sábado, 28 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1220: Guidaje, Maio de 1973: o depoimento do comandante de um destacamento de fuzileiros especiais Alves de Jesus (Pedro Lauret)

1. Mensagem de Pedro Lauret:

Caro Luís,

Envio-te o email do Alves de Jesus, hoje capitão-de-mar-e-guerra, na altura 1º tenente comandante do DFE4 [Destacamento de Fuzileiros Especiais, nº 4]. Trata o texto conforme entenderes, com a sabedoria que te é conhecida.

Envio-te tal qual o recebi pois é preferível não ser mexido por mais que uma pessoa, se for caso disso. Falei com ele por tm que me autorizou a publicar o que quiséssemos. Penso que ainda não estará disponível para pertencer à tertúlia, o tempo poderá fazê-lo mudar de ideias.

Um abraço
Pedro Lauret


2. Mensagem de Alves de Jesus:

Caro Pedro Lauret:

De facto já lá vão uns largos anos que o nosso contacto se perdeu, mas a vida é mesmo assim e cada um tem de percorrer a sua.

Relativamente à minha passagem pela Guiné (73/74), comandando o DFE 4, ela foi uma etapa da minha carreira militar bem marcante e indelével. As diversas situações de perigo porque passámos jamais serão esquecidas, muito embora compreenda que as mesmas tenham sido enfrentadas, por quem as protagonizou, de modo muito diferente.

Tudo aquilo ficou dependente da sensibilidade de cada um… pela minha parte sofri bastante e os pesadelos ainda surgem durante a noite e já vão escasseando à medida que o tempo passa.

Portugal enfrentou a guerra colonial em várias frentes e, sem menosprezo por aqueles que combateram em Angola e Moçambique, a guerra levada a cabo na Guiné, pelas suas características, foi, na minha opinião, a mais difícil e perigosa de enfrentar.

Nós, os que escolhemos, por vocação, a carreira das armas, não nos podemos queixar face aos milhares de cidadãos que partiram compulsivamente para combater nas ex-colónias.

Reflectindo sobre a minha vida militar e pelos diversos cargos que ao longo da mesma fui chamado a desempenhar, confesso que o Comando do DFE 4 foi, de longe, o que mais me marcou. Senti, de modo inequívoco, o peso da responsabilidade nas decisões a tomar e a noção das consequências que as mesmas poderiam ter sobre a vida dos comandados.

Senti uma aproximação que, presumo única entre o Comandante e o militar mais moderno da Unidade, ambos seres humanos, sofrendo as mesmas carências, executando o mesmo esforço físico e sujeitos de modo igual ao mesmo perigo.

Nestas condições a acção de comando é mais vulnerável, mas quando bem desempenhada, tem uma apreciação mais justa e respeitada por parte dos subordinados.

Sobre o que me solicitas, vou limitar-me a transcrever a parte do livro Guiné 1968 e 1973 (pág. 82/84) do Cor. Nuno Mira Vaz com a qual me identifico e por nela ter tido intervenção directa na tentativa do rompimento do cerco a Guidaje:


" (...) Na manhã de 22 de Maio partiu de Binta para Guidaje nova coluna logística, com a missão de, na volta, evacuar os militares e os civis feridos que ali tinham vindo a acumular-se por impossibilidade de evacuação. O deslocamento dos feridos parecia finalmente possível, face aos resultados alcançados no decurso da operação Ametista Real, a qual, de acordo com prognósticos generalizados, teria provocado uma grande desorientação nas fileiras do inimigo.

"Conforme planeado, a CCP 121 (1) encarregava-se da protecção próxima, a oeste da estrada Binta – Guidaje, cabendo a um Destacamento Misto de Fuzileiros (quarenta e dois elementos dos DFE´s nº 1 e nº 4), sob o comando do 1º Tenente AN/FZE Albano Alves de Jesus, a protecção imediata, a leste. A responsabilidade pela picagem do troço de itinerário entre Binta e Genicó foi atribuída a um grupo de combate da Companhia de Caçadores nº 14, da guarnição de Farim; daí para a frente, a missão ficaria a cargo de um pelotão reduzido (treze elementos) da Companhia de Caçadores nº 3.

"O deslocamento iniciou-se pelas sete horas e trinta minutos, tendo-se desenrolado sem incidentes até Genicó, embora em marcha lenta, justificada pela necessidade de se proceder a uma picagem cuidadosa do itinerário. Além disso, foi também necessário utilizar um desvio com cerca de mil metros de extensão, para contornar o local onde se encontravam completamente destruídas e calcinadas várias viaturas, testemunhas silenciosas da violência registada em anteriores tentativas de reabastecimento a Guidaje.

"Transposto o desvio e percorridos menos de cem metros sobre o itinerário normal, um elemento da Companhia de Caçadores nº 3 accionou uma mina anti pessoal, reforçada com uma mina anti carro, que lhe causou morte imediata. A relutância com que os picadores vinham procedendo à picagem do itinerário, e que tem de se compreender face à sucessão de acontecimentos dramáticos ocorridos nas últimas semanas, tornou-se mais viva, forçando o 1º tenente Alves de Jesus e o alferes Gomes Rebelo, da Companhia nº 3, a deslocarem-se para a testa da coluna, onde podiam acompanhar de perto a picagem – um dos trabalhos mais perigosos e desgastantes em qualquer acção terrestre.

"Dez metros adiante, foi accionada outra mina. A explosão provocou a morte do picador, tendo além disso ferido com gravidade dois elementos e projectado pelo ar, embora sem consequências pessoais, ambos os oficiais e radiotelegrafista da coluna.

"Informado, em Guidaje, da ocorrência, o tenente coronel Correia de Campos deu instruções para que se retomasse a progressão logo que estivesse concluída a assistência aos feridos, se possível com maior celeridade e de preferência utilizando um desvio, uma vez que o itinerário normal aparentava estar abundantemente minado. Porém, no decurso do tratamento dos feridos, deflagrou nova mina, desta feita colocada fora do itinerário, que provocou mais um ferido muito grave. Durante o atendimento a este ferido, foi detectada mais uma mina na orla do itinerário, a qual não foi levantada por não existir na coluna pessoal habilitado para o efeito.

"Atendendo ao desgaste sofrido pela coluna, foi decidido reforçá-la com um grupo de combate que saiu de Genicó e se lhe juntou cerca das 12H00. A disposição geral era de grande desalento, sendo especialmente preocupante a situação de um dos feridos, o qual perdia muito sangue por ter a perna esquerda decepada um pouco abaixo do joelho, além de ferimentos nos braços e no olho direito. Tendo reavaliado a situação, o comandante do COP 3 deu ordem para abortar o reabastecimento, pelo que a coluna regressou ao ponto de partida, que atingiu cerca das 17H45" (...).

O ferido muito grave atrás referido, com a perna decepada, após ter sido devidamente assistido em Bissau, foi evacuado para Lisboa para tratamento especializado e colocação de prótese. Recordo tê-lo encontrado há alguns anos em pleno Rossio (Lisboa). Referiu-me que já ia na 3ª prótese de adaptação e desempenhava actividade profissional num armazém.

Para selar o nosso reencontro fomos beber alegremente uma ginginha.


Caro amigo e camarada


Para finalizar: aprendi que a amizade nascida das vivências resultantes do perigo e das vicissitudes da vida são eternas!


Forte abraço do

Alves de Jesus

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

Guiné 63/74 - P1219: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): Um médico e um amigo, o Dr. David Payne Pereira

Photobucket - Video and Image HostingGuiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Mansambo > 1968 ou 1969> O Alf Mil Médico David Payne Pereira faz uma pequena cirgurgia a um militar da CART 2339, em condições precárias, à luz da vela... A qualidade da foto é fraca mas tem algum valor documental... (LG).

Foto: © Torcato Mendonça (2006) . Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

Continuação da publicação do álbum de fotografias do Torcato Mendonça, que ele teve a gentileza de me fazer chegar, pelo correio, através de um CD-ROM. Chamou-lhe fotos falantes (1) .

O Torcato foi Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69.

5 . Um médico e um amigo, o Dr. Payne (2)

Não se acomodava ao conforto de Bambadinca e ia visitar as Companhias [do Sector L1]. Aqui veio tratar da saúde do pessoal de Mansambo. Á luz de fraca lâmpada faz uma pequena cirurgia a um sobrolho de um militar.

Tive agora conhecimento do seu desaparecimento (3). Lastimo profundamente.

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 11 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1167: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (4): Candamã, uma tabanca em autodefesa

(2) Alferes Mil médico, da CCS do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Era psiquiatra. Referido pelo Beja Santos no seu post de 24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)

(...) "Não sei se deva contar como foi a nossa retirada até Finete, para vir buscar reforços. Os soldados válidos ficaram a tomar conta dos feridos. Retirei com crianças, com uma granada em cada mão. Em Bambadinca, encontrei a solidariedade do costume, regressei a Finete com o médico, David Payne (já falecido) e com o Alferes Reis, o sapador (nunca se recompôs da guerra, aparece-me no meu trabalho de vez em quando, sofre da mania da perseguição) e no dia seguinte, após a vossa evacuação por helicóptero, regressei a Missirá. Era minha intenção escrever-te, e depois visitar-te no Hospital Militar" (...).

(3) Em 1999, o Dr. David Payne Pereira foi entrevistado para a revista do Instituto do Consumidor (nº 81, 1999). No respectivo sítio, na Net, está disponível em linha um dossiê sobre o stress, em que o nosso amigo Payne é citado como médico especialista em psiquiatria, "com 30 anos de experiência". Creio que, em Bambadinca, foi substituído pelo Dr. Saraiva (4)

(4) Vd. post de 29 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P924: SPM 3778 ou estórias de Missirá (4): cão vadio disfarçado de tigre (Beja Santos)

Há uma referência, nas minhas notas, ao médico da CCS do BCAÇ 2852 ("que teve vários, entre eles o David Payne Rodrigues Pereira, psiquiatra"). Na altura (Março de 1970)era o Alf Mil médico Saraiva (que reside em Vila Nova de Gaia, segundo preciosa informação do nosso camarada Humberto Reis):

(...) "Veio no helicóptero de reabastecimento com o Beja Santos, para prestar assistência médica aos casos mais graves de intoxicação (devido ao ataque de abelhas) e de desidratação... Acabou por ficar em terra uma vez o que o helicóptero, danificado, já não voltou... Deixou o Beja Santos no Xime e zarpou para Bissau...

"O Dr. Saraiva acabou por aguentar, de pé firme, o resto do dia e toda a noite e toda a manhã, acompanhando-nos na nossa extremamente penosa vaigem de regresso, até ao aquartelamento do Enxalé. Onde quer que ele esteja, daqui vai um abraço para ele. Era muito raro um médico ir para o mato. O mesmo acontecendo com os furriéis enfermeiros...

"O Zé Luís Vacas de Carvalho, que foi comandante, em Bambadinca, do Pelotão Daimler 2046, lembra-se bem dele: "Estivémos com ele`há 2 anos em Ferreira do Zêzere. Penso que é médico (ainda) em Gaia. Lembro-me uma vez que o Piça [, 2º sargento da CCAÇ 12,] entornou um jipe cheio de gaiatos e, como eu queria ir para medicina (5), estive a ajudá-lo a fazer curativos"...

(5) Referência a outros médicos no nosso blogue: vd. post de 11 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P951: Antologia (47): Um médico cubano no Morés e no Cantanhez (Domingo Diaz, 1966/67)

Que eu saiba, temos até agora apenas dois médicos na nossa tertúlia: O Dr. Vitor Junqueira e o Dr. Sadibo Dabo....

sexta-feira, 27 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1218: Sargento Cipriano: Morrer em Nova Lamego (José Martins, CCAÇ 5)

Guiné > Zona Leste > Gabu > Canjadude > 1969 > CCAÇ 5 - Os Gatos Pretos (1968/70) > O Fur Mil Transmissões Martins com o seu amigo Sargento Cipriano.

Foto: © José Martins (2006) . Direitos reservados.


