, marfim, arte oriental? Ainda sem resposta satisfatória, juntava tostões para ir a alguns espetáculos do festival de música, foi assim que conheci artistas de eleição como Arthur Rubinstein, Henryk Szeryng, Maurice Béjart, frequentei a biblioteca no novo edifício, para já não falar nos livros que li graças à biblioteca itinerante, de saudosa memória… E depois a companhia de bailado, os recitais gratuitos, as inolvidáveis exposições, até chegar à majestosa museologia que acolhe a Coleção Gulbenkian, que visito com regularidade, às vezes única e exclusivamente para ver uma peça ou duas. Como pagar tal dívida de gratidão?
E foi assim que tomei a decisão de saudar quem tanto bem me tem feito, entrei de supetão no museu, dizendo para os meus botões, venho agradecer-lhe, senhor Gulbenkian mostrando aos meus amigos algumas dessas peças que para mim são “só o melhor” dentre o que adquiriu, o mesmo é dizer aquelas que mais me tocam, desde que as conheço, minhas amigas e conhecidas desde há mais de meio século. Entenda-se que é tudo uma questão de gosto, não há aqui qualquer classificação, se omitir tapeçaria oriental, mobiliário francês, pintura romântica, etc., a omissão não significa outra coisa que não são as minhas excelsas peças, o polo de atração, independentemente de acompanhar amigos estrangeiros e enaltecer a qualidade de tudo quanto se vê.

Começo as minhas escolhas no século IX a.C.

Baixo-relevo assírio proveniente do Palácio de Nimrud, construído por Assurnasirpal II, século IX a.C.
Taça com pássaros afrontados. Pérsia, final do século XIII-início do século XIV
Prato fundo com romãs, Turquia, Iznik
Bíblia arménica, Istambul, século XVII
Panejamento de seda, Japão
A Virgem e o Menino, Jean de Liège, século XIV
A Virgem e S. João, Alto Reno ou Suábia, século XVI
Descanso na Fuga para o Egipto, Cima da Conegliano, século XV.

Aqui sinto-me obrigado a uma justificação detalhada. Cima da Conegliano não é propriamente um santo do meu culto, mas cada vez me ocorre a lembrança da visita espúria que fiz a Conegliano, sinto-me obrigado a contemplar este “Descanso na Fuga para o Egipto”. Numas férias que fiz na região do Véneto, constava o programa de passar dois dias nos Dolomitas. Para lá chegar a preço mais económico, toma-se o comboio em Veneza até Conegliano, depois um pequenino comboio até Ponti di Alpi, e daqui um autocarro até Mitsurina, ali estão os Dolomitas, gigantescos, a seduzir-nos para passeios pedestres. Acontece que em Conegliano senti um dos pés a tocar no asfalto, o sapato acabava de morrer, desfizera-se de podre, olhe súplice à volta, perguntei a alguém onde havia uma sapataria, lá entrei a mancar e comprei umas belas sandálias, que andar confortável me estava reservado! Só que à noite, antes de saltar para a cama, olhei atentamente para o meu precioso achado e verifiquei que uma das sandálias era vermelha e a outra amarelo-torrado, fiquei um tanto encabulado, mas assumi que a responsabilidade era tanto minha como do sapateiro, e não se reclama calçado usado, alguém me observou que até era uma originalidade. O que para o caso interessa é que nunca mais esqueci Conegliano, e também por uma outra razão, é recordação com alguma mágoa: visitei uma exposição sobre os exércitos que Mussolini mandou para a União Soviética, tiveram triste sorte, passeei os olhos por muitas fotografias de cemitérios gigantescos de caídos em combate. E para quem combateu, há sempre um sentimento de infortúnio, de compadecimento, por quem tombou, independentemente de se estar no sítio certo ou errado.
Figura de ancião, por Rembrandt, século XVII

Detenho-me sempre, não pela imponência da figura por este magistral claro-escuro, o que me prende a atenção são aquelas duas mãos de veias salientes, aquelas marcas da idade, aquela descrição de um pequeno anel ou mesmo aliança no dedo mindinho da mão esquerda, aquelas mãos que com naturalidade seguram o bordão, e então os olhos descem para o panejamento onde assume alguma luz junto dos joelhos, porque toda a iluminação vem de cima, desce do rosto para as mãos e nesses joelhos se detém, é o domínio genial que Rembrandt possuía para nos atrair ao ponto focal da sua obra.
São Martinho repartindo a capa com um mendigo, artista desconhecido, Vale do Loire, século XVI

Duas razões me levam recorrentemente a ficar especado diante deste S. Martinho, o controlo da luz, questão fundamental em museografia, aqui ficamos especados vendo o que essencialmente merece ser visto, da sua montada o cavaleiro corta um pedaço de manto e jamais saberei se este mendigo tem o rosto em sofrimento ou olha o santo em êxtase. E pasmo-me, então, no controlo do mestre da estatuária, a forma delicada que ele encontrou para nos mostrar a crina daquela montada.

Pois bem, ainda há outras preciosidades para vos mostrar, fruição que devo a quem amou o nosso país e nos deixou estes relicários.

