Foto: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados
1. Amigos e camaradas:
Deixem-me recuperar, do nosso blogue, I Série, este poste do nosso querido amigo e camarada Paulo Raposo que tem estado em blackout total há meses... Julgo que continua lá para o seu Alentejo profundo, na Herdade da Ameira...
Confesso que não sei por que raio comecei a usar, nesse já saudoso blogue (onde tudo começou... por volta de Abril de 2005), a numeração romana que ninguém entende, nem os romanos nem eu próprio...Aqui fica o poste, o nº 733 (*)...
Recorde-se que que o Paulo fazia parte do grupo dos baixinhos de Dulombi, juntamente com o Rui Felício, Victor David e o Jorge Rijo, todos eles Alf Mil da CCAÇ 2405 / BCAÇ 2852... Creio que é a única unidade que tem reunidos, na nossa Tabanca Grande, todos os seus antigos Alf Mil... São, além disso, um grupo de amigos do peito, que se encontram, com regularidade, com as respectivas caras metade... Ou já não é tanto assim, meu caros Paulo, David, Rui e Jorge ?
Devo ainda recordar que o Paulo foi o organizador do I Encontro Nacional da nossa Tabanaca Grande (nessa altura, Outubro de 2006, ainda e tão só Tertúlia)... Quero dizer ao Paulo que estamos com saudades dele... E daqui vai um grande Alfa Bravo, para ele, esperando que os negócios hoteleiros lhe estejam a correr bem... Prometo um belo dias destes fazer-lhe uma visita. Ando há tempos passar um fim de semana em Montemor-O-Novo, uma terra que merece bem uma visita prolongada pelo seu património, pelas suas gentes hospitaleiras, pela sua programação cultural e... pela sua gastronomia. L.G.
VI parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).
Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 18-22.
Mansoa: Baptismo de fogo (*)
O sacrifício era muito. Vou contar uns episódios dos muitos que por lá passámos:
(i) Após a nossa chegada a Mansoa, foi-nos distribuído o material de guerra. Já armados, fomos para uma bolanha, nome que se dava a um grande charco de água, que enchia com a chuva.
Esta bolanha ficava para além de uma companhia de balantas, que fazia a protecção do nosso quartel. Naquela zona de Mansoa, sair fora do arame farpado tinha riscos.
Este exercício tinha como objectivo habituarmo-nos a estar debaixo de fogo. Deita-se um grupo de combate, e por cima deste, faz-se fogo.
Aconteceu que logo no primeiro exercício, quando estava o primeiro grupo de combate deitado, há um disparo que sai mais baixo e vai ferir em ambas as pernas um soldado. Depressa foi chamada uma viatura, para o levar rapidamente para o Hospital. Para aquele rapaz, a comissão terminou ali.
Este acidente foi muito desmoralizante para os restantes e mais nenhum outro exercício foi feito. Perguntei-me nessa altura como iria sair dali.
(ii) Um belo dia o meu grupo de combate estava encarregue de levar e proteger os homens que iam limpar do capim uma faixa grande de ambos os lados da estrada. Assim evitávamos que tivessemos emboscadas coladas à picada.
Dirigimo-nos para o local de trabalho em duas viaturas. Parámos precisamente no sítio aonde tínhamos terminado o trabalho no dia anterior, ou seja ainda na zona já descapinada.
Quando parámos, saltaram do capim alguns elementos IN para a estrada. Fizemos fogo, eles fugiram e não responderam. Se tivéssemos parado 50 metros mais à frente, tínhamos caído na emboscada.
Recuperados da emoção, os homens começaram o seu trabalho e eu dirijo-me para um tronco de árvore, que estava caído, para me sentar. Ao aproximar-me do tronco, este mexe-se. Era uma gibóia, com sete metros de comprido. Enfiei-lhe um carregador em cima e ela continuava bem viva. O Cabo enfermeiro Luís, agarra num tronco de um ramo verde, e, pondo-se à frente dela, bate-lhe continuamente na cabeça, até a cobra se ver perdida.
