Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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terça-feira, 19 de abril de 2022
Guiné 61/74 - P23181: Efemérides (365): Passaram 97 anos da Revolta de 18 de Abril de 1925, em que participou o meu pai (Carlos Pinheiro, ex-1.º Cabo TRMS/QG/CTIG)
1. Em mensagem de 18 de Abril de 2022, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), conta-nos que o seu pai, Joaquim Branco Pinheiro, há 97 anos, participou na Revolta de 18 de Abril de 1925, também conhecida como Golpe dos Generais:
Faz hoje 97 anos que o meu pai andava metido na Revolução do 18 de Abril de 1925.
Era militar no Grupo de Baterias de Artilharia a Cavalo, de Queluz, cujo Comandante era um Botelho Moniz.
Saíram para a rua, juntamente com outras Unidades, mas foram derrotados e o golpe falhou.
Foram todos presos para o Castelo de S. Jorge e depois, presos, ainda, foram para Vendas Novas onde juraram bandeira pela segunda vez.
A cena repetiu-se no 28 de Maio de 1926, perderam a revolução, foram presos para o Castelo de S. Jorge novamente e foram também para Vendas Novas onde juraram Bandeira mais uma vez.
Em anexo vai uma foto da equipa junto da peça de artilharia.
O meu pai, Joaquim Branco Pinheiro, nascido em Alcanena em 8 de Maio de 1904, é o terceiro na foto a contar da esquerda.
Era o tempo daquele tempo.
Carlos Pinheiro
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Nota do editor
Último poste da série de 17 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23176: Efemérides (364): Tempo de recordar - Guerra Colonial, O Calvário de Uma Geração - 50 anos decorridos sobre a tragédia de Quirafo, 17 de Abril de 1972 (Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf)
sábado, 7 de março de 2020
Guiné 61/74 - P20708: (D)o outro lado do combate (58): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte V (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)
Inácio Soares de Carvalho [Naci, Nacy ou Nassi Camará, nome de guerra] [foto: arquivo da família] |
Rafael Barbosa [Zain Lopes, nome na clandestinidade] [foto de Leopoldo Amado, Bissau, 1989] |
Com a prisão de ambos, em narço de 1962, o PAI / PAIGC fica decapitado, na Zona 0 (Bissau) (*). Ao Naci Camará foi "fixada residência" no Campo de Chão Bom, Tarrafal, Santiago, Cabo Verde. Zain Lopes ficou em Bissau, com a "obrigação" de se apresentar todos os dias na sede da PIDE...
Carta de Amílcar Cabral para Nacy [Nassi ou Naci...] Camará, com data de 1 de abril de 1962, reagindo com muita emoção à notícia da prisão de Rafael Barbosa [Zain Lopes] e outros dirigentes do PAI [PAIGC] da Zona 0 [Bissau]... e dando instruções aos militantes que escaparam...
O destinatário, o Inácio Soares de Carvalho, já não chegaria a ler esta carta, uma vez que também ele caira, quinze dias antes, em 15/3/1962, nas mãos da PIDE... Foi um golpe duríssimo para Amílcar Cabral e para o seu partido, o PAI (mais tarde, já em 1962,PAIGC), que ficou decapitado, pelo menos na Zona 0 (Bissau) (**). Rafael Barbosa era o presidente do comité central, e figura de prestígio entre os mais jovens.
De entre as 10 ações que o secretário-geral, a partir de Conacri, preconiza, destaque para a nº 5:
"Levar o povo - todos os trabalhadores de todos os ramos - a não fazer nada para os portugueses, a não trabalhar, a não pagar impostos, a desprezar os colonialistas. Começar a matar os agentes da PIDE. (sic")
Citação:
(1962), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_37408 (2020-3-6) (Com a devida vénia...)
Fonte:
(1962), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_37408 (2020-3-6) (Com a devida vénia...)
Fonte:
Portal Casa Comum
Instituição:
Fundação Mário Soares
Pasta: 04609.055.004
Muitos destes factos, que hoje pertencem à Hustória dos nossos países (Portugal, Guiné-Bissau, Cabo Verde), são, ainda desconhecidos da grande maioria dos nossos leitores.
2. Continuação da publicação de excertos do manuscrito "Memórias da Luta Clandestina" (entretanto publicado, na Praia, capital de Cabo Verde,e lançado, no passado dia 30 de janeiro) (***).
Fundação Mário Soares
Pasta: 04609.055.004
Assunto: Notícias sobre a prisão de Zain Lopes , Momo e Albino.
Instruções em relação à prisão dos referidos camaradas.
Remetente: Amílcar Cabral
Destinatário: Nacy Camara
Data: Domingo, 1 de Abril de 1962
Observações: Doc. incluído no dossier intitulado Correspondência dactilografada 1962-1964.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral
1. Recorde-se o que escreveu aqui Leopoldo Amado (historiador e nosso grã-tabanqueiro: tem 86 referências no nosso blogue, ) a propósito destes acontecimentos de março de 1962, que foram um duro revés para o PAI (sigla reformulada em finais de 1962, em que passou a ser PAIGC)(**):
1. Recorde-se o que escreveu aqui Leopoldo Amado (historiador e nosso grã-tabanqueiro: tem 86 referências no nosso blogue, ) a propósito destes acontecimentos de março de 1962, que foram um duro revés para o PAI (sigla reformulada em finais de 1962, em que passou a ser PAIGC)(**):
(...) "O estabelecimento da sede do PAI em Bissalanca data de 1959, tendo funcionado até Fevereiro de 1962, altura [, na madrugada do dia 13 de março de 1962,] em que foi detectada e tomada de assalto pela PIDE com a ajuda de elementos do Exército português, tendo aí sido presos Rafael Barbosa, Momo Turé, Paulo Pereira de Jesus e outros elementos proeminentes do PAI surpreendidos em pleno sono.
"Com a sede do PAIGC tomada de assalto pela PIDE e preso Rafael Barbosa, seu principal animador, foi desmantelada a rede clandestina do PAIGC em Bissau.
"Com a sede do PAIGC tomada de assalto pela PIDE e preso Rafael Barbosa, seu principal animador, foi desmantelada a rede clandestina do PAIGC em Bissau.
"A alguns nacionalistas foram fixadas residência em Chão Bom, Tarrafal, excepto Rafael Barbosa que a troco de "colaboração", foi-lhe fixada a obrigatoriedade de se apresentar todos os dias na sede da PIDE em Bissau. Foi apreendido na sede do PAIGC imenso material de propaganda que incluía inúmeros panfletos, correspondências de Amílcar Cabral, para além de armas." (...)
Muitos destes factos, que hoje pertencem à Hustória dos nossos países (Portugal, Guiné-Bissau, Cabo Verde), são, ainda desconhecidos da grande maioria dos nossos leitores.
2. Continuação da publicação de excertos do manuscrito "Memórias da Luta Clandestina" (entretanto publicado, na Praia, capital de Cabo Verde,e lançado, no passado dia 30 de janeiro) (***).
A reprodução desses excertos, no nosso blogue, foi-nos devidamente autorizada por Carlos de Carvalho, filho de Inácio Soares de Carvalho.
Nasceu na Praia em 29 de Abril de 1916. Foi em criança para a Guiné com os pais. No seu tempo haveria 1700 cabo-verdianos no território, muitos deles tendo posições de destaque na vida económica, social, cultural e político-administrativa da colónia portuguesa.
Envolveu-se na luta política, filiando-se em 1956 no MLG – Movimento para Libertação da Guiné, por influência do seu compadre e colega de Abílio Duarte.
Inácio Soares de Carvalho, que nunca viveu na clandestinidade, contrariamente ao Rafael Barbosa, será preso pela primeira vez pela PIDE, na filial do BNU em Bissau, onde trabahava há mais de duas dezenas de anos. É então deportado, para o Tarrafal (, a partir da Ilha das Galinhas), aonde chega no início de setembro de 1962, numa leva de 100 presos, guineenses. Três anos depois, em 16/10/1965 e transferido para colónia penal da ilha das Galinhas, no arquipélago dos Bijagós.
Em 7/2/1967, é solto, pela primeira vez. Em 1972 e 1973, volta a passar pela experiência da prisão, em Bissau, até conhecer a liberdade definitiva com o 25 de Abril de 1974. Há uma escassa meia dúzia de documentos no Arquivo Amílcar Cabral com o seu "nome de guerra", Nassi ou Naci ou Nacy Camará.
Inácio Soares de Carvalho (1916-1994)
Nasceu na Praia em 29 de Abril de 1916. Foi em criança para a Guiné com os pais. No seu tempo haveria 1700 cabo-verdianos no território, muitos deles tendo posições de destaque na vida económica, social, cultural e político-administrativa da colónia portuguesa.
Trabalhou no BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, desde 1939, até ser detido pela PIDE em 15/3/1962.
Envolveu-se na luta política, filiando-se em 1956 no MLG – Movimento para Libertação da Guiné, por influência do seu compadre e colega de Abílio Duarte.
Inácio Soares de Carvalho, que nunca viveu na clandestinidade, contrariamente ao Rafael Barbosa, será preso pela primeira vez pela PIDE, na filial do BNU em Bissau, onde trabahava há mais de duas dezenas de anos. É então deportado, para o Tarrafal (, a partir da Ilha das Galinhas), aonde chega no início de setembro de 1962, numa leva de 100 presos, guineenses. Três anos depois, em 16/10/1965 e transferido para colónia penal da ilha das Galinhas, no arquipélago dos Bijagós.