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Guiné > Zona Leste > Nova Lamego > 1970 > Povoação e quartel velho de Nova Lamego (Gabu). Principais edifícios civis e militares (1).

Fotos: © Tino Neves (2006). Direitos reservados. Foto alojadasno álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.



Mensagem do José Martins (ex-fur mil trms, CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70), com data de


Caros Camaradas:

Regressei ao passado com o post nº 1160 [ , incluindo a foto com o complexo de edifícios do quartel velho]. Nesse complexo, no primeiro andar do edifício no espaço que está coberto
pela mangueira, situava-se o comando e secretaria da CCAÇ 5, desde 1 de Abril de 1967 até finais de 1968.

No edifício quadrado, que se situa entre entre as setas 4 e 5, no canto inferior direito da foto e com árvores nas traseiras, ficava a casa dos Graduados (messe e dormitório) dos oficiais e sargentos que estavam na sede da companhia e em passagem por Nova Lamego, vindos de (ou em regresso a) os destacamentos de Cabuca, Canjadude e Cheche.

Mas a razão do mail é a seguinte, dentro do nosso espírito de pormenorizar os factos: o Sargento que faleceu no ataque a Nova Lamego, e indicado como pertencente à CCAÇ 5, mais não é que o nosso Valente Sargento Cipriano que é referido num post do nosso blogue (2).

Nessa altura, apesar de já não pertencer à Companhia, continuava (e continuaria) a ser um militar de referência da unidade.

Em anexo segue o que consta sobre ele, nos elementos por mim pesquisados e sintetizados, e que virão a integrar a história da Companhia de Caçadores nº 5 que, apesar de nunca estar concluída - pois haverá sempre factos novos a integrar-, está prestes a tomar uma forma quase definitiva.

Um abraço

José Martins

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Os homens da companhia > Africanos > Cipriano Mendes Pereira
2º Sargento Miliciano Enfermeiro, número mecanográfico 82034859, já se encontrava ao serviço da Companhia em finais de 1969, tendo assumido as funções de Comandante da Secção de Saúde.

Além das actividades inerentes à sua função, colaborou na construção do edifício destinado a Posto de Socorros e Enfermaria. Foi também professor das escolas primárias das crianças que residiam na povoação.

Foi abatido ao efectivo da Unidade em 10 de Outubro de 1970 por ter sido transferido para o Hospital Militar 241 / CTIG, em Bissau.

Veio a falecer em combate na noite de 16 de Novembro de 1970, durante a flagelação a Nova Lamego.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post 9 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1160: Lembranças de Nova Lamego (Tino Neves, CCS/BCAÇ 2893): A fatídica noite de 15 de Novembro de 1970

(2) Vd. post de 4 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P839: O valente Sargento Enfermeiro Cipriano, da CCAÇ 5, morto em Nova Lamego (José Martins)

Guiné 63/74 - P1217: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (6): Sinchã Lomá, o Spínola e o alferes que não era parvo de todo

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Guiné > Zona Leste > Sector L5 > Galomaro > Dulombi > CCAÇ 2405 (1968/70) > Embora pertencente ao BCAÇ 2852 - cujo comando e CCS estavam sedeados em Bambadinca -, a CCAÇ 2405 não teve grandes contactos com o pessoal da CCAÇ 12. Daí que só agora, no encontro da Ameira, é que eu tive o prazer de conhecer pessoalmente o Rui Felício, a par de outro baixinho de Dulombi, o Paulo Raposo. Esta foto do Rui, sentado num abrigo - em princípio, de uma das tabancas de autodefesa abaixo referidas, em 1969 - , foi-nos enviada pelo Victor David, seu camarada, outro alferes da companhia e nosso tertuliano, que também terá servido de fotógrafo de ocasião, segundo presumo. Não tenho informações exactas sobre a data nem o local. (LG)

Foto: © Victor David (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


1. Mensagem do Rui Felício, acompanhada de mais duas das suas estórias deliciosas (1), das quais publicamos hoje a primeira. Obrigado ao Rui pelo seu generoso contributo com vista a manter a chama viva na nossa caserna virtual... (LG)

Meu Caro Luis Graça:

Sem nenhuma razão especial, lembrei-me de te escrever de novo. Apenas porque cada dia que passa me sinto mais ligado ao blogue. Cada vez mais admiro o teu trabalho. Especialmente depois do encontro da Ameira que possibilitou que ao virtual se sobrepusesse o real. E, por isso, sinto necessidade de manter a chama viva, de te dizer e a todos os que regularmente aqui escrevem, que a chama deve sempre manter-se acesa... Não precisa de ser muito forte, basta que que nunca se apague, que tenha uma luz e um calor constantes....

Anexo duas estórias simples já escritas há muito tempo, que terás a paciência de ler e avaliar.

Um abraço

Rui Felício


2. Sinchã Lomá, o Spínola e o alferes que não era parvo de todo,

© Rui Felício (2006)

SINCHÃ LOMÁ
3º Gr Comb
CCAÇ 2405
Agosto 1969


Sinchã Lomá é uma pequena tabanca a Sudoeste de Dulo Gengele e esta por sua vez fica a Sul de Pate Gibel [vd. as três localidades na carta de Duas Fontes].

Quando a CCAÇ 2405 chegou a Galomaro, destacou três dos seus Grupos de Combate para regiões circundantes da sede da Companhia com a missão de marcar posição no terreno e fazer ao mesmo tempo uma espécie de guarda avançada para protecção da Companhia.

A mim, coube-me ir para Pate Gibel, a tabanca mais a sul de Galomaro.

Depois de ter feito o reordenamento das populações próximas, concentrando-as em Pate Gibel, e após ter dado uma rudimentar instrução militar e distribuição de armamento (Mausers) aos homens mais jovens da tabanca, bem como construção de abrigos e colocação de arame farpado, fui enviado para Dulo Gengele para fazer a mesma coisa.

Após a conclusão da missão em Dulo Gengele, o meu pessoal tinha já as rotinas e a experiência necessárias neste tipo de trabalho.

Esclareço que paralelamente a estas missões continuávamos a fazer os patrulhamentos e operações programadas pelo Batalhão, o que trazia os soldados algo descontentes e cansados… Mas é a vida…

Porque o Agrupamento de Bafatá achava que o trabalho tinha sido bem feito em Pate Gibel e em Dulo Gengele, mandaram-me repetir a dose, desta vez em Sinchã Lomá… O mal na tropa é a gente dar nas vistas… Seja pelo bem, seja pelo mal…

Esta tabanca estava completamente isolada e só se encontrava tropa a muitos quilómetros de distância fosse em que sentido fosse: a Oeste, Samba Juli, perto de Bambadinca; a Sudoeste, Mansambo, a meio caminho entre Bambadinca e o Xitole, a Sul, o Saltinho, a Nordeste, Galomaro.




Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca)> 1969 ou 70 > Vista aérea da tabanca de Samba Juli > Em Fevereiro de 1969, aquando o desastre do Cheche, a CCAÇ 2405 estava sedeada em Galomaro, com um pelotão em Samba Juli, outro em Dulombi e um terceiro em Samba Cumbera. Samba Juli fazia parte de um conjunto de tabancas fulas, em autodefesa no regulado do Corubal, ao longo da estrada Bambadinca-Xitole, onde se incluía Dembataco e , Moricanhe (a oeste da estrada), Samba Culi, Sinchã Mamajã, Sare Adé, Afiá, Candamã, entre outras (a leste)... Tudo nomes que ainda ressoam estranhamente nas nossas cabeças: em muitas delas contávamos as estrelas à noite e esperávamos o alvorecer não sem alguma ansiedade... Nós e os nossos queridos nharros da CCAÇ 12. (LG)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados. Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)



Chegado a Sinchã Lomá, iniciei os trabalhos, dando prioridade, por questões de segurança própria, à organização da defesa da tabanca, estendendo arame frapado em redor do perímetro idealizado, e marcando os locais dos futuros abrigos, que decidi que fossem oito.

Ao mesmo tempo, seleccionei trinta recrutas entre os homens da população e incumbi o furriel Coelho de lhes dar alguma instrução militar e manuseamento do armamento que lhes iria ser distribuído. O objectivo era criar condições de autodefesa à população, evitando assim mais um destacamento militar do exército para o qual não havia efectivos suficientes.

Enquadrada a tabanca e os objectivos, passo à história propriamente dita.

Dada a experiência anterior já atrás referida, demorámos menos de metade do tempo que tínhamos gasto nas tabancas anteriores, para dar a missão como concluída. Para isso contribuiu também o dinamismo do Chefe de Tabanca que, ao contrário do de Dulo Gengele, colaborou activamente com a tropa, mobilizando praticamente toda a população para os trabalhos de construção dos abrigos.

Para quem não saiba, os abrigos eram buracos rectangulares, escavados até cerca de 1,20 de profundidade, em cujos cantos se colocavam quatro bidons cheios de terra que serviriam de pilares, nos quais iriam assentar os troncos de palmeira que constituíam a estrutura do telhado.

Feito o esqueleto do abrigo, cobria-se o telhado com uma camada de terra de cerca de 30 cm.

Tudo isto, sem cimento, nem máquinas e com rudimentares ferramentas ( pás, picaretas, martelos, pregos, serras manuais e pouco mais… ). E um Unimog que com o seu guincho eléctrico era de extrema utilidade. Tudo o resto, à base de esforço braçal…


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Missirá > 1968 ou 1969> O comandante do Pel CCAÇ Nat 52, alf mil Beja Santos, dirige a construção de um abrigo

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


Porque eu sabia que após a conclusão da missão, regressaria para a sede da Companhia, interessava-me despachar-me o mais rapidamente possível.

Por isso, logo que achei que o trabalho estava feito, mandei um rádio para a Companhia, solicitando que alguém fosse vistoriá-lo para me ser dada a ordem de regresso.

Alguns dias depois, finalmente ouço o ruído de um helicóptero aproximando-se e fiquei ansioso para que tudo fosse visto e achado conforme.

O Heli pousou, pilotado pelo meu grande amigo de sempre, o Alferes Jorge Félix, mais tarde um quadro importante da RTP do Monte da Virgem em V. N. de Gaia.

Fiquei, porém, surpreendido pelas altas patentes que o acompanhavam! O Spínola, o Coronel Hélio Felgas (Cmdt do Agrupamento de Bafatá ) e o Capitão Almeida Bruno, à época oficial às ordens do Velho.

O Spínola dirigiu-se-me, cumprimentou-me e encaminhou-se para o abrigo mais próximo, consertando o monóculo e apoiando-se ritmadamente no seu bastão, à medida que ia caminhando.

Olhou, mirou, deu uma volta ao abrigo e, com ar admirado, deu uma segunda volta agora em sentido contrário… Dirigiu-se a um outro e repetiu a vistoria.

Batia nervosamente várias vezes com o bastão na terra poeirenta, olhava com ar inquisidor o Capitão Bruno e o Coronel Felgas e fez-me sinal para me aproximar…Pelo ar dele, senti-me pequenino e inseguro, embora sem ainda descortinar a razão da sua indisposição.

Olhou-me fixamente nos olhos, ficou em silêncio durante uns segundos e depois as palavras saiam-lhe da boca como se fossem pedras:

- Vocé é o alferes mais original da Guiné!

A frase seguinte, continha a explicação da sua irritação:

- Para que raio servem abrigos sem qualquer entrada?!

Nem me deu qualquer hipótese de resposta. Virou-me as costas e foi cumprimentar demoradamente o Chefe de Tabanca ao lado do qual se aglomeravam homens, mulheres e a criançada da aldeia.

E começou a arengar meia dúzia de frases feitas que ele adorava proferir :
- Vocês são o bom povo da Guiné, donos desta bela terra, que se desenvolverá harmonicamente sob a bandeira portugues... (E etc… etc… etc…).

Entretanto, enquanto decorria a parte política, o Capitão Almeida Bruno falou comigo, também ele intrigado, e perguntou-me porque razão eu mantinha os abrigos fechados, como se não tivessem portas de entrada.