(continua)

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Notas do editor:

Poste anterior de 25 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24169: Os nossos seres, saberes e lazeres (564): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (95): Da bela Tavira a uma exposição sobre a Ordem de Cristo em Castro Marim, com José Cutileiro em pano de fundo (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 31 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24181: Os nossos seres, saberes e lazeres (565): Diferenças entre o Estado de Direito e o Estado de Direito democrático (Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf)

Guiné 61/74 - P24183: Efemérides (384): A tragédia do Quirafo foi há 51 anos, em 17 de abril de 1972... Em 2010 ainda havia vestígios da fatídica GMC... (Rogério Paupério / José António Sousa, membros da Tabanca de Matosinhos, ex-militares da CCAV 3404 / BCAV 3854, Cabuca, 1971/73)








Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Picada do Quirafo > 2010 > Vestígios da tragédia de 17 de abril de 1972. Fotos do Rogério Paiupério e José António Sousa que passaram pelo local em 2010. É possível que as fotos sejam de vários autores.

Fotos (e legendas): © Rogério Paupério e José António Sousa  (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1.  Fotos enviadas pelo Rogério Paupério, a pedido do José António Sousa (ex-soldado condutor auto da CCAV 3404/ BCAV 3854, Cabuca, 1971/73), membro da nossa Tabanca Grande. Ambos pertencem à Tabanca de Matosinhos. Tive o prazer de os reencontrar na passada quarta-feira, no almoço-convivio semanal da Tabanca de Matosinhos. Convidei o Rogério Paupério a integrar a Tabanca Grande,

Recordo-me de, ao Zé António Sousa, ter escrito o seguinte, em comentário ao poste P10995, o seguinte (*): 

"Em meu nome, fundador deste blogue, e teu camarada da Guiné, reforço as boas vindas já dadas pelo nosso editor de serviço, o Carlos Vinhal. Quero que fiques por cá por muitos e bons anos, e que nos ajudes a reavivar as memórias do teu tempo em Cabuca. Toma boa nota: és o grã-tabanqueiro n.º 602!... Um alfa bravo. Luís Graça. 24 de janeiro de 2013 às 21:44".

Mais de meio século depois voltamos a recordar, através destes dois camaradas, a tragédia do Quirafo (**), topónimo que faz parte das nossas geografias emocionais.





Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho >  Picada de Quirafo  > Fevereiro de 2005:  Restos da GMC da CCAÇ 3490 (Saltinho, 1972/74), que transportava um grupo de combate reforçado, comandado pelo alf mil Armandino, e que sofreu uma das mais terríveis emboscadas de que houve memória na guerra da Guiné (1963/74)...

Foram utilizados LGFog e Canhão s/r. Houve 11 militares mortos, 1 desaparecido, o António da Silva Batista, o "morto-vivo" (1950-2016)... Houve ainda 5 milícias mortos mais um número indeterminado de baixas, entre os civis, afetos à construção da picada Quirafo-Foz do Cantoro. Os números das baixas não são consensuais, nomeadamente em relação aos civis.

A brutal violência da emboscada ainda era visível, em Fevereiro de 2005, mais de três décadas depois, nas imagens dramáticas obtidas pelo Paulo Santiago e seu filho João, na viagem de todas as emoções que eles fizeram à Guiné-Bissau. E em 2010 restava apenas o chassi da GMC e parte da  cabine, como atestam as imagens do Rogério Paupério, que publicamos acima.

Sobre o Quirafo temos mais de 70 referências no nosso blogue. A emboscada de 17 de abril de 1972 terá uma das maiores de que há memória no CTIG, pelo número de baixas que provocou às NT, milícias e civis.

Na CECA (2015), lê-se, com referência a 17 de abril de 1972, no sector L5 (Galomaro):

"Nas proximidades de Contabane / Quirafo, L5, uma força constituída por 1 Gr Comb / CCAÇ 3490 e 1 Pel Mil (-), numa acção de patrulhamemnto foi emboscada, durante 15 minutos, por uma força inimiga. As NT sofreram 10 mortos e 1 desaparecido e 2 mortos e 3 feridos da população. Foram ainda destruídas 1 viat GMC e 1 um E/R TR-28. Foram também danificados 1 viat Unimog e 1 E/R AVP-1" (Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro 3 (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2015), pág. 161).

Fotos (e legenda): © Paulo e João Santiago (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 24 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10995: Tabanca Grande (383): José António Gomes de Sousa, ex-Soldado Condutor Auto da CCAV 3404/BCAV 3854 (Cabuca, 1971/73)

(**) Último poste da série > 21  de março de 2023 > Guiné 61/74 – P24158: Efemérides (383): 50.º Aniversário de instruendos e cadetes que passaram por Penude, Lamego (José Saúde)

sexta-feira, 31 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24182: Álbum fotográfico do Coronel Inf Luís Carlos Cadete, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 1591 (Fulacunda, Mejo, Aldeia Formosa e Buba, 1966/68) (Parte IV)




Álbum fotográfico do Coronel Inf Luís Carlos Cadete, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 1591 (FulacundaMejoAldeia Formosa e Buba, 1966/68), autor do livro "Noites de Mejo - Histórias Singulares da Guerra na Guiné". Parte III.


