sábado, 11 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13719: Bom ou mau tempo na bolanha (70): Da Florida ao Alaska, num Jeep, em caravana (10) (Tony Borié)

Sexagésimo nono episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGRU 16, Mansoa, 1964/66.




Resumo do décimo dia

Já nos encontrávamos no estado do Alaska, que é uma gigantesca península, que se limita a norte com o Oceano Ártico, a oeste com o estreito de Bering, que o separa do país europeu Rússia, na área das províncias de Chukotka Autonomous Okrug e Kamchatka Krai, ao sul com o mar de Bering e, a leste, com o Canada, nas províncias de Yukon e British Columbia. Tem 1 723 336,57 km², dos quais 1 477 953,12 km² são terra firme, sendo o resto coberto por água, tornando-o o maior estado dos USA.

Apesar deste território ter sido habitado, milhares de anos, por povos indígenas, a partir do século XVIII, algumas potências europeias consideraram o território do Alasca, bom para exploração. Assim, o nome “Alaska", foi introduzido no período colonial russo, que lhe chamava, “Аляска”, quando foi usado para se referir a esta gigantesca península, derivado de uma expressão do idioma esquimo-aleutiano, “Aleut”, ainda hoje falado em diversas partes deste território, quando se referem ao território do Alasca, mais propriamente ao estreito de Bering, querendo dizer mais ou menos, “para onde a corrente da acção da água do mar é dirigida”. Também é conhecido como “Alyeska”, a "Grande Terra", uma palavra também “Aleut”.


Era manhã, no nosso relógio, pois a luz do dia já nos iluminava há muitas horas, estávamos no que chamam a cidade de Delta Junction, que está localizada a pequena distância da confluência do rio Delta com o rio Tanana, onde existe a povoação de Big Delta e, onde também viviam os primeiros habitantes que eram os “Tanana Athabaskan” e, além destes rios, o território do Alasca é cortado pelo rio Yukon, um dos rios mais longos da América do Norte, com os seus 3185 km de comprimento, possui milhares de pequenos lagos, alguns com algumas dezenas de quilómetros de largura, com grande quantidade de peixes, em especial salmão, além de tudo isto, cerca de 35% do Alasca é coberto por florestas, principalmente, no sul do estado, além de abrigar milhares de “Glaciares”, que são as tais espessas massas de gelo formadas em camadas sucessivas de neve compactada e recristalizada, durante várias épocas, em regiões onde a acumulação de neve é superior ao degelo, cujo tamanho varia entre algumas centenas de metros, até 80 km de comprimento, chegando até aos 300 metros de espessura.

Creio que já chega de história, mas perdoem acrescentar mais um pormenor, se o território do Alasca, fosse um país independente, seria o 17.° maior do mundo em extensão territorial e, ainda existe outro pormenor, é que o governo americano comprou todo o território do que é hoje o Alasca ao Império Russo, em 1867, por 7,2 milhões de dólares, mais ou menos, dois cêntimos por “acre”, ou seja ($4.74/km²), mas só no ano de 1959 o elevou à categoria de estado, tornando-se assim no 49.º estado americano.

Vamos continuar, pois o que mais deve de interessar aos nossos companheiros são pequenos pormenores da viajem, como vivem por aqui as pessoas, o que os nossos olhos viram e, o que faltava em facilidades no dia a dia, era abundante em animais na estrada, pelo menos por aqui em Delta Junction, pois por volta do ano de 1928, o governo dos USA trouxe uma manada de 23 búfalos do “National Bison Range”, no estado de Montana, para esta povoação de Big Delta, para ajudarem os seus habitantes na caça. Em poucos anos reproduziram-se de tal maneira, que já eram problema para as pequenas culturas, onde teve que haver controle, abrindo a época de caça, com mais frequência, existindo agora um controle, que mantém uma manada de apenas umas centenas.

Nesta cidade de Delta Junction, oficialmente termina o “Alaska Highway” e, começa o “Richardson Highway”, que para norte, nos leva à cidade de Fairbanks, e para sul à cidade de Valdez, onde existe o terminal do célebre “Alaska Pipe Line”, que é aquele oleaduto gigante que transporta o óleo em bruto por uma distância de aproximadamente 800 milhas, extraído do fundo do mar, lá no norte do Alaska, em Prudhoe Bay, onde o clima já é polar.


Existem por aqui poucas pessoas, está muito desabitado, as estradas resumem-se a 4 ou 5 a que chamam “Highways”, mas, só junto às principais cidades têm 2 vias, o resto é só uma via onde passam as viaturas umas pelas outras. Para nós, era bom, era tranquilidade, era paisagem, era natureza pura, era ar puro que se respirava, todas as dificuldades para nós eram normais e aceitavam-se com muito agrado, pois quando jovens, tal como os nossos companheiros, tínhamos sobrevivido sem quase nenhumas facilidades, a uma passagem por um período de anos, num maldito cenário de guerra, lá na África.

Havia por aqui diferentes facilidades, como por exemplo, existem com frequência, junto às estações de serviço, as lojas de conveniência, muito melhores que a loja do “Libanês” lá em Mansoa, que vendem desde uma “aspirina” até um “par de pneus todo o terreno”, locais com bombas de água, com sabão ou sem sabão, de muita ou pouca pressão, próprias para lavagem de viaturas pequenas ou grandes, que os proprietários dessas viaturas usam, lavando ou simplesmente tirando alguma terra, lama, pó ou mosquitos já mortos dos vidros da frente, dos faróis ou das manetes que abrem as portas e, é o que fazemos com muita frequência.

Era ainda manhã, visitamos o Centro de Turismo, uma pessoa, saindo de um luxuoso autocarro, que possivelmente vinha dos portos das cidades de Valez ou Anchorage, desviando-se de uma poça de água, dizia: “isto parece o terceiro mundo”. Para nós era exagero, mesmo muito exagero, devia de ser do tipo de uma daquelas pessoas que nós, quando prestávamos serviço militar em Lisboa, esperando o embarque para a então província da Guiné, víamos na zona do Mosteiro dos Jerónimos, vestidas com aquelas roupas garridas, falavam inglês, passeando-se com ar de pessoas importantes, mas depois de emigrar, viemos a saber que eram uns remediados, com o mínimo de escolaridade, que abriam uma conta no banco, descontando uma importância por semana do seu ordenado para virem à Europa mostrarem-se e, um nosso companheiro de então, nos dizia: ”olha ali, um cáa...mone”.

Porra, estou a fazer muitas interrupções, vamos mas é continuar. No Centro de Turismo, a funcionária, uma simpática senhora, descendente de emigrantes alemães, dizia-nos que já tinha visitado por mais que uma vez Portugal, gostava de “vinho do Porto” e “pastéis de nata”, e sabendo que a nossa origem era Portugal, logo se desfez em amabilidades e informações muito úteis, tentando falar algumas palavras em português, o que nos fazia rir, ajudou-nos a tirar algumas fotos no “marco histórico”, onde oficialmente termina o “Alaska Highway”.


Tomando o rumo do norte, ou seja, seguimos pelo “Richardson Highway”, para a cidade de Fairbanks. Chovia aquela “chuva miudinha”, o Jeep e a caravana, já lavados, seguiam com alguma segurança, parámos na cidade de “North Pole”, sim, aquela povoação onde dizem que vive o “Pai Natal”, que se localiza entre o rio Chena e o rio Tanana, dizem que vive do turismo e de duas grandes refinarias de petróleo, o que pudemos constatar pelo tráfico de grandes camiões/tanques que entram e saiem constantemente da cidade, entrando na única estrada que a atravessa, que é o “Richardson Highway”.