Em 7/2/1967, é solto, pela primeira vez. Em 1972 e 1973, volta a passar pela experiência da prisão, em Bissau, até conhecer a liberdade definitiva com o 25 de Abril de 1974. Há uma escassa meia dúzia de documentos no Arquivo Amílcar Cabral com o seu "nome de guerra", Nassi ou Naci ou Nacy Camará.
Pertencia à "secção de informação e controle" do PAI (sigla original do PAIGC) em Bissau, ele e o Rafael Barbosa (c. 1926-2007), reportanto diretamente a Amílcar Cabral, que vivia em Conacri. Em outubro de 1961, Rafael Barbosa, de etnia papel (Zain Lopes, na clandestinidade), é nomeado Presidente do Comité Central do PAIGC.
Nos final dos anos setenta, Inácio Soares de Caravalho regressa à sua terra natal, Praia, Cabo Verde, e afasta-se praticamente da vida política activa. Vem a falecer em dezembro de 1994, sem ter visto publicadas as suas memórias políticas que comecçou a escrever, "após incessantes insistências dos filhos", e que deu por concluídas em 1992.
Nos final dos anos setenta, Inácio Soares de Caravalho regressa à sua terra natal, Praia, Cabo Verde, e afasta-se praticamente da vida política activa. Vem a falecer em dezembro de 1994, sem ter visto publicadas as suas memórias políticas que comecçou a escrever, "após incessantes insistências dos filhos", e que deu por concluídas em 1992.
"Nelas o autor narra factos novos, desconhecidos da maioria dos militantes, pois, infelizmente, poucos foram os combatentes da clandestinidade, sobretudo na Guiné, que deixaram escritos sobre essa vertente da luta protagonizada pelo PAIGC."
(Informações biográficas fornecidas pelo filho, Carlos de Carvalho, nascido na Guiné, complementadas por LG.)
É possível haver um lançamento do livro em Lisboa. Em Cabo Verde, a edição é de autor e teve vários patrocínios.
É possível haver um lançamento do livro em Lisboa. Em Cabo Verde, a edição é de autor e teve vários patrocínios.
3. Excertos do livro "Memórias da Luta Clandestina" - Parte IV (*)
(Continuação)
No dia 11 de março de 1962, um domingo, o Pedro Ramos teve a ousadia e o descuido de nos introduzir na Base o seu colega e amigo de infância, Carlos, mais conhecido por “Cacai Boca”. Esse facto acabou por constituir nossa desgraça.
No dia 13 de março de 1962 , cerca das 9 horas da noite, apareceram-me lá em casa o Albino Sampa e o Pedro Ramos. Com a porta fechada e a minha mulher de vigilância durante todo o tempo em que estivemos reunidos, contaram-me então como tudo se passou e começamos a buscar soluções para sairmos da situação difícil em que nos encontrávamos.
[...] Aproveitei para fazer um comunicado para o nosso Líder, narrando-lhe os últimos factos ocorridos; determinei também que avisassem todos os responsáveis e militantes para retirarem imediatamente para fora das fronteiras da Guiné, porque cedo ou tarde a PIDE chegaria a eles também; caso fossem apanhados, seriam barbaramente maltratados e estariam na contingência de perderem a vida. Esta minha decisão, enquanto Responsável de Segurança, era para evitar todo o mal que podia vir a acontecer. Também aproveitei para lhes dar um pouco de dinheiro para as despesas que teriam na fuga.
Foram presos o Menezes [Alfredo Menezes d’Alva] e o João Barbosa, primo do Rafael; poucos dias depois, levaram o Rosendo.
Com estas prisões, tudo paralisou de novo, pois, os três companheiros presos tinham muita influência no desenrolar de nossa luta clandestina. Como devem compreender, eu estava mesmo desesperado e desanimado com a situação.
No dia seguinte às prisões, fui ter com a D. Irene [Fortes, esposa do Fernando Fortes ] e contei-lhe o sucedido, mas ela notou na minha cara que mesmo eu mostrava desânimo com o acontecido. Ela então com gesto de coragem falou comigo de forma brusca:
- O Sr. Inácio tem que ter coragem e saber enfrentar todos obstáculos que nos depararem.
Amigos, quando uma mulher diz a um homem assim, por mais fraco de espírito que fosse, teria que ter coragem e reagir. Depois de contar ao Rafael a conversa que tive com a D. Irene, ele então como homem decidido disse-me que realmente é assim mesmo que tem de ser, é preciso não desencorajar, nem desanimar; a luta é assim mesmo.
Dali então, ainda mais encorajado, me empenhei totalmente para o desenvolvimento de nosso trabalho, contando sempre com o firme apoio dessa mulher que, mesmo tendo seu marido preso, nunca se desencorajou. Foi seguramente das primeiras firmes e corajosas mulheres que desde a primeira hora incorporou os ideais de nossa luta de libertação. Ela, por seu lado, enquanto o marido esteve preso, teve sempre o apoio e encorajamento de seu cunhado, o Alfredo Fortes [1].
Tendo encontrado o lugar seguro e dava-nos grande confiança.
No dia 15 [de março de 1962], antes das 8 horas da manhã, apareceram dois agentes da PIDE na Gerência do Banco [, BNU]. Esses agentes foram falar com o nosso Gerente, Sr. Arruda, a explicar-lhe que foram à minha procura, mandados por um Inspector da PIDE, o Costa Pereira.
(Continuação)
A PIDE descobre a Base do Partido na Zona 0 (**)
No dia 11 de março de 1962, um domingo, o Pedro Ramos teve a ousadia e o descuido de nos introduzir na Base o seu colega e amigo de infância, Carlos, mais conhecido por “Cacai Boca”. Esse facto acabou por constituir nossa desgraça.
Efectivamente, após o "Cacai" ter saído da Base, a sua primeira preocupação, como um “Bom Português”, foi dirigir-se imediatamente ao nosso inimigo e denunciar-nos. Estamos todos certos de ter sido ele, pois, tendo saído da Base no Domingo, 11, logo na madrugada do dia 13, terça-feira, surpreenderam Rafael Barbosa, Pedro Ramos, Momo Turé, Paulo Pereira de Jesus e Jorge da Silva, proprietário do lugar onde tínhamos instalada a Base.
Pedro Ramos conseguiu fugir, dando um forte golpe a um soldado que o tinha segurado. Os outros foram todos presos e levados para a cadeia. Pedro Ramos conseguiu ainda alertar o Albino Sampa que dormia numa casa que se situava um pouco mais afastada. Assim, os dois conseguiram fugir, tentando nessa mesma madrugada me contactar, o que era obviamente impossível. Quando amanheceu, logo cedo, apareceu em minha casa um jovem a dar-me a triste noticia de que prenderam o Rafael [Barbosa] e os outros colegas que dormiam com ele na Base.
No dia 13 de março de 1962 , cerca das 9 horas da noite, apareceram-me lá em casa o Albino Sampa e o Pedro Ramos. Com a porta fechada e a minha mulher de vigilância durante todo o tempo em que estivemos reunidos, contaram-me então como tudo se passou e começamos a buscar soluções para sairmos da situação difícil em que nos encontrávamos.
[...] Aproveitei para fazer um comunicado para o nosso Líder, narrando-lhe os últimos factos ocorridos; determinei também que avisassem todos os responsáveis e militantes para retirarem imediatamente para fora das fronteiras da Guiné, porque cedo ou tarde a PIDE chegaria a eles também; caso fossem apanhados, seriam barbaramente maltratados e estariam na contingência de perderem a vida. Esta minha decisão, enquanto Responsável de Segurança, era para evitar todo o mal que podia vir a acontecer. Também aproveitei para lhes dar um pouco de dinheiro para as despesas que teriam na fuga.
A terceira leva de prisão de dirigentes
Foram presos o Menezes [Alfredo Menezes d’Alva] e o João Barbosa, primo do Rafael; poucos dias depois, levaram o Rosendo.
Com estas prisões, tudo paralisou de novo, pois, os três companheiros presos tinham muita influência no desenrolar de nossa luta clandestina. Como devem compreender, eu estava mesmo desesperado e desanimado com a situação.
No dia seguinte às prisões, fui ter com a D. Irene [Fortes, esposa do Fernando Fortes ] e contei-lhe o sucedido, mas ela notou na minha cara que mesmo eu mostrava desânimo com o acontecido. Ela então com gesto de coragem falou comigo de forma brusca:
- O Sr. Inácio tem que ter coragem e saber enfrentar todos obstáculos que nos depararem.
Amigos, quando uma mulher diz a um homem assim, por mais fraco de espírito que fosse, teria que ter coragem e reagir. Depois de contar ao Rafael a conversa que tive com a D. Irene, ele então como homem decidido disse-me que realmente é assim mesmo que tem de ser, é preciso não desencorajar, nem desanimar; a luta é assim mesmo.
Dali então, ainda mais encorajado, me empenhei totalmente para o desenvolvimento de nosso trabalho, contando sempre com o firme apoio dessa mulher que, mesmo tendo seu marido preso, nunca se desencorajou. Foi seguramente das primeiras firmes e corajosas mulheres que desde a primeira hora incorporou os ideais de nossa luta de libertação. Ela, por seu lado, enquanto o marido esteve preso, teve sempre o apoio e encorajamento de seu cunhado, o Alfredo Fortes [1].
Tendo encontrado o lugar seguro e dava-nos grande confiança.
A primeira prisão de Nassi Camara
No dia 15 [de março de 1962], antes das 8 horas da manhã, apareceram dois agentes da PIDE na Gerência do Banco [, BNU]. Esses agentes foram falar com o nosso Gerente, Sr. Arruda, a explicar-lhe que foram à minha procura, mandados por um Inspector da PIDE, o Costa Pereira.