Foto 20 > Vista exterior de Mejo, 1967 - Novos celeiros para uma safra histórica
Foto 21 > Chegada da Artilharia a Mejo, 1967 - Um dos três obuses de 8,8 posicionados em Mejo
Foto 22 > Mejo, 1967 > Entrada para o paiol subterrâneo e casernas construídos pela Companhia
Foto 23 > Mejo, 1967 > Vista exterior da Porta D'Armas

© Fotos gentilmente disponibilizadas pelo senhor Superintendente Ferreira Teles, ex-alferes da CCaç 1591
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Nota do editor

Último poste da série de 9 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24051: Álbum fotográfico do Coronel Inf Luís Carlos Cadete, ex-Cap Inf, CMDT da CCAÇ 1591 (Fulacunda, Mejo, Aldeia Formosa e Buba, 1966/68) (Parte III)

Guiné 61/74 - P24181: Os nossos seres, saberes e lazeres (565): Diferenças entre o Estado de Direito e o Estado de Direito democrático (Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Victor Costa, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974), com data de 25 de Março de 2023:

Amigos e camaradas da Guiné,

Antes de iniciar este assunto quero dar este pequeno contributo sobre a formação da cidade da Figueira da Foz.
O período de transição do lugar da Figueira para as Praças de Buarcos e Figueira e depois Figueira da Foz.
José Joaquim dos Santos Pinheiro foi Juiz Ordinário do Couto de Tavarede e Cavaleiro da Ordem de Cristo.

Na escritura de aforamento consta cito - Saibam quantos este público instrumento de aforamento fateusim perpétuo(...) que sendo no ano do nascimento de nosso senhor jesus Cristo de mil setecentos e cinquenta e três anos em os quatro dias do mês de Abril do dito ano no lugar da Figueira (...) e o dito sal seria posto e medido pelo alqueire do concelho deste couto de Tavarede à custa deles foreiros e posto à sua custa no porto do rio Mondego deste lugar (...) Carlos José Pinto Carvalho, tabelião do público, judicial e notas, escrivão da Câmara e Almotaçaria neste Couto de Lavos, bem e fielmente aqui o trasladei (...). (Doc.1).

No livro de registo de baptismos de S. Julião (1602 a 1767) consta - Aos vinte e dois dias do mês de Agosto de mil setecentos e cinquenta e sete baptizei na capela do Paço que está nesta freguesia por despacho do Ex.mo e R.mo Bispo Conde a João filho legítimo e do primeiro matrimónio de Joseph Pacheco de Albuquerque e de Melo fidalgo da Casa Real governador das Praças de Buarcos e Figueira (...) foram padrinhos o Ex.mo Sebastião José de Carvalho e Melo do conselho de Sua Magestade e Secretário de Estado dos Negócios do Reino (...). (Doc.2).

No livro de registo de batismos de S.Julião (1602 a 1767) consta - Aos vinte e nove dias do mês de Maio de mil setecentos e sessenta e dois nesta igreja de S.Julião da Figueira da Foz baptizei e pus os sacramentos a José filho de José Joaquim dos Santos Pinheiro Cavaleiro da Ordem de Cristo (...). (Doc.3).

Vamos agora ao Estado de Direito. Em política a confiança entre governantes e eleitores é uma coisa que, depois de se perder raramente volta a ser recuperada.

José Sócrates, 1.º Ministro de Portugal, fez publicar na Assembleia da República em 15 de Novembro a Lei 54/2005. Esta nova Lei sobre a titularidade dos recursos hídricos, nomeadamente o artigo 15.º da dita Lei e a norma revogatória do artigo 29.º tinham como objectivo principal o confisco de propriedades particulares inseridas no espaço considerado de Domínio Público Marítimo.

A entrada em vigor da Lei 54/2005 de 15 de Nov. (Lei Sócrates), conduziu a uma corrida aos Arquivos por parte dos particulares que só iria abrandar com a Lei 34/2014 de 19 de Junho, que revogou a dita Lei. De facto o artigo 2.º do decreto de 31 de Dezembro de 1864 decretou a dominialidade daqueles terrenos, mas para mim foi também uma oportunidade para conhecer a História de Portugal e conhecer o Código Civil de 1867 (Código de Seabra) que clarificou as regras a observar nomeadamente o parágrafo 4.º do artigo 380.º.

O Código Civil de 1966 em vigor, nomeadamente o seu artigo 4.º e 12.º permitiram defender-me, mas foi necessário aprender a ler a real História de Portugal no Arquivo da Universidade de Coimbra para poder exercer os meus direitos no Tribunal. Não contente por ser considerado ladrão de terrenos do Estado, comecei a vasculhar no Arquivo para conhecer quem tinham sido de facto os "ladrões", se é que haviam ou vendedores e compradores das propriedades e pelo meio fui encontrando os antepassados de ministros e deputados que nos têm governado nestes anos.

Tudo começou numa reunião em 2006 entre representantes de produtores e a DGRM, INAG e DGV, numa sala do Ministério da Agricultura no Terreiro do Paço, em Lisboa. No lado oposto da mesa ouvi a intervenção da Engª Fernanda Ambrósio do Instituto Nacional da Água dizer que as regras tinham mudado, agora havia que cumprir com o disposto na Lei 54/2005 de 15 de Novembro.
Ou seja, tinha de intentar uma acção judicial contra o Estado até 31 de Dezembro de 2013 para provar ser o titular daquilo que eu dizia ser a minha propriedade fazendo o trato sucessivo até data anterior a 31 de Dezembro de 1864, sob pena desta reverter para o Estado a título gratuito.

