1. Mensagem do nosso camarada Carlos Silva, ex-Fur Mil At Armas Pesadas da CCAÇ 2548, Jumbembem, 1969/71, com data de 29 de Setembro de 2008
Assunto: Ataque ao Aquartelamento de TITE
Amigo Luís
Aqui vai um trabalho que acabo de publicar no nosso SITE
http:/www.carlosilva-guine.com/
Penso que seria bastante interessante também publicares no Blogue. É inédito e é oportuna a sua publicação.
No Site eu tenho a disposição do trabalho um pouco diferente. Podes adaptá-lo como entenderes.
2. Caros Amigos e Camaradas
Da vasta bibliografia que possuo e li sobre a Guiné, Guerra da Guiné, Guerra Colonial, cerca de 200 livros, jornais, revistas e filmes que tenho visto na TV e em DVD, nada li ou vi de forma desenvolvida sobre os acontecimentos do início da Guerra na Guiné, relativamente ao ataque ao Aquartelamento de TITE, em 23 de Janeiro de 1963, levado a efeito pelos guerrilheiros nacionalistas, data invocada em todos os meios de comunicação referidos, sendo que alguns fazem breves referências a tais acontecimentos, não desenvolvendo algo sobre os factos que ali se passaram, a não ser a data em que efectivamente teve lugar o início da luta armada levada a efeito pelo PAIGC.
Contudo, no Blogue do
Luís Graça & Camaradas da Guiné, há uma referência a um combatente da liberdade da Pátria, Arafan Mané, falecido em 2004, como sendo o guerrilheiro que deu o primeiro tiro em 23 de Janeiro de 1963, no ataque ao Aquartelamento de TITE e nada mais.
Pois é, mas também temos do nosso lado, um camarada que foi o primeiro a reagir e a responder com o primeiro tiro a esse ataque, de nome Gabriel Moura, também falecido em 2004 e que naquele dia e àquela hora estava de serviço de sentinela.
O Gabriel Moura, apesar de mais velho, foi meu amigo desde infância e de escola, tendo eu sempre convivido com ele e mais de perto nos últimos 2 ou 3 anos antes da sua morte, apesar da distância que nos separava, 330 Km.
Mas, o tema da guerra, comum aos dois, foi um factor de união, pelo que, partilhei com ele no contacto com alguns camaradas dele, na recolha de elementos, bem como prestei o meu pequeno contributo para a elaboração da sua publicação, não editada, sobre o ataque a TITE.
O Gabriel, antes de falecer de doença grave, demonstrou vontade e força para escrever alguma coisa sobre a primeira batalha da guerra, o que fez, e, posteriormente, mandou fazer 50 brochuras e distribuir pelos camaradas no último almoço em que participou.
Deixando assim o seu testemunho, narrando os factos na 1ª pessoa, tal como os viveu e sofreu na pele.
Nas páginas que se seguem podem, assim, ler, algumas referências bibliográficas alusivas à data do início das hostilidades, o
curriculum do combatente Arafan Mané e o testemunho do nosso camarada Gabriel Moura e que o destino uniu estes dois guerrilheiros de campos opostos no primeiro, acabando por uni-los no ano da sua morte.
A quem participou nos acontecimentos, que já devem ser poucos, agradecemos que contribuam para o esclarecimento deste facto histórico tão importante.
Carlos Silva
Ex-Fur Mil
CCaç 2548/BCaç 2879
Massamá, 20 de Setembro de 2008
Vd. poste de 18 de Outubro de 2007 >
Guiné 63/74 - P2190: PAIGC: Quem foi quem (4): Arafan Mané, Ndajamba (1945-2004), o homem que deu o 1º tiro da guerra (Virgínio Briote)
3. ATAQUE AO AQUARTELAMENTO DE TITE > 23 de Janeiro de 1963 > Início da Guerra na Guiné
Por Gabriel Moura
Guiné > Região de Quínara > Sector de Tite > Unidades que passaram por Tite entre 1961 e 1963: entre elas o Pelotão de Morteiros 19, a que pertencia o Gabriel Moura, e que integrava o BCAÇ 237.
5.11 - Considerações prévias ao ataque de Tite
Chegou a hora de eu entrar ao serviço [da meia noite até às 2 horas], de vigia ao aquartelamento de Tite, tendo de percorrer o caminho, pelo lado de fora do arame farpado, com as luzes de iluminação colocadas dentro do aquartelamento e projectando o seu foco para o caminho que eu tinha de percorrer, desde a messe dos sargentos [parte de baixo, fora do aquartelamento] até à messe dos oficiais [parte de cima e fora do aquartelamento], na estrada que passava por Tite e seguia para Nova Sintra, Fulacunda e Buba.
Guiné > Região de Quinara > Sector de Tite > 1961/63 > Quartel de Tite > Regresso de 1 patrulhamento do Pel Mort nº 19
© Foto Gabriel Moura
De facto, desde o primeiro minuto da minha vigia, senti, como se diz na gíria, "um arrepio pelas costas abaixo", que me causou uma desagradável sensação e um pressentimento deveras esquisito, face ao aparentemente, e de acordo com o zero de informação de que os responsáveis davam às tropas, nada havia a recear!