O Gerente mandou-me chamar com o Saco Cassama, servente do Banco. Ao passar pela secção das Correspondências, ele alertou-me que estavam lá dois brancos que lhe parecia que eram agentes da PIDE. Quando me apresentei ao Gerente Arruda, ele apontou-me os dois homens, dizendo que precisavam de mim. Estes convidaram-me para os acompanhar.
[...] Assim foi a minha primeira prisão, no dia 15 de Março de 1962, uma 5ª feira.
Na madrugada de 1 de setembro [de 1962], foram buscar-nos em Mansoa para levar à ilha das Galinhas.
Via João Landim [no rio Mansoa] , fomos levados no porão do barco "Formosa". Chegamos à ilha das Galinhas cerca das 16 horas. De seguida, fomos levados para o acampamento, onde já se encontravam outros presos oriundos da Zona Sul.
Na noite de 1 de setembro, dormimos todos nós presos concentrados num pavilhão grande. Naquela noite tiraram dois irmãos e foram matá-los a tiro. Só nós, que vivemos na pele as atrocidades cometidas pelos salazaristas, podemos contar o sofrimento que passamos, nessa altura da luta.
No dia 2 de setembro, de manhã cedo, tiraram-nos num total de 100 presos e encaminharam-nos para o Porto da Ilha das Galinhas, onde tínhamos desembarcado no dia anterior; meteram-nos no porão do mesmo barco "Formosa", com o rumo à Estação de Pilotos em Pontom; de seguida, meteram-nos no porão do vapor "África Ocidental" com destino desconhecido por nós.
[...] Assim foi a minha primeira prisão, no dia 15 de Março de 1962, uma 5ª feira.
1ª passagem pela Ilha das Galinhas
Na madrugada de 1 de setembro [de 1962], foram buscar-nos em Mansoa para levar à ilha das Galinhas.
Via João Landim [no rio Mansoa] , fomos levados no porão do barco "Formosa". Chegamos à ilha das Galinhas cerca das 16 horas. De seguida, fomos levados para o acampamento, onde já se encontravam outros presos oriundos da Zona Sul.
Na noite de 1 de setembro, dormimos todos nós presos concentrados num pavilhão grande. Naquela noite tiraram dois irmãos e foram matá-los a tiro. Só nós, que vivemos na pele as atrocidades cometidas pelos salazaristas, podemos contar o sofrimento que passamos, nessa altura da luta.
Da ilha das Galinhas para destino desconhecido
No dia 2 de setembro, de manhã cedo, tiraram-nos num total de 100 presos e encaminharam-nos para o Porto da Ilha das Galinhas, onde tínhamos desembarcado no dia anterior; meteram-nos no porão do mesmo barco "Formosa", com o rumo à Estação de Pilotos em Pontom; de seguida, meteram-nos no porão do vapor "África Ocidental" com destino desconhecido por nós.
Só viemos a saber onde estávamos quando chegamos ao Porto do Tarrafal [em Santiago, Cabo Verde] onde nos mandaram sair de porão como animais de carga. Passamos muito mal durante todo o caminho.
[Revisão / fixação de texto, para efeitos de edição neste blogue / notas dentro de parènteses retos: LG]
(Continua)
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(Continua)
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Nota de Carlos de Carvalho
[1] Alfredo Fortes, natural da Ilha de S. Vicente, Cabo Verde, era na altura Chefe da Alfândega de Bissau. Na Guiné, foi também Presidente do grande clube desportivo UDIB (União Desportiva Internacional de Bissau).
Após a independência, desempenhou as funções de Embaixador de Cabo Verde na Holanda. Foi Deputado pelo MpD [Movimento para a Democracia] na II República. Morreu na sua ilha natal nos anos 90.
[1] Alfredo Fortes, natural da Ilha de S. Vicente, Cabo Verde, era na altura Chefe da Alfândega de Bissau. Na Guiné, foi também Presidente do grande clube desportivo UDIB (União Desportiva Internacional de Bissau).
Após a independência, desempenhou as funções de Embaixador de Cabo Verde na Holanda. Foi Deputado pelo MpD [Movimento para a Democracia] na II República. Morreu na sua ilha natal nos anos 90.
________________
Notas do editor LG:
(*) Listagem das zonas do PAIGC (cada uma com o seu responsável): Zona 0 - Bissau; Zona 1 - S. Domingos; Zona 2 - Farim; Zona 3 - Gabú Norte; Zona 5 - Gabú Sul; Zona 6 - Bafatá Norte; Zona 7 - Bafatá Sul; Zona 8 - Fulacunda; Zona 9 - Bissorã; Zona 10 - Cantchungo; Zona 11 - Bedanda; Zona 12 - Bijagós; Zona A - A determinar (Documento manuscrito, s/d, Arquivo Amílcar Cabral / Casa Comum / Fundação Mário Soares)
(**) Vd, poste de 25 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P569: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte
(***) Vd. postes anteriores da série >
5 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20705: (D)o outro lado do combate (57): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte IV (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)
3 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20701: (D)o outro lado do combate (56): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte III (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)
2 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20698: (D)o outro lado do combate (55): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte II (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)
29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20695: (D)o outro lado do combate (54): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte I (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)
(**) Vd, poste de 25 de fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - P569: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte
(***) Vd. postes anteriores da série >
5 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20705: (D)o outro lado do combate (57): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte IV (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)
3 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20701: (D)o outro lado do combate (56): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte III (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)
2 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20698: (D)o outro lado do combate (55): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte II (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)
29 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20695: (D)o outro lado do combate (54): memórias do militante do PAIGC , Inácio Soares de Carvalho, cabo-verdiano, funcionário do BNU - Banco Nacional Ultramarino, em Bissau, detido pela PIDE em 1962, em seguida deportado para o Tarrafal, donde regressa em 1965, sendo colocado na Ilha das Galinhas... Liberto em 1967, é de novo preso em 1972 e 1973... Regressa à sua terra natal, em finais de 1970, afastando-se da vida política ativa... Morreu em 1994 - Parte I (Carlos de Carvalho, Praia, Santiago, CV)
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quinta-feira, 2 de março de 2017
Guiné 61/74 - P17099: Efemérides (247): Poema de Maria Amado dedicado a seu pai João Amado, Soldado Auxiliar de Cozinheiro da CCAÇ 3489/BCAÇ 3872), morto em combate faz hoje 45 anos (Maria Amado / Juvenal Amado)
João Amado
Soldado Auxiliar de Cozinheiro, CCAÇ 3489/BCAÇ 3872
Morto em combate em 02 de Março de 1972 (*)
De Maria Amado
Para seu pai João Amado
Tenho tanta coisa para te dizer,
tenho todas as coisas para te dizer.
Tenho tanta coisa para te perguntar,
tenho todas as coisas para te perguntar
Sabes, sem ti, custa tanto,
tudo custa mais sem ti.
Custa acordar de manhã com a dor do vazio,
custa olhar para a mesa sem pão,
custa vestir a mesma roupa fria e rota,
custa carregar o saco da escola,
fazer o caminho sozinha, entre os sorrisos dos outros
que abafavam a minha tristeza,
custa olhar para o recreio e vaguear a mente
mil perguntas que me deixam invisível sem ti.
Todos os dias da minha vida foram uma luta,
cresci sem o teu sorriso e o teu carinho,
esses não eram os únicos ausentes,
nem carinhos, nem estrutura, nem referências,
só houve dor e desconforto.
Não houve sorrisos,
O tempo passa e não passa nem atenua a tua ausência,
a ausência de tudo em ti.
Nunca houve um dia sem luta nem luto.
Hoje fazes-me tanta falta.
Hoje, ontem e amanhã, vão ser sempre dias e noites sem ti.
Neste mundo sem cor, só tu me poderias dar paz.
Tenho tanta coisa para te dizer,
que as palavras não cabem nos sentimentos...
Tenho tanta coisa para te perguntar....
Nota do editor:
Trabalho enviado pelo nosso camarada Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto da CCS/BCAÇ 3872 (**)
____________
Notas do editor
(*) Vd. poste de 27 de julho de 2010 > Guiné 63/74 – P6798: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é grande (24): Fátima Amado, filha do nosso camarada João Amado, encontra no nosso Blogue notícias sobre a morte de seu pai (Juvenal Amado / Carlos Vinhal)
(...) Caro Senhor,
As minhas mãos tremem à medida que avanço na leitura do seu relato, procuro há décadas alguém que me conte uma história de embalar, digo de embalar porque o meu coração não sossega.
O meu nome é Fátima Amado, filha de João Amado, o soldado que morreu...
Tenho por fim um relato desse dia malfadado que me roubou o meu querido pai, esse menino soldado... e embora não seja esta uma estória de embalar, 38 anos depois responde a algumas perguntas... morreu rápido, tão rápido como viveu, e eu hei-de honrá-lo e amá-lo para além do infinito.
Se alguém conheçeu o meu pai e por delicadeza queira partilhar comigo algum relato, deixo aqui o meu contacto de e-mail, mailro:fatima-amado@hotmail.com, fico-vos eternamente grata.
Fátima Amado (...)
O meu nome é Fátima Amado, filha de João Amado, o soldado que morreu...
Tenho por fim um relato desse dia malfadado que me roubou o meu querido pai, esse menino soldado... e embora não seja esta uma estória de embalar, 38 anos depois responde a algumas perguntas... morreu rápido, tão rápido como viveu, e eu hei-de honrá-lo e amá-lo para além do infinito.