Visitámos um grande estabelecimento de decorações de Natal e não só, que é frequentado por pessoas chegadas em viaturas como nós, ou vindas em autocarros, que constantemente chegam das cidades de Fairbanks, Anchorage e até de Valdez. Existe aqui uma grande imagem que dizem que é a maior do mundo, do “Santa Claus”, feita em fiberglass. As luzes que iluminam as ruas estão decoradas com motivos de Natal, têm nomes como, Santa Claus Lane, St. Nicholas Drive ou Snowman Lane. Os carros da polícia têm a cor de verde e branco, os carros dos bombeiros e as ambulâncias são vermelhas, tal como a roupa do “Pai Natal” e o posto do correio da cidade de North Pole recebe por ano centenas de milhares de cartas dirigidas ao “Pai Natal”.


Para nós era Alaska puro, com muito “folclore”, muita paisagem, em algumas zonas, neve antiga nas ribanceiras, chuva e nevoeiro, o tal clima polar, estrada perigosa, paragens constantes para dar espaço aos longos camiões que por nós passavam, quando nos surgia uma qualquer habitação, um pouco retirado da estrada, normalmente, na sua frente, além de um ou dois pick-up, um ou dois barcos pequenos com motor fora de bordo, já antigos, também lá estava uma avioneta com rodas ou flutuadores, que possivelmente usava a estrada ou o lago mais próximo para deslocar. Continuando sempre rumo ao norte, rumo à “latitude 66° 33’, seguindo para a cidade de Fairbanks, que um tal capitão E. T. Barnette fundou no ano de 1901 enquanto tentava criar um ponto comercial em Tanacross, onde o rio Tanana atravessava a trilha Valdez-Eagle. O barco em que Barnette e uns jovens seguiam encalhou 11 km após o rio Chena, onde a fumaça do motor atraiu alguns garimpeiros, que logo acorreram ao local, encontrando o capitão que ali desembarcou. Os garimpeiros convenceram Barnette a estabelecer seu ponto comercial ali, onde mais tarde a cidade recebeu seu nome em homenagem a Charles W. Fairbanks, um senador republicano de Indiana, mais tarde o 26.º vice-presidente dos USA.


Transitávamos com algum cuidado por uma via da cidade, com o Jeep e a caravana um pouco sujos, na procura do Centro de Turismo, ao nosso lado ia um veículo da emissora de televisão local, que na paragem do sinal de trânsito, vendo a matrícula do veículo da Florida, nos perguntou se tudo nos tinha corrido bem e há quanto tempo andávamos na estrada. Já tinham ouvido falar em nós, que nos desejavam boa sorte, e mais umas outras perguntas de circunstância, nós perguntámos qual o itinerário mais perto para chegar ao Centro de Turismo, e eles logo disseram para os seguir. Ali tivemos alguma informação, percorremos a cidade, como chovia procurámos hotel, a empregada, sabendo a nossa proveniência, para surpresa nossa, disse que já tinha ouvido falar na nossa “aventura”, tinha muito gosto em receber-nos, não só fazendo um preço “de amigos”, recomendando-nos para outros hotéis da mesma rede, o que muito agradecemos.


Já eram seis horas da tarde quando por recomendação de uma pessoa que aqui vive, que é professor na Universidade, aqui, em Fairbanks, mas com familiares na cidade onde vivemos, no estado da Florida, fomos a um famoso restaurante, próximo de onde passa o “Alaska Pipe Line”, um pouco ao norte da cidade, comer bifes de búfalo, onde servem doses para gigantes, a que chamam “bife para homem do óleo, grande”, “bife para homem do óleo, médio” ou “bife para homem do óleo, pequeno”. O prato do dia era “hamburgueres”. Havia um grande “braseiro”, as pessoas, com o pão na mão, tiravam um hamburguer, colocavam uma grande “rodela” de tomate, cebola e outros temperos. Nós comemos um bife de búfalo, pedimos a dose média, deu para dois e cresceu para trazermos para o lanche do próximo dia. Tudo regado com cerveja local, à temperatura normal, que parecia vinho branco.


Neste dia andámos pouco, percorremos somente 319 milhas, com o preço da gasolina a variar entre $4.10 e $4. 22 o galão, que são aproximadamente 4 litros.

Tony Borie, Agosto de 2014.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13690: Bom ou mau tempo na bolanha (68): Da Florida ao Alaska, num Jeep, em caravana (9) (Tony Borié)

Guiné 63/74 - P13718: Recuerdos de uma infância: a Nha Maria Barba, a avó Barba, cantadeira de mornas, da Boavista, minha viziinha de Bissau (Nelson Herbert, VOA - Voice of America)

1. Mensagem, com data de ontem, do nosso amigo guineense, Nelson Herbert, hoje a viver nos EUA,  onde trabalha na VOA - Voice of America, Voz da América

Assunto: Recuerdos de uma infancia !

Luis Graca, linda homenagem/referência essa a Nha Maria Barba . ou avó Barba, minha vizinha em Bissau (*)...

Nha Maria Barba viveu na Guiné, na então Rua Engenheiro Sá Carneiro, a rua dos Serviços Meteorológicos, numa casa...de três moradias (nasci e cresci numa das moradias adstritas) , mesmo defronte a Messe dos Sargentos da Forca Aérea .(Com a independência, foi a primeira chancelaria da embaixada da China) .

Sobre esta senhora postei há uns anos, na minha página do Facebook,. um pequeno texto de homenagem..que aqui partilho...

Clicar: Bana / Maria Barba > http://youtu.be/bTwZ-x-7DAw

Arquipélago de Cabo Verde, Barlavento. Posição rekativa
da ilha da  Boa Vista, a que fica mais a leste, a e menos
de 500 km da costa  africana. Fonte: Cortesia de Wikipédia.
"...aqui a homenagem a esta cantadeira de mornas...que na década de 30/40, brilhou na interpretação e divulgação da morna, estilo musical ilhéu (**)... a partir sobretudo da então Guine portuguesa, onde viveu [, de 1940 a 1974,] toda uma vida e deixou descendentes...

Nha Maria Barba ou avó Barba, minha vizinha de soleira de porta geminada, na Guine dé minha infância e adolescência...

Os restos mortais desta senhora, natural da ilha da Boavista, Cabo Verde, repousam hoje no cemitério municipal de Bissau !

Uma das relíquias da música de Cabo Verde é da autoria de Nha Maria Barba, aqui na voz do rei na Morna, Bana !

Até à  independencia da Guiné Bissau, a então Emissora Oficial da Guiné Portuguesa conservava registos, da voz desta senhora na interpretação de algumas das mais antigas mornas de Cabo Verde."

Para quem frequentava a Messe dos Sargentos da Força Aérea, esporadicamente era natural, nos serões da noite da nossa/minha rua de infância, ver Nha Maria Barba, com Zezinho "Caxote" ao violão (este um caboverdiano amante das serenatas que emigrou para a Guiné)  interpretar algumas das lindas mornas de Cabo Verde...

Em jeito de rodapé, recordo-me entretanto, e perfeitamente, apesar da magistral interpretacão da morna em questão  pela voz do Bana, de Nha Maria Barba queixar-se da 'adulteração" de algumas estrofes da composição original de sua autoria (*)...


"Nha mae é fraca e nha pai é malandre'
S'un ca bai um' ta bà prese' pa porto
Nha mae é fraca e nha pai é malandre'
S'un ca bai um' ta bà prese' pa porto"

Negava, por exemplo, que no original da composicão, tenha se referido ao pai, nos termos em que a versão interpretada pelo Bana o faz: "Nha Pai e Malandre"  ( Meu pai e um malandro)-

Apenas tenho vivas-recordaçõees de uma mulher...da avó Barbara, figura que marcou a minha infância e adolescência em Bissau.