Uma vez perdida, morde-se a ela própria, para não se humilhar à mão do enfermeiro Luís.
(iii) Durante as muitas operações de patrulhamento que fazíamos, tivemos numa delas o nosso baptismo de fogo.
Depois de termos passado o dia a andar, paramos para passar a noite. Íamos a nível de companhia. Ao levantarmo-nos, de madrugada, iniciámos o regresso. Estava muito húmido.
Por cima de nós estava o PC em DO para controlar a nossa progressão.
O PC era o nome que dávamos ao Posto de Comando e o DO era um monomotor da Força Aérea, mais precisamente DO-27. Em determinadas operações um posto de comando era enviado para controlar a progressão da força no terreno, e para ter a certeza que esta atingia o objectivo da operação.
Era a maneira evoluída e mais humana do que se fazia nas guerras convencionais de trincheira.
Quando se pretendia fazer um avanço em linha nas forças inimigas a estratégia era a seguinte:
A artilharia bombardeava durante três dias as trincheiras inimigas, para as aniquilar fisicamente, criar um clima de terror e de ansiedade no inimigo, destruindo-o psicologicamente também, dado que não tinham descanso naqueles dias. De seguida dava-se ordem às nossas tropas para avançarem. Imediatamente a artilharia passava a bombardear as nossas trincheiras, para ter a certeza que ninguém ficava para trás.
Hoje, do ponto de vista comercial, os técnicos das mais avançadas empresas de Sillicon Valley dizem:
- Obtem-se o que se inspecciona, não o que se espera.
Este assunto já vem descrito na Sagrada Bíblia. Só depois do dono da seara mandar aparelhar o cavalo, é que as cotovias dizem umas para as outras:
- Agora sim, irmãs, é hora de irmos embora. - Mandar os criados : não basta, é preciso acompanhá-los.
De repente ficámos debaixo de um grande tiroteio, com a irritante costureirinha, assim lhe chamavamos, à PPSH do inimigo, a bater por cima de nós. Era uma arma automática, que tinha uma maneira muito característica de fazer fogo.
Instala-se a surpresa e o medo. Quando a nossa resposta se inicia, o medo desaparece, passamos a dominar a situação, e vá de levantar e sair rapidamente da zona de morte. Depois de tanto barulho, tiros e granadas, pensamos que haverá alguns mortos e feridos. Nada disso. Nada aconteceu. Nossa Senhora vai-nos protegendo.
Quando isto acontece na segunda vez notamos que é quase impossível haver vítimas e é então que se instala a confiança.
Havia pois três períodos distintos durante a Comissão: O primeiro, o da chegada, era o do medo do desconhecido, o medo de não sabermos controlar as situações que nos apareciam. O segundo era o da auto confiança, em que nos considerávamos os maiores. Nada nos intimidava. O terceiro era a fase final. Era o pior pois a pouco tempo do embarque e já com a comissão prestes a acabar, tínhamos medo que algo nos acontecesse. Era a fase do tirem-me daqui.
(iv) Todos os dias havia uma coluna que ia a Bissau e que era acompanhada por um grupo de combate para protecção dos carros. Na volta a coluna formava-se junto ao Hospital Militar.
Sempre que eu ia a Bissau costumava subir à enfermaria dos oficiais para saber se lá estava alguém conhecido. Numa dessas vezes entro e vejo um rapaz amigo, o Alvarez. Tinha entrado comigo para Mafra. Naquela altura, ele tinha um DKW que se via aflito para subir a ladeira de Cheleiros [, estrada de acesso a Mafra].
Era Alferes dos Comandos e, numa operação no Sul, contou-me ele, ia em terceiro lugar e deu de caras com o inimigo, num trilho. Depois da troca de tiros, há uma granada de bazuca do inimigo que explode nas árvores e os estilhaços choveram sobre ele.
Coitado, estava todo esburacado. Depois de várias operações, ficou bom e é hoje um dos melhores comandantes da TAP. Já tive a sorte de voar com ele uma vez.
