segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13696: Notas de leitura (639): “Do Outro Lado das Coisas", do Embaixador João Rosa Lã (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Outubro de 2014:

Queridos amigos,
O embaixador João Rosa Lã conheceu a Guiné nos primórdios do multipartidarismo.
É um observador mordaz, tanto usa a ironia fina como a farpa envenenada. Discreteia sobre o processo eleitoral, a subsidiodependência, mostra-nos um Nino Vieira tirado das peças mais virulentas de Shakespeare, cruel e timorato, em confronto com os camaradas da luta de libertação, prendendo-lhes até familiares. Passa em revista a nossa cooperação, desvela episódios anedóticos, não terá gostado do país mas amou as gentes.
Até hoje.

Um abraço do
Mário


Embaixador João Rosa Lã na Guiné-Bissau (2)

Beja Santos

Em livro recentemente dado à estampa, intitulado “Do Outro Lado das Coisas, (In) confidências Diplomáticas”, o embaixador João Rosa Lã descreve ao pormenor a sua missão na Guiné-Bissau nos anos de 1993 e de 1994, período que correspondeu às primeiras eleições livres e democráticas que o país conheceu. Repare-se que Nino Vieira e o PAIGC não eram adeptos fervorosos da democratização, foi o termo da Guerra Fria que lhes exigiu a organização de processos eleitorais transparentes e pluripartidários, se acaso não aderissem teriam consequências funestas na cooperação oferecida pelos países desenvolvidos. Nino recorreu a todas as astúcias e manobras dilatórias com o processo eleitoral, temia os resultados das eleições livres, sabia sofrer quebra na popularidade e via em ascensão o Movimento de Bafatá e o PRS, ligado a um jovem demagogo, Kumba Yalá. Apercebendo-se que as manobras dilatórias se tinham tornado insustentáveis, Nino recorreu a Portugal, pediu ajuda ao Secretariado Técnico de Apoio aos Processos Eleitorais - STAPE. Toda a oposição apoiou. Nino Vieira fez uma comunicação pública comprometendo-se a respeitar as regras democráticas. A ONU designou o antigo presidente da Comissão Eleitoral que tinha organizado as eleições em Angola, Dr. Onofre Martins dos Santos, para dirigir toda a operação de fiscalização.

O STAPE veio a revelar-se eficaz. Enquanto esta máquina era posta em funcionamento, Nino Vieira angariava novas forças de segurança, os “Ninjas”, um elemento desestabilizador e que podia conduzir a um fiasco eleitoral. As eleições aconteceram, Nino Vieira não conseguiu a maioria absoluta, teve que ir a uma segunda volta com Kumba Yalá. Mas o PAIGC manteve uma larga maioria de assentos, o Movimento de Bafatá ficou em segundo lugar e o PRS em terceiro. E o diplomata comenta: “Apesar das chuvas intensas e das dificuldades nas comunicações terrestres, com o auxílio das duas lanchas LDM, que oferecêramos à Marinha guineense, e dos helicópteros dados pelos soviéticos, que a todo o momento ameaçavam cair, a segunda volta realizou-se sob fiscalização internacional. O ato eleitoral decorreu na maior calma, mas sem grande entusiasmo popular. As pessoas estavam cansadas, os candidatos tinham esgotado os seus argumentos e a chuva, imensa, desmobilizara muita gente”. Vencedor, Nino mantinha-se silencioso, Kumba tinha lançado foguetes antes da festa, muitas forças da oposição temiam confrontos, a situação tinha-se tornado explosiva já que os partidários de Kumba tomaram conta das ruas da capital, festejando a vitória. Finalmente Nino fez uma declaração presidencial, a oposição, em parte relutante, aceitou os resultados.