Nelson Herbert
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Notas do editor:

(*) Vd. último poste da série >  9 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13713: Caderno de Poesias "Poilão" (Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do Banco Nacional Ultramarino, Bissau, Dezembro de 1973) (Albano de Matos) (6): Homenagem a Mário Lima e Aguinaldo de Almeida, já falecidos, meus colegas do BNU, em Bissau (António Medina, ex-fur mil inf, CART 527, Teixeira Pinto, Bachile, Calequisse, Cacheu, Pelundo, Jolmete e Caió, 1963/65; natural de Santo Antão, Cabo Verde, vive hoje nos EUA)

(*ª) A morna é agora candidata a Património Mundial da Humanidade, pela UNESCO.  E eu apoio, de todo o coração, essa candidatura. (LG)

Guiné 63/74 - P13717: Parabéns a você (798): Benito Neves, ex-Fur Mil CAV 1484 (Guiné, 1965/67) e Eduardo Campos, ex-1.º Cabo TRMS da CCAÇ 4540 (Guiné, 1972/74)


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Nota do editor

Último poste da série de 10 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13714: Parabéns a você (797): Manuel Resende, ex-Alf Mil da CCAÇ 2585 (Guiné, 1969/71)

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13716: Notas de leitura (640): “Guiné, a cobardia ali não tinha lugar”, por José Silveira da Rosa, edição de autor, 2003 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Outubro de 2014:

Queridos amigos,
Por mim, preferiria que se usasse de uma absoluta descrição sobre este livro. Trata-se de alguém em estado de grande sofrimento, com os seus sonhos por terra, alguém que esteve no Terreiro do Paço no dia 10 de Junho de 1968 a receber uma condecoração para a CART 1688, que passou um largo período de tempo a combater em Biambi, e que descreve situações terríveis, desde uma inacreditável execução de capturados até várias violações.
É tudo demasiado excessivo e doloroso e o que se deixa escrito é apresentado como um alívio da consciência.
Tudo quanto se escreveu naquela nossa guerra não pode ser ignorado, para isso procuro trabalhar com as regras de escrúpulo porque pauto a minha vida.
Constrange-me ler certos relatos, fica-se perplexo, nem sempre dá para acreditar. Por isso registo e sigo em frente.

Um abraço do
Mário


Um jogador de Os Belenenses em Biambi

Beja Santos

“Guiné, a cobardia ali não tinha lugar”, por José Silveira da Rosa, edição de autor, 2003, relata a história de um furriel que embarcou para a Guiné em Abril de 1967, de Bissau partiram para Bula, após o treino operacional coube à CART 1688 o destacamento de Biambi, no Oeste do Oio. Vai falar de rotina na montagem de emboscadas, nas operações de grande porte, nos patrulhamentos de reconhecimento e das nomadizações, escoltas com picagem das estradas e a outra rotina da segurança à fonte, das limpezas ao aquartelamento, dos serviços de capinação bem como a construção da pista de aterragem. Enumera as zonas que percorrem, nomes como Encheia, Biambezinho, Estrada de Bissorã, Estrada de Binar. Livro profusamente ilustrado, nunca encontrei álbum fotográfico como este: com diferentes armas e em posse para o fotógrafo, na messe, na fonte, a jogar à bola, junto de viaturas atascadas, com diferentes camaradas, disfarçado de autóctone, a simular que vai trabalhar com morteiro 81, no aquartelamento, ao pé do abrigo, em cima dos morros de baga-baga, a simular que está a trabalhar no arrozal, a pilar arroz, a colher mangos… E socorre-se de alguns depoimentos de camaradas, a seu pedido.

Tece acusações gravíssimas. O furriel Silveira Rosa pertencia ao 2.º pelotão da CART 1688, denominado “Os Diabólicos”, explicando que fora opção do seu irreverente alferes, “sempre na vanguarda em assuntos de guerra, oferecendo por vezes o seu e nosso pelotão para algumas missões voluntárias, sem perguntar se aceitávamos ou não”. Em Biambi, estimulou as orações noturnas. Aliás, reza sempre enquanto vai na picada, como escreve: “Lembrai-vos, ó puríssima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer que algum daqueles que tem recorrido à vossa assistência e reclamado o vosso socorro, fosse por vós desamparado”.

Biambi conheceu várias flagelações, que ele pormenoriza. Um ataque de paludismo, nos finais de Agosto de 1968, estava ele com mais de 39º de febre, não impediu que o comandante da companhia recuasse na ordem de ele ir para uma emboscada, regressou com mais dores, deram-lhe uma injeção que o levou ao hospital de Bissau, onde surgiu uma tromboflebite, nunca mais se recompôs, foi evacuado para Lisboa, ao fim de quatro meses de internamento, a sua guerra acabou aqui. Em Maio de 1969 regressou, à sua terra-natal, o Faial. A partir daí, potenciaram-se os sofrimentos. É deficiente militar, sofre de stress pós-traumático de guerra, é inapto para o trabalho desde o final de 2000. Escreve que tendo sido futebolista profissional, depois da vida militar sujeitou-se a ser caixeiro, empregado de escritório durante 24 anos e nos últimos anos da sua carreira profissional foi caixeiro/encarregado.

A região de Biambi tinha naturalmente diferentes tabancas submetidas a duplo controlo, o que gerava, nalguns casos, situações terríveis. Estamos já nas confissões que ele entende fazer, e que são assumidas como um desabafo e um grito da consciência. Numa emboscada para os lados do Alto do Tama apanharam uma jovem. Na presença do alferes, a jovem terá sido violada, o Silveira da Rosa recusou colaborar na violação coletiva. Segue-se o que ele intitula de “descrição macabra”, algo que aconteceu no dia 5 de Agosto de 1967. Houve uma operação de grande porte, coube à unidade do furriel Rosa efetuar um golpe de mão. A CART 1688 terá sido intercetada pelos guerrilheiros do PAIGC e seguiu-se uma emboscada terrível que meteu abelhas. Entretanto, houvera captura de prisioneiros. O comandante de companhia teria entregue os ditos prisioneiros (os nove nesse dia apanhados, e o autor acrescenta mais oito que já lá estavam há algum tempo, não se percebe quando nem porquê) ao linchamento. O furriel Rosa a tudo assiste em cima da caserna-abrigo, viu uma multidão enfurecida primeiro a distribuir pontapés, bolachadas e cotoveladas; um furriel pegou num barril vazio e dava com ele nas costas dos prisioneiros. E seguiu-se a execução, os prisioneiros foram levados de olhos vendados e mortos tiro a tiro, um outro furriel tirava uma orelha… Este foi o “massacre-genocídio” que ele presenciou. E escreve: “Sei que vou pagar por esta denúncia, mas enfrentá-lo-ei com coragem e teimosia, alivio o fardo que carrego há uns 35 anos. Que Deus me dê forças para enfrentar as consequências”.

Dá-nos uma descrição minuciosa do aquartelamento do Biambi, ilustrando mesmo com uma fotografia aérea, as instalações estão numeradas e ficamos a saber onde é a secretaria, a cantina, o centro-cripto, o balneário, as instalações onde viviam os militares da companhia e as milícias. A CART 1688 foi condecorada com a “Flâmula de Ouro”, bem como a Cruz de Guerra 1.ª Classe, o furriel Rosa participou nas cerimónias do Dia de Portugal, em 1968, no Terreiro do Paço.

O texto prossegue em ziguezague e temos mais violações ao desbarato, desta vez o alferes do 2.º pelotão vão buscar mulheres para um género de orgia, voltaram a insistir com ele, volta a pedir perdão a Deus. O furriel Rosa escreveu os seus desabafos no jornal Correio da Horta, logo foi interpolado por outros militares, encorajando-o. O presidente da Apoiar – Associação de Apoio aos Ex-combatentes Vítimas do Stress da Guerra, Mário Gaspar, também participa com o seu depoimento, descreve uma operação que se realizou em 14 e 15 de Julho de 1967 no Corredor de Guileje, na região de Famora, e conta a odisseia de um soldado que andou perdido onze dias ao fim dos quais foi ter ao aquartelamento de Guileje, o soldado António Fernandes da Silva, de Carregal do Sal.