Expliquei-lhe que os queria manter limpos e apresentáveis para a vistoria, estando previsto que, logo que aprovado o trabalho, eu retiraria uma série de grades que estavam colocadas nas futuras entradas dos abrigos, para ficarem definitivamente operacionais. É que se o não tivesse feito, à semelhança do que se tinha passado nas outras tabancas onde tinha estado, a população metia lá dentro os animais domésticos (cabritos, galinhas, patos, etc. ) que conspurcavam aquilo tudo. Para evitar isso, fechei provisoriamente os abrigos…

O Almeida Bruno, conhecedor profundo do estilo do General, disse-me que essa explicação não servia, e o Caco estava chateado que nem um perú. E que isso podia redundar em qualquer coisa desagradável para mim…

E aconselhou-me a ir explicar ao Spínola antes de ele embarcar de novo no Heli, o seguinte: (i) que eu tinha andado a ler uns livros sobre a guerra do Vietname; (ii) e que, num desses livros tinha ficado a saber que os americanos construíam uma grande quantidade de abrigos falsos, onde de facto não iriam estar quaisquer efectivos militares; (iii) e que o faziam para que o inimigo, quando atacasse, dispersasse o fogo por inúmeros pontos, muitos dos quais seriam meramente fictícios, diminuindo assim o poder de fogo e a sua eficácia; e, finalmente, (iv) que fora por isso que tinha decidido levar à prática a referida táctica.

- Por azar meu, logo aqueles que o General Spínola tinha vistoriado!

Estudada a lição, quando o Spínola, depois de discursar à população, se aproximou de mim para se despedir, pedi-lhe licença para lhe explicar o que atrás ficou dito. Não fez qualquer comentário e entrou no Héli que de imediato levantou voo, deixando uma enorme nuvem de pó sobre as nossas cabeças…

E um grande aperto no meu coração… O pior castigo que poderia sofrer era o de me cancelarem as férias na Metrópole já programadas para o Novembro próximo…

Recebi, uma semana depois, ordem de regresso à base e logo que cheguei, perguntei ao Capitão se havia novidades a meu respeito… Disse-me que não… Pelo contrário, o Felgas até tinha elogiado o meu trabalho. Mas nada comentou àcerca do incidente com o Spinola.

Enfim, do mal o menos… Ausência de notícias, boas noticías - costuma dizer a sabedoria popular.

Andava cansado e preocupado com tudo isto e pedi ao Capitão que me deixasse ir espairecer uns dias a Bissau, a pretexto de uma qualquer consulta externa que o pudesse oficialmente justificar.
Ao contrário do que era hábito, O Capitão condescendeu e dois dias depois rumei e Bafatá e daqui apanhei uma boleia num velho Dakota, para Bissau.

Depois de aterrar em Bissalanca, fui à messe de oficiais da Força Aérea e ali encontrei o Jorge Félix. Enquanto bebericávamos um copo, contou-me o que se passou no helicoptero, logo que levantaram voo de Sinchã Lomá.

- Eh pá… Tiveste muita sorte! – começou por me dizer… - O Velho estava com cara de poucos amigos quando olhou para os malfadados abrigos, mas logo que se sentou no helicóptero, depois de ouvir a tua versão táctica, olhou de soslaio para o banco a seu lado onde estava o Almeida Bruno e disse-lhe:

- Oh, Bruno aponta aí! Este alferes não é parvo de todo!

E pronto, a minha ansiedade distendeu-se.. . Percebi que, graças ao Capitão Almeida Bruno, as minhas férias de Novembro mantinham-se intactas… Como de facto se mantiveram!


Rui Felício
Ex-Alf Mil Inf
3º Grupo de Combate
CCAÇ 2405

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Nota de L.G.

(1) Vd. último post, de 18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1085: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (5): O improvisado fato de banho do Alferes Parrot na piscina do QG

Guiné 63/74 - P1216: A batalha (esquecida) de Canquelifá, em Março de 1974 (A. Santos)

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Guiné > Zona Leste > Sector L3 >Nova Lamego > O António Santos no seu posto de rádio. Operador de mensagens, por ele passavam muitas notícias da guerra. Era também ouvinte frequente da Rádio do PAIGC, localizada em Conacri, a que as NT chamavam a Maria Turra (1).

Texto e foto: © António Santos(2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


1. Mensagem do A. Santos, com data de 23 de Outubro:

Amigo Luís e caros tertulianos:

Eu já tinha abordado este assunto, embora superficialmente com o Luis Graça, mas com a questão actual sobre Guidaje ele veio ao de cima: todo o tempo passado na Guiné foi mau, penso que para todos e em qualquer sector, independentemente do ano em que por lá passámos, mas o ano de 73 e os últimos meses de 74, foram péssimos. Tenho a certeza que para isso contribuiu e muito a morte de Amílcar Cabral: o PAIGC ganhou mais força e apoios e o resultado estava-se a ver.

Eu ouvia com muita assiduídade a Maria Turra, embora os homens de Bissau empastelassem a frequência rádio, e sei que tudo o que nos prometeu, após a morte de Amílcar [,em 20 de Janeiro de 1973], cumpriu-se, acho até se aquilo dura mais uns tempitos, teríamos que fazer as malas com antecedência.

Um Alfa Bravo para todos.

A. Santos
Ex-Sold Trms
Pel Mort 4574/72
Zona Leste, Sector L3, Nova Lamego,
1972/74


2. Texto do A. Santos


Camarada, Luis Graça.

Estou há muitos anos a guardar na minha memória vários acontecimentos que se passaram na Guiné. Penso que isso acontece com todo o pessoal. Vivi à distância os acontecimentos de Guidaje e Guileje, mas a guerra passava-me pelas mãos, porque em Nova Lamego fui sempre operador de mensagens e não transmissões que de facto foi a especialidade que me despejaram em Campolide - Lisboa.

Acho que chegou o momento para contar um deles. Além de Guidaje e Guileje/Gadamael houve uma terceira ofensiva forte, levada a cabo pelo PAIGC no final da guerra, mas desta vez no Leste, no início do ano de 1974, mais precisamente no sector L4 e L6. Alvos preferenciais: Bajocunda, Copá, Mareué e Canquelifa, sem esquecer outros.

Copá foi extinto em 14 de Fevereiro de 1974, após violentas flagelações, Mareué idem em 11 de Março de 1974, mas o aquartelamento mais sacrificado foi o de Canquelifá, que sofreu flagelações a toda a hora. Neste caso a arma mais utilizada foi o morteiro 120, e houve abrigos que não resistiram.

A 20 de Março de 1974, entrou em cena o Batalhão de Comandos Africanos, com as três companhias que dele faziam parte integrante. Saíram de Nova Lamego em coluna composta por viaturas militares e civis e dirigiram-se para o local. A operação durou 3 dias, de 21 a 23 de Março 1974. Segundo os canhenhos militares, capturaram 3 Mort. 120, 1 RPG, 2 espingardas, 367 granadas de Morteiro e deixaram 26 mortos do lado IN (do nosso lado nada dizem)...

Mas cá o rapaz, no dia 22 [de Março de 1974], como não fazia nada, e porque o condutor da ambulância era do meu pelotão e foi chamado à pista, eu fui com ele. Chegados ao local, era um vaivém de helicópteros que traziam mortos e feridos. Eu dei uma mãozinha para pegar nas macas. Retirava dos Helis e, segundo instruções do médico, ora pousava na pista (estava morto), ora colocava num Dakota que estava logo ali (estava muito ferido)... Vi pernas destroçadas por estilhaços de não sei de quê!

Isto foi só em Nova Lamego porque em Piche não soube, nem quis saber e não sei o que se passou.

Um Alfa Bravo

A. Santos
_________
Nota de L.G.:
(1) Maria Turra era a locutora de serviço da Rádio do PAIGC, localizada em Conacri: vd. artigo do jornalista Joaquim Vieira, na edição do Expresso de 21 de Abril de 1984 > Como os rapazes viveram a paz e a guerra
(...) "Os tempos da fraternidade estavam afinal mais próximos do que alguém podia imaginar no batalhão. Onze dias depois da Páscoa, na manhã de 25 de Abril, começaram a chegar a Sedengal notícias de um golpe de Estado em Lisboa. As primeiras informações foram recebidas através das emissões em português de Rádio Conakry. Alguns soldados não sabiam o que era um golpe de Estado, e procuraram informar-se. Algumas horas depois, a locutora - que os portugueses tratavam por Maria Turra - anunciou a prisão de Américo Tomás e Marcelo Caetano. A gaja está mas é maluca, houve quem comentasse" (...).
Por Maria Turra também era conhecida, entre as NT, a viúva de Amílcar Cabral: Vd. também post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)(Magalhães Ribeiro)

(...) O Eduardo [Magalhães Ribeiro] diz que ficou famoso pela sua foto a arriar a bandeira verde-rubra , em Mansoa, na presença da Maria Turra (sic), como era conhecida entre os tugas - com o sentido de humor, que é típico da caserna, mas com respeito e até carinho - a viúva do Amílcar Cabral, que assistiu com outros destacados dirigentes do PAIGC a este momento histórico" (...).

Guiné 63/74: P1215: Histórias de Vitor Junqueira (4): Irmãos de sangue, suor e lágrimas









Guiné > Região do Oio > CCAÇ 2753 (197o/72) > O Vitor Junqueira, enquanto alferes miliciano de uma companhia açoriana que fazia parte do COP 6, cujo comando era Mansabá. A sua missão principal era assegurar a protecção dos trabalhos da estrada Mansabá – Farim, em ordem a garantir um ritmo acelerado de construção e evitar as flagelações do IN sobre os meios técnicos empenhados (1). Acompanhando os trabalhos de construção da referida estrada, vivia em destacamentos temporários como o de Bironque (2)... A avaliar pelas fotos, a açoriana 2753 mais parecia uma tribo de nómadas, com a casa às costas... No meio de tudo isto, ainda conseguiam tempo para fazer roncos, como se deduz da foto com material de guerra (granadas de RPG 2 e RPG 7, além de canhão sem recreio)...

Trinta e cinco anos depois, é o mesmo homem que pergunta, com a frontalidade, o desassombro e o sentido de humor que o caracterizam, e a propósito do nosso encontro na Ameira, Montemor-o-Novo, em 14 de Outubro de 2006: "Como é que uma seita de maduros que não se conheciam, dez minutos depois de um primeiro contacto físico, se sentem como amigos de longa data? Para mim não restam dúvidas. Uma vivência comum tão forte quanto aquela que nos uniu por altura dos verdes vinte e tal anos, fez de nós irmãos de sangue... suor e lágrimas! "... Mas o melhor é ler a carta (e não o e-mail!) que ele fez questão de me mandar, e que vem selar ainda mais os laços que nos unem nesta tertúlia virtual que é uma rede social... Vitor: obrigado pela tua carta, e os meus parabéns... Ganhámos, todos, mais um irmão de sangue, suor e lágrimas, que foi também andarilho do mundo, que é hoje brigadeiro da vida e avô babado e que alimenta a esperança de chegar a general!... Por mim, dou-te já as quatros estrelas!... Quanto à tua segunda carta, em que abordas o problema dos desertores e refractários, evocas a tua experiência de vida em França e sugeres uma mudança de orientação editorial do nosso blogue (que seria hoje a do "politicamente correcto"), será publicada a seguir, num dos próximos posts (LG) .

Texto e fotos: © Vitor Junqueira (2006). Direitos reservados. Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

O Vitor Junqueira foi alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões (Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72) (1). Vive hoje em Pombal, onde é médico.

Mensagem do Vitor Junqueira, enviado à 0h23, de 23 de Outubro de 2006, segunda-feira.

Meu caro camarada e amigo, Luís Graça.

Hoje como é domingo, vai uma carta! Não que eu tenha seja o que for contra os emílios, como diz um certo compadre da TV. Mas acho-os neutros, impessoais, devassos. São como recados escritos que passam de mão em mão. Tornaram-se conspícuos, mas falta-lhes a chama e o intimismo de uma carta. Na minha opinião, um e-mail está para a escrita como uma rapidinha para o amor. Mal comparado? Não importa.