Como de costume, naquela noite, éramos três militares em vigia:
Eu, como referi, na frente do aquartelamento, percorrendo para baixo e para cima com as luzes a "bater-me nas costas" e do lado do mato, negro como carvão. Outro colega,
[ver excerto do Diário cedido por Armando Silva,
Noite de 22 para 23 de Janeiro de 1963, referenciado ao longo do texto] fazia a vigia na porta da prisão, [dentro do aquartelamento] onde estavam mais de cem pretos presos. Outro ainda, fazia a vigia do lado do
Calino mas pela parte de dentro do arame farpado. Somente eu é que fazia a vigia pela parte de fora do arame farpado.
Guiné > Região de Quinara > Sector de Tite > 1961/63 > Quartel de Tite> Gabriel Moura, junto ao Cavalo de Frisa
© Foto Gabriel Moura
Quando cheguei, na minha primeira passagem junto do
Cavalo de Frisa, que dava entrada aos veículos pesados e ligeiros no aquartelamento pela parte da frente, pensei que aquela noite iria ser como tantas outras: um combate sem tréguas aos milhões de "sanguinários inimigos" que em nossa volta tentavam sugar-nos o sangue e os pensamentos [, os mosquitos].
Mas não iria ser assim. De facto, quando eu dei meia volta, para fazer a parte ascendente do caminho, comecei a ouvir muito ao longe, numa Tabanca que eu identifiquei pelo latido dos cães ser Fóia. O forte latido de cães causou-me uma forte reacção e interrogação, pois, àquela hora, não era costume os pescadores irem para a bolanha ou para o rio Geba pescar. E, mesmo se isso acontecesse, parecia não bater certo tratar-se de naturais da Tabanca, pois os cães poderiam ladrar alguns minutos mas logo se calavam por conhecerem as pessoas. A permanência dos latidos, por mais tempo do que eu achava razoavelmente para eles reconhecerem as pessoas, levou-me a considerar que estariam, concerteza, por lá pessoas estranhas e, como eram bastantes latidos, implicava tratar-se de agitação de pessoas estranhas em grande quantidade para o normal quotidiano...
Estas e outras constatações do meu raciocínio puseram-me com um novo sentimento que me obrigou a meditar no que se estaria a passar por lá.
Entretanto, ao fim de algum tempo, o número de latidos diminuiu, no meu entender porque as pessoas tinham começado a sair de lá ou a acomodarem-se por lá e os cães foram abandonando a sua agitação.
Porém, tudo, nesse momento, estava a causar-me forte impressão de um mau estar! Até os mosquitos voavam em minha volta com uma intensidade e zumbido muito superior ao habitual!
Parecia, até, que conseguia ver naqueles minúsculos "inimigos" uma força diferente de ataque, pois penetravam por todos os buracos que apanhavam no corpo e, ferozmente, cravavam os seus "projécteis" no local certo, causando-me dores diferentes das que já estava habituado.
Eram também, os morcegos, e os milhões doutros seres nocturnos, que pareciam querer dizer-me qualquer coisa " aos ouvidos " ou eu sentia que eles eram portadores de uma mensagem impressa pelas histórias, de uma vivência sofrida de povos perdidos e maltratados longe, muito longe, das suas famílias, das suas coisas, das suas tradições, dos usos e dos costumes e da força da terra que os pariu.
Até parecia que os répteis nocturnos, quase sempre assustados com o bater das botas no chão vermelho, que levantavam o pó seco e cheio de milhões de parasitas largados pelos cães lazarentos, quando estes os sacudiam das feridas crónicas do lombo ou das pernas para ao chão, surgiam espreitando-me, com um ar ameaçador, como que a dizer:
Eu ferro-te, intruso!
Eram muitos e muitos os elementos do reino da natureza que se manifestara numa sensação de ataque: As libelinhas esbarravam-se contra o meu rosto, como nunca tinha acontecido, as mangas caíam como nunca, tentando atingir-me em qualquer parte do corpo. Era um sem fim de coisas esquisitas, para o meu gosto!
Até que, bem ao fundo das primeiras palhotas de Tite, começaram a ladrar alguns cães. Alguns latidos que eu até conhecia, daqueles cães que coabitavam connosco, no aquartelamento na sua busca de comida que sempre sobrava, relativamente à dos seus donos e que, por isso, eles, todos os dias, atravessavam o arame farpado ou entravam pela
porta principal sempre aberta aos
visitantes, e lá se apresentavam para
tacho, criando-se elos de amizade.
Foi quando eu, ao ouvir esses latidos, senti ainda um calafrio mais forte. Precisamente, quando estava junto do
cavalo de frisa, da parte de baixo do aquartelamento e começava a minha vigia para a parte de cima da zona da messe dos oficiais, o meu subconsciente
indicou-me que algo de diferente se estava a passar, de facto, naquela noite!!!