Publicita os seus gritos de revolta, queixa-se das mentiras dos políticos, da falta de contagem de tempo, elogia o médico que o tem tratado.

O relato do furriel José Silveira da Rosa tem o aspeto incomum de publicar dezenas e dezenas de fotografias, de um modo geral em posições de lazer e recreio, onde não faltam poses a jogar futebol, o seu sonho danificado pelo acidente que modificou a sua vida. Relata um massacre de 17 pessoas, que me parece inacreditável, se acaso um comandante de companhia tivesse decretado um linchamento havia seguramente consequências, alguém teria participado para Bissau a carnificina. Acresce as descrições das violações, uma delas, como escreve inequivocamente, a mando do alferes do 2.º pelotão, com nome e tudo. Pode entender-se que haja problemas de consciência com o furriel Rosa e que ele está dentro da clara certidão da verdade, não se deixa de refletir como a liberdade de expressão pode ser desviada para excessos, para assassinatos de caráter, para o opróbrio de gente desta CART 1688 que seguramente nada teve a ver com alegados desmandos.

O que aqui se escreve em recensão deve ser tomado à letra, o que os autores escrevem, em memorial ou em ficção, ficarão como testemunhos, serão um dia filtrados, e nalguns casos alvo de condenação ou exaltação.
Sem mais comentários.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13696: Notas de leitura (639): “Do Outro Lado das Coisas", do Embaixador João Rosa Lã (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/734 - P13715: Fotos à procura de... uma legenda (37): D. Idalina Carvalho Pereira Martins, esposa do cmdt do BART 3873, ten cor Tiago Martins, no almoço de Natal de 1972, no Xime, o quartel do setor L1 mais atacado e flagelado (Jorge Araújo, ex-fur mil, op esp, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)



Foto: © Jorge Araújo (2014). Todos os direitos reservados

1. Afinal, houve mais mulheres que foram à guerra...

Uma foto rara e insólita (*)... a precisar de uma boa legenda (**).

Jorge Araújo [ ex-fur mil op esp, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74) comentou o seguinte, no poste P13645 (***):

 (...) Pretendo, com o presente, dar conta de que o mês de Dezembro de 1972 [01Dec] iniciou-se com uma nova emboscada na Ponta Coli [estrada Xime-Bambandica] - a segunda da CART 3494 - conforme narrativa divulgada nos P9802 e P12232.

Aliás, no 9.º Fascículo da História do Batalhão - Dezembro/72 - refere-se a este facto no Ponto 61; alínea d), pp 37/38.

Quanto à quadra natalícia desse ano, realizou-se no Xime um almoço de Natal, com rancho melhorado, no qual esteve presente o CMDT do BART 3873, Ten Cor. António Tiago Martins (já falecido) [, mais a esposa, também já falecida].

Por correio interno seguem algumas fotos do evento. (...)

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(**) 4 de outubro de  2014 > Guiné 63/74 - P13688: Fotos à procura de uma legenda (36): Uma vacada... no Cachil (Victor Neto / José Colaço, CCAÇ 557, 1963/65)

(ªªª) Vd. poste de 24 de setembro de 2014 >  Guiné 63/74 - P13645: História do BART 3873 (Bambadinca, 1972/74) (António Duarte): Parte XI: dezembro de 1972: (i) talvez a primeira quadra festiva do Natal e Ano Novo passada, no setor L1, sem ataques nem flagelações do IN; (ii) por outro lado, o comandante 'Nino' Vieira vem pessoalmente à frente Bafatá-Xitole para censurar e punir maus tratos infligidos às populações locais pelos seus guerrilheiros

Guiné 63/74 - P13714: Parabéns a você (797): Manuel Resende, ex-Alf Mil da CCAÇ 2585 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 9 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13710: Parabéns a você (796): José Carmino Azevedo, ex-Soldado Condutor Auto do BCAV 2868 (Guiné, 1969/71)

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13713: Caderno de Poesias "Poilão" (Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do Banco Nacional Ultramarino, Bissau, Dezembro de 1973) (Albano de Matos) (6): Homenagem a Mário Lima e Aguinaldo de Almeida, já falecidos, meus colegas do BNU, em Bissau (António Medina, ex-fur mil inf, CART 527, Teixeira Pinto, Bachile, Calequisse, Cacheu, Pelundo, Jolmete e Caió, 1963/65; natural de Santo Antão, Cabo Verde, vive hoje nos EUA)



Aguinaldo Almeida (já falecido), quadro do BNU de Bissau e autor da introdução, que a seguir se publica, nos Cadernos de Poesia "Poilão", editado pela secção cultural do Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do BNU - Banco Nacional Ultramarino, Bissau.




Fotos: © Albano de Matos (2014). Todos os direitos reservados



Albano Mendes de Matos
1. Mensagem,  de 7 do corrente, do Albano de Matos


Caro Luís,

Só agora vi que o nome do Aguinaldo não está correto. É Aguinaldo Almeida.

O Aguinaldo esteve na minha casa no verão de 1974, quando vim da Guiné, de férias, depois, perdi-lhe o rasto. Ele estava cá, de férias.

Envio a foto do Aguinaldo e o original da Introdução do POILÃO, que ele assinou.
Abraço.




Elemento gráfico da capa do documento policopiado do Caderno de Poesias "Poilão", editada em dezembro de 1973 pelo Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do Banco Nacional Ultramarino (O GDC dos Empregados do BNU foi criado em 1924).

Considerada a primeira antologia da poesia guineense, esta edição (, 700 exemplares, policopiados, a stencil, ) deve muito à carolice, ao entusiasmo, à dedicação e à sensibilidade sococultural de dois homens: (i) o Aguinaldo de Almeida, caboverdiano funcionário do BNU, infelizmente já falecido(segundo informação que nos acaba de dar o nosso grã-tabanqueiro António Medina); e (ii) o nosso camarada Albano Mendes de Matos (hoje ten cor art ref; tenente  art,  GA 7 e QG/CTIG, Bissau, 1972/74;  foi o "último soldado do império"; é natural de Castelo Branco, vive no Fundão; é poeta, romancista e antropólogo].


2. Mensagem que enviei há dias, em 7 deo corrente,  ao nosso camarada da diáspora António Medina [ex-fur mil inf, CART 527, Teixeira Pinto, Bachile, Calequisse, Cacheu, Pelundo, Jolmete e Caió, 1963/65; natural de Santo Antão, Cabo Verde, foi funcionário do BNU, Bissau,  de 1967 a 1974; vive hoje nos EUA]:

Assunto: Colega do BNU, em Bissau, Mário Lima, poeta

António: Como vai essa saúde ? E a disposição ? Viste o poste sobre o teu aniversário ?

Outra coisa: ainda te tembras do Mário Lima, teu colega  do BNU e patrício ? Escrevia poesia e está nesta antologia, organizada pela vossa casa de pessoal, em dezembro de 1973... E de uma tal Maria Caela ? Tens alguma pista sobre esta mulher ?... Vê aqui (*).

Manda notícias. Um abraço fraterno. Luís Graça
António Medina



3. Resposta do António Medina, na volta do correiro, 
8 de Outubro de 2014 às 00:22

Meu caro Luis:

Antes de mais os meus cumprimentos e agradecimentos pelos teus votos de Feliz Aniversário no Blogue e que tomei conhecimento naquele mesmo dia. Infelizmente tinha acabado de falecer no Rio de Janeiro um meu irmão, vitima de doenca, que me transtornou um pouco.