Se alguém conheçeu o meu pai e por delicadeza queira partilhar comigo algum relato, deixo aqui o meu contacto de e-mail, mailro:fatima-amado@hotmail.com, fico-vos eternamente grata.
Fátima Amado (...)
(**) Último poste da série de 26 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17086: Efemérides (246): Foi há 48 anos que eu e rapaziada da CART 2479 (futura CART 11) chegámos a Bissau... Fomos recebidos por pilotos da barra, muito pretos, a falar (crioulo ?) sem se perceber o que diziam... (Valdemar Queiroz)
quarta-feira, 8 de junho de 2016
Guiné 63/74 - P16176: Estórias do Zé Teixeira (41): O sonho do João (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)
Em mensagem do dia 30 de maio último, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º cabo aux enf, CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos mais um pequeno conto, para a sua série "Estórias do Zé Teixeira":
O Sonho do João
por Zé Teixeira
A noite chegara cedo. Extenuado de um dia de trabalho, o João adormeceu no sofá, deixando-se abraçar suavemente pelo Morfeu que o transportou rapidamente ao país dos sonhos…
Caminhava com uma sombra à sua frente. Parecia-lhe o pai vergado por um dia de trabalho.As árvores da floresta verdejante impediam a sua passagem. O sol penetrava por entre a folhagem, aquecendo-lhe o corpo de forma impiedosa. O zumbido estridente de um mosquito perturbava-o. Parecia um comboio a apitar, quando se aproximava dos seus ouvidos. Então, parou e olhou em redor.
Uma enorme teia de aranha da cor da lua cheia impedia-o de ver ao longe. E o sol continuava a penetrar queimando-lhe a pele. Quis penosamente continuar o caminho, mas os corpos de soldados estendidos no chão eram um empecilho. Ouvi um tiro. Outro. Seguiu-se um silêncio ensurdecedor. Não conhecia ninguém… ou talvez não tivessem rosto, aqueles corpos ali estendidos.
Só agora notou que a tal sombra humana desaparecera. E sentiu-se só. Nada nem ninguém. Só. Apenas o silêncio da floresta o perseguia. Angustiado, continuou a caminhar, a subir, a subir, apressado. Por vezes parecia que voava. Não sabia muito bem para onde ia, mas continuava a caminhar. Desejava parar. Talvez…E corria, corria… Sem entender. E havia troncos carregados de vermes gigantes. E granadas de morteiro a explodir.
E havia árvores com belas flores, que os seus olhos nunca viram, a acariciar-lhe o rosto e a limpar-lhe as gotas de suor que teimavam em perturbar-lhe a visão. E havia mosquitos a zumbir à sua volta.
Sentia-se tão fatigado!
- Ah, se pudesse ao menos abancar!
Um tronco coberto de musgo, caído ali à sua frente, pareceu-lhe convidativo. Quis alcançá-lo, mas ele parecia estar sempre a um passo mais adiante, e bailava à sua frente. Bailava. Conseguiu chegar junto dele e tentou sentar-se. O tronco desapareceu com o peso do corpo e no seu lugar surgiu uma mancha verde. Uma espécie de tapete. Os soldados dançavam alegremente com cobras de todos os tamanhos. As cobras assobiavam de tal forma aguda, que lhe feria os ouvidos.
Queria gritar, fujam! Fujam! Aí estão eles! Mas a sua voz recusava-se. Quis correr e não tinha forças. E as granadas a rebentar… A floresta abriu-se num flanco escarpado da montanha. Surgiu então um atalho que lhe era familiar, sem saber de onde. Na encosta cresciam videiras penduradas em árvores altas com os seus cachos doirados. Pensou em voltar para trás, mas o abismo era apavorante e estava a ficar escuro.
Uma coruja de olhos redondos, que mais pareciam duas lâmpadas acesas, esvoaçou, lançando seus gritos estridentes e assustadores para celebrar o anoitecer daquele dia. Sente-se tomado pelo medo e gritou. Gritou, palavras sem nexo. Os seus olhos velados de orvalho perscrutam ansiosamente o horizonte. E ele viu, de novo ao longe, a sombra que o tinha abandonado, envolvida num manto de sol doirado. Era alguém que se movia lentamente e lhe fazia sinais. Pareceu-lhe que ia e vinha outra vez ao seu encontro em passos rápidos, mas nunca mais chegava…Era o pai, ou… talvez não. Era mesmo!
A sombra parou ficando a pairar no espaço e apareceu um bando de lobos a uivar. A tremer de medo, escondeu-se atrás de uma rocha. A sombra humana fazia-lhe gestos com as mãos. Pareciam ser gestos de meiguice que só o seu pai lhe fazia quando era mais pequenino. Estendeu os braços para a agarrar enquanto corria para ela. Escorregou e caiu no abismo.
- Pai! Pai! Acode-me não me deixes cair! Não te vás!
- João! João! Acorda, amor, foi apenas um sonho. Acorda! Acorda!
Era sua esposa, que lhe agarrava as mãos e as encostava bem juntinho do seu coração, enquanto um cristal em forma de lágrima lhe descia pela face. Abriu os olhos, desconfiado. Era noite. Sentou-se. Olhou para a esposa. Perscrutou todo o ambiente à sua volta, como se tratasse de um estranho lugar. Sentiu o corpo tremente. sem uma palavra deixou-se cair e mergulhou de novo no sono. Num calmante sono que lhe retemperou as forças.
José Teixeira
________________
Nota do editor:
O Sonho do João
por Zé Teixeira
A noite chegara cedo. Extenuado de um dia de trabalho, o João adormeceu no sofá, deixando-se abraçar suavemente pelo Morfeu que o transportou rapidamente ao país dos sonhos…
Caminhava com uma sombra à sua frente. Parecia-lhe o pai vergado por um dia de trabalho.As árvores da floresta verdejante impediam a sua passagem. O sol penetrava por entre a folhagem, aquecendo-lhe o corpo de forma impiedosa. O zumbido estridente de um mosquito perturbava-o. Parecia um comboio a apitar, quando se aproximava dos seus ouvidos. Então, parou e olhou em redor.
Uma enorme teia de aranha da cor da lua cheia impedia-o de ver ao longe. E o sol continuava a penetrar queimando-lhe a pele. Quis penosamente continuar o caminho, mas os corpos de soldados estendidos no chão eram um empecilho. Ouvi um tiro. Outro. Seguiu-se um silêncio ensurdecedor. Não conhecia ninguém… ou talvez não tivessem rosto, aqueles corpos ali estendidos.
Só agora notou que a tal sombra humana desaparecera. E sentiu-se só. Nada nem ninguém. Só. Apenas o silêncio da floresta o perseguia. Angustiado, continuou a caminhar, a subir, a subir, apressado. Por vezes parecia que voava. Não sabia muito bem para onde ia, mas continuava a caminhar. Desejava parar. Talvez…E corria, corria… Sem entender. E havia troncos carregados de vermes gigantes. E granadas de morteiro a explodir.
E havia árvores com belas flores, que os seus olhos nunca viram, a acariciar-lhe o rosto e a limpar-lhe as gotas de suor que teimavam em perturbar-lhe a visão. E havia mosquitos a zumbir à sua volta.
Sentia-se tão fatigado!
- Ah, se pudesse ao menos abancar!
Um tronco coberto de musgo, caído ali à sua frente, pareceu-lhe convidativo. Quis alcançá-lo, mas ele parecia estar sempre a um passo mais adiante, e bailava à sua frente. Bailava. Conseguiu chegar junto dele e tentou sentar-se. O tronco desapareceu com o peso do corpo e no seu lugar surgiu uma mancha verde. Uma espécie de tapete. Os soldados dançavam alegremente com cobras de todos os tamanhos. As cobras assobiavam de tal forma aguda, que lhe feria os ouvidos.
Queria gritar, fujam! Fujam! Aí estão eles! Mas a sua voz recusava-se. Quis correr e não tinha forças. E as granadas a rebentar… A floresta abriu-se num flanco escarpado da montanha. Surgiu então um atalho que lhe era familiar, sem saber de onde. Na encosta cresciam videiras penduradas em árvores altas com os seus cachos doirados. Pensou em voltar para trás, mas o abismo era apavorante e estava a ficar escuro.
Uma coruja de olhos redondos, que mais pareciam duas lâmpadas acesas, esvoaçou, lançando seus gritos estridentes e assustadores para celebrar o anoitecer daquele dia. Sente-se tomado pelo medo e gritou. Gritou, palavras sem nexo. Os seus olhos velados de orvalho perscrutam ansiosamente o horizonte. E ele viu, de novo ao longe, a sombra que o tinha abandonado, envolvida num manto de sol doirado. Era alguém que se movia lentamente e lhe fazia sinais. Pareceu-lhe que ia e vinha outra vez ao seu encontro em passos rápidos, mas nunca mais chegava…Era o pai, ou… talvez não. Era mesmo!
A sombra parou ficando a pairar no espaço e apareceu um bando de lobos a uivar. A tremer de medo, escondeu-se atrás de uma rocha. A sombra humana fazia-lhe gestos com as mãos. Pareciam ser gestos de meiguice que só o seu pai lhe fazia quando era mais pequenino. Estendeu os braços para a agarrar enquanto corria para ela. Escorregou e caiu no abismo.
- Pai! Pai! Acode-me não me deixes cair! Não te vás!
- João! João! Acorda, amor, foi apenas um sonho. Acorda! Acorda!
Era sua esposa, que lhe agarrava as mãos e as encostava bem juntinho do seu coração, enquanto um cristal em forma de lágrima lhe descia pela face. Abriu os olhos, desconfiado. Era noite. Sentou-se. Olhou para a esposa. Perscrutou todo o ambiente à sua volta, como se tratasse de um estranho lugar. Sentiu o corpo tremente. sem uma palavra deixou-se cair e mergulhou de novo no sono. Num calmante sono que lhe retemperou as forças.