Será que tinha ouvido bem, é que antes de entrar para a dita reunião tinha passado pelo corredor, onde tinha visto exposta a fotografia do Eng. Duarte Silva, Presidente da Câmara Municipal da Figueira da Foz e ex-Ministro da Agricultura e Pescas, com quem tinha uma boa relação, precisamente devido ao facto da sua família ter possuído no passado durante mais de cem anos esta propriedade.

Vai começar a guerra, pensei eu... E começou.

O citado Eng. Duarte Silva descendia de uma família de armadores da Praça do Porto, pessoas de bem cuja ligação à Figueira se deu no final do século XVIII resultante do casamento de Dona Rosa Ricarda e Silva com o Dr. Ricardo José Gomes, Presidente da Mesa Grande da Alfândega da Figueira. Aquele início do século XIX, tinha sido terrível, devido a problemas de saúde desta família, apenas sobreviveu e durante pouco tempo a sua filha mais nova, Maria Emilia da Silva Gomes que acabou por ir viver com o seu tio Joaquim José Duarte Silva na rua do Carmo n.º 6 em Lisboa. (Doc.4).

Joaquim José Duarte Silva, quando morreu em 1849, deixou a seu filho António José Duarte Silva algum património, mas também deixou muitas dívidas resultantes da venda de sal e outros bens de consumo que enquanto negociante na Baía tinha vendido para o Brasil e não tinha recebido.

"Que final feliz para a Nau dos Quintos"... E ainda dizem passados 200 anos, que temos de pagar o ouro que roubámos do Brasil e ouvir desaforos como "Almada Colonial". É caso para dizer, raios partam os negócios ruinosos que o Estado fez e continua a fazer, sem proteger minimamente o seu povo e deixando problemas para os vindouros resolverem, porque eu quando fui a Mafra para receber a minha parte do Bolo, apenas encontrei pedras e ostentação.

Estas e outras escrituras integram o meu processo, foram reconhecidas pelo Tribunal e deram origem ao reconhecimento de propriedade privada e ao meu Titulo de Autorização de recursos hídricos particulares emitido pela DGRM.


(Clicar nas imagens para leitura mais cómoda)
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Nota do editor

Último poste da série de25 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24169: Os nossos seres, saberes e lazeres (564): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (95): Da bela Tavira a uma exposição sobre a Ordem de Cristo em Castro Marim, com José Cutileiro em pano de fundo (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24180: Notas de leitura (1568): Arroios à Mesa não esqueceu as especialidades guineenses (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Não há vida multiétnica em Portugal como nesta freguesia de Arroios, um oásis de tolerância e de respeito, com uma diversidade de estabelecimentos abertos a toda a gente, comércio de vários continentes, igrejas e mesquitas, a festa chinesa que atravessa a Avenida Almirante Reis é acontecimento retumbante, mesmo uma biblioteca histórica como São Lázaro acolhe acervos do Médio Oriente, pode-se fazer turismo interno para ver gente de 92 procedências, com os seus falares próprios. E a sua gastronomia, também o seu modo de viver, nos permite ir a Arroios para degustar receitas multiculturais que o chefe Fábio Bernardino organizou para gente interessada, desde a comida portuguesa à de outros dois continentes e também ao Leste europeu. Veja se é assunto que lhe interessa, Arroios à Mesa é um manual de receitas que se pode pedir à Junta de Freguesia de Arroios. Nas coisas da cozinha, e de acordo com o que aqui se pode comer na freguesia de Arroios, votos dos melhores sucessos.

Um abraço do
Mário



Arroios à Mesa não esqueceu as especialidades guineenses

Mário Beja Santos

Temos aqui uma singular iniciativa editorial da Junta de Freguesia de Arroios, a mais multiétnica do nosso país, aqui vivem representantes de 92 nacionalidades, aqui é possível comer um borscht, pyrizhki, sarapatel, chacuti, cabrito com inhame, mufete de peixe, frango com mandioca, moussaka, não faltando a representação portuguesa a grande nível: broa de sardinha e pimentos, caldeirada de peixe, massada de peixe, feijoada de chocos à 31 de Janeiro, arroz de bacalhau com grelos, berbigão à Mercado de Arroios e arroz doce. Tudo organizado pelo chefe Fábio Bernardino, edição de 2021 da Junta de Freguesia de Arroios, a quem o leitor se deve dirigir para procurar adquirir este precioso manual, ou para experimentar em cozinha própria ou para se lançar em restaurantes e casas de pasto da freguesia. Há dados muito curiosos que acompanham o receituário: a comunidade chinesa na freguesia era a terceira maior só ultrapassada pela brasileira e a angolana (dados do censo de 2011); a comunidade indiana nesta freguesia era a segunda maior de um país originário da Ásia, logo a seguir à chinesa; os cabo-verdianos são a segunda maior de um país africano, logo a seguir à angolana; Angola era a segunda maior logo a seguir à brasileira e a maior de um país africano.