O Senhor Mário Lima foi de facto meu colega no BNU em Bissau, na altura desempenhando as funções de Chefe de Servicos. Funcionário muito competente, era amigo e respeitava os seus subalternos, procurando e contribuindo para que todos os mais jovens tivessem boa aprendizagem do sistema bancário, o que fez com que a Filial de Bissau fosse conhecida como Campo de Treino, para posteriormente serem transferidos para outras paragens.

Mário Lima.
Foto: Cortesia de RTC

Óptimo tocador de violão, algumas vezes aos sábados não se importou que o visitassemos para se ouvir o seu dedilhar pelas cordas bem afinadas do seu instrumento, interpretando mornas e coladeiras.

O Mário Lima na cidade da Praia, depois da Independência, foi um dos negociadores que ajudou a implementar o Banco de Cabo Verde, foi um dos seus Directores em exercicio até se reformar. Faleceu a 7 de Janeiro deste ano corrente de 2014, vítima de doença prolongada.

Maria Caela (*), nome que vive no meu subconsciente até agora, imagino se tratar de alguma morena criola, dengosa, da Boa Vista donde Mário Lima também era natural e que por qualquer razão lhe mereceu os versos. Assim como existe uma outra morna de nome Maria Barba (Bárbara), também da Boa Vista, pessoa esta já de certa idade que ainda conheci em Bissau (**). Entretanto te prometo olvidar meus esforcos no sentido de obter informações sobre a Maria Caela.


Guiné > Bissau > c. 1965/66 > Um edifício que faz parte das memórias e do imaginário de juventude de alguns dos nossos camaradas de armas, como o Virgínio Briote.


Foto: © Virgínio Briote (2005). Todos os direitos reservados


Já agora aproveito para  prestar,  a tíulo póstumo,  uma pequena homenagem a Aguinaldo Almeida colega e bom amigo. Impulsionador de várias actividades entre empregados do BNU, lecionando em horas extras alunos que precisavam de melhor preparação académica para um futuro melhor, preparando Ralies Auto, etc, ainda me lembro da apresentação da peça teatral "A Hora de Todos",  na Associação Comercial de Bissau, que bastante agradou os assistentes.

Por agora é tudo.
Um abraco do colega e camarada
AMedina


3. Recorde da  imprensa caboverdiana sobre o Mário Lima, que nos mandou o António Medina:

A Semana > 21 de dezembro de 2007

Notícias > Mário Lima prepara livro sobre a banca

21 Dezembro 2007

O escritor Mário Lima tem em preparação um livro sobre a história da banca em Cabo Verde. Quadro do Banco Nacional Ultramarino durante 21 anos, o autor decidiu juntar duas das suas paixões: a literatura e o mundo das finanças.

A obra, em fase de revisão, abordará a génese e aspectos vários da história e evolução das instituições bancárias do país.

Mário Lima, natural da Boa Vista, foi durante 21 anos quadro do BNU, sendo que parte do período que passou na instituição foi vivido na Guiné Bissau onde também colaborou em alguns jornais. Viveu também em São Tomé e Príncipe antes de retornar a Cabo Verde.

Em São Vicente, onde estudou o secundário, foi fundador da Academia Cultivar, de onde saíram alguns dos criadores do jornal Certeza: Nuno de Miranda, Arnaldo França e Tomaz Martins.

Ensaios, crónicas e crítica literária fazem parte da sua produção intelectual, onde se destaca também um conto - O Emigrante - vencedor de uma menção honrosa.

Membro fundador da Associação de Escritores Cabo-Verdianos, Mário Lima tem se dedicado, desde há muitos anos, à poesia e, em Março deste ano, publica finalmente o seu primeiro livro: Minhas Aguarelas no Espaço e No tempo traz poemas inspirados pelas vivências e observações do quotidiano. A obra será em breve secundada pela publicação do seu novo livro, desta feita de cariz histórico/científico.

(Reproduzido aqui com a devida vénia)

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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 7 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13703: Caderno de Poesias "Poilão" (Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do Banco Nacional Ultramarino, Bissau, Dezembro de 1973) (Albano de Matos) (5): dois poemas do caboverdiano Mário Lima, "Retrato de Maria Caela" e "Menina Santomense"....Quem teria sido essa mulher fatal, caboverdiana, Maria Caela, que um dia saltou no cais do Pidjiguiti ?

(**) Ver aqui a letra desta morna, a que o Bana, o "rei da morna",  deu a sua voz inconfundível. A melodia parece ser do final do séc. XIX, enquanto a  letra original seria  da cantora Maria Bárbara,,, É um tocante diálogo - podia ser um fado de despedida! -  entre o tenente Serra, e a Maria Bárbara, a quem ele pede para cantar mais uma morna, na sua festa de despedida, a caminho de Lisboa (***)...

Maria Barba [Bárbara] | Bana [Adriano Gonçalves mais conhecido por Bana (Mindelo, Cabo Verde, 1932 – Loures,   2013]


Maria Bárbara, canta mais uma morna,
Senhor Tenente um' ca podê cantà màs,
Maria Bárbara, canta mais uma morna
Senhor Tenente um' ca podê cantà màs.

Um' ti ta bai nha caminho pa manga
Pa matança di cafanhot'
Um' ti ta bai nha caminho pa manga
Pa matança di cafanhot'

Senhor Tenente Serra kuand' bôcê bà pa Lisboa
Ca bôcê s'quècé di nôs
Senhor Tenente Serra kuand' bôcê bà pa Lisboa
Ca bôcê s'quècé di nôs

Maria Bárbara, eu não hei-de esquecer,
Eu não hei-de esquecer principalmente de ti,
Maria Bárbara, eu não hei-de esquecer,
Eu não hei-de esquecer principalmente de ti.

Maria Barbara, canta mais uma morna,
SenhorTenente um' ca podê cantà màs,
Maria Barbara canta mais uma morna,
Senhor Tenente um' ca podê cantà màs

Nha mae é fraca e nha pai é malandre'
S'un ca bai um' ta bà prese' pa porto
Nha mae é fraca e nha pai é malandre'
S'un ca bai um' ta bà prese' pa porto

Um' ti ta bai nha caminho pa manga
Pa matança di cafanhot'
Um' ti ta bai nha caminho pa manga
Pa matança di cafanhot'

Senhor Tenente Serra kuand' bôcê bà pa Lisboa
Ca bôcê s'quècé di nôs 
Senhor Tenente Serra kuand' bôcê bà pa Lisboa
Ca bôcê s'quècé di nôs

Maria Bárbara, eu não hei-de esquecer,
Eu não hei-de esquecer principalmente de ti,
Maria Barbara, eu não hei-de esquecer,
Eu não hei-de esquecer principalmente de ti...


[ Letra recuperada por LG, a partir daqui:

http://www.cifraclub.com.br/bana/maria-barbara/  ]

(***) Eis a história desta morna (e dos seus protagonistas):

 A Semana > Opinião > Otília Leitão > Postal de Lisboa, 20 Março 2008

(...) Clarisse [Pinheiro, a viver em Portugal] fala com emoção de sua “mãe Bárbara” ou da “Maria Barba”, a autora da morna com o seu nome, que a voz do grande Bana imortalizou. É uma das mais belas e mágicas músicas que eu, como muitas outras pessoas que conheço, interiorizei como uma grande paixão do oficial de cavalaria e engenheiro civil, Serra, obrigado a partir para Lisboa. Afinal, era uma desgarrada de despedida e saudade porque o amor era pela Victória, sua amiga, de quem o Tenente que habitava numa rocha, teve duas filhas que vivem actualmente na América. (...)