José Teixeira
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Nota do editor:
Último poste da série > 7 de maio de 2016 > Guiné 63/74 – P16059: Estórias do Zé Teixeira (40): Estranhoacidente com arma de fogo (José Teixeira)
quinta-feira, 19 de março de 2015
Guiné 63/74 - P14389: Pensamento do dia (24): No Dia do Pai... Mensagem ao meu pai, esse homem duro e autoritário que morreu aos 59 anos para grande pena minha (Francisco Baptista)
1. Em mensagem de hoje 19 de Março de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos assim de seu pai:
O meu Pai
As mães são sempre tão sábias, tão carinhosas que desde meninos desarmam as nossas maldades e malandrices. De corpo e alma fomos moldados por elas, para elas não temos segredos. Sofrem muito quando nos desviamos dos bons caminhos que devíamos percorrer mas também sabem que os filhos, pela sua natureza, estão sempre sujeitos a esses desvios.
Os nossos pais com menor conhecimento da nosso intimo e das nossas inclinações, fazem um esforço maior para nos compreender e erram mais nas suas relações connosco. Fazem um grande esforço físico e mental para nos agradar, mas estão sempre em desvantagem em relação às mães que nos moldaram e se sabem moldar para nos aconchegar.
Com os pais há sempre mais choques sobretudo quando somos também homens em competição com eles e não gostamos muito de ser comandados de qualquer forma. Em relação ao meu pai, procuro ser comedido para não entrar em descrédito, tão criticado dentro de portas pelo seu autoritarismo e intolerância, pelos filhos mais velhos (homens) e tão respeitado em toda aldeia, em todo o concelho e fora dele, pela sua honra, pela sua palavra, pela sua verticalidade.
Produtor de cortiça, era por tradição familiar que tinha herdado do seu pai e do seu avô também negociante da mesma. As relações comerciais da minha família com os fabricantes de Lourosa remontam já há mais de um século. Na família conta-se a estória, que eu nunca lhe ouvi, pois ele nunca se vangloriava de nada, que em ano de pouca cortiça, ele conseguiu juntar uma boa rima dela.
Um dia passou por lá um grande fabricante, hoje um dos maiores ricos deste país e lhe disse para lhe pedir um preço, pois ele estava disposto a pagá-la bem. Ele terá respondido, que a ele não lha venderia por preço nenhum, já que ele tinha amigos em Lourosa que lhe compravam a cortiça em anos bons e em anos maus. Nunca enriqueceu, trabalhou muito e poupou muito, deu toda a educação escolar possível aos filhos.
Morreu cedo, aos 59 anos, para grande pena minha, nunca consegui fazer com ele as pazes que gostaria, depois de tantos choques e desavenças, motivados pelo seu autoritarismo e pelo meu orgulho.
Nunca esqueci, as primeiras lágrimas que lhe vi, quando me fui despedir dele, antes de partir para a Guiné.
Esta mensagem ao meu pai, esse homem duro e autoritário, foi o regedor de Brunhoso, mas que me comoveu tanto nessa partida, foi inspirada na mensagem do José Carlos Gabriel, ao pai dele, tão contida, tão profunda tão sentida, que me sensibilizou tanto.
Obrigado José Gabriel por me ajudares a fazer alguma justiça ao meu pai.
Um abraço
Francisco Baptista
____________
Nota do editor
Último poste da série de 19 de Março de 2015 > Guiné 63/74 - P14387: Pensamento do dia (23): No dia do pai... "Meu pai, estejas onde estiveres, saberás que te amo muito e te perdoei o nos teres deixado tão prematuramente" (José Carlos Gabriel, ex-1º cabo cripto, 2ª CCaç / BCaç. 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)
O meu Pai
As mães são sempre tão sábias, tão carinhosas que desde meninos desarmam as nossas maldades e malandrices. De corpo e alma fomos moldados por elas, para elas não temos segredos. Sofrem muito quando nos desviamos dos bons caminhos que devíamos percorrer mas também sabem que os filhos, pela sua natureza, estão sempre sujeitos a esses desvios.
Os nossos pais com menor conhecimento da nosso intimo e das nossas inclinações, fazem um esforço maior para nos compreender e erram mais nas suas relações connosco. Fazem um grande esforço físico e mental para nos agradar, mas estão sempre em desvantagem em relação às mães que nos moldaram e se sabem moldar para nos aconchegar.
Com os pais há sempre mais choques sobretudo quando somos também homens em competição com eles e não gostamos muito de ser comandados de qualquer forma. Em relação ao meu pai, procuro ser comedido para não entrar em descrédito, tão criticado dentro de portas pelo seu autoritarismo e intolerância, pelos filhos mais velhos (homens) e tão respeitado em toda aldeia, em todo o concelho e fora dele, pela sua honra, pela sua palavra, pela sua verticalidade.
Produtor de cortiça, era por tradição familiar que tinha herdado do seu pai e do seu avô também negociante da mesma. As relações comerciais da minha família com os fabricantes de Lourosa remontam já há mais de um século. Na família conta-se a estória, que eu nunca lhe ouvi, pois ele nunca se vangloriava de nada, que em ano de pouca cortiça, ele conseguiu juntar uma boa rima dela.
Um dia passou por lá um grande fabricante, hoje um dos maiores ricos deste país e lhe disse para lhe pedir um preço, pois ele estava disposto a pagá-la bem. Ele terá respondido, que a ele não lha venderia por preço nenhum, já que ele tinha amigos em Lourosa que lhe compravam a cortiça em anos bons e em anos maus. Nunca enriqueceu, trabalhou muito e poupou muito, deu toda a educação escolar possível aos filhos.
Morreu cedo, aos 59 anos, para grande pena minha, nunca consegui fazer com ele as pazes que gostaria, depois de tantos choques e desavenças, motivados pelo seu autoritarismo e pelo meu orgulho.
Nunca esqueci, as primeiras lágrimas que lhe vi, quando me fui despedir dele, antes de partir para a Guiné.
Esta mensagem ao meu pai, esse homem duro e autoritário, foi o regedor de Brunhoso, mas que me comoveu tanto nessa partida, foi inspirada na mensagem do José Carlos Gabriel, ao pai dele, tão contida, tão profunda tão sentida, que me sensibilizou tanto.
Obrigado José Gabriel por me ajudares a fazer alguma justiça ao meu pai.
Um abraço
Francisco Baptista
____________
Nota do editor
Último poste da série de 19 de Março de 2015 > Guiné 63/74 - P14387: Pensamento do dia (23): No dia do pai... "Meu pai, estejas onde estiveres, saberás que te amo muito e te perdoei o nos teres deixado tão prematuramente" (José Carlos Gabriel, ex-1º cabo cripto, 2ª CCaç / BCaç. 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)
Guiné 63/74 - P14387: Pensamento do dia (23): No dia do pai... "Meu pai, estejas onde estiveres, saberás que te amo muito e te perdoei o nos teres deixado tão prematuramente" (José Carlos Gabriel, ex-1º cabo cripto, 2ª CCaç / BCaç. 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)
1. Mensagem de José Carlos Gabriel, com data de hoje:
Amigos Luis Graça e Carlos Vinhal.
Sendo hoje o dia do pai não pude deixar de escrever algumas palavras relacionadas com esta data que marca um pouco a minha vida.
Se acharem interessante podem publicar.
Um abraço.
Sendo hoje o dia do pai não pude deixar de escrever algumas palavras relacionadas com esta data que marca um pouco a minha vida.
Se acharem interessante podem publicar.
Um abraço.
José Carlos Gabriel
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[Foto à esquerda: Guiné > Região de Tombali > Setor S2 (Aldeia Formosa) > Nhala > 2ª CCaç / BCaç. 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973-74) > Nhala, JUN73 > O 1º cabo cripto Gabriel no desempenho de funções, Foto (e legenda) : © José Carlos Gabriel (2011). Todos os direitos reservados]
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Carlos Gabriel, meu pai - Um anigo de pouco tempo
Pela primeira vez na vida vou falar sobre o meu pai. A razão é porque o perdi quando tinha apenas 9 anos e de uma maneira que considero inapropriada (mas que foi consciente da sua parte).
Mas quem sou eu para o julgar?
Dos poucos anos de vida juntos tenho mais boas recordações que o contrário. Não terá sido um pai perfeito pois para o ser não nos teria deixado sozinhos tão cedo (eu com 9 anos a minha irmã com 11 e a minha mãe com 32, mãe que dedicou o resto da sua vida aos filhos e que ainda vive junto a nós).
Mas será que eu como pai também fui o pai perfeito? E será que ele existe?
Penso que não existe o pai perfeito por muito que nos esforcemos. Aos olhos dos nossos filhos existe sempre algo que eles acham que falhamos.
Tinha-lhe um respeito enorme e que me recorde só uma vez me deu uma palmada em cada mão e muito bem dadas.
Tinha-lhe feito um pedido ao qual não acedeu e eu feito esperto pedi á minha mãe que acabou por ceder sem saber do antecedente. O meu pai ao ver que passado umas horas eu já tinha o que queria simplesmente me perguntou se eu tinha tirado ou se tinha pedido e claro confirmei que tinha pedido á mãe tendo-me interrogado:
- EU NÃO TE TINHA DITO QUE NÃO?