Tenho um amigo que sendo um quadro importante numa empresa nacional de grande dimensão, tem, por dever de ofício, de ser muito cuidadoso quando abre a boca. Disse-me ele um dia:
- Ó Vitor, tu conheces-me tão bem que eu quando falo contigo nem preciso de as pensar!

E é verdade, os amigos também servem para isto. Permitem-nos que o espelho mostre a nossa verdadeira cara, sem a pesada máscara dos formalismos. Assim estou eu.

Aqui por Pombal, está de chuva. A água é tanta que até os cães a bebem de pé. Já começo a ter saudades daquele belo dia com que o S. Pedro nos brindou aquando do nosso encontro em Montemor (3). O clima esteve espectacular e não apenas por razões meteorológicas. Penso que este primeiro encontro se prolongará através das suas réplicas e tréplicas, durante muito tempo. Em todos deixou certamente uma marca, e os participantes hão-de vir a terreiro contar o que lhes vai na alma. A começar por isto: como é que uma seita de maduros que não se conheciam, dez minutos depois de um primeiro contacto físico, se sentem como amigos de longa data? Para mim não restam dúvidas. Uma vivência comum tão forte quanto aquela que nos uniu por altura dos verdes vinte e tal anos, fez de nós irmãos de sangue... suor e lágrimas!

Hoje já somos todos Brigadeiros da Vida. Por isso, creio que deste encontro e dos que aí vêm, surgirão naturalmente, planos, sonhos, projectos e utopias que nos hão-de guiar até ao Generalato. Ainda temos muito(as) para dar!

Os homens da nossa geração foram praticamente todos combatentes. Poucos escaparam à mobilização o que não deixa de ser insólito, já que o regime de então nunca admitiu o estado de guerra. Como afirmei em Montemor, é esta experiência que é ao mesmo tempo pessoal e colectiva, esta perspectiva da vida e do mundo em tempo de guerra ou na paz, do valor dos homens e da filha da putice de que são capazes, que os ex-combatentes têm o dever de transmitir, pelo menos àqueles que lhes são mais próximos. Que lhes sirva, para que de olhos e ouvidos bem abertos não se deixem embalar por canções de bandido, que alguns começam por aí a trautear. Porque como disse, a paz não é mais do que um interlúdio entre guerras.

Já agora, que falei de brigadeiros e generais, deixa-me dizer-te que a subida de patente mais gostosa que tive, foi a promoção a avô. De duas endiabradas garotas (Inês e Carolina), filhas da minha Maria Gracinda.

Mas ainda estou para as curvas! Sinto que de estetoscópio ou de G3 ainda lá ia. Se fosse preciso, quando e onde fosse necessário.

Luís, espero não te ter decepcionado com esta última tirada! Depois do que disse... parece que não disse. Ou que dei o dito por não dito. No entanto a coerência é uma das linhas de rumo que têm balizado a minha vida, reconhecendo embora e falando por mim, que a falta dela, faz parte do pacote de pecados originais com que desembarcamos no Mundo. Como agora se ouve dizer tantas vezes, tudo depende do contexto. E para ser franco, não sou, nunca fui um pacifista militante.

A propósito, penso que ainda teremos de falar sobre um assunto que já afloraste no Blogue. Trata-se da questão dos conscritos ou mobilizados que decidiram não comparecer à chamada. Nalguns casos na véspera de embarque, como é sabido. Nunca conheci nenhum, embora tenha ouvido dizer que alguns até cantavam nas estações do Metro de Paris, precisamente numa altura em que eu próprio andava para aqueles lados.

Também espero poder falar-te um dia da minha experiência como emigrante em terras de França e do chorrilho de mitos e, principalmente estereótipos, que surgiram a respeito daqueles que aí procuraram melhores condições de vida. O fado estafadito de la valise à carton, dos bidonvilles de Champinhy e outros sítios, assim como as propaladas fugas em massa à guerra colonial não traduzem a realidade da emigração portuguesa nos finais da década de sessenta. É que eu estive lá!

Também estive em Villiers sur Marne, Pléssis Trevisse, Lasigny, Sucie en Brie, Bonneil, St. Maur, Charenton Écolles, Creteil, Frennes, Villecresnes, Maisons Alfort, Rambouillet, Le Mesnil St. Denis, Trappes, S. German en Laye, Poissy, Argenteuil, Houilles sous Carriéres e alguns outros grandes centros de acolhimento de portugueses na região parisiense. Mas conheci também a nossa realidade em locais distantes da capital como Lyon, Strasbourg, Metz, Oyonax, Bourg en Bresse, Cherbourg, Le Havre e Rouen.

Não digo mais porque acho que já chega para desincentivar quem me queira vir contar histórias. O grande problema é este: se um boato se desmonta com relativa facilidade, já o mito que muitas vezes é filho de um boato assente sobre um fundo de verdade, ganha raízes e torna-se praticamente indestrutível. De resto, quanto mais vivo mais me convenço de que a Humanidade não consegue subsistir sem os mitos. E assim muitos dislates continuam a ser ainda hoje alimentados em Portugal por quem tem o poder de fazer opinião.

Já agora deixa-me fazer uma pequena correcção a uma referência que li no Blogue a meu respeito. De facto, eu nunca vivi em França com os meus pais. Quando eu tinha uns doze ou treze anos, tive a sorte de ler dois livros emprestados pela biblioteca itinerante da Fundação Gulbenkian que traçaram o meu detino. Foram eles a viagem da Kon Tiki (Pacífico) e o mistério dos Homens Vento (Tibete). O bichinho das viagens instalou-se de tal maneira que o meu grande sonho naquela idade, era pôr-me ao fresco. E assim aconteceu. Terminado o Liceu, já com 18 anos no pêlo, tratei do Passaporte que requisitei na Junta da Emigração à Rua da Junqueira e, ala que se faz tarde, aí vou direito a Paris no Sud-Express.

Por lá andei entre idas e vindas até pouco antes de ser hesitantemente incorporado no glorioso exército português, em 14 de julho de 1969. Porque a minha paixão era a Marinha, mas aí servia-se durante muito mais tempo. Mais tarde tornei-me também oficial da Marinha Mercante Portuguesa. E como podes verificar pelo documentos que seguem como anexos (4), mais voluntário não poderia ser. Já então tinha a minha vida montada com casa, emprego, carta de condução, pópó, e uns bons trocos no bolso para as despesas.


Talvez fiques surpreendido, como eu ficaria, depois de ouvir relatos de fugas a salto, medonhas e perigosas, mas a verdade é que este teu amigo, já depois de inspeccionado e apurado para todo o serviço militar, saía do país com autorização militar no bolso sempre que queria. E mais, sendo já aspirante miliciano, aproveitei uns escassos dias de férias após o COM [Curso de Oficiais Milicianos] e fui a Paris fazer a minha inscrição consular que até então não me tinha sido necessária, a fim de renovar o passaporte.

Estávamos em Dezembro de 1969 e eu já então sabia que o meu destino era a Guiné, pois essa havia sido a minha opção. Pelos carimbos poderás também constatar que ainda cheguei a tempo para a ceia de Natal! Logo nos primeiros dias de Janeiro embarquei para os Açores a fim de constituir a minha unidade (1).

Para os que acharem que tive algum tratamento especial, posso garantir que não. Do meu curriculum consta que fui trabalhador rural, vendedor ambulante, empregado de balcão, operário da construção civil, contrabandista, marinheiro e médico. Mas nunca fui Bufo, nem agente infiltrado ou pide à paisana. Considero-me um homem de palavra, a quem a Pátria sempre tratou como filho e nunca como enteado. Deu-me mais do que eu merecia.

Quanto aos dois anos que passei na Guiné, foram de facto os melhores da minha vida só comparáveis àqueles em que andei lá por fora.

Siga a marinha e viva Portugal.
Um abraço do Vitor Junqueira.
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Notas de L.G.:

(1) Vd. postes de:

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1083: Histórias de Vitor Junqueira (1): Os Barões da açoriana CCAÇ 2753 (Madina Fula, Bironque, K3, 1970/72)
e
Guiné 63/74 - P1084: Histórias de Vitor Junqueira (2): O guerrilheiro desconhecido que foi 'capturado' no K3 por um básico da CCAÇ 2753

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1110: Histórias de Vitor Junqueira (3): Do Bironque ao K3 ou as andanças da açoriana CCAÇ 2753 pela região de Farim

(2) Vd. post de 10 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1163: Destacamento temporário do Bironque, inaugurado pela madeirense CART 2732 (Carlos Vinhal)

(3) Vd. post de 15 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1177: Encontro da Ameira: foi bonita a festa, pá... A próxima será no Pombal (Luís Graça)

(4) A publicar posteriormente com uma segunda mensagem, que é a continuação desta.

quinta-feira, 26 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1214: Tão longe e tão perto, camaradas de Empada, Gandembel, Guileje, Buba, Mejo, Cacine, Tite, Guidaje ... (Zé Teixeira)

Guiné-Bissau > Região de Quínara > Buba > Tabanca Lisboa > 2005 > Um guineense de Portugal, o Zé Teixeira, com o chefe da tabanca e a sua lindíssima filha. A tabanca Lisboa, a 5 Km de Buba, era um antigo centro de treino do IN, de nome Sare Tuto... Aqui ainda vivem vários antigos combatentes do PAIGC... Sadiu Camará, antigo paraquedista, um português da Guiné, casou aqui com uma guerrilheira... Foi ele que mudou o nome da aldeia e ajudou a população como caçador... Uma história com final (quase) feliz. O José Teixeira (Zé, para os amigos e camaradas) foi 1º cabo enfermeiro da CCAÇ 2381, Os Maioriais (Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70)(1). (LG)

Foto e texto: © José Teixeira (2005). Direitos reservados.


Luís: Saúde, paz e felicidade para ti, para os teus e para todos os camaradas que partilham a aventura de serem bloguistas no teu/nosso blogue.

Poucos camaradas conheço pessoalmente, mas conheço-os de facto. O engraçado é os sinto tão perto de mim. Como que os toco. Como que sinto o seu respirar, tal como quando caía debaixo de fogo e ouvia o grito do camarada ao lado. Grito de raiva, de medo ou de ódio, expresso num palavrão sonante ou então o grito da morte, “estou fodido”, “já não vejo”, “adeus, minha filhinha”, "Oh minha mãe querida” ...

Felizmente pude cantar, sempre, o grito da vitória. A minha vitória. A vitória da minha vida, até ao próximo encontro (reencontro). Quantas vezes foi canto de raiva e lágrimas não contidas pelos camaradas que agoniavam a meu lado ou tinham partido para a caserna eterna, ali mesmo. Sem saberem como, nem porquê e sobretudo para quê ?

Por isso procurei escrever, a quente, para melhor libertar a raiva que me consumia.
A imagem de guerra que me ficou na retina e na mente foi a da “minha guerra”, com todas as marcas do sofrimento, das angústias, das dores e das mágoas. Dos companheiros que se foram, das corridas das populações para os abrigos. O seu espreitar expectante à porta dos abrigos, o choro das crianças assustadas, os gritos angustiados dos feridos, o desespero da mãe que fugiu para o abrigo e deixou a bebé na morança e ao regressar para a recuperar, uma bomba assassina barrou-lhe o caminho, ferindo-a gravemente. E sua bebé morreu carbonizada ali, á sua frente, a dois passos, sem lhe poder valer... Quantas vezes me pediu para a deixar morrer. Tinha se esquecido da sua menina, não merecia viver.

Mas a guerra real foi muito mais que a “minha guerra”. Senti muito de perto o drama dos camaradas de Gandembel. Fizeram parte da minha guerra, quando tive de participar nas colunas de reabastecimento e depois fomos durante algum tempo companheiros de fortuna em Buba. Ouvia de longe o soar quase diária das bombas a cair sobre Guilege, Gadamael, Mejo, Cacine, Tite e tantos outros locais, mas não fazia ideia dos extremos a que tinha chegado a nossa luta na Guiné, sobretudo nos últimos anos.