Os protagonistas que deram alma a esta morna cantada também por outras vozes da modernidade, já morreram. Ele em Lisboa. Ela, no dizer de Clarisse, uma “moça bonita” da Boa Vista que tinha a particularidade de ser “tão expressiva na alegria como na tristeza”, morreu, na Guiné-Bissau, ao fim de 34 anos, em 1974, no raiar da Independência. (...)

(...) Desde criança, Maria Bárbara cantava tão bem que era habitual vê-la em cima de uma cadeira, de vestido domingueiro, animando festas e convívios, conta Clarice. “Eu era ainda bébé, nem tinha dentes, quando a minha mãe veio cantar ao Palácio de Cristal no Porto, e foi recebida e cumprimentada por Craveiro Lopes” (****), diz a filha reportando-se a 1940 quando Maria Barba, em representação da colónia de Cabo Verde, participou na grande Exposição do Mundo Português. Pese embora a insistência de alguns empresários para que a sua mãe ficasse em Portugal, ela escolheu regressar à Boa Vista. Pouco depois parte para a Guiné.

Por causa da letra de “Maria Barba” - a morna mais antiga que faz uma referência a Lisboa e a primeira que foi gravada na sua versão integral e a duas vozes (Luís de Matos e Maria Alice) no CD “Lisboa nos Cantares Cabo-verdianos” - não resisti a uma provocação: “Oh Clarisse! Quantas paixões silenciosas, por diversos motivos, não existiram?!”. Mas Clarisse foi convicta: “Não! Ele era casado com a Victória! Essa era a sua paixão!” e sorriu. É seguramente uma Morna de despedida e saudade de alguém muito estimado, mas que tem uma postura típica do período colonial em que Lisboa, a cidade que Hans Christian Andersen já em 1866 considerava “luminosa e bela”. Era o "Eldorado", de onde se esperava que viesse a salvação de todos os males do arquipélago.

 Clarisse Pinheiro desmistifica a minha ilusão doce e diz-me que Maria Barba quer satisfazer o pedido do Tenente Serra em cantar mais nessa festa de despedida. Contudo tem uma tarefa a cumprir: ”Tinha que ir fazer uma matança de gafanhotos”, uma praga que afectava as culturas e que obrigava a que cada família cedesse uma pessoa para o fazer. Como o pai já tinha falecido e a mãe era “fraca” ela era a representante da família.

Testemunhos de vários artistas boavistenses, como António “Sancha” Neves e Noel Fortes, referem a existência de várias versões desta Morna do final do século passado, da qual a Maria Barba aproveitou a melodia para improvisar. A versão do grupo Djalunca da Boa Vista parece ser a mais fiel à letra original (...).

Clarisse Pinheiro que ouviu muitas vezes sua mãe cantar, disse que Bana se encontrou com Maria Barba na Guiné, onde ouviu pela primeira vez na rádio a sua morna. “Não há registo, não há direitos de autor, nunca foi reposta essa verdade”, observa a filha mais nova de Maria Barba que apenas conheceu Bana em Portugal, num espectáculo na FIL, movida por esse «ânimu»s que lhe fora transmitido pela mãe. No entanto, explicou, foi um cumprimento fugaz e banal, esfumando-se a expectativa de qualquer eventual reconhecimento, disse.

Clarisse nasceu em Santa Catarina, Santiago, em 1932, de um parto solitário executado pela sua própria “mãe Barba” e testemunhado pela sua irmã Aldônça, então com dois anos. Divergências entre o casal, ligadas ao facto da sua mãe, ainda menor, ter sido raptada pelo marido e de um casamento mal visto pela família, fizeram Maria Bárbara regressar à Boa Vista, dias depois, de barco. Ainda em 1940 e porque a crise da segunda guerra mundial se fazia sentir no aumento do custo de vida, as três, aconselhadas por um tio escrivão, rumaram à Guiné num barco de Manito Bento que, antes de chegar ao destino, se perdeu pela Gâmbia. (..)

Tinha 16 anos quando sua irmã, que vivia em Bafatá, casou com um bisneto do governador Honório Barreto, e viveu na Guiné-Bissau até 1980. Geria uma farmácia do seu companheiro que conheceu na pele as perseguições da PIDE (polícia política do regime colonial). Actualmente, Fernando Lima, com 80 anos, é apenas seu amigo. Ali conheceu Amilcar Cabral, entre outras destacadas personalidades que recorriam aos seus serviços. “O pai de Aristides Pereira (primeiro presidente de Cabo Verde independente) era padre e baptizou os meus filhos”, recorda. Clarisse, não conhece Cabo Verde. Apenas aqui voltou em 1957, aos 25 anos para descobrir no Tarrafal, seu pai, que entretanto já tinha onze filhos... Nunca mais voltou e as suas referências reportam-se essencialmente à Guiné-Bissau. Não resistindo à continuada degradação da sua vida, num período pós-revolucionário, fixou-se em Portugal onde estão também dois filhos e quatro netos, sem que alguma vez se tenha desligado desta triologia feminina: a mãe e as duas irmãs. (..,)

 [Excertos reproduzidos com a devida vénia]

(****) Lapso: deve ter sido o Òscar Carmona, por ocasião da Exposição Colonial, inaugurada no Palácio de Cristal, em junho de 1934... O Craveiro Lopes foi o presidente da República, do regime do Estado Novo, que se lhe seguiu, depois da sua morte em 1951...

A Maria Bárbra, que teve a primeira filha, em 1930, e ainda era menor quando casou, terá nascido nos primeiros anos da República, em meados da década de 1910... Morreu em 1974, com cerca de 60 anos... Em 1934, quando veio ao Palácio de Cristal, deveria ter 20 anos,,,Viveu 34 anos na Guiné, para onde foi viver em 1940... Mas antes disso ainda esteve, "em representação da colónia de Cabo Verde", na Exposição do Mundo Português (que decorreu en Lisboa, entre 23 de Junho e 2 de Dezembro de 1940).

O António Medina diz que ainda a conheceu, em Bissau, já com uma "certa idade", ou seja,  precocemente envelhecida... Esta história da festa de despedida do tenente e engenheiro Serra ter-se-á passado no final dos anos 20...

Há divergência entre a letra original e letra cantada pelo Bana... Ela não diz que o pai é malandro, mas, sim, que já morreu... E como a mãe, era fraca, ela tinha de ir, por ordem da polícia, matar gafanhotos, como representante da família, pelo que não podia ficar a cantar na festa de despedida do senhor tenente:

(...) Amim’ ti ta bai nhâ camin pâ Manga
Nhâ mãe ê fráca, nhâ pai ê môrte
Amim’‘m câ tem q’êm raspondê pa mim,oi,oi (...)

E o tenente responde:

Maria Barba, canta mais uma Morna,
Porque eu falarei com o vosso cabo-chefe,
Maria Barba, canta mais uma Morna,
Se tu fores presa, responderei por ti.

Guiné 63/74 - P13712: O meu Natal no mato (41): Natal de 1972 – CART 3494 (Jorge Araújo)

1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), com data de 24 de Setembro de 2014:


Caríssimo Camarada Luís Graça,

Espero que estejas já na plenitude da mobilidade, após a intervenção cirúrgica.

Na sequência do meu comentário ao P13645, sobre a História do BART 3873, do qual fazia parte a minha CART 3494, e conforme prometido, anexo algumas fotos do Natal/1972, para os devidos efeitos.

Porque a gestão do tempo da vida académica não é tarefa fácil, voltarei à V. companhia logo que possível.