Foi nessa altura que me abriu a porta da escada que dava acesso
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Carlos Gabriel, meu pai - Um anigo de pouco tempo
Pela primeira vez na vida vou falar sobre o meu pai. A razão é porque o perdi quando tinha apenas 9 anos e de uma maneira que considero inapropriada (mas que foi consciente da sua parte).
Mas quem sou eu para o julgar?
Dos poucos anos de vida juntos tenho mais boas recordações que o contrário. Não terá sido um pai perfeito pois para o ser não nos teria deixado sozinhos tão cedo (eu com 9 anos a minha irmã com 11 e a minha mãe com 32, mãe que dedicou o resto da sua vida aos filhos e que ainda vive junto a nós).
Mas será que eu como pai também fui o pai perfeito? E será que ele existe?
Penso que não existe o pai perfeito por muito que nos esforcemos. Aos olhos dos nossos filhos existe sempre algo que eles acham que falhamos.
Tinha-lhe um respeito enorme e que me recorde só uma vez me deu uma palmada em cada mão e muito bem dadas.
Tinha-lhe feito um pedido ao qual não acedeu e eu feito esperto pedi á minha mãe que acabou por ceder sem saber do antecedente. O meu pai ao ver que passado umas horas eu já tinha o que queria simplesmente me perguntou se eu tinha tirado ou se tinha pedido e claro confirmei que tinha pedido á mãe tendo-me interrogado:
- EU NÃO TE TINHA DITO QUE NÃO?
Foi nessa altura que me abriu a porta da escada que dava acesso
José Carlos Gabriel, hoje |
á nossa casa e aí deu-me uma palmada em cada mão mandando-me de castigo para casa.
Não me recordo de outra situação deste género nestes curtos 9 anos de convivência.
Com a idade a avançar cada vez mais sinto a sua falta. Sinto tristeza por não ter dado oportunidade á vida para conhecer a neta e os 2 bisnetos.
Existem datas que me são muito difíceis de ultrapassar a sua ausência tais como: O seu aniversário o meu e o Natal.
Esteja onde estiver saberá que o amo muito e lhe perdoei o nos ter deixado tão prematuramente.
José Carlos Gabriel
PS - Carlos Gabriel a bold e sublinhado é intencional pois era o nome pelo qual o meu pai era conhecido.
Não me recordo de outra situação deste género nestes curtos 9 anos de convivência.
Com a idade a avançar cada vez mais sinto a sua falta. Sinto tristeza por não ter dado oportunidade á vida para conhecer a neta e os 2 bisnetos.
Existem datas que me são muito difíceis de ultrapassar a sua ausência tais como: O seu aniversário o meu e o Natal.
Esteja onde estiver saberá que o amo muito e lhe perdoei o nos ter deixado tão prematuramente.
José Carlos Gabriel
PS - Carlos Gabriel a bold e sublinhado é intencional pois era o nome pelo qual o meu pai era conhecido.
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Nota do editor:
Último poste da série > 9 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14336: Pensamento do dia (22): Aprendi na guerra a pôr um pé à frente do outro e continuar a caminhada, mesmo quando tudo era difícil (José Belo)
Guiné 63/74 - P14386: Blogpoesia (404): No dia do pai, um poema escolhido pelo camarada Armando Faria, "Ter um Pai", de Florbela Espanca (1894-1930)
1. O camarada Armando Faria (ex-fur mil inf minas e armadilhas da CCAÇ 4740, Cufar, 1972/74) mandou-nos este poema de Florbela Espanca (1894-1930), para comemorar o dia do pai, uma tradição em Portugal que hoje ainda se mantém, e que está associado ao calendário litúrgico da religião católica (dia 19 de março, dia de São José, marido de Maria, mãe de Jesus Cristo).
Ter um Pai
Florbela Espanca (1894-1930)
Ter um Pai! É ter na vida
Uma luz por entre escolhos;
É ter dois olhos no mundo
Que vêem pelos nossos olhos!
Ter um Pai! Um coração
Que apenas amor encerra,
É ver Deus, no mundo vil,
É ter os céus cá na terra!
Ter um Pai! Nunca se perde
Aquela santa afeição,
Sempre a mesma, quer o filho
Seja um santo ou um ladrão;
Talvez maior, sendo infame
O filho que é desprezado
Pelo mundo; pois um Pai
Perdoa ao mais desgraçado!
Ter um Pai! Um santo orgulho
Pró coração que lhe quer
Um orgulho que não cabe
Num coração de mulher!
Embora ele seja imenso
Vogando pelo ideal,
O coração que me deste
Ó Pai bondoso é leal!
Ter um Pai! Doce poema
Dum sonho bendito e santo
Nestas letras pequeninas,
Astros dum céu todo encanto!
Ter um Pai! Os órfãozinhos
Não conhecem este amor!
Por mo fazer conhecer,
Bendito seja o Senhor!
Florbela Espanca
In: Obras Completas de Florbela Espanca, vol. II, Poesia (1918-1930), prefácio de José Carlos Seabra Pereira, 4.ª ed., Lisboa, Dom Quixote, 1992.
Nota do editor:
Último poste da série > 10 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14344: Blogpoesia (403): o meu mar da Ericeira (J. L. Mendes Gomes)
Na mensagem que nos mandou traz uma dedicatória aos nossos pais (na maior dos casos, já falecidos) mas também aos pais que hoje somos (em muitos casos, duplamente pais e avós): "Com um beijo, um abraço ou uma simples oração"...
É também, segundo o entendimento dos nossos editores, uma homenagem a uma grande mulher portuguesa, e uma grande poetisa, nascida em Vila Viçosa, e que em Matosinhos, aos 36 anos, pôs termo à vida... Uma morte de(a)nunciada!...E, claro, é ainda uma homenagem à nossa bela e amada língua: foi em português que aprendemos a dizer, pai e mãe...
Um pormenor histórico-biográfico siobre a grande Florbela Espanca: foi registada, de acordo com o código civil da época, com a infamante designação de "filha ilegítima de pai incógnito"... Seu pai, João Maria Espanca só a haveria de perfilhar 18 anos depois da sua morte... Este facto pode ajudar-nos a entender melhor o poema
"Ter um Pai". [Ler aqui a sua biografia, no sítio "Vidas Lusófonas"].
"Ter um Pai". [Ler aqui a sua biografia, no sítio "Vidas Lusófonas"].
Ter um Pai
Florbela Espanca (1894-1930)
Ter um Pai! É ter na vida
Uma luz por entre escolhos;
É ter dois olhos no mundo
Que vêem pelos nossos olhos!
Ter um Pai! Um coração
Que apenas amor encerra,
É ver Deus, no mundo vil,
É ter os céus cá na terra!
Ter um Pai! Nunca se perde
Aquela santa afeição,
Sempre a mesma, quer o filho
Seja um santo ou um ladrão;
Talvez maior, sendo infame
O filho que é desprezado
Pelo mundo; pois um Pai
Perdoa ao mais desgraçado!
Ter um Pai! Um santo orgulho
Pró coração que lhe quer
Um orgulho que não cabe
Num coração de mulher!
Embora ele seja imenso
Vogando pelo ideal,
O coração que me deste
Ó Pai bondoso é leal!
Ter um Pai! Doce poema
Dum sonho bendito e santo
Nestas letras pequeninas,
Astros dum céu todo encanto!
Ter um Pai! Os órfãozinhos
Não conhecem este amor!
Por mo fazer conhecer,
Bendito seja o Senhor!
Florbela Espanca
______________
Último poste da série > 10 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14344: Blogpoesia (403): o meu mar da Ericeira (J. L. Mendes Gomes)
sexta-feira, 9 de maio de 2014
Guiné 63/74 - P13120: Notas de leitura (588): "Julinha", um excerto do próximo livro de Lucinda Aranha dedicado a seu pai Manuel Joaquim, empresário e caçador em Cabo Verde e Guiné (Lucinda Aranha)
1. Mensagem da nossa amiga tertuliana Lucinda Aranha, com data de 22 de Abril de 2014:
Caros «camaradas»,
Agradeço a simpatia com que me receberam. Creio, no entanto, que têm uma espectativa demasiado alta da minha hipotética contribuição.
O meu pai teve 7 filhos, todos eles nascidos na Praia, excepto a sexta nascida em Bolama e eu que vim a nascer em Portugal. Viveu na Praia entre 1929 e 43 e desde essa data até 1972 na Guiné portuguesa, vindo à metrópole para junto da família, que residia em Portugal desde 1946, na época das chuvas.
Assim, nem eu nem os meus irmãos estudámos em África.
Como o Carlos calculou, fui professora, leccionando História no ensino secundário.
As estórias sobre África que conto no Reino das Orelhas não foram vivenciadas por mim mas são recordações dos meus pais, da minha ama Sampadjuda e dos amigos cabo-verdianos e guineenses que enxameavam a nossa casa de Lisboa.
O meu pai praticava uma política de casa aberta aos amigos. Por lá passavam administradores, chefes de posto, comerciantes e as suas famílias, alguns deles chegaram mesmo a ser residentes temporários.
Envio-lhes um excerto do livro que estou a escrever sobre Manuel Joaquim onde a sua mulher discreteia sobre essas «invasões» e que, penso, lhes permitirá perceberem melhor as minhas relações com a Guiné.
O Carlos pediu-me fotografias. Já lhe enviei 4 no anexo do mail Apelo.
Agradecia, pela importância de que se revestem para mim, que as publicasse.
Os meus agradecimentos,
Lucinda Aranha
Foto: © Lucinda Aranha (2014). Todos os direitos reservados.