E assim chegamos à Guiné-Bissau cujas comidas são marcadas pela presença de frutos-do-mar e arroz, comunidade que era a quarta maior de um país africano, a seguir a Angola, Cabo Verde e Moçambique. A escolha de menus é de estalo. Logo a sopa de peixe e amendoim, segue-se o Sigá com todos os seus ingredientes (quiabos, cebola, beringela, camarões, vinho branco, coentros picados, óleo de palma, azeite, alho, malagueta e sumo de limão – é quase obrigatório acompanhar de arroz). A sobremesa para mim é uma inteira novidade, arroz doce de amendoim torrado, junta-se a receita, ou para experimentar em casa ou para andar à procura em estabelecimento de Arroios.

Depois do belo receituário de Moçambique, uma palavra ao Leste europeu onde além da mussaka temos Draniki com cebola e baclava, com todos os seus ingredientes (nozes, massa filó, uvas passas, amêndoas, pistachios, mel, azeite, raspas e sumos de laranjas, vagem de baunilha) e sobre Portugal estamos conversados. Para gastrónomos e gastrófilos, este manual é uma tentação. O meu não sai cá de casa, os interessados que se dirijam à Junta de Freguesia de Arroios, serão seguramente bem-sucedidos.

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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24172: Notas de leitura (1567): "Guinéus", por Alexandre Barbosa, um dos últimos grandes títulos da literatura colonial (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24179: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte VIII: Tabanca e destacamento de Cutia, na estrada Mansoa-Mansabá


Foto nº 1 >  
Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa) > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > Destacamento de Cutia, que ficava do lado esquerdo da estrada Mansoa-Mansabá


 Foto nº 1A >  Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa) > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > Destacamento de Cutia (detalhe: o fortim)


 Foto nº 2 >  Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa) > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > Destacamento de Cutia: vista geral


Foto nº 2 >  Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa) > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > Destacamento de Cutia: em primeiro plano, o espaldã0 do morteiro 81
 

Foto nº 3 >  Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa) > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > Destacamento de Cutia: o espaldã0 do morteiro 81

Fotos (e legendas): © José Torres Neves (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação do álbum fotográfico do Padre José Torres  Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71). Desta vez tendo por tema o destacamento de Cutia, que ficava a meio caminho entre Mansoa e Mansabá.

A oganização e a seleção das fotos são feitas pelo seu amigo e nosso camarada Ernestino Caniço, ex-alf mil cav, cmdt do Pel Rec Daimler 2208 (Mansabá e Mansoa), tendo passado depoos pela Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, (Bissau) (Fev 1970/Dez 1971). (É médico, foi diretor do Hospital de Tomar, 6 anos, de 1990 a 1996, e diretor clínico cumulativamente 3 anos, de 1994 a 1996; viveu em Abrantes; hoje vive em Tomar.)

O José Torres Neves é missionário da Consolata, ainda no ativo. Julgamos que já fez, em 2022, os 86 anos. Vive num país africano de língua oficial portuguesa. Esteve no CTIG, como capelão de 7/5/1969 a 3/3/1971. Os capelães eram, em geral, graduados em alferes, não eram portanto oficiais milicianos. Um ou outro podia do quadro.

As fotos (de um álbum com cerca de 200 imagens) estão a ser enviadas, não por ordem cronológica, mas por localidade, aquartelamentos ou destacamentos do sector de Mansoa.

Estas são as primeiras de um lote sobre o destacamento (e a tabanca) de Cutia. Temos 35 referências a Cutia.

Há uma história passada com outro capelão, o saudoso padre Mário da Lixa (1937-2022), que merece ser recordada: é do tempo de outro batalhão, o BCAÇ 1912 (Mansoa, 1967/68). O Mário de Oliveira, capelão por escassos 4 meses, veio dizer missa a Cutia e no regresso uma das viaturas da esc0lta teve um acidente... Leiam depois o resto no poste P1946 (**).


Guiné  > Carta geral da província (1961)  Escala 1/500 mil  > Posição relativa de Cutia a meia distância entre Mansoa e Mansabá


Guiné > Região do Oio > Carta de Mambonco (1954) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Cutia (a nordeste de Mansoa), na estrada para Manboncó e Mansabá,

Infografia: Blogue Luís Grça & Camaradas da Guiné (2023)
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Notas do editor:

quinta-feira, 30 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24178: Memórias de Luís Cabral (Bissau, 1931 - Torres Vedras, 2009): Factos & mitos - Parte V: O "making of" do "Labanta, Negro!", um filme italiano, de Piero Nelli (1926-2014), a preto e branco, de estética tardo-neorrealiista, e que serviu que nem uma luva à propaganda do PAIGC


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 38m 28 s > A despedida do realizador italiano Piero Nelli


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 30m 58 s > 11 de fevereiro de 1966 > 6h30 > Partida para a emboscada às obras da TECNIL na estrada Mansoa-Mansambá


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 31m 21 s >  A preparação da emboscada do PAIGC à força que fazia a segurança às obras da estrada Mansoa-Mansabá,  a cargo da TECNIL


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 32m 06s >  A preparação da emboscada do PAIGC à força que fazia a segurança às obras da estrada Mansoa-Mansabá,  a cargo da TECNIL


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 32m 58s >  A emboscada do PAIGC à força que fazia a segurança às obras da estrada Mansoa-Mansabá,  a cargo da TECNIL


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 30m 31s >  Panfleto, manuscrito, convidando os militares portugueses  à deserção: "Amigo desconhecido: Com este papel podes estar seguro do teu bom acolhimento em caso de deserção". Assinado: PAIGC.