Um abraço,

Jorge Araújo.
Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494
___________
Nota de M.R.: 

Vd. Também o último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P13711: Memória dos lugares (274): As estradas (cortadas) de Bissorã-Biambe e Bissorã-Encheia, em plena região do Oio (Carlos Fortunato, ex-fur mil trms, CCAÇ 13, Os Leões Negros, 1969/71, e presidente da direção da Ajuda Amiga)


Guiné> Mapa da província (1961) > Escala 1/500 mil > Pormenor: posição relativa de Bissorã, Biambe e Encheia, entre Mansoa, Binar e Bula, em plena região do Oio... A  vermelho, está sinalizada Queré, uma base do PAIGC, ativa em 15/3/1970. As estradas Biambe-Bissorã e Encheia-Bissorã estavam na altura cortadas.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2014)


1. Recentemente,  na Guiné-Bissau, a 26 de setembro último, à noite, no troço da estrada que liga as povoaçoes Bissorã-Encheia [, v d. mapa, a tracejado, a vermelho], um miniautocarro (vulgo, "toca-toca") pisou um engenho explosivo abandonado, provocando a morte de 23 pessoas e diversos feridos.

Especulou-se de imediato se o referido engenho, descrito  como uma "mina antitanque" (, possivelmente uma mina A/C,  reforçada, ) remontaria ao tempo da "luta de libertação/guerra colonial", se à guerra civil iniciada a 7 de junho de 1998 (*)...

De qualquer modo, e para além do trágico balanço em mortos e feridos, para nós, antigos combatentes,  este brutal acidente veio-nos trazer logo, à memória, mais uma vez, o pesadelo das minas, e suscitar a inevitável pergunta: Encheia, Bissorã, onde é que isso fica no mapa ?

Com a devida vénia, fomos à página do nosso querido amigo e camarada, grã-tabanqueiro da primeira hora,  Carlos Fortunato (ex-fur mil trms,  CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71), e presidente da direção da ONGD Ajuda Amiga), "desenterrar" esta pequena crónica, já velhinha, sobre "a estrada do Biambe - 15/03/1970".  Estamos-lhe gratos e mandamos-lhe, daqui, uma alfabravo fraterno,

Reparo, entretanto, que a CCAÇ 2531 não está representada por ninguém na Tabanca Grande,  o que é uma pena...

Sempre solidários, e lutando contra ventos e marés, o Carlos Fortunato e demais amigos da ONGD Ajuda Amiga (de que fazem parte vários membros da nossa Tabanca Grande) prepararam já o próximo Contentor de Ajuda 2015, como se pode ler aqui, em notícia de 16 de julho último:

(...) A ONGD Ajuda Amiga,  depois de ter enviado e distribuído 2 contentores em 2014, prepara agora o envio do próximo contentor em 2015, o qual está planeado para ocorrer em Janeiro de 2015, 2/3 dos bens estão já em caixas etiquetadas e prontos a seguir. (...)

Está também em marcha a campanha contra o ébola:

(...) A Ajuda Amiga juntou-se aos que combatem o ébola e iniciou este mês [outubro de 2014]  a campanha de recolha de apoios e preparação para o combate preventivo contra o ébola, com o objectivo de evitar a sua disseminação à Guiné-Bissau, o que a acontecer será uma catástrofe para a Guiné-Bissau face ao pobre sistema de saúde existente, e será também uma porta que se abre para facilitar a sua entrada em Portugal. (...)

Contactos da Ajuda Amiga: telemóvel >  937 149 143;  Email: jcfortunato@yahoo.com

(LG)

2. Memória dos lugares > A estrada do Biambe - 15/03/1970 (**)
por Carlos Fortunato  [, foto atual à esquerda]

Numa das confraternizações realizadas no bar do aquartelamento do Biambe, entre a recém chegada CCAÇ 13, e a CCAÇ 2531, o capitão Goulão ofereceu um whisky ao alferes Pimenta, e este aceitou pedindo um whisky com gelo, mas o Goulão disse-lhe que gelo era coisa que não havia.
–  Não há aqui gelo, mas em Bissorã há. –  retorquiu o Pimenta.
–  Mas não há estrada, pois esta foi cortada, quando as pontes foram destruídas. –  explicou o Goulão.
–  Abre-se uma estrada. –  insistiu o Pimenta.

A estrada de Biambe para Bissorã estava efectivamente cortada, pois tinha sido destruída a ponte que fazia essa ligação; de igual modo estava cortada a ligação de Encheia para Bissorã, pois tinha sido também destruída essa ponte; assim apenas a estrada do Biambe para Encheia estava operacional.

A CCAÇ 2531 tinha feito recentemente um reconhecimento da zona e havia ficado com uma ideia por onde esta poderia passar, que era seguir pela estrada do Biambe para Bissorã, atravessar uma pequena zona de mato, abrindo uma ligação para a estrada Bissorã-Encheia, pois a partir desse ponto, não existiam pontes e poderia chegar a Bissorã facilmente.

As boas regras mandavam que a estrada fosse picada previamente, pois poderia estar minada, e que existissem grupos a fazer segurança ao longo da mesma, dada a sua proximidade da base do Queré, mas o alferes Pimenta era um homem dos rangers, e trazia consigo uma certa dose de loucura, e o capitão Goulão, era conhecido como o "maluco do Biambe", ou seja,  foi o mesmo que juntar gasolina com fogo, e lá se partiu para Bissorã para ir buscar gelo, com uma GMC à frente a servir de rebenta minas.

Loucuras que se cometem quando se é jovem...

A guerrilha alertada esperou o regresso da coluna, e flagelou a mesma, mas foi rapidamente colocada em fuga face à resposta dada.

Esta estrada serviria mais tarde para a CCAÇ 13 regressar a Bissorã.

A história da CCAÇ 2531 narra assim esta acção, a 15 de Março de 1970:

"Acção 'Borla'

Coluna auto Biambe-Bissorã com a finalidade de abrir o itinerário entre as duas localidades.

Forças empenhada - 03 G. Comb.

A acção teve início às 14h00, durou 04 horas.

Às 17h40 quando as NT regressavam ao Biambe, 01 grupo In com cerca de 40 elementos emboscou-as, utilizando morteiro 60 e armas automáticas, durante 15 minutos na região de Mansoa 2A8 (estrada) causando 02 feridos ligeiros (01 oficial e 01 sargento)."



Publicado em 29/02/2003, por Carlos Fortunato

[Portal CCAÇ 13 - Leões Negros]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13705: (In)citações (69): Quando a rotina é traiçoeira ou o flagelo das minas que continuam a vitimar civis na Guiné-Bissau (Nelson Herbert)

(**) Último poste da série > 17 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13620: Memória dos lugares (273): Ganjola, destacamento de Catió, na margem direita do Rio Ganjola, vista pelo saudoso Victor Condeço (1943-2010), ex-fur mil mec armamento, CCS / BART 1913 (Catió, 1967/69)...Foi também lá que tombou, em combate, em 23/1/1965, o lourinhanense José António Canoa Nogueira (sold, Pel Mort 942 / BCAÇ 619, Catió, 1964/66)

Guiné 63/74 - P13710: Parabéns a você (796): José Carmino Azevedo, ex-Soldado Condutor Auto do BCAV 2868 (Guiné, 1969/71)

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Nota do editor

Último poste da série de 7 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13702: Parabéns a você (795): Jorge Rosales, ex-Alf Mil da 1.ª CCAÇ (Guiné, 1964/66)

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13709: Histórias da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71) (Luís Nascimento / Joaquim Lessa): Parte XXIV: o Artur, que arranjava sempre desculpas para se baldar... ao mato. Porque, afinal, na guerra e noutras situações-limite em que se arrisca a vida, "quem tem cu tem medo"... (Agostinho Evangelista, ex-sold inf, 1º pelotão)









1. Continuação da publicação das "histórias da CCAÇ 2533", a partir do documento editado pelo ex-1º cabo quarteleiro, Joaquim Lessa, e impresso na Tipografia Lessa, na Maia (115 pp. + 30 pp, inumeradas, de fotografias). (*)

Temos, de novo,  o ex-sold Agostinho  Gomes Evangelista, do 1º pelotão,  a contar-nos aqui uma história, com piada,  sobre um camarada, o Artur, que arranjava sempre  umas desculpas para se baldar... ao mato (pp. 84/85)... Aliás, era para isso que também serviam as doenças, da cabeça, do estômago, do cú...