"JULINHA"
A Guiné era outra loiça. A sua casa estava sempre cheia, de estadia ou simples visita, dessa gente mas a maior parte dela não lhe deixava saudades. Uns atrevidos, abusadores que chegavam a telefonar-lhe, perguntando: É da Pensão da avenida de Roma? Havia excepções. A Chica, da idade da sua mais nova, que durante anos foi ficando lá por casa, criada como filha, vinda para se tratar de uma poliomielite e que parecia ter bicho carapinteiro não parando descansada, acrescentando à doença uma perna partida que teve artes de se atirar de uma varanda. Uma preocupação com os pais ausentes na Guiné e ela a entrar e a sair a toda a hora do Hospital do Ultramar. A Maria Domingas e os pequenos, a Maria Garcia com a Luisita costumavam passar pequenas temporadas em sua casa. Todos amigos ligados ao funcionalismo da Guiné. O compadre Esteves que adorava a cachupa e o pudim de pão da Maria, de estalo, trazendo a reboque a Constança, o Fialho, procurador dos dois compadres, o filho com a mulher dada à poesia e muito da intimidade da Tina e as filhas, todas impecáveis, e os respectivos maridos eram visitas muito do seu agrado.
Não lhe falassem daqueles dois horríveis casais, os Pascoais e o Urso Pardo e a Bela Adormecida, alcunhas dadas pelas filhas. Os dois últimos de arcaboiços de mais de cem quilos, ela com uma cabeleira negra de azeviche e escorrida, a bater-lhe pelas ancas e que cofiava languidamente, uma Ursulina do Brejo como também diziam as miúdas, lidas no Pato Donald e no Mickey. Gente detestável e mal formada que o Nequinhas lhe enfiava pela casa dentro com o argumento de que lhes devia retribuição da hospitalidade recebida em terras africanas, tudo imaginações que todos sabiam que recusava dormir debaixo de tecto na Guiné, salvo quando em Bissau e aí só aceitava o abrigo do compadre. As visitas da Maria Virgínia e família faziam as delícias das filhas com as suas estórias picarescas. Era casada com um administrador, por sinal bastante mulherengo. Ela morria de ciúmes do marido. Na Guiné houvera aquela escandaleira de se vestir de homem para espiar os passos do marido. Toda a Bissau, maldosamente, a murmurar nos seus preparos. Cá para mim, pensava muitas vezes, nada como o calor para empolar os pequenos percalços de cada um. Agiganta tudo a uma escala que Deus me livre. As filhas adoravam ouvi-la, desbocada, xingando o marido que não se lhe dava nada de arriar a jiga onde quer que estivesse. Então não fora que em sua casa, onde tinham sido convidados para almoçar, a Maria Virgínia, desvairada de ciúmes, mal levantada da mesa, larga os amigos, o marido, os filhos, desconchava e desanda porta fora, atirando em resposta ao atónito marido que queria saber o motivo da saída intempestiva: Vou à baixa levar na caixa! Se havia boa mulher estava ali, mas os malditos ciúmes faziam-lhe perder a tramontana, esquecendo-se das conveniências. A pena que tinha de a ver em semelhantes destemperos. Virgínia, deixe-se dessas cenas que não a levam a lado nenhum. Só se arrelia inutilmente. Pense nos seus filhos. Olhe o exemplo que dá às crianças com estes destrambelhamentos e discussões constantes, e acrescentava penalizada, desculpe-me a sinceridade com que lhe falo. Bem lho dizia mas qual o quê que se havia mulher teimosa estava ali.
E a Pãozinho? Uma viúva de um funcionário ultramarino de Angola cuja filha, mulher apoderada, era casada com um funcionário da Casa Esteves, um lingrinhas que se escondia, à cautela, por detrás da mulher quando as coisas lhe pareciam negras. A Pãozinho assim chamada porque muito se temia de que o pãozinho que o marido lhe deixara, a sua pensão de viuvez lhe fosse roubada pelos terroristas, não percebendo ou não querendo perceber, na sua sanha antiterrorista que dependia do estado português. Mal sabia ela que tempos haviam de chegar em que os pensionistas e reformados portugueses seriam vistos pelo governo do seu país como uma excrescência, um cancro que convinha extirpar, fazendo-os morrer o mais rápido possível, e enquanto o genocídio não ocorria, convinha espoliá-los de parte substancial dos descontos obrigatórios de toda uma vida de trabalho em nome da austeridade. As suas estórias encantavam as miúdas, enfim não tanto miúdas, que algumas já andavam na faculdade. Todas se maravilhavam com a estória da mezinha feita por curandeiros angolanos, no maior secretismo, com o pó das unhas de crocodilo que a tornou resistente a um cancro, o que admirou os médicos do IPO, que espantados com a sua de todo inexpectável resistência, lhe pediam para revelar o segredo mas ela, temerosa e obstinada, nunca lhes explicou a alquimia. A Antónia, dada a elucubrações, perguntava-se então e tem-no feito pela vida fora, se não estaria ali a cura para uma doença tão mortífera com foros de uma peste da modernidade.
Calhava passar lá por casa um outro casal, dos conhecimentos anteriores aos tempos de África, cuja presença a Julinha detestava porque era sinónimo de arrelias. O Luís, magriço, empertigado com o rosto emoldurado por uma piaçaba branca no alto do toutiço e a Aida, envaidecida pela sua origem anglófona, uma cara de cavalo direita com se tivesse engolido um varapau. Chegavam e era vê-los, sem qualquer rebuço como se estivessem em casa própria, meterem-se em tudo, arrebanhando o Nequinhas para o escrutínio das despensas. E aí começava o sarilho. Ó Manuel, dizia o famigerado avarento, você é muito desprevenido. Não verifica os mantimentos? A mulher, feita sacristã, ajudava à missa: A Julinha dá muita liberdade à Maria. Tome cautela que ela deve encher a família de queijos, presuntos, paios, chouriços que aquilo é terra de fome, o Manuel bem sabe. O Manuel pouco se importava mas ia dizendo: Sim, sim, a Julinha sabe bem o que tem em casa. Só dislates, pensava a Julinha, gente pobre mas honrada, honesta, cheia de morabeza e a sua Maria uma empregada como não havia outra, de inteira confiança, mesmo um membro da família que tudo sacrificara por eles. Só que a Maria enchia-se, e com toda a razão, de brios. Els comê, els bébi e mí qui ê ladron, repetia furibunda. Bem tinha de a mandar calar mas custava-lhe que a razão estava do lado dela. Uma vida que a enfermidade do marido fizera terminar. Afinal eram poucos os amigos, o Esteves e família, os Vicentes, o Raul, o Zeca que os outros, os que a vida não fora afastando ou não matara entretanto, todos debandaram.
Lucinda Aranha
____________
Nota do editor
Vd. postes de:
15 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P12991: Tabanca Grande (433): Lucinda Aranha, filha de Manuel Joaquim dos Prazeres que viveu em Cabo Verde e na Guiné entre os anos 30 e 1972, e que era empresário de cinema ambulante
e
23 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P13022: Em busca de... (241): Fotos e histórias do cinema ao ar livre e do empresário Manuel Joaquim dos Prazeres, que deambulou pelo território entre 1943 e 1972 (Lucinda Aranha, filha e escritora)
Último poste da série de 9 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13119: Notas de leitura (587): "Um Sorriso para a Democracia na Guiné-Bissau", por Onofre dos Santos (Mário Beja Santos)
Caros «camaradas»,
Agradeço a simpatia com que me receberam. Creio, no entanto, que têm uma espectativa demasiado alta da minha hipotética contribuição.
O meu pai teve 7 filhos, todos eles nascidos na Praia, excepto a sexta nascida em Bolama e eu que vim a nascer em Portugal. Viveu na Praia entre 1929 e 43 e desde essa data até 1972 na Guiné portuguesa, vindo à metrópole para junto da família, que residia em Portugal desde 1946, na época das chuvas.
Assim, nem eu nem os meus irmãos estudámos em África.
Como o Carlos calculou, fui professora, leccionando História no ensino secundário.
As estórias sobre África que conto no Reino das Orelhas não foram vivenciadas por mim mas são recordações dos meus pais, da minha ama Sampadjuda e dos amigos cabo-verdianos e guineenses que enxameavam a nossa casa de Lisboa.
O meu pai praticava uma política de casa aberta aos amigos. Por lá passavam administradores, chefes de posto, comerciantes e as suas famílias, alguns deles chegaram mesmo a ser residentes temporários.
Envio-lhes um excerto do livro que estou a escrever sobre Manuel Joaquim onde a sua mulher discreteia sobre essas «invasões» e que, penso, lhes permitirá perceberem melhor as minhas relações com a Guiné.
O Carlos pediu-me fotografias. Já lhe enviei 4 no anexo do mail Apelo.
Agradecia, pela importância de que se revestem para mim, que as publicasse.
Os meus agradecimentos,
Lucinda Aranha
************
Manuel Joaquim dos Prazeres, empresário e caçador, que conhecia a Guiné como poucos
Foto: © Lucinda Aranha (2014). Todos os direitos reservados.
"JULINHA"
A Guiné era outra loiça. A sua casa estava sempre cheia, de estadia ou simples visita, dessa gente mas a maior parte dela não lhe deixava saudades. Uns atrevidos, abusadores que chegavam a telefonar-lhe, perguntando: É da Pensão da avenida de Roma? Havia excepções. A Chica, da idade da sua mais nova, que durante anos foi ficando lá por casa, criada como filha, vinda para se tratar de uma poliomielite e que parecia ter bicho carapinteiro não parando descansada, acrescentando à doença uma perna partida que teve artes de se atirar de uma varanda. Uma preocupação com os pais ausentes na Guiné e ela a entrar e a sair a toda a hora do Hospital do Ultramar. A Maria Domingas e os pequenos, a Maria Garcia com a Luisita costumavam passar pequenas temporadas em sua casa. Todos amigos ligados ao funcionalismo da Guiné. O compadre Esteves que adorava a cachupa e o pudim de pão da Maria, de estalo, trazendo a reboque a Constança, o Fialho, procurador dos dois compadres, o filho com a mulher dada à poesia e muito da intimidade da Tina e as filhas, todas impecáveis, e os respectivos maridos eram visitas muito do seu agrado.