"Labanta, Negro!" > Fotograma, 37m  21s > "Quartel-General do Norte"> 13 de fevereiro de 1966 > As despedidas...  À  italiana?

Fotogramas do documentário de Piero Nelli (1926-2014), "Labanta, Negro! " (Itália, 1966, 38' 43''). O filme ganhou o prémio do melhor documentário do ano no Festival de Veneza. Filmado a preto e branco, nas zonas controladas pelo PAIGC  (no Oio), na então Guiné portuguesa, de 2 a 15 de fevereiro de 1966, é um documentário de estética tardo-neorrealista, que o partido do Amílcar Cabral soube explorar habilmente como "arma de propaganda".  

Segundo a CECA (2014, pág. 372) (*), "o ano de 1966 foi considerado pelo PAIGC como o ano da informação, tendo desenvolvido uma intensa e bem orientada campanha de propaganda 'visando esclarecer a opinião pública mundial com testemunhos irrefutáveis'. Para tal estiveram no Boé e em Quitafine vários jornalistas e cineastas africanos, franceses, americanos, ingleses, italianos, holandeses e soviéticos que produziram artigos e filmes - documentários sobre aspectos da luta e do nível de realizações sócio-económicas do PAIGC, que mais tarde deram origem a publicações nas editoras francesa 'Maspero'
e americana 'Africa Report«, entre outras".

Por lapso, a CECA não menciona a visita desta equipa italiana, à região do Oio, o que nos parece lamentável... No nosso blogue, já tinha havido duas anteriores referências a este filme, talvez o mais famoso dos que se fizeram durante a guerra  (**).



"Labanta,Negro!" > O filme serviu objetiva e intencionalmente a propaganda do PAIGC:  foi apresentado pelos autores como um "diário de paz e de guerra" (sic), filmado entre 2 e 15 de fevereiro de 1966, tendo por protagonistas os guerrilheiros da "província portuguesa do ultramar" da Guiné Cabo-Verde (sic, como se fora um só território)... O documentário (que não tem qualquer perspetiva crítica, é claramemnte "engagé", deliberadamente "militante" ou "não independente") foi, além disso, acolhido pelo Comité de Descolonização da ONU, reunido em Argel, de 16 a 21 de junho de 1966, "como prova testemunhal sobre a situação" da colónia da Guiné Cabo-Verde (sic).

Edição (e legendagem): Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. Continuação da publicação de notas avulsas de leitura do livro "Crónica de Libertação", de Luís Cabral (**):

O documentário "Labanta, Negro!", filmado na região do Oio, entre 2 e 15 de fevereiro de 1966, por dois cineastas italianos 

No início de 1966, Luís Cabral (LC) está em Dacar, é o responsável pela supervisão da Frente Norte, cabendo-lhe a missão de tentar melhorar as difíceis relações do Senegal com o PAIGC, ao tempo em que os homens de Amílcar Cabral (AC) ainda não tinham “livre trânsito” no pais de Senghor, estando acantonados apenas em Dacar e em Ziguinchor.

É então contactado pelo cineasta italiano Piero Nelli, que queria fazer um documentário sobre a “luta de libertação”. Vinha acompanhado do seu operador de câmara Eugenio Bentivoglio (pág. 259).

LC, depois de contactar o irmão, AC (não fazia nada sem o seu consentimento) e o Osvaldo Vieira, comandante militar da Frente Norte, dirigiu-se à base do Morés, acompanhado dos dois italianos. Eram três dias de viagem, com cambança (sempre perigosa) no rio Farim…

Ali, no Oio, era o chão dos oincas, “mandingas e islamizados” (sic) (pág. 260), com uma forte tradição de resistência contra o colonizador: recorde-se as “campanhas de pacificação” do capitão Teixeira Pinto, o “capitão-diabo”, em 1913-1915, por exemplo.

Em 1962, “o ano da grande repressão” (sic), as populações do Morés, cercadas pelas tropas coloniais, e sem armas para se defenderem, tiveram de se refugiar no Senegal. A “base central” do Morés era, por isso, mítica para o PAIGC (e de algum modo também para as tropas portuguesas).

A base, que o LC conhecia pela primeira vez, “estava situada num terreno irregular, onde pequenas saliências aqui e declives ali ofereciam uma certa proteção contra os bombardeamentos” (pág. 261).

O Morés estava rodeado de “oito quartéis” do inimigo, um dos quais Farim, apenas separado pelo rio do mesmo nome. Chico Mendes era o comissário político. Osvaldo Vieira o comandante militar da região (e aquele que LC conhecia melhor, dos tempos de Bissau: desde a adolescência, trabalhava na Farmácia Moderna, de que era diretora técnica a dra. Sofia Pomba Guerra, conhecida opositora do regime salazarista). O Inocêncio Cani, de etnia bijagó, o futuro “matador” de AC, era o responsável pela base. LC encontrou-se com ele pela primeira vez. Notou que, em relação a ele, LC, o Cani mostrou “um comportamento algo reservado” (pág. 261). Também conheceu nessa altura o Simão Mendes, “responsável da saúde” (pág. 262), que viria, nesse ano, a ser vítima mortal de um bombardeamento da base.