À medida que os cães começavam mais a ladrar, em mais quantidade e mais perto donde estava, eu caminhava sem deixar, jamais, de olhar para trás na direcção do mato [que nada via, pois eu é que estava a ser iluminado, logo é que era visto]. Os meus passos passaram a ser tensos e os meus dedos estavam crispados no gatilho da metralhadora G3 que já tinha colocado em posição de fogo.
Enquanto caminhava ia formando, na minha mente, que se tratava de algo muito diferente. Ao chegar junto da entrada do aquartelamento que ficava em frente da
casa da guarda , os cães ladravam já perto do aquartelamento de Tite e por trás do paiol das munições, bem como por toda aquela zona da messe dos sargentos até à messe dos oficiais.
Eu nada via, e nada sabia! ... Seriam pescadores, bêbados de qualquer batuque ou manifestação nocturna?!
Não me parecia!? ... Mas qual a certeza destas situações?!
Todos dormiam, apenas os três militares de serviço estavam acordados [pelo menos não estavam deitados].
Na casa da guarda, o Zeferino, [cabo da guarda naquela noite, ] o Armando Silva, o Alfredo, o Francisco, o Santos, o Adão e outros que estavam de serviço, todos passavam pelas brasas, pois que, de duas em duas horas, lá tinham que render os de vigilância, o que iria acontecer às duas da madrugada.
Guiné > Região de Quinara > Sector de Tite > 1961/63 > Quartel de Tite > Dois gondomarenses > À esq o Gabriel Moura, à dta o Zeferino [ambos já falecidos]
© Foto Gabriel Moura
Mas o destino jamais iria permitir a rotina e a normalidade, e tudo se iria modificar ,
transformar em 360 . Não só em Tite, como em toda a Guiné, no futuro, até 1974 e, se calhar, posteriormente, sem as tropas portuguesas mas com conflitos internos, bem diferentes dos que são, se eu tivesse sido abatido!? Talvez a organização política, económica e social deste país, passasse a ser conduzida com paz e benefícios humanos, onde todos pudessem participar....
Ninguém sabia como deveria reagir a tais situações!
A nossa preparação nos quartéis, durante o período de recruta, nada tinha a ver com
guerras deste tipo, possíveis ataques do tipo de guerrilha, ataques a aquartelamentos, etc.
Nada, absolutamente nada!?
Posso acrescentar que, logo após a passagem de recruta a
pronto, como se diz, cada um cristalizou suas tarefas da sua especialização ou passou a desempenhar outras, até passar à disponibilidade [nada tinha a ver com guerras ou guerrilhas...].
Depois, todos nós fomos, como já referi, apanhados em casa para embarcarmos com destino à Guiné, sem ter qualquer preparação, militar, psicológica, ou de meios, etc. Característica típica e histórica das tropas portuguesas mobilizadas para o Ultramar.
Recrutamento de militares para a guerra do Ultramar Português, uma questão para analisar e que se espelha em volta do que se passou, quer antes, quer no dia do ataque armado ao aquartelamento de Tite... Situação onde estávamos todos, incluindo eu, o único militar que teve de enfrentar os terroristas nesse ataque e suster a sua concretização até ao apoio das restantes tropas...
Tentar focalizar imagens reais de que nós enfrentámos é uma questão difícil bem como as tentativas de interpretação para quem não esteve presente, mesmo os que estavam no aquartelamento e vieram a ser os artistas do espectáculo do ataque ao aquartelamento de Tite, a contar com a repentina saída da soneira, têm dificuldade em escalpelizar este cenário.
Podemos, eventualmente, considerar que, para quem já esteve ou fez parte de situações próximas, onde a vida deixou de contar, seja mais fácil poder integrar-se no que se passou.
E como cada caso é um caso e, para os meus camaradas que tiveram,
por imposição de representar a dita quota parte do espectáculo" quero dizer que a descrição, que irei fazer, erra por defeito sobre o que se passou na realidade e a minha transfiguração humana para uma outra dimensão, não foi mais do que arrastar o corpo pela força do espírito, numa ligação de êxtase que só acontece em sonhos ou em situações que ultrapassam, pela rapidez de imagem e situações, os sentidos biológicos e humanos.
As reacções e atitudes, as decisões e os comportamentos, a verdade e o acaso, tudo se reúne numa forma onde o homem e o pensamento passam para outra dimensão, reagindo sob instintos, pela sorte, pelos reflexos e se calhar, por mão divina?!
Uma coisa é verdade, para se ligar todos os pormenores e elementos à posterior, exige um esforço que deixa a certeza de que milhões de outros pormenores e situações que não foram possíveis contemplar numa descrição!
Porque é que eu, quando caminhava no sentido ascendente do caminho, mal dava um passo olhava para trás?!...
Era medo, era pressentimento?
Não sabia distinguir. O meu cérebro fixou-se e os meus sentidos passaram a trabalhar sob um controlo distinto do meu raciocínio! Como se diz na gíria: "estava em pulgas" [melhor dizendo: mosquitos, pois eram milhões em minha volta com um zumbido tão intenso e penetrante, que eu sentia-me completamente perturbado, percebem o trocadilho?! ].
(Continua)