____________
Nota de L.G.:
Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 18-22.
Mansoa: Baptismo de fogo (*)
O sacrifício era muito. Vou contar uns episódios dos muitos que por lá passámos:
(i) Após a nossa chegada a Mansoa, foi-nos distribuído o material de guerra. Já armados, fomos para uma bolanha, nome que se dava a um grande charco de água, que enchia com a chuva.
Esta bolanha ficava para além de uma companhia de balantas, que fazia a protecção do nosso quartel. Naquela zona de Mansoa, sair fora do arame farpado tinha riscos.
Este exercício tinha como objectivo habituarmo-nos a estar debaixo de fogo. Deita-se um grupo de combate, e por cima deste, faz-se fogo.
Aconteceu que logo no primeiro exercício, quando estava o primeiro grupo de combate deitado, há um disparo que sai mais baixo e vai ferir em ambas as pernas um soldado. Depressa foi chamada uma viatura, para o levar rapidamente para o Hospital. Para aquele rapaz, a comissão terminou ali.
Este acidente foi muito desmoralizante para os restantes e mais nenhum outro exercício foi feito. Perguntei-me nessa altura como iria sair dali.
(ii) Um belo dia o meu grupo de combate estava encarregue de levar e proteger os homens que iam limpar do capim uma faixa grande de ambos os lados da estrada. Assim evitávamos que tivessemos emboscadas coladas à picada.
Dirigimo-nos para o local de trabalho em duas viaturas. Parámos precisamente no sítio aonde tínhamos terminado o trabalho no dia anterior, ou seja ainda na zona já descapinada.
Quando parámos, saltaram do capim alguns elementos IN para a estrada. Fizemos fogo, eles fugiram e não responderam. Se tivéssemos parado 50 metros mais à frente, tínhamos caído na emboscada.
Recuperados da emoção, os homens começaram o seu trabalho e eu dirijo-me para um tronco de árvore, que estava caído, para me sentar. Ao aproximar-me do tronco, este mexe-se. Era uma gibóia, com sete metros de comprido. Enfiei-lhe um carregador em cima e ela continuava bem viva. O Cabo enfermeiro Luís, agarra num tronco de um ramo verde, e, pondo-se à frente dela, bate-lhe continuamente na cabeça, até a cobra se ver perdida.
Uma vez perdida, morde-se a ela própria, para não se humilhar à mão do enfermeiro Luís.
(iii) Durante as muitas operações de patrulhamento que fazíamos, tivemos numa delas o nosso baptismo de fogo.
Depois de termos passado o dia a andar, paramos para passar a noite. Íamos a nível de companhia. Ao levantarmo-nos, de madrugada, iniciámos o regresso. Estava muito húmido.
Por cima de nós estava o PC em DO para controlar a nossa progressão.
O PC era o nome que dávamos ao Posto de Comando e o DO era um monomotor da Força Aérea, mais precisamente DO-27. Em determinadas operações um posto de comando era enviado para controlar a progressão da força no terreno, e para ter a certeza que esta atingia o objectivo da operação.
Era a maneira evoluída e mais humana do que se fazia nas guerras convencionais de trincheira.
Quando se pretendia fazer um avanço em linha nas forças inimigas a estratégia era a seguinte:
A artilharia bombardeava durante três dias as trincheiras inimigas, para as aniquilar fisicamente, criar um clima de terror e de ansiedade no inimigo, destruindo-o psicologicamente também, dado que não tinham descanso naqueles dias. De seguida dava-se ordem às nossas tropas para avançarem. Imediatamente a artilharia passava a bombardear as nossas trincheiras, para ter a certeza que ninguém ficava para trás.
Hoje, do ponto de vista comercial, os técnicos das mais avançadas empresas de Sillicon Valley dizem:
- Obtem-se o que se inspecciona, não o que se espera.
