Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 11 de outubro de 2006
Guiné 63/74 - P1167: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (4): Candamã, uma tabanca em autodefesa
Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > Mansambo > CART 2339 > Candamã > 1969 > O Alf Mil Torcato Mendonça e o seu Grupo de Combate em reforço do sistema de autodefesa da tabanca fula de Candamã, pertencente ao regulado do Corubal.
A população balanta e beafada do regulado estava sob controlo do PAIGC, desde o início da guerra, vivendo ao longo da margem direita do Rio Corubal. A população fula sobrevivia e resistia (mal) em meia dúzia de tabancas, pobres, em decadência, dispersas, a leste da estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole, nomeadamente depois da contra-ofensiva lançada pelo PAIGC como resposta à grande operação (1300 homens) que foi a Operação Lança Afiada (Março de 1969).
Neste tipo de aldeias, os tugas viviam em condições precárias, como as imagens documentam. Durante o dia, pouco ou nada havia para fazer... A caça era escassa e perigosa. A temperatura e a humidade do ar eram perigosas para o tuga... Vivia-se confinado ao espaço restrito da aldeia e do seu perímetro, demarcado por valas e toscos abrigos para a população, as milícias e os militares. A população local passava mal, não podendo afastar-se para longe para caçar, pescar ou lavrar os seus campos.
Para a própria tropa, havia dificuldades de abastecimento e a dieta alimentar era má. Em geral, os militares eram rendidos ao fim de quinze dias, regressando à sede da sua unidade (neste caso, Mansambo, sede da CART 2339). As tarefas de defesa monopolizavam praticamente todas as energias das NT. A coexistência com a população local era relativamente fácil mas superficial: havia sempre as barreiras étnicas, religiosas, culturais e linguísticas. As autoridades gentílicas eram gentis e hospitaleiras, mas poucos recursos para honrar a tradicional hospitalidade dos fulas.
Para os fulas, nós éramos vistos como aliados. Não éramos tropa ocupante, como acontecia nas tabancas balantas (Nhabijões ou Mero, por exemplo). Mas havia sempre tensão na nossa presença. As tabancas em autodefesa e com reforço das NT tornavam-se um alvo prioritário ou preferencial das acções da guerrilha. Era o círculo vicioso da guerra. Várias tabancas em autodefesa tornavam-se insustentáveis: lembro-me, logo no princípio da nossa comissão (CCAÇ 12), do caso de Moricanhe, Madina Xaquili... Entre ser milícia toda a vida, o jovem fula optava pela integração no exército dos tugas. Sempre dava mais prestígio e... patacão. Em último caso, havia a fuga para os países vizinhos, que eram um prolongamento do chão fula: Senegal, a norte; Guiné-Conacri, a leste e a sul...
Desgraçadamente, depois da independência, este homens que apostaram na aliança (político-militar) com os tugas (régulos, milícias, militares) pagaram uma pesada factura: em muitos casos, a perseguição, a prisão e até a própria vida... Pergunto-me: o que terá sido feito do jovem régulo [do Corubal]?
Observando as fotos do álbum do Torcato Mendonça, registo a nossa tremenda solidão, a existência de dois mundos que dificilmente conseguirão comunicar entre si, e, por fim, o voluntarismo de alguns de nós que, contra ventos e marés, ainda teimam em ser úteis aos guineenses ou, muito simplesmente, tentam cumprir a sua missão civilizadora... Uma escola é sempre uma iniciativa merecedora de aplauso... Mas não chega para justificar a tardia vocação civilizadora (no campo da saúde, da educação, do desenvolvimento...) que alguns de nós tinham a tentação (ou até a secreta esperança) de atribuir ao exército... Eis aqui, por exemplo, a escolinha que o Torcato ou alguém da sua CART 2339 se lembrou, em boa hora, em abrir... (LG).
Fotos: © Torcato Mendonça (2006) . Direitos reservados.
Continuação da publicação do álbum de fotografias do Torcato Mendonça, que ele teve a gentileza de me fazer chegar, pelo correio, através de um CD-ROM. Chamou-lhe fotos falantes (2)
4. Candamã, uma tabanca em autodefesa
Nesta tabanca vivia o Régulo António Bonco Baldé. Era uma pessoa fascinante. Foi empregado administrativo da Casa Gouveia, creio eu, ou da Ultramarina. Educado numa Missão Católica, conheceu, lá ou no emprego em Bissau, o Luís Cabral. Não me lembro.