Ainda hoje ressoa por esse nosso País que os combatentes continentais que estavam na frente de guerra foram uns cobardes e abandonaram vergonhosamente as frentes de combate. Para quem viveu o drama da guerra a sério, isto é um insulto. Está mais que provado que a guerra na Guiné estava numa situação insustentável. Está mais que provado que os nossos camaradas estavam na ponta final da sua resistência física, psíquica, anímica.

Eu, ao fim de algum tempo de Guiné, senti bem profundamente, quanto fui enganado pelos políticos da época. Se a guerra, por princípios educacionais e de ideal, para mim, não tinha razão de ser, daí o facto de ter jurado a mim mesmo não dar um tiro, pouco tempo depois de chegar à Guiné, no contacto com as populações de Mampatá Forreá, descobri que a força da razão estava do outro lado. Então a guerra perdeu definitivamente todo o sentido para mim. O importante passou a ser, regressar, regressar a qualquer preço e não deixar marcas negativas.

Os testemunhos que continuam a cair no blogue, são como bombas que explodem e abanam de novo as nossas consciências, são como que um grito de libertação, um grito de afirmação da realidade que tantos de nós vivemos e que os políticos continuam a tentar fazer esquecer e abafar.Gandembel, Guileje, Gadamael, Mejo, Guidage e tantos outros Guidajes existiram mesmo.

Pena é que este grito, que o blogue, que em boa hora decidiste lançar e tornar num espaço de acolhimento para todos nós e para os que ainda hão-de vir, onde nos revemos e partilhamos a amizade e a fraternidade forjada numa luta inglória para a qual fomos conduzidos e se outro mérito não teve, pelo menos, está a unir-nos num desejo comum; libertar fantasmas, revisitar o nosso passado, redescobrir cada um, contar a verdadeira história da guerra da descolonização, em que para azar nosso, estávamos do lado oposto. Pena é que esses gritos, não sejam ouvidos, lidos, pelo Zé povinho da nossa terra e sobretudo pelos politiqueiros da praça.

É preciso, é urgente que a verdadeira face da guerra seja posta a nu, para que se faça justiça, nem que seja só a justiça moral.

Nunca pensei verter mais lágrimas de guerra, para além das que não segurei durante a minha estadia no T.O. da Guiné.

Em 2005 as alegrias foram imensas, quando passados trinta e cinco anos descubro de novo os amigos e amigas que lá deixei e que não se esqueceram de mim, nem eu deles. Momentos fantásticos!

Pensei que tinha “enterrado” definitivamente a Guiné, mas deu-se o contrário. Fiquei apaixonado de vez por aquelas gentes simples e hospitaleiras do interior, por onde palmilhei durante dois longos anos, os mais longos da minha vida.

Cada testemunho novo que aparece no blogue, leva-me de novo até àquela terra vermelha. Por vezes a comoção, senão a raiva, apossam-se de mim.

Afinal houve quem viveu e sofreu muito mais que eu... O testemunho do A. Mendes sobre Guidaje é impressionante. Como foi possível chegar àquele extremo ? Como foi possível que os militares e políticos quer na Guiné, quer em Lisboa não se tenham apercebido da realidade que até um ceguinho (e tantos de nós éramos ceguinhos ou estávamos envenenados pelos Goebels da nossa terra) se apercebia ?

Bem vindo, A.Mendes. Nunca te arrependas de contar toda a tua história, que afinal é a estória de todos nós.

Subscrevo com profunda emoção o texto do Torcato. Estamos unidos num passado comum. Temos obrigação de o passar aos vindouros para que os erros, dos quais fomos vitimas, não se repitam.

O Pedro Lauret que viveu tão profundamente o drama de Guileje tem razão. Não podemos parar. É preciso gritar bem alto o que nos vai na alma.

Luís, como tu muito bem afirmas, “somos uma espécie em extinção”. Os homens passam, mas a sua história fica. Que a nossa fique para a eternidade.

Quando regressei estava convencido que ia ser fácil esquecer, mas não foi.Convencido que ninguém passara o que eu passei, mas rapidamente verifiquei que a guerra estava endurecer ao ler nas entrelinhas os célebres e lacónicos comunicados. Mas nunca imaginei os extremos a que chegou a guerra na nossaGuiné. Nossa, porque eu hoje sinto-me filho da Guiné. A frase que em 2005 ouvi de um Guineense, marcou-me “sou Português da Guiné” e levou-me a descobrir que eu sou Guineense de Portugal.

Sinto-me irmanado com todos os que partilham no blogue as suas emoções, as suas estórias, tão verdadeiras, mas tão esquecidas ou abafadas, como fosse possível abafar a história. Daí o sentir-me tão perto de cada um, mesmo sem o conhecer pessoalmente.


Um fraternal abraço para todos.

Zé Teixeira
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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

Vd. também post de 18 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXI: Do Porto a Bissau (18): Sadiu Camará, um sobrevivente (A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P1213: A CCAV 3420, do Capitão Salgueiro Maia, em socorro a Guidaje (José Afonso)


Guiné > Maio de 1973 > Op Ametista Real > 18-20 de Maio de 1973 > Croquis do plano de operações: (i) A 18 de Maio o Batalhão de Comandos Africanos sai de Bissau numa LDG, apoiada por duas LFG e desembarca em Ganturé, dirigindo-se à tarde para Bigene; (ii) 19 de Maio, às 6h00 da manhã, o BAC entra em território senegalês; com os três agrupamentos (Bombox, Romeu e Centauro) dispostos à volta da base IN, os Fiat procedem a um pesado bombardeamen do alvo; (iii) o 1º assalto IN é feito pelo Agrupamento Bombox (Cap Matos Gomes), seguido pelo Agrupamento Romeu (Cap António Ramos) e, por fim, pelo Agrupamento Centauro (Cap Raul Folques); (iv) o regresso das NT far-se-á por Guidaje, ao fim da tarde desse dia...

Fonte: José Afonso (2006) .

Originalmente publicado no Blogue-fiora-nada > vd post de 3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCVI: Salgueiro Maia e os seus bravos da CCAV 3420 (Guidage, Maio/Junho de 1973) . Não trazia o nome do autor, no título, nem trazia subtítulos. Achou-se oportuno recuperar este post, que traz novos elementos informativos sobre a batalha de Guidaje. O seu autor é uma testemunha privilegiada. Deverá ser também publicado, em breve, como texto antológico, o relato que o próprio Salgueiro Maia fez, no seu livro autobiográfico, sobre estes dramáticos dias na região de Guidaje que antecederam o fim da comissão da CCAV 3420.


Texto do José Afonso (ex-furriel miliciano da CCAV 3420) que nos chegou, em boa hora, através do Albano Costa (ex-militar da CCAÇ 4150, que ficou sedeada em Guidaje, já no final da guerra, a partir o 4º trimestre de 1973:

«Foi através do blogue que um dia recebi um e-mail do ex-furriel José Afonso, da CCAV 3420, a tal de que era seu comandante Salgueiro Maia, e que um belo dia foi chamada para a zona do conflito que o PAIGC fez a Guidaje, no norte da Guiné, em Maio de 73.

"O José Afonso, que é do Fundão, tem tudo registado e facultou-me e autorizou-me que fosse transcrito o que aconteceu naquele período em que foram chamados para irem em defesa do destacamento que na altura corria perigo de ocupação por parte do PAIGC. Ele esteve na altura da porrada em Guidaje e enviou-me toda a história"...
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Situação Militar no Zona de Guidaje > Maio / Junho de 1973 > Intervenção da Companhia de Cavalaria 3420 > Zonas de Acção da Companhia: Binta / Guidaje
Subtítulos, a negrito, da responsabilidade do editor do blogue.

Em Maio de 1973, Guidaje e Guileje constituíram a prova mais dura a que as Forças Armadas Portuguesas foram sujeitas nos três Teatros de Operações (Angola, Moçambique e Guiné). Para aliviar a pressão sobre Guidaje, preparou-se um ataque à base inimiga de Kumbamory, situada a 4-6 km da linha de fronteira do Senegal, tendo em vista desarticular o IN e, se possível, destruir a Base, provocando o maior número possível de baixas.


Guidaje, Maio de 1973 - NT e IN

No início de Maio de 1973 a Guarnição de Guidaje era constituída pela CCAÇ 19 e pelo Pelotão de Artilharia 24, equipado com Obuses 10,5 e estava sob o Comando COP3 com sede em Bigene. Do lado Português, Guidaje em termos de efectivos teria cerca de 200 homens, na maioria recrutados na Província que com os seus familiares viviam numa pequena aldeia junto ao Quartel.

Do lado PAIGC estimava-se que o número de elementos se situava entre os 650 e os 700 homens, comandados por Francisco Mendes (Chico Té) e pelo Comissário Político Manuel Santos.

As Forças do PAIGC tinham uma das suas bases em Kumbamory podendo fazer reabastecimentos por viatura a partir de Zinguichor, Yeran ou Kolda, permitindo assim manter o cerco a Guidaje por largo período de tempo. O PAIGC mantinha na Zona as seguintes forças:

- Corpo de Exército com 4 Bigrupos de Infantaria e uma Bateria também de infantaria;
- Corpo de Exército com 5 Bigrupos de Infantaria e um grupo de Foguetes com 4 rampas de lançamento;
- 3 Bigrupos de Infantaria, um grupo de Reconhecimento e uma bateria de Artilharia deslocada da Zona Leste;
- Um Pelotão de Morteiros 120 mm;
- Um Grupo Especial de Sapadores.
 

Cerco a Guidaje

O isolamento de Guidaje iniciou-se com o abate de um avião T6, duas DO-27 e um Fiat G91 e o cerco terrestre acentuou-se em 8 de Maio quando uma coluna que partiu de Farim, escoltada por forças do Batalhão de CAÇ 4512, accionou uma mina e foi emboscada sofrendo 12 feridos.

A 9 de Maio a mesma força foi de novo emboscada mantendo o contacto com IN por 4 horas. As NT sofreram 4 mortos, 8 feridos graves, 10 feridos ligeiros e 4 viaturas destruídas, tendo a coluna sido forçada a recuar para Binta em vez de seguir para Guidaje. Das viaturas destruídas o IN retirou durante a noite algum material de guerra. Na manhã seguinte a nossa aviação destruiu o que restava destas 4 viaturas e material.

A 10 de Maio no deslocamento Binta / Guidaje as unidades envolvidas, sob o comando do Comandante do Batalhão de Farim, sofrem 1 morto e 2 feridos e a picada encontrava-se cortada por abatises. Uma coluna que havia saído de Guidaje (CCAÇ 19) para proteger o itinerário sofreu 5 emboscadas, de que resultaram 8 mortos e 9 feridos (1).

Nesta data com o agravamento da situação em Guidaje, o PAIGC conseguiu isolar por alguns dias esta guarnição dados os campos de minas lançados, as emboscadas montadas e a impossibilidade dos nossos meios aéreos actuarem, devido ao dispositivo antiaéreo montado pelo inimigo com os Mísseis Strella. Devido à situação crítica o Comandante do COP3, Tenente Coronel Correia Campos, deslocou-se para Guidaje onde se manteve até 11 de Junho.

A 12 de Maio chega a Guidaje uma coluna de reabastecimento constituída pelo destacamento de Fuzileiros 3 e 4. A 15 de Maio no regresso dos Fuzileiros a Farim, as NT accionam 2 minas sofrendo 2 feridos graves e uma emboscada entre Binta e Guidaje de que resultaram 5 feridos. Uma coluna que entretanto saiu de Binta conseguiu chegar a Guidaje no mesmo dia.