Este assunto já vem descrito na Sagrada Bíblia. Só depois do dono da seara mandar aparelhar o cavalo, é que as cotovias dizem umas para as outras:
- Agora sim, irmãs, é hora de irmos embora. - Mandar os criados : não basta, é preciso acompanhá-los.
De repente ficámos debaixo de um grande tiroteio, com a irritante costureirinha, assim lhe chamavamos, à PPSH do inimigo, a bater por cima de nós. Era uma arma automática, que tinha uma maneira muito característica de fazer fogo.
Instala-se a surpresa e o medo. Quando a nossa resposta se inicia, o medo desaparece, passamos a dominar a situação, e vá de levantar e sair rapidamente da zona de morte. Depois de tanto barulho, tiros e granadas, pensamos que haverá alguns mortos e feridos. Nada disso. Nada aconteceu. Nossa Senhora vai-nos protegendo.
Quando isto acontece na segunda vez notamos que é quase impossível haver vítimas e é então que se instala a confiança.
Havia pois três períodos distintos durante a Comissão: O primeiro, o da chegada, era o do medo do desconhecido, o medo de não sabermos controlar as situações que nos apareciam. O segundo era o da auto confiança, em que nos considerávamos os maiores. Nada nos intimidava. O terceiro era a fase final. Era o pior pois a pouco tempo do embarque e já com a comissão prestes a acabar, tínhamos medo que algo nos acontecesse. Era a fase do tirem-me daqui.
(iv) Todos os dias havia uma coluna que ia a Bissau e que era acompanhada por um grupo de combate para protecção dos carros. Na volta a coluna formava-se junto ao Hospital Militar.
Sempre que eu ia a Bissau costumava subir à enfermaria dos oficiais para saber se lá estava alguém conhecido. Numa dessas vezes entro e vejo um rapaz amigo, o Alvarez. Tinha entrado comigo para Mafra. Naquela altura, ele tinha um DKW que se via aflito para subir a ladeira de Cheleiros [, estrada de acesso a Mafra].
Era Alferes dos Comandos e, numa operação no Sul, contou-me ele, ia em terceiro lugar e deu de caras com o inimigo, num trilho. Depois da troca de tiros, há uma granada de bazuca do inimigo que explode nas árvores e os estilhaços choveram sobre ele.
Coitado, estava todo esburacado. Depois de várias operações, ficou bom e é hoje um dos melhores comandantes da TAP. Já tive a sorte de voar com ele uma vez.
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Nota de L.G.:
(*) Vd. poste de 8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo
2 comentários:
Caros amigos Luís e Raposo:
Um abraço para todos e é só para informar que com esta guerra toda contada pelo Raposo, ainda conseguimos estar vivos e, sobretudo, sermos enormes amigos e... para sempre!
Victor David
1. O Paulo Raposo teve a gentileza de me mandar o seguinte comentário:
Caro Luís
Vi um apontamento de um relato meu no teu e nosso blogue.
Te agradeço a lembrança e o afecto, bem hajas.
Tanto por cá como por África isto está tudo podre e vejo ainda muita gente a querer vender este regime como bom.
A honra de um Homem foi substituída por leis. A palavra já não faz fé, apenas a prova.
Gostava de ver outros temas discutidos no blogue:
(i) O heroísmo do soldado português;
(ii) A confiança que os soldados depositavam em nós, os quadros;
(iii) A nosso passagem por África, que benefício social, económico trouxe para Portugal;
(iv) A nossa religiosidade, de então e actual, e porquê a diferença;
(v) As nossas famílias, que amarguras passaram por cá aquando da nossa ausência.
Isto dá pano para mangas...
Um abraço para ti deste teu amigo
Paulo
plural.lda@mail.telepac.pt
2. Comentário de L.G.:
Paulo: É tão bom saber que estás vivo da costa, embora desencantado...
As tuas sugestões temáticas, para o nosso blogue, serão bem acolhidas por todos nós... Oxalá haja mãos para tocar o piano, quer eu dizer, o teclado do computador...
Um Alfa Bravo. Até Montemor!
Luís
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