Para segunda prioridade da sua missão, Rosa Lã pretendia o reforço da posição portuguesa, sentia-se o rolo compressor da influência francesa, e comenta: “Historicamente, a França, como potência colonizadora da África Ocidental, dificilmente aceitava a presença portuguesa num território que pertencia, em sua opinião, a uma zona da sua influência exclusiva”. Os diplomatas franceses faziam tudo para bajular a elite política, não havia projeto de cooperação que não incluísse uma prebenda, ao tempo a administração guineense tinha um número impressionante de Peugeots. Os problemas não acabavam aqui, Bissau, sempre a sonhar com milagres, queria substituir o peso pelo franco CFA, como veio a acontecer. Os franceses também tudo fizeram para afastar a TAP e para que a TAGB fosse integrada na AIR-AFRIQUE, operação que falhou porque esta última abriu falência. Rosa Lã, além de mordaz é por vezes chocarreio, como exemplifico: “O comportamento do embaixador francês merece uma referência especial. O homem viera desesperado para Bissau, depois de lhe terem prometido a missão em Reiquejavique, na Islândia. Descendente de uma família islandesa, o embaixador adorava o frio e a escuridão. Na sua residência, moderníssima, toda de vidro feita, com um gigantesco pé direito, mais parecendo uma gare de aeroporto, punha a temperatura ambiente a níveis dos da Islândia. Quando tínhamos a desdita de nos deslocarmos até lá, víamo-nos obrigados a vestir roupas de inverno, incluindo cascol e casaco grosso. Dava o homem a desculpa de que a aparelhagem do ar condicionado ficara mal dimensionada e ele era obrigado a ter aquela temperatura em casa”. E é igualmente impiedoso com a falta de coluna vertebral na política externa, a Guiné-Bissau vendia despudoradamente o seu reconhecimento diplomático aos Estados que dele necessitassem e mais pagassem: “Periodicamente, Bissau abria relações com o Estado e cortava com o rival. Passados uns anos, denunciava esse reconhecimento e recuperava as relações com o outro. E assim sucessivamente, desde que essa mudança desse lugar a uma compensação conveniente”. Rosa Lã desce por vezes ao nível do pátio e soalheiro, fala expressamente em Vasco Cabral sempre a pedinchar subsídios ou bilhetes de avião para Lisboa, era a imagem descarada da subsidiodependência.

O diplomata passa em revista as jóias da cooperação como o projeto do Quebo, uma experiência piloto em que fazia investigação sobre novas espécies e culturas a introduzir: “Quando saí da Guiné, o projeto derrapava e os abutres das cooperações concorrentes tentavam absorvê-lo. Apesar de todas as vicissitudes por que a Guiné-Bissau passou, ainda hoje aquele projeto se mantém e continua a ser o melhor projeto em matéria agrícola, da nossa cooperação em África”. Amante da pequena história e da historieta picante, descreve Mário Soares num almoço oferecido às delegações dos países lusófonos, após a cerimónia de posse de Nino Vieira, Soares deliciava-se vagarosamente com digestivos e charutos, fazendo pagar a Nino a indelicadeza da véspera, em que o deixara à mesa para ir acompanhar ao aeroporto o chefe de Estado do Senegal. Os últimos meses da sua estadia deram para perceber como o governo de Saturnino Costa caminhava para o colapso, faltava combustível, havia um surto de cólera, as tensões político-militares cresciam. Saído de Bissau, foi encaminhado para São Bento, tornou-se assessor diplomático do primeiro-ministro Cavaco Silva, de quem não esconde a admiração e a colaboração dada até para a sua candidatura presidencial. Rosa Lã não voltou a África, a não ser em viagens meteóricas. O povo guineense e o seu lindo sorriso ficaram-lhe no coração, di-lo abertamente.
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Notas do editor

(*) Vd. poste de 3 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13685: Notas de leitura (637): “Do Outro Lado das Coisas", do Embaixador João Rosa Lã (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 4 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13691: Notas de leitura (638): Algumas considerações às perguntas deixadas por Rui A. Ferreira no seu livro "Quebo - Nos Confins da Guiné" a propósito da retirada do Guileje (Coutinho e Lima)

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

Gostei de rever "retratos" de franceses, guineenses e cooperantes.

Sem conhecer o livro estou convencido que BS leu-nos o mais importante.

Os guineenses não gostam muito que "tugas" os observem com muita atenção, como está fazer este antigo embaixador.


Antº Rosinha disse...

Gostei de rever "retratos" de franceses, guineenses e cooperantes.

Sem conhecer o livro estou convencido que BS leu-nos o mais importante.

Os guineenses não gostam muito que "tugas" os observem com muita atenção, como está fazer este antigo embaixador.