Operação Ametista Real

A 16 de Maio o Comando Chefe informa Almeida Bruno (Comandante do Centro de Operações Especiais) da situação que se passa em Guidaje. Almeida Bruno tinha sido o 1.º Comandante do Batalhão de Comandos Africanos entre Maio de 1968 e Julho de 1970. Este batalhão tinha como principal missão actuar fora do Território da Guiné. Assim, as suas actuações situavam-se em território da Guiné-Conacri e do Senegal, pelo que o seu armamento era o melhor armamento soviético capturado ao IN, Kalashinikov, Degtyarev, RPG2 e RPG7.

A operação mais significativa dos comandos Africanos foi a Operação Ametista Real (2) e foi comandada pelo Chefe de Operações Especiais, Major Almeida Bruno. A 18 de Maio o BataIhão de Comandos saiu de Bissau numa LDG (Lancha de Desembarque Grande com guarnição de cerca de 20 homens e que pode transportar cerca de 400 homens), apoiada por duas LFG (Lancha de Fiscalização Grande com guarnição de cerca de 33 homens) e desembarcam em Ganturé (3).

Nessa tarde deslocam-se para Bigene com a finalidade de lançar uma operação de curta duração por forma a atacar a Base do PAIGC, situada em território do Senegal. Como não era possível a evacuação de feridos por via aérea, os mesmos seriam transportados para Guidaje e o reabastecimento teria de ser feito com material retirado dos paióis do IN.

O Batalhão de Comandos era constituído por 3 agrupamentos com uma Companhia cada, comandados por:

- Agrupamento BOMBOX (Capitão Matos Gomes);
- Agrupamento CENTAURO (Capitão Raul Folques);
- Agrupamento ROMEU (Capitão António Ramos).

Às 5h30 de 19 de Maio, a testa da coluna alcançou itinerário que apoiava a base de Kumbamory. Na Companhia do Capitão António Ramos estava integrado um Grupo Especial do Centro de Operações Especiais (25 homens), especialistas em demolições e neste agrupamento estava integrado o Major Almeida Bruno.

A 19 de Maio, o Batalhão de Comandos Africanos entra em território senegalês às 6 horas. Entretanto a Artilharia de Bigene desencadeou vários disparos sobre a área onde era suposto existir a Base IN. Às 7H30 os agrupamentos estavam dispostos na Base de ataque escolhida, a sul da povoação senegalesa de Kumbamory. Foi necessário cortar a estrada paralela à fronteira e reter o comandante senegalês dos paraquedistas, que ali chegara em missão de reconhecimento de fronteira. Travou-se com ele uma conversa cordial, chegando o mesmo a afirmar que a Base do PAIGC se situava em território português.

Às 8h20, iniciou-se o ataque aéreo com aviões Fiat G-91 que efectuou um pesado bombardeamento, a que se se seguiu o assalto à área onde se presumia que estivesse a Base do IN. Às 9h05 o Agrupamento BOMBOX executa o assalto inicial provocando o primeiro contacto com o PAIGC.

O factor sorte foi decisivo. Os 2 agrupamentos que cercaram em 1.º Escalão, detectaram de imediato uma série de depósitos de material de guerra, enquanto o 3.º Agrupamento teve violento combate com um forte grupo inimigo apoiado por Canhões sem Recuo e Metralhadoras Pesadas que defendiam o depósito principal, o dos Foguetes 120 mm. A confusão gerou-se já que se enfrentavam adversários da mesma cor, trajando de igual e com armas iguais.

Os combates desenrolam-se até 14h10, quando o Major Almeida Bruno dá ordem para o agrupamento CENTAURO apoiar uma ruptura de contacto entre as NT e as Forças do PAIGC. Este agrupamento comandado pelo Capitão ao Raul Folques (foi ferido gravemente) estava praticamente sem munições. Assim, foi dada ordem de continuação da acção em direcção a Guidaje. O movimento foi lento e com várias emboscadas pelo meio.

Pelas 16 horas o IN abandonou o terreno. As 18h20 os primeiros homens do Batalhão de Comandos começam a chegar a Guidaje.


Resultados

Após esta operação, a pressão sobre Guidaje foi levantada. Resultados da Operação Ametista Real:

Destruídos:

- 22 Depósitos de Material de Guerra;
- 2 Metralhadoras antiaéreas;
- 50 mil Munições de Armas Ligeiras;
- 300 Espingardas Kalashnikov;
- 112 Pistolas PPSH;
- 560 Granadas de Mão;
- 400 Granadas Anti-Pessoal;
- 100 Morteiros 60;
- 11 Morteiros 82;
- 1100 Granadas de Morteiro 82;
-138 RPG7;
- 450 RPG2;
-21 Ramas de Foguetes 122;

Mortos:

-67 (entre os quais uma médica e um cirurgião cubanos e 4 elementos mauritanos).

As nossas tropas sofreram:
- 10 Mortos (2 Oficiais);
- 23 Feridos graves (3 Oficiais e 7 Sargentos);
- 3 Desaparecidos.

Durante a operação os Comandos Africanos consumiram:

- 26700 Munições 7,62 (G3);
- 4600 Munições 7,62 (Kalash);
- 292 Granadas Lança-Foguetes 6 e 8,9;
- 71 Granada RPG2 e RPG7;
- 195 Granadas de Morteiro;
- 269 Granadas Defensivas.

Por volta do dia 20 de Maio estavam cercadas em Guidaje as seguintes sub-unidades:

- Companhia de Guidaje,
- a Companhia que escoltou o últímo reabastecimento de Bissu,
- uma Companhia de Farim (que teve de abandonar as viaturas que posteriormente foram bombardeadas e destruídas pela força aérea quando o inimigo as descarregava),
- uma Companhia de Paraquedistas,
- o Destacamento de Fuzileiros
- e o efectivo de cerca de uma Companhia de Comandos Africanos que tinha actuado no Senegal.


Guiné > Guidaje > CCAÇ 4150 (1973/74) > Vista panorâmica do quartel de Guidaje. Dezembro de 1973 (seis meses depois do cerco do PAIGC) .
Foto: © Albano M. Costa (2005). Direitos reservados

Uma nova coluna de reabastecimentos ficou retida em Farim devido a ter sido a atacada uma coluna entre Mansoa e Farim de que resultou a destruição de três viaturas que ficaram no terreno, tendo as NT sofrido 4 mortos, 16 feridos, sendo 9 graves.

Na luta por Guidaje o PAIGC utilizou artilharia pesada e ligeira apoiada por Infantaria além de um grupo especial de mísseis terra-ar. Em armamento o inimigo utilizou peças de 120 mm de tiro rápido, foguetões 122 mm, morteiro 120 e 82, canhões sem recuo de 5,7 e 7,5, RPG2, PG7, armamento ligeiro e mísseis Strella.



A CCAV 3420, em fim de comissão

A 22 de Maio a Companhia de Cavalaria 3420 tem a sua comissão terminada. Tudo estava pronto para no dia seguinte partir para o Cumoré, com vista a aguardar o regresso à Metrópole. A Companhia depois de uma comissão quase sempre a actuar como unidade de intervenção dá largas à sua satisfação. Pelas 19 horas, o Comandante de Companhia, Salgueiro Maia, recebe uma chamada de Bissau, informando que iria ser recebida uma mensagem, ordenando que a Companhia 3420 não seguisse para o Cumoré mas para os Adidos.



Guiné > 1965/66 > A jangada que atravessava o Rio Mansoa , em João Landim, ligando Bissau com a região do Cacheu
Foto: © Virgínio Briote (2005)


A 23 de Maio a CCAV 3420, às 6 da manhã, inicia a travessia do rio Mansoa em João Landim. As 8h30 está no Comando de Bissau onde recebe de novo material de combate. A missão dada é uma operação de 6 dias e teria como destino a zona de Guidaje, já que os ataques a este aquartelamento passaram de 50 em Abril para 167 em Maio.

A 25 de Maio a Companhia segue para Farim e a 26 de Maio para Binta com vista a, juntamente com 38.ª Companhia de Comandos (2), uma Companhia de Africanos e uma Companhia do Batalhão CCAÇ 4512 de Farim, abrir o cerco a Guidaje, ao mesmo tempo que os sitiados tentavam também abrir caminho para Binta.

A ida da CCAV 3420 para a zona mais crítica da Guiné ficou a dever-se ao facto de ter ao longo de toda a comissão um bom comportamento em combate. Estando o itinerário Binta / Guidaje bastante minado, em Bissau dão ordem para que a companhia leve quase uma tonelada de explosivos para fazer rebentar as minas montadas entre Binta e Guidaje. Para não entrar em conflito com o comando de Bissau, Salgueiro Maia apenas decide levar cerca 100 Kg, que nunca chegaram a ser utilizados. Para garantir o transporte do pessoal com o mínimo de segurança, em Farim, a Companhia teve de roubar uma Berliet à Companhia de transportes de Bissau.

A 26 de Maio a Companhia chega a Binta onde já se encontravam outras forças. A 29 de Maio inicia-se a abertura do itinerário Binta / Guidaje. Cerca das 10 horas, ao ser feita a picagem, foi accionada uma mina anticarro de que resultou um morto, um furriel cego e 2 feridos ligeiros que foram evacuados para Binta, escoltados por 2 Unimog e cerca de 30 homens que, chegados a Binta, nunca mais regressaram como estava decidido (não foram por isso punidos).

Guiné-Bissau > 1998> Picada que vai de Bigene a Ganturé, no Rio Cacheu, numa distância de 3 km.
Foto: © Francisco Allen / Albano M. Costa (2006). Direitos reservados.



A arma secreta de Salgueiro Maia

Após este incidente e conforme planeado iniciou-se a progressão a corta-mato, levando à frente uma viatura T6 (caterpillar) que abriu o caminho junto com uma Berliet. Outra Berliet seguia a 300 m levando apenas o condutor com um homem a seu lado e tinha a caixa de carga cheia de cunhetes abertos com todo o tipo de munições prontas a serem utilizadas (era a arma secreta, como dizia o Capitão Salgueiro Maia).

A táctica do PAIGC era a de ataques frontais em linha com forte potencial de fogo. Os ataques decorriam em vagas sucessivas até as NT, esgotadas as munições, terem de retirar. Com a arma secreta estava-se sempre pronto a responder. Pelas 12 horas um grupo estimado em 120 homens fez uma emboscada e ao mesmo tempo batia a zona com Morteiro 82. Pouco depois repete um novo ataque, mas as tropas da coluna já se encontravam remuniciadas. Voltaram pela terceira vez tendo as NT adoptado um dispositivo em L, porque se previa um envolvimento da parte do IN. Os ataques duraram mais de uma hora.

Pelas 14 horas tinham desmaiado 6 homens, vítimas de cansaço e insolação, visto estarem desde as 5 da manha a pé, ao sol, carregados de todo o material bélico possível e com apenas um cantil de água. Como a coluna de reabastecimento de Bissau vinha avançando para aproveitar o novo itinerário aberto, houve a hipótese de alguns elementos da CCAV 3420 subirem para as viaturas, continuando a Companhia de Comandos e a de Farim na frente da coluna.

Ao ser atingido a Bolanha do Cufeu, a coluna de Binta entra em contacto com a companhia de paraquedistas, que se deslocava de Guidaje. Na zona de Ujeque as tropas entram na antiga picada, que apresentava chão firme e sinais de abandono pelo que tentam seguir por ela. Pouco tempo depois rebenta uma mina debaixo de um Unimog 404. Quando o pessoal salta para o lado, um milícia acciona uma mina anti-pessoal, ficando sem uma perna. De novo se volta a seguir a corta-mato. Pouco depois entra-se em contacto com o destacamento de Fuzileiros, que estavam retidos em Guidaje e que vêm em apoio dos movimentos da coluna.

Cerca das 18 horas a coluna é de novo emboscada, mas desta vez sem consequências para as NT. Pelas 19 horas a coluna chega finalmente a Guidaje. Pelas 21 horas Guidaje é flagelado por Morteiro 82 com granadas a cair em grupos de 5 (granadas do Morteiro 81, capturadas à coluna de reabastecimento, que a 9 de Maio se deslocava de Binta para Guidaje).