Quando o pai faleceu, voltou ao seu Chão. Tempos depois, graduaram-no em Alferes de 2ª linha. Quando da visita de Américo Tomás, em 1968, recebeu espada e arreios de Oficial. Mas nunca teve tropa nem entrou na guerra. Ele lá sabia porquê. Sabíamos. Vestia como um Homem Grande Fula, comia na sua morança com as mãos, com os outros homens, e servido pelas suas esposas.
Acompanhei-o poucas vezes. Quando o convidava, comia com o talher. Falávamos longamente. Nunca direi o teor de algumas dessas conversas. Aprendi muito sobre os usos e costumes daqueles povos, sobre a Guerra e sobre a Vida.
Eu era um homem com 24/25 anos, o poder das armas, a deformação imposta por uma instrução dura, a convicção de que só a disciplina e o suor salvavam vidas, a dureza daquela guerra e o peso que quem comanda sente.
As autodefesas eram a forma de, concentrando melhor, defendermos aquela gente. Só que era doloroso para eles abandonarem os seus chãos. Para nós eram ordens e estas cumprem-se. Não fui incorrecto, uma vez, para o António Bonco. Ele compreendeu. Tanto assim que fiz um relatório, depois de relato dele, sobre a ida de muitos homens para a apanha da mancarra no Senegal. Era a exploração colonial daquela gente. Explorados na ida, durante o trabalho e no regresso. O câmbio do franco senegalês pelo peso guinéu era abjecto. Nós militares passávamos ao lado desse comércio…ou outras formas de escravidão.
Infelizmente, quase 40 anos depois temos os africanos em fuga.... e para onde? Saí das fotos falantes…mas África tem que ser discutida. Não é logicamente este o local, nem eu a pessoa indicada. Mas sou cidadão e não abdico a opinar. Estive lá.
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Notas de L.G.
(1) Segundo os meus registos, a CART 2339 passou a ter um pelotão (menos 1 secção) em Candamã, a partir de Junho de 1969, e uma secção em Afiá. Em Abril, tinha um pelotão em Afiá. As fprças da CART 2339 vão-se manter nestas duas tabancas em autodefesa, pelo menos até Outubro de 1969. Em 30 de Julho, Candamã irá sofrer um violentíssimo ataque. Recordo-me de ter chegado a Candamã, nessa madrugada, integrado numa força da CCAÇ 12: o cenário era o de um campo de batalha... Desolador. As forças da CART 2339 (1 pelotão) tinham-se portado heroicamente na defesa da tabanca (3).
(2) Vd. post de 5 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - P1152: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (3): Braimadicô, o prisioneiro que veio do céu
(3) Vd. post de:
29 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVIII: O baptismo de fogo da CCAÇ 12, em farda nº 3, em Madina Xaquili (Julho de 1969) (Luís Graça)
(...) "Ataque de duas horas a Candamã
"E finalmente a 30 [de Julho], o 3º e 4º Gr Comb seguiram para Candamã a fim de levar a efeito um patrulhamento ofensivo na região de Camará, juntamente com forças da CART 2339 [Mansambo](Op Guita).
"Ao chegar-se a Afiá, pelas 7.30, soube-se que Candamã tinha sido atacada durante mais de duas horas até ao amanhecer.
"Em Candamã, os dois Gr Comb da CCAÇ 12 procederam imediatamente ao reconhecimento das posições de fogo do IN, tendo estimado os seus efectivos em 60/100 elementos [1 bigrupo reforçado], armado de canhão s/r, mort 82, LGFog, metralhadora pesada 12.7, armas ligeiras automáticas.
"Havia abrigos individuais junto ao arame farpado que fora cortado em vários pontos, tendo o grupo de assalto utilizado granadas de mão.
"Em consequência da reacção das NT e da população organizada em autodefesa, o IN sofrera várias baixas, a avaliar por duas poças de sangue e sinais de arrastamento de dois corpos, além de dólmen ensanguentado que foi encontrado já num dos trilhos de retirada. Foram recolhidas várias granadas de canhão s/r e RPG-2."
"Do lado das NT houve 5 feridos (1 dos quais grave) e da população dois mortos e vários feridos graves, além de danos materiais (moranças destruídas, etc.].
"O facto do IN ter retirado ao amanhecer indicava que deveria ter um ou mais acampamentos a escassas horas de Candamã. A corroborar esta hipótese, o aquartelamento de Mansambo seria flagelado na tarde desse mesmo dia.
"A Op Guita não forneceu, porém, qualquer pista que levasse a detecção do IN na região de Camará" (...).
(...)
30 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969) (Luís Graça)
(...) O ataque a Candamã [, tabanca em autodefesa, atacada durante mais de duas horas até ao amanhecer do 30 de Julho, ] surgiu, de resto, na sequência do recrudescimento da actividade IN no tradicional triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, após a Op Lança Afiada (...).
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