Apesar da receção calorosa que ele e os cineastas italianos tiveram no Morés, o LC não deixa de experimentar um sentimento de isolamento e desconforto: “quando eu decidia mandar chamar um ou outro camarada que conhecia bem, ficava com a sensação de que ele não estava à vontade, parecia ter medo de qualquer coisa” (pág. 262).

LC irá constatar, algum tempo depois, que a “disciplina rigorosa” que prevalecia na base, por alegadas razões de segurança, implicava também o recurso (frequente) a “castigos corporais”, a única maneira de prevenir a deserção de populações e guerrilheiros.

LC ficou impressionado com uma cena que observou, de um grupo de um dezena de homens e de uma mulher com o filho ao colo. Os homens tinham as mãos inflamadas das palmatoadas que acabavam de receber, castigo de que escapara a mulher por causa da criança (uma vez que a tinha de transportar).

LC terá ficado indignado, argumentando que o AC nunca aprovaria o uso de “castigos corporais”, prática que associava ao colonialismo. O Osvaldo Vieira “insistia que a nossa gente não compreendia outra linguagem e que o Amílcar era bom de mais” (sic)… e que não se agissem assim, com dureza, quer em relação aos combatentes, quer em relação à população, nos casos de infração às regras estabelecidas, “estavam perdidos” (sic) (pág. 265).

É uma delícia, esta explicação, a do Osvaldo Vieira, deitando por terra o “mito” das “regiões libertadas”…

Nas páginas 262-264, LC descreve, com algum detalhe e sentido de humor, as peripécias das filmagens do futuro documentário italiano “Labanta, Negro!”…

O Pierro Nelli (1926-2014) era um “antigo partisan das guerrilhas antifascistas”, na Itália de Mussolini e da ocupação nazi. Tivera conhecimento da luta do PAIGC, “ocasionalmente”, em Dacar. E estava agora entusiasmado com o que via nas florestas do Oio, e “altamente emocionado” pelo interesse e carinho com que o recebiam nesta visita. Viria a tornar-se “um admirador do nosso Partido” (pág. 262).

LC explicou-lhe que “na nossa terra não tínhamos montanhas para nelas instalar bases de guerrilha”… e que o Amílcar, seguramente (en)levado pelo “mito “ da Sierra Maestra, da ilha de Cuba, “dissera desde o início da luta que as nossas florestas seriam as nossas montanhas” (pág. 262).

De qualquer modo, ao deslocar-se na floresta o duo italiano tinha sempre alguém que ia à sua frente a assinalar ou remover os obstáculos, um tronco caído, uma cova mais funda, uma pedra, um ramo de árvore mais inclinada…

No plano de filmagens estava incluída uma sequència de guerra: “o encontro com as forças inimigas ia ser filmado, na estrada Mansoa-Mansabá, cujos trabalhos de alcatroamento avançavam com muita dificuldade, sob a protecção do exército colonial”.

Os cineastas ficaram a cem metros da estrada. Chegaram antes do romper do dia. Ficaram instalados “de maneira a ter bem claro na objectiva da câmara o ângulo onde deviam actuar os nossos camaradas já emboscados” (pág. 263).

A tropa, “apoiada com carros de assalto” (sic) (deveriam tratar-se de simples autometralhadoras Daimler, coisa que o LC não sabia distinguir), chegou primeiro que os operários, os técnicos e as suas viaturas (a empresa deveria ser a TECNIL onde, mais tarde, em 1977 irá trabalhar, como topógrafo, o nossso camarada António Rosinha).

Por inexperiência ou azar (para não dizer “nabice”), o operador de câmara ficou virado para oriente, donde vinham os primeiros raios de sol: 

(…) “Os reflexos desta perfurante luminosidade na objetiva da câmara cinematográfica fez com que ela fosse localizada pelo destacamento inimigo alguns segundos antes dos primeiros tiros da emboscada cuidadosamente preparada pelos nossos combatentes” (pág. 263).

Face ao intenso fogo que, de imediato, se desencadeou, de um lado e do outro, os cineastas tiveram que se retirar “precipitadamente” do local, “só tomando o fôlego quando se sentiram fora do alcance das armas inimigas” (pág. 264).

Na precipitação da retirada, o realizador perdeu o seu magnetofone, mas um dos guerrilheiros voltou depois ao local para o recuperar.

O aparelho registara os sons dos tiros produzidos durante a confrontação. E o operador também “registara imagens ao acaso, durante a retirada”, inadvertidamente, com a câmara ligada… É uma das sequências mais notáveis do filme de 38 minutos: “uma sequência plena de vida e de arte”, acrescenta o LC.

O operador de imagem, Eugenio Bentivoglio, não se cansava, já no regresso à base, de falar do medo, “la grande paura”, que experimentara, o maior de toda a sua vida, enquanto o realizador se mostrava mais calmo: pertencente a uma geração mais velha, conhecera a guerra e os seus horrores.

E num comentário, algo “naif” mas não menos fanfarrão, o LC (que nunca foi grande combatente, diga-se de passagem) acrescenta: a seu lado (do Piero Nelli), e ainda debaixo de fogo, “o comandante Joaquim Furtado (…) chamava a sua atenção para a beleza dos patos selvagens que esvoaçavam a alguns metros do lugar onde passavam, afastando-se do perigo iminente que vinha do lado da estrada” (pág. 264).