De 29 de Maio a 11 de Junho a CCAV 3420 permaneceu em Guidaje, sendo neste período de tempo o aquartelamento bombardeado diariamente. A 8 de Junho Guidage esteve debaixo de fogo 5 vezes num total de 2 horas e a 9 sofreu 4 ataques.

Em Guidaje as refeições eram tomadas às horas mais diversas, já que às horas normais o IN costumava atacar com armas pesadas. Todos os edifícios do quartel de Guidaje estavam destruídos. No depósito de géneros praticamente inteiros estavam apenas alguns sacos de arroz, farinha e latas de salsichas. Dormia-se e vivia-se em valas abertas em redor do quartel. Água só havia de vez em quando e luz só esporadicamente, porque o gasóleo para os motores era escasso.

Em Guidaje havia farinha, mas não havia fermento para fazer o pão, pelo que se tentavam fazer várias misturas de medicamentos triturados e cerveja (quando a havia), para tentar levedar a massa do pão, mas, mesmo assim os pães eram de tal forma que pareciam broas de Natal. A ração diária para cada militar era de um punhado de arroz e uma pequena salsicha de aperitivo ao almoço e ao jantar, isto porque não havia outra coisa para comer.

Em Guidaje existia a cerca de 2 km para o interior do Senegal uma estrada paralela à fronteira, que durante a noite era percorrida por colunas do PAIGC, escoltadas por blindados de origem russa. Como o quartel de Guidaje se encontrava construído sobre a fronteira com o Senegal, a pista de aviação encontrava-se em parte neste território.

A CCAV 3420 saiu de Guidaje a 11 de Junho mas manteve- se emboscada na bolanha do Cufeu e na manhã de 12 regressou a Binta.

As baixas das colunas de e para Guidaje de 8 de Maio a 8 de Junho foram de:
- 22 mortos;
- 70 feridos;
- e 6 viaturas destruidas.

De 8 de Maio a 29 de Junho, Guidaje sofreu 43 flagelações com artilharia, foguetes e morteiro. Logo no dia 8 esteve debaixo de fogo 5 vezes, no total de 2 horas. No dia 9 sofreu 4 ataques, no dia 10, 3 ataques e, até final todos os dias foi atacado. No total dos 43 ataques a guarnição de Guidaje sofreu 7 mortos, 30 feridos militares e 15 feridos entre a população civil e todos os edifícios do quartel ficaram bastante destruídos.

Até 29 de Junho a Companhia permaneceu em Binta e, neste período fez no dia 17 escolta a uma coluna de 6 viaturas de Binta para Guidaje e em 25 fez emboscada no Alabato, dando protecção a uma coluna para Guidaje. A 29 de Junho a Companhia regressou a Farim e a 30 a Bissau.

Já em Bissau fez ainda uma protecção a coluna com 28 viaturas até Farim. E enquanto aguardava regresso à metrópole fez protecção ao perímetro de Bissau, bem como outros serviços esporádicos.E porque inicialmente a Companhia tinha por missão uma operação de 6 dias, os homens nao tiveram outra roupa para além da que tinham no corpo.

Os elementos da Companhia 3420 quando a 30 de Junho regressaram a Bissau, pareciam um grupo de salteadores, já que a operação não decorreu nos 6 dias previstos, mas durou 37 dias, na zona Binta / Guidaje.

Apesar de ao longo de toda a comissão a CCAV 3420 ter sido uma Companhia de Intervenção, o período de 26 de Maio a 30 de Junho foi sem dúvida, o mais difícil e aquele que provavelmente os elementos mais recordam, pelos momentos críticos por que passaram, mas, que com a disciplina, a que desde o início se habituaram e pelo Comandante que tinham , souberam contornar todas as situações e em 2 de Outubro regressaram à Metrópole, com a satisfação de terem sido comandados por um homem como Salgueiro Maia (3).

Ex-Furriel Afonso, 3.º Grupo de Combate da CCAV 3420 (1971/73) .


____________

Notas de L.G.

(1) Vd. 21 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1198: Antologia (53): Guidaje, Maio de 1973: o inferno (Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes)
(2) Vd. post de 16 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXV: Antologia (16): Op Ametista Real (Senegal, 1973)

"Ametista Real, por João de Almeida Bruno (1995): A operação mais importante que comandei foi, no entanto, na Guiné. O nome de código foi Ametista Real - eu sempre dei nomes de pedras preciosas às operações que comandei. Penso que, na altura, foi a operação de maior envergadura daquele tipo, fora do território nacional. Comandava então o Batalhão de Comandos Africanos (...)".

(3) Vd. testemunho do tenente coronel J. Sales Golias> A descolonização da Guiné-Bissau, no sítio do centro de Documentação 25 de Abril, Universidade de Coimbra: "As Nossas Tropas(NT) iam somando insucessos, alguns dos quais muito graves como o abandono de Gadamael Porto, a dramática retirada do inferno de Guileje, em cuja consequência foi preso o Major Coutinho e Lima, por ter decidido salvar as vidas dos seus homens e o cerco de Guidaje. No rompimento deste cerco foi decisiva a acção do meu camarada Salgueiro Maia, cuja Companhia de Cavalaria já tinha acabado a sua comissão e aguardava embarque para Lisboa, mas à qual estava guardado o pior bocado.

"Estavam empenhadas neste cerco as três Companhias de Comandos Africanos, uma delas comandada pelo Capitão Carlos Matos Gomes, um dos principais oficiais do MFA na Guiné.

"Só um Comandante natural como o Salgueiro Maia conseguiria mobilizar novamente os seus homens para uma das mais violentas campanhas de guerra e da qual saíu com muitos mortos e feridos.

"Salgueiro Maia regressou a Lisboa já no mês de Outubro de 1973".

quarta-feira, 25 de outubro de 2006

Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os pára-quedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

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O ex-1º Cabo paraquedista Victor Tavares (BCP 12, CCP 121, Giné 1972/74): Ontem (1) e hoje


Texto e fotos: © Victor Tavares (2006). Direitos reservados. Fotos alojadas no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

Estimado amigo e camarada Luís:

Como prometi, envio-te mais um texto que, se entenderes ter algum interesse em publicá-lo no teu blogue, poderás fazê-lo.

Quero dizer-te que já falei com o meu camarada Manuel Rebocho sobre os nossos militares que se encontram sepultados em Guidaje. (Eu ajudei a sepultar só os 3 paraquedistas) (2).

Abraço

Victor Tavares


A caminho de Guidaje
Operação Mamute Doido
Coluna para Guidaje > 23 de Maio de 1973
CCP 121- Companhia Caçadores Paraquedistas 121

No início do mês de maio de 1973, as forças do PAIGC intensificaram os ataques aos destacamentos de fronteira, mais concretamente Guidaje, a norte, e Guileje, a sul. Em Guidaje a pressão das forças IN começou com ataques ao aquartelamento e depois às colunas de reabastecimento no período 7 a 30 de Maio de 1973. Nesse período realizaram-se seis colunas. Apenas a terceira conseguiu alcançar o objectivo sem problemas.

E porque fiz parte da quinta coluna, gostaria de dar algumas ideias do que passei na mesma aos tertulianos interessados na guerra de Guidaje.

Para começar quero dizer-vos que já li que os efectivos da CCP 121 que participaram nessa coluna eram na ordem de 160, quando na verdade seríamos pouco mais de metade. Mas avançando para o desenvolvimento, mais concreto, do deslocamento entre Binta e Guidaje, de má memória para os paraquedistas da 121, nesse dia fatídico para as nossas tropas recebemos a informação de que íamos fazer protecção a uma coluna auto que ia para Guidaje , e que regressaríamos de imediato, até porque não nos fora distribuída alimentação.

Lá seguimos manhã cedo até passar uma pequena ponte. Logo de seguida estacionámos e emboscámo-nos do lado esquerdo da picada, ficando a aguardar a chegada da coluna auto que, passado algum tempo, chegou já protegida do lado direito por um grupo de fuzileiros especiais, seguidos de elementos do exército.

Na frente da primeira viatura seguiam vários sapadores (picadores). É de referir que a mata envolvente era bastante aberta o que facilitava o contacto à vista com as outras nossas forças.

Entretanto, é dada ordem para iniciarmos a marcha lenta por forma a manter a ligação à vista com a frente da coluna. Nessa altura rebentou uma mina antipessoal, provocando 1 morto. Isto cerca das 8.30h. Recomposta a ordem, retomamos a marcha, até que, passados pouco mais de 15 minutos, novo engenho é accionado, desta vez por uma viatura, desfazendo parte dela e provocando mais 1 morto e 2 feridos graves. A partir daqui foi fazer a transferência da carga e retomar o deslocamento. Pouco tempo andámos para nova mina ser accionada provocando mais 1 ferido grave.

Nesta altura estávamos próximos de Genico [a seguir a Caur, vd. carta de Binta]. Perante estes acontecimentos foi dada ordem para que a coluna regressasse a Binta, uma vez que a zona se encontrava toda minada e seria de evitar correr mais riscos.

Com tudo isto já passava do meio dia, quando é dada ordem para a CCP121 continuar a operação em patrulhamento, regressando os fuzileiros e o exército.

Em direcção a Guidaje seguiam os paraquedistas, até que foi feita mais uma de muitas paragens para descanso do pessoal, esta já na zona mais perigosa de todo o percurso, que era Cufeu.

Como me encontrava desde o início na retaguarda, desloquei-me até junto do meu comandante de pelotão, Tenente Paraquedista Hugo Borges afim de saber qual seria o nosso destino, porque nos encontrávamos já bastante debilitados fisicamente. Foi nesse momento que a grande altitude apareceu sobrevoando a nossa posição uma DO 27 aonde se encontrava o Major Paraquedista Calheiros que, em contacto com o comandante da CCP 121, Capitão Paraquedista Armando Almeida Martins, informa.-nos que teríamos de seguir para Guidaje porque já estaríamos perto.

Dada esta informação, regressei a retaguarda mas ao fazê-lo pedi ao Melo, apontador de MG 42 para ocupar o meu lugar (todos os operacionais sabem o desgaste físico e psicológico que tal posição provoca) porque eu já vinha a mais de uma dezena de KM naquele lugar.

Entretanto inicia-se a marcha e, quase de imediato, rebenta na frente a emboscada sendo os primeiros tiros dados pelas forças do PAIGC abatendo logo os Soldados Paraquedistas, Victoriano e Lourenço e ferindo gravemente o 1º Cabo Paraquedista Peixoto, apontador de HK21 e MG42.

A reacção dos paraquedistas foi pronta e rápida: apanhados em zona aberta sem qualquer protecção reagiram ao forte poder de fogo do IN, conseguindo suster o assalto das nossas posições como se verificou na retaguarda onde guerrilheiros, alguns de tez branca, tentaram fazer um envolvimento as nossas forças, o que foi evitado pela elevada capacidade de organização em combate e disciplina de fogo aliada à coragem dos nossos militares

Quero referir que simultaneamente toda a nossa coluna ficou debaixo de fogo IN numa extensão de mais de 300 metros.

É de realçar também a organização e o poder de fogo dos guerrilheiros do PAIGC que equipados com bom armamento, bem melhor que o nosso, caso das Degtyarev, RPG2, costureirinha PPSH, Kalashnikov, Canhão s/ Recuo, RPG7, Morteiros 61mm e 81mm, mísseis terra-ar Strella (estes a partir do início de 1973 começaram a derrubar a nossa aviação tirando-lhe capacidade de actuação no teatro de operações).

Não era por acaso que as forças do PAIGC estavam tão bem organizadas nesta zona e neste período, tinham como comandantes Francisco Santos (Chico Té) e Manuel dos Santos(Manecas), dois dos mais temidos pelas nossas forças além do comandante Nino Vieira.

Continuando a relatar o desenrolar da operação: durante o contacto fomos flagelados com morteiradas e canhoadas que rebentavam a poucos metros de nós tendo uma delas ferido gravemente os Soldados Paraquedistas Palma e Melo, este com grande gravidade ficando de imediato em estado de coma e vindo a falecer, na Metrópole.