 Porque afinal de contas, na guerra e noutras situações-limite em que se arrisca a vida, "quem tem cu tem medo", já lá diz o nosso povo, para logo acrescentar: "Quem tem medo, fica em casa"... E, mesmo assim, o céu pode-nos cair em cima...  (LG)

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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P13708: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (11): Viagens pelo Norte de Espanha: Bilbau é muito Bilbau, e ainda bem. E sigo para Logroño

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Setembro de 2014:

Queridos amigos,
A viagem realizou-se no início de Setembro, penso que estão esquecidos mas eram dias acalorados.
Cheguei a Bilbau com 36º, não esmoreci, não se peregrina na expetativa de um puro deleite com o Guggenheim, não há caloraça na bolanha que nos intimide. E Bilbau é mesmo Bilbau, o diálogo entre o antigo e o moderno é ousado e provocante, a cidade está bem emoldurada, as colinas dão-lhe graciosidade, passeei-me com a recordação de uma fotografia de Robert Capa, datada de 1937, Bilbau vai ser bombardeada, todos olham para o céu, uma mãe aperta a mão da filha, a Guerra Civil foi implacável com o País Basco. Adiante.

Foi viagem inesquecível. É bom partilhá-la convosco.

Um abraço do
Mário


Biblioteca em férias (11)

Viagens pelo Norte de Espanha: Bilbau é muito Bilbau, e ainda bem. E sigo para Logroño

Beja Santos

Braque é a recordação pictórica mais impressiva que trouxe do Guggenheim Bilbau. Trata-se de uma grande retrospetiva organizada por ocasião do 50º aniversário da morte do grande artista (1882-1963), foi primeiramente apresentada o Grand Palais de Paris, no Outono de 2013, cobre todas as etapas da trajetória de um dos artistas mais importantes do século XX. Criador, juntamente com Picasso e Juan Gris, do cubismo nos seus diferentes matizes, iniciador dos papiers collés, Braque veio a centrar a sua obra posterior na exploração metódica da natureza morta e da paisagem. Continua a ser considerado o pintor francês por excelência, herdeiro da tradição clássica e percursor da abstração do Pós-Guerra. Exposição gigante, impossível a digestão em horas de tão faustoso banquete, abarca o seu génio prolífico, desde o período fauvista até à sua obra tardia, parece que se conseguiu concentrar neste evento prodigioso o que nos legou de mais representativo, incluindo a sua passagem pelas artes cénicas, pela escultura, até às paisagens aparentemente rudimentares do final da sua vida. Recordo que ando com um singela câmara, não posso usar o flash e é por isso que o que vos mostro é uma mera reprodução do que podem encontrar no site do Guggenheim, mas eu devorei tudo com estes olhos que a terra há de comer, saí dali alquebrado mas radioso, de alma plena. Bonda de adjetivos, abram-se as alas para Monsieur Braque, vejamos primeiro uma natureza morta, de 1934:


Para aguçar o apetite de quem segue esta viagem, esta exposição reúne qualquer coisa como 250 peças, entre óleos, aguarelas, esculturas e outros, até material documental que esclarece outros aspetos da sua atividade, como a colaboração que teve com Picasso, a estreita relação da sua arte com a música, a cumplicidade com poetas e alguns intelectuais renomados do seu tempo. Foi também a ocasião para ver fotografias da obra de Braque da autoria de Man Ray ou Henri Cartier-Bresson. E põe-se em sequência três imagens que vão do fauvismo ao cubismo, digam lá se Monsieur Braque não ultrapassou todas as vanguardas.




É altura de sair do Guggenheim Bilbau onde pontifica o titânio como se fosse uma metalização sob a forma de escamas de peixe, estou rendido a este extraordinário edifício, a tudo o que de ousado e atrevido ele pode significar, estou deleitado com o último grande museu do século XX. E agora vou para o casco velho de Bilbau.



Contorno o rio, agora tenho tempo para ver a ponte de Santigo Calatrava e detenho-me mesmo em frente a uma estação de metro desenhado por Norman Foster, aproveitou uma velha fachada e gerou uma lógica sublime entre o antigo e o prenúncio de futuro. Atravesso uma ponte e vou até à zona antiga. Paro no Arenal, um amplo passeio que acolhe muitas das atividades urbanas. Toda esta zona teve de ser reabilitada depois das inundações de 1983, é aqui que se ergue o Teatro Arriaga. É lindo que se farta, por favor, confiram se vale a pena ou não vir aqui ouvir música, teatro ou ópera, desculpem a imagem truncada:

Entrei na zona antiga, vinha inicialmente com vontade de visitar o museu do povo basco, acabei por me desconcentrar em certos pormenores e ainda bem. Vejam esta fonte, um resquício do século XIX, pois está lá claramente escrito que foi erigida (ou refeita?) em 1800:


E sigo para o mercado, é obra de grande requalificação, gostei, passei-me entre talhos e peixarias, estancos de especialidades e de bons vinhos, os olhos também comem, fica-se com a sensação que os bilbaínos não se tratam mal com as coisas da mesa e que gostam de espaços iluminados com vitrais vistosos:


Imaginem que na montra de uma retrosaria, pasme-se, encontrei este cartaz anti-touradas, achei-o profundamente original, é daquelas coisas que nos levam a acreditar que uma imagem vale por mil palavras:


E agora vou à última etapa antes de partir de comboio para Logroño, o Museu de Belas Artes de Bilbau, alguém me disse que foi impecavelmente renovado, dá gosto ir conversar com os primitivos catalães, os flamengos, os piedosos pintores espanhóis do Século de Ouro, há lá obras de Ribera, Murillo e Zurbarán, mas de gente muito mais próxima e que tanto aprecio, como Bacon, Chillida e Tàpies. A fachada, envidraçada, tem pouco para contar. Mas um pormenor me tocou, um diálogo entre o antigo e o remodelado, uma boa escultura ergue-se, voadora, e sobrepõe-se aos painéis de vidro, impressionou-me:


O que me parecia uma visita para encarar de frente algumas obras-primas como a morte de Lucrécia, de Lucas Cranach, o Velho, transformou-se num festival em torno da arte japonesa e do japonismo, surpreendente. O museu alberga uma impressionante coleção, a chamada coleção Palacio de arte oriental, mais de 200 peças, foi um festival à volta de pinturas, estampas, sabres, caixas de todos os tamanhos, objetos Namban e cerâmica para a cerimónia do chá. Algumas destas peças são excecionais, digo-vos eu. Está na hora de partir, da estação ferroviária de Bilbau para Logroño, a capital de La Rioja, são quase três horas vendo e apreciando espinhaços e cordilheiras, e muitos quilómetros de vinhedo à beira do rio Ebro. Será um belo passeio, digo-vos eu. Mas não resisti, antes de partir, em registar este espetacular vitral, não há muito restaurado, vem do tempo em que a dignidade do trabalho era cantada e exaltada nos espaços públicos, era arte pública para desfrutar e respeitar a dignidade do trabalho de um povo. Como podem ver:


Ainda não vos disse mas arrefeceu de ontem para hoje, estão só 30 graus, o melhor é andar pela sombra, foi o que fiz pelos jardins de Bilbau, bem floridos e mantidos, e agora vou de abalada, nem pressinto a belíssima viagem que me espera e o prazer de visitar Logroño, tão agradável surpresa parecia-me impensável.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13674: Biblioteca em férias (Mário Beja Santos) (10): Viagens pelo Norte de Espanha: Bilbau e o indispensável Museu Guggenheim