No dia seguinte, e para despedida do LC e dos seus amigos italianos, tudo acabou em bem, com um “grande comício” em que tomaram a palavra o Osvaldo Vieira e o Chico Mendes (tido por grande orador).

O Piero Nelli “chorou” ao deixar o Morés, garante o LC. E mais disse: que com o seu filme, o realizador italiano “ ia procurar ser o mais fiel possível, para transmitir ao espectador europeu que, como ele, nada sabia sobre a nossa luta, os sentimenmtos que vivera tão intensamente no nosso pais “ (pp. 266/267).

E arremata o LC:

 “Parece que conseguiu. O seu filme, ‘Labanta Negro’, título de um poema do cabo-verdiano Dambará (***), poeta das ilhas, recitado em Morés por um dos alunos, foi premiado com o Leão de Ouro do Festival de Veneza, como o melhor documentário do ano” (pág. 267).

Visto à distância de mais de meio século, parece ser um vulgar filme de propaganda, de estética tardo-neorrealista, que já não faz chorar ninguém…O realizador é incapaz do necessário distanciamento afetivo e do espírito crítico que deve ter o cinema documental… E a voz “off” do narrador, monocórdica, parece a de um (mau) locutor de serviço.

2. 
 O filme "Labanta Negro" (1966) (38' 44'')  em italiano, com falas em crioulo, está disponível no You Tube, na conta Archivio Audiovisivo del Movimento Operaio e Democratico, desde 21/03/2019.

Ficha técnica: Labanta Negro! 

Cópia integral: https://goo.gl/Q7PCy2 

Realização: Piero Nelli. 

Produção: Reiac Film, Itália. 

Ano: 1966. 

Duração: 38' 44''.

Aconselha-se a ver o documentário com as legendas em italiano, que são geradas automatiocamente (vd. definições). E uma vez que a narração é muita rápida, é preferível optar por uma reprodução mais lenta).

Sinopse (adapt. do italiano por LG): 

Em crioulo "Labanta, Negro!" (1966) significa "Levante-te, negro!". O filme, pensado como um diário, quer ser um testemunho da luta pela independência da colónia portuguesa da Guiné, a partir dos "territórios já libertados" (caso do Morés, por exemplo), onde a guerra e a actividade militar coexistem com a criação das primeiras estruturas de uma sociedade civil africana que se organiza na floresta, nas aldeias, nas savanas. 

O filme mostra, entre outras coisas, as "aldeias destruídas pelos bombardeamentos portugueses"  e os restos de um avião, um T6,  abatido em 1963 . 

Algumas sequências são dedicadas a uma reunião do PALGC, onde Luís Cabral intervém sobre a "luta de libertação"; também é registrado o depoimento de Osvaldo Vieira, comandante do Exército do Norte. As imagens de um confronto com uma patrulha portuguesa na estrata de Mansoa-Mansabá, em 11/2/1966, e do posterior regresso dos guerrilheiros à base do Morès (uma dramática sequência entre os minutos 30 e 34) encerram o documentário. 

Este documentário foi recebido pelo Comité de Descolonização da ONU, reunido em Argel, como prova testemunhal sobre a situação da "província ultramarina portuguesa" da "Guiné Cabo Verde" (sic).

No texto acima, seguimos as memórias do Luís Cabral para sabermos algo mais sobre o "making of" do filme, que teve na altura algum sucesso e contribuiu bastante levar a luta do partido de Amílcar Cabral (AC) ao conhecimento do público europeu, nomeadamente em Itália.  O filme teve alguma projeção, ao ganhar o prémio para o melhor documentário no Festival Internacional de Cinema de Veneza de 1966.
___________

Notas do editor:

(*) Fonte: CECA - Comissão para Estudo das Campanhas de África: Resenha Histórico- Militar das Campanhas de África (1961-1974) : 6.º Volume - Aspectos da Actividade Operacional: Tomo II - Guiné - Livro I (1.ª edição, Lisboa, Estado Maior do Exército, 2014), pág. 372.

(**) Vd. postes:



(***)  Kaoberdiano Dambará era o pseudónimo literário do poeta, escritor e advogado, cabo-verdiano,  lcenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, Felisberto Vieira Lopes (Santa Catarina, Santiago, 1937 – 2020), 


(...) Vieira Lopes/Kaoberdiano Dambará é uma personalidade marcante, única e incontornável da literatura e da advocacia cabo-verdiana. Escolheu-se aqui homenageá-lo apresentando as publicações onde ele assina com o pseudónimo poético revolucionário, escritas em fases marcantes da sua vida: Noti (1964), fase de euforia e de engajamento na luta pela independência; e A saída da Crise não é pelo Anteprojecto da Constituição (1980), fase de desencanto e de combate ao regime de partido único instaurado no país com a independência. (...)

(...) "Noti": Livro de poemas em crioulo, edição do Departamento da Informação e Propaganda do Comité Central do PAIGC, França 1964, com introdução de Ioti Kunta (pseudónimo de Jorge Querido), é uma das obras poéticas mais representativas da poesia engajada na luta de libertação da Guiné e Cabo Verde. (...)