Ainda relacionado com as granadas que rebentavam junto a nós, aí poderíamos ter mais mortos e feridos, mas a nossa sorte foi o terreno ser mole porque as granadas enterravam-se e os estilhaços saíam em V. Faço esta afirmação porque a dois, três metros da minha posição de combate, rebentaram 3 granadas e felizmente nada me aconteceu. Já a quarta granada veio mais longa, atingindo os paraquedistas atrás referidos, quando se encontravam a desencravar a MG42 da qual o Paraquedista Melo era apontador, de grande categoria (este camarada era uma autêntica máquina de guerra).

Ainda debaixo de fogo começaram a ser socorridos os feridos da retaguarda, pelo enfermeiro 1º Cabo Paraquedista Fraga.

Ainda antes de terminar este feroz combate, os bombardeiros FIAT 91 bombardearam as posições IN tal foi a duração do mesmo (mais de 30 minutos).

Terminado o contacto tratou-se de improvisar a maca para transporte do Melo, o outro ferido, o Palma, seguiria a pé, já que o ferimento era no pescoço. Entretanto chega-nos a indicação da frente que tínhamos mais feridos e mortos (os átras referidos Peixoto, Vitoriano e Lourenço).

Entretanto quendo chegamos à frente, deparamos com os corpos dos nossos camaradas que jaziam no chão, dois já defuntos, e um ferido de morte, este a ser assistido pelos enfermeiros dos pelotões.

A partir daqui aguardava-se a chegada de viaturas que vinham de Guidaje. Chegadas estas, carregaram-se os mortos e feridos. Nnessa altura fui à viatura onde se encontrava o Peixoto para ver qual era o seu estado. Apertando o meu braço, diz-me ele:
- Tavares, desta vez é que eu não me safo. - Aí respondi-lhe:
- Não, tu és forte e tudo vai correr bem, tem calma.

Quando desci da viatura depois de ver os ferimentos, fiquei com a convicção de que só por milagre é que o Peixoto se safava: fora atingido por vários tiros em zonas vitais .

De seguida iniciámos a marcha rumo a Guidaje, para pouco tempo depois a coluna na frente ser novamente atacada, desta vez sem consequências de maior, para as forças que seguiam na frente, Fuzileiros e Paraquedistas, seguidas das viaturas e na retaguarda os restantes Paraquedistas que ainda tentaram fazer um envolvimento às forças do PAIGC, o que não resultou derivado à distância ser grande e as mesmas terem abandonado as suas posições de ataque.

Daqui até Guidaje não houve mais qualquer incidente. Chegados, fomos instalados ao longo das valas, montando segurança durante os dias que ai permanecemos, sete ou oito. Durante esses dias foram elementos dos Comandos Africnaos que regressavam da Operação Ametista Real (no período de 17 a 20 de Maio de 1973) na qual também participou a Companhia de Paraquedistas 121 (Assalto à base de Kumbamory) dentro do Senegal (3). Participou também o grupo do Marcelino da Mata.

Em Guidaje também aí encontrámos parte de um destacamento de Fuzileiros que aqui se encontravam sitiados há alguns dias e que pertenciam ao destacamento de Canturé.

A seguir relatarei a permanência em Guidaje durante 9 dias e o funeral dos meus camaradas paraquedistas (2).

Posto isto vou terminar: continuarei se me permitires com a continuação desta e de muitas outras não menos interessantes passagens reais das guerras da Guiné pelas quais passei.

Caro amigo e camarada Luís, despeço-me com um forte abraço.

PS.- No que atrás relato não estão incluídas algumas passagens muito importantes que entendo de momento não publicar.

________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 6 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1154: O baptismo de fogo de um paraquedista e a morte de uma enfermeira no corredor do Morés (Victor Tavares, CCP 121)

(2) Vd. post de 21 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1099: O cemitério militar de Guidaje (Manuel Rebocho, paraquedista)

(3) Vd. post de 3 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCVI: Salgueiro Maia e os seus bravos da CCAV 3420 (Guidage, Maio/Junho de 1973) (José Afonso)

Guiné 63/74 - P1211: Notas de leitura (1): O silêncio do mar, ou a inesquecível companhia que o Mário Braga me fez em Missirá (Beja Santos)

Capa da obra de Mário Braga, O Livro das Sombras. Lisboa: Arcádia, 1960 (Autores Portugueses, 13). O livro tem uma dedicatória do autor ao Beja Santos: "Para o meu jovem admirador Mário Beja com a sincera simpatia do Mário Braga. Lisboa, 8/7/61". Cinco meses antes, a 4 de Fevereiro de 1961, tinha começado oficialmente a Guerra do Ultramar. A 18 de Julho de 1961, começa a operação de cerco a Nambuangongo, ocupada pelos rebeldes nacionalistas desde o início da sublevação em Angola. Sete anos depois, o alfacinha Mário Beja Santos chega à Guiné para comandar um Pelotão de Caçadores Nativos, num obscuro lugar, no regulado do Cuor, na margem direita do Rio Geba, chamado Missirá...

Mário Braga, que se destacou sobretudo como contista e novelista, nasceu em Coimbra, em 1921. Na Universidade de Coimbra formou-se em Ciências Histórico-Filosóficas. Foi editor da revista Vértice, editada em Coimbra, a partir de 1942 e que vai ser o porta-voz do movimento (literário e artístico) do neo-realismo. Esta revista de cultura e arte foi um dos casos de maior longevidade no campo das letras e das ideias em Portugal. Um dos seus directores foi o poeta Joaquim Namorado (1914-1986).

Algumas outras obras de Mário Braga, quase todas esgotadas: Nevoeiro (contos) (1944), Caminhos sem Sol (novelas) (1948), Serranos (Contos) (1948), Mariana (novela) (1957), Quatro Réis (contos) (1957), Vale de Crugens (novela) (1958), Histórias de Vila (contos) (1958), O Cerco (Novelas) (1959)... Traduziu, entre outros livros, O Silêncio do Mar (contos), de Vercors, editado em Portugal em 1959. O original foi publicado em 1942 . Vercors era o pseudónimo literário de Jean Bruller.



Capa da edição, mais recente, do livro O Silêncio do Mar. Lisboa, Editorial Presença, 1986, c. 66 pp. Preço: c. 8 euros. Fonte: 2002 © Editorial Presença ( com a devida vénia...).


Mensagem com data de 28 de Setembro de 2006, de Mário Beja Santos (ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70:

Caro Luís, acredites ou não, tudo o quanto aqui digo é realidade sem ficção, é água tão pura que resolvi partilhá-la com todos os tertulianos. Recebe um abraço do Mário.

Caro Mário: Eu não preciso de acreditar... Não é um questão de fé nem de confiança. Somos camaradas e, mesmo sem nunca termos sido íntimos, fizemos algumas operações juntos e eu conheci as terras do tigre de Missirá... Entre camaradas não se faz batota. E nestes últimos meses, graças ao nosso blogue, eu tenho a oportunidade de te conhecer melhor. Estou-te profundamente reconhecido pelos teus testemunhos desse teu/nosso tempo... Sei que estás a reviver intensamente esses anos, irrepetíveis, únicos, da tua vida. Transmite, por favor, ao teu velho amigo Mário Braga a minha simpatia e o meu apreço. Os teus amigos do tempo de Guiné nossos amigos são. (LG)


A inesquecível companhia que o Mário Braga me fez na Guiné

por Beja Santos


Há dias, visitei Coimbra, subi à Sé Velha, demorei-me a olhar a prodigiosa entrada lateral renascentista e o casario em frente onde, em 1961, no primeiro andar em que funcionava o Instituto Maternal, conheci o Mário Braga. A minha mãe era funcionária administrativa da Maternidade Dr Alfredo da Costa e uma das suas maiores amigas, a Irene, fizera concurso para o Instituto Maternal em Coimbra, razão da sua visita à cidade do Mondego. Acompanhei-a com satisfação e a Irene disse-me:
- Vou-te apresentar ao meu chefe, que é escritor e jornalista como tu gostarias de ser. Ouve-o com atenção, pois tu precisas de ter bons mestres.

Mário Braga era indiscutivelmente um nome cimeiro do neo-realismo literário. Eu conhecia alguns dos seus contos, que achava assombrosos. Enquanto as duas amigas conversavam, o escritor, chefe de secretaria do Instituto Maternal, convidou-me para o seu escritório, falou-me do seu trabalho como editor da revista Vértice e amavelmente entregou-me três livros com dedicatória e uma braçada de revistas.

Devorei Serranos (guardo a edição com ilustrações de Cipriano Dourado) e li vezes sem conta O Livro das Sombras, mais tarde premiado, galardoado com o Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências. Nas dedicatórias, o Mário Braga desejava felicidades ao seu jovem admirador. Ao longo dos anos, fui acompanhando à distância o seu trabalho literário, levei mesmo para a Guiné o Corpo Ausente e o terceiro livro que me oferecera, O Silêncio do Mar, de Vercors que ele traduzira, penso eu nos anos 50, para a Atlântida Editora.

Vercors, de quem hoje não oiço referências, foi um resistente que usou a escrita durante a ocupação nazi. Nas antologias ainda hoje é tido como um valor permanente da literatura francesa. Mas, fenómeno dos tempos, as suas temáticas e as suas inquietações estão fora de moda. Não sabia o Mário Braga a alegria que tive quando um dia, aí para Novembro de 68, fui ao fundo de um dos baús dos meus livros e conheci O Silêncio do Mar.

É uma pequena e maravilhosa história de tolerância, de cultura e diálogo europeus, de premonição da união entre os povos da Europa, mas também de profundíssima tristeza quando se descobre a ampla dimensão da barbárie nazi. É uma história com três personagens, um ocupante e dois ocupados. O oficial alemão chama-se Werner von Ebrennac. O narrador está permanentemente acompanhado pela sua sobrinha na casa onde vive o ocupante. O oficial discursa, os ocupados ouvem-no em silêncio. São tiradas monocórdicas de um homem que se vai revelando como amante da cultura francesa, compositor musical, confia que grandes coisas acontecerão na Europa, sobretudo à França e à Alemanha, finda a guerra. A literatura para ele era a França e a música era a Alemanha. Uma viagem de von Ebrennac a Paris vai mudar radicalmente a sua confiança no diálogo que ele destinava ao futuro da Europa. O oficial idealista descobre que há desprezo pela França, que a Alemanha veio para dominar e impor uma nova ordem. Von Ebrennac no seu último monólogo anuncia que vai partir para Leste. E, primeira vez, os dois ocupados despedem-se do oficial alemão.

É um conto triste mas assente numa esperança que se veio a realizar: coube à França e à Alemanha pôr de pé o projecto europeu como o estamos a viver. Mas em Missirá o que me empolgou em von Ebrennac foi a humildade na confissão sobre os valores culturais. Assim como eu ia descobrindo a escultura, o mobiliário, os costumes, as atitudes religiosas dos guineenses, considerando-as de génio, assim me deixei seduzir por aquele alemão que queria partilhar os valores inconfundíveis da mesma civilização. Daí o entusiasmo com que li e reli O Silêncio do Mar naquelas noites de Missirá.

Com os anos, cimentei amizade com o Mário Braga. Ele veio para Lisboa a seguir ao 25 de Abril, foi Director Geral da Divulgação Cultural onde lançou projectos do maior interesse. Lembro, por exemplo os pequenos breviários de cultura onde apareceram o ensaio de Carlos Alberto Medeiros sobre Portugal e a sua geografia humana e os livros de Portugal e as suas artes e ofícios. Ele está hoje com 85 anos e muito diminuído pela mácula, mas mantém a sua memória praticamente intocável.

Falei-lhe do blogue, referi-lhe como O Silêncio do Mar desaparecera nas cinzas de uma flagelação e ele logo prontamente me cedeu o único exemplar que tem para eu reler e o trazer à vossa presença. Não há nada como ter amigos como o Mário Braga e juntá-los aos camaradas da Guiné.