Não lhe falassem daqueles dois horríveis casais, os Pascoais e o Urso Pardo e a Bela Adormecida, alcunhas dadas pelas filhas. Os dois últimos de arcaboiços de mais de cem quilos, ela com uma cabeleira negra de azeviche e escorrida, a bater-lhe pelas ancas e que cofiava languidamente, uma Ursulina do Brejo como também diziam as miúdas, lidas no Pato Donald e no Mickey. Gente detestável e mal formada que o Nequinhas lhe enfiava pela casa dentro com o argumento de que lhes devia retribuição da hospitalidade recebida em terras africanas, tudo imaginações que todos sabiam que recusava dormir debaixo de tecto na Guiné, salvo quando em Bissau e aí só aceitava o abrigo do compadre. As visitas da Maria Virgínia e família faziam as delícias das filhas com as suas estórias picarescas. Era casada com um administrador, por sinal bastante mulherengo. Ela morria de ciúmes do marido. Na Guiné houvera aquela escandaleira de se vestir de homem para espiar os passos do marido. Toda a Bissau, maldosamente, a murmurar nos seus preparos. Cá para mim, pensava muitas vezes, nada como o calor para empolar os pequenos percalços de cada um. Agiganta tudo a uma escala que Deus me livre. As filhas adoravam ouvi-la, desbocada, xingando o marido que não se lhe dava nada de arriar a jiga onde quer que estivesse. Então não fora que em sua casa, onde tinham sido convidados para almoçar, a Maria Virgínia, desvairada de ciúmes, mal levantada da mesa, larga os amigos, o marido, os filhos, desconchava e desanda porta fora, atirando em resposta ao atónito marido que queria saber o motivo da saída intempestiva: Vou à baixa levar na caixa! Se havia boa mulher estava ali, mas os malditos ciúmes faziam-lhe perder a tramontana, esquecendo-se das conveniências. A pena que tinha de a ver em semelhantes destemperos. Virgínia, deixe-se dessas cenas que não a levam a lado nenhum. Só se arrelia inutilmente. Pense nos seus filhos. Olhe o exemplo que dá às crianças com estes destrambelhamentos e discussões constantes, e acrescentava penalizada, desculpe-me a sinceridade com que lhe falo. Bem lho dizia mas qual o quê que se havia mulher teimosa estava ali.
E a Pãozinho? Uma viúva de um funcionário ultramarino de Angola cuja filha, mulher apoderada, era casada com um funcionário da Casa Esteves, um lingrinhas que se escondia, à cautela, por detrás da mulher quando as coisas lhe pareciam negras. A Pãozinho assim chamada porque muito se temia de que o pãozinho que o marido lhe deixara, a sua pensão de viuvez lhe fosse roubada pelos terroristas, não percebendo ou não querendo perceber, na sua sanha antiterrorista que dependia do estado português. Mal sabia ela que tempos haviam de chegar em que os pensionistas e reformados portugueses seriam vistos pelo governo do seu país como uma excrescência, um cancro que convinha extirpar, fazendo-os morrer o mais rápido possível, e enquanto o genocídio não ocorria, convinha espoliá-los de parte substancial dos descontos obrigatórios de toda uma vida de trabalho em nome da austeridade. As suas estórias encantavam as miúdas, enfim não tanto miúdas, que algumas já andavam na faculdade. Todas se maravilhavam com a estória da mezinha feita por curandeiros angolanos, no maior secretismo, com o pó das unhas de crocodilo que a tornou resistente a um cancro, o que admirou os médicos do IPO, que espantados com a sua de todo inexpectável resistência, lhe pediam para revelar o segredo mas ela, temerosa e obstinada, nunca lhes explicou a alquimia. A Antónia, dada a elucubrações, perguntava-se então e tem-no feito pela vida fora, se não estaria ali a cura para uma doença tão mortífera com foros de uma peste da modernidade.
Calhava passar lá por casa um outro casal, dos conhecimentos anteriores aos tempos de África, cuja presença a Julinha detestava porque era sinónimo de arrelias. O Luís, magriço, empertigado com o rosto emoldurado por uma piaçaba branca no alto do toutiço e a Aida, envaidecida pela sua origem anglófona, uma cara de cavalo direita com se tivesse engolido um varapau. Chegavam e era vê-los, sem qualquer rebuço como se estivessem em casa própria, meterem-se em tudo, arrebanhando o Nequinhas para o escrutínio das despensas. E aí começava o sarilho. Ó Manuel, dizia o famigerado avarento, você é muito desprevenido. Não verifica os mantimentos? A mulher, feita sacristã, ajudava à missa: A Julinha dá muita liberdade à Maria. Tome cautela que ela deve encher a família de queijos, presuntos, paios, chouriços que aquilo é terra de fome, o Manuel bem sabe. O Manuel pouco se importava mas ia dizendo: Sim, sim, a Julinha sabe bem o que tem em casa. Só dislates, pensava a Julinha, gente pobre mas honrada, honesta, cheia de morabeza e a sua Maria uma empregada como não havia outra, de inteira confiança, mesmo um membro da família que tudo sacrificara por eles. Só que a Maria enchia-se, e com toda a razão, de brios. Els comê, els bébi e mí qui ê ladron, repetia furibunda. Bem tinha de a mandar calar mas custava-lhe que a razão estava do lado dela. Uma vida que a enfermidade do marido fizera terminar. Afinal eram poucos os amigos, o Esteves e família, os Vicentes, o Raul, o Zeca que os outros, os que a vida não fora afastando ou não matara entretanto, todos debandaram.
Lucinda Aranha
____________
Nota do editor
Vd. postes de:
15 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P12991: Tabanca Grande (433): Lucinda Aranha, filha de Manuel Joaquim dos Prazeres que viveu em Cabo Verde e na Guiné entre os anos 30 e 1972, e que era empresário de cinema ambulante
e
23 DE ABRIL DE 2014 > Guiné 63/74 - P13022: Em busca de... (241): Fotos e histórias do cinema ao ar livre e do empresário Manuel Joaquim dos Prazeres, que deambulou pelo território entre 1943 e 1972 (Lucinda Aranha, filha e escritora)
Último poste da série de 9 DE MAIO DE 2014 > Guiné 63/74 - P13119: Notas de leitura (587): "Um Sorriso para a Democracia na Guiné-Bissau", por Onofre dos Santos (Mário Beja Santos)
domingo, 15 de setembro de 2013
Guiné 63/74 - P12047: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (13): A minha singela homenagem aos pais de todos nós
1. Mensagem do nosso camarada Vasco Pires (ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72) com data de 24 de Agosto de 2013:
Cordiais saudações.
Tem-se falado muito que a nossa geração foi sacrificada, no que concordo plenamente.
Tenho dito em alguns comentários, e confirmo, que os nossos toscos, arrogantes e oportunistas líderes políticos nos derespeitaram e continuam fazendo-o, ao não reconhecer que estávamos a serviço compulsório do ESTADO PORTUGUÊS, aliás é essa a minha opinião sobre as as nossas PSEUDO ELITES de longa data, com raras e honrosíssimas excepções.
Mas divaguei demais sobre algo que não era a minha ideia inicial.
Queria lembrar a ansiedade e sofrimento de nossos pais e demais familiares, enquanto nós estávamos por lá "perdidos" nas bolanhas de uma África inóspita.
Ao enviar a foto de meus pais, quero homenagear os de todos nós.
Será que o sofrimento deles foi em vão?
Forte abraço
Vasco Pires
Nota do editor
Último poste da série de 11 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11929: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (12): Fotos do Cap Op Esp Fernando Assunção Silva em confraternização com oficiais e sargentos sob o seu comando
Cordiais saudações.
Tem-se falado muito que a nossa geração foi sacrificada, no que concordo plenamente.
Tenho dito em alguns comentários, e confirmo, que os nossos toscos, arrogantes e oportunistas líderes políticos nos derespeitaram e continuam fazendo-o, ao não reconhecer que estávamos a serviço compulsório do ESTADO PORTUGUÊS, aliás é essa a minha opinião sobre as as nossas PSEUDO ELITES de longa data, com raras e honrosíssimas excepções.
Mas divaguei demais sobre algo que não era a minha ideia inicial.
Queria lembrar a ansiedade e sofrimento de nossos pais e demais familiares, enquanto nós estávamos por lá "perdidos" nas bolanhas de uma África inóspita.
Ao enviar a foto de meus pais, quero homenagear os de todos nós.
Será que o sofrimento deles foi em vão?
Forte abraço
Vasco Pires
A família de Vasco Pires e um amigo (com óculos, à direita) da diáspora de Goa
José Martins Pires, pai de Vasco Pires, em 1930
____________Nota do editor
Último poste da série de 11 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11929: Fantasmas ...e realidades do fundo do baú (Vasco Pires) (12): Fotos do Cap Op Esp Fernando Assunção Silva em confraternização com oficiais e sargentos sob o seu comando
segunda-feira, 19 de março de 2012
Guiné 63/74 - P9627: Blogpoesia (183): Homenagem ao Homem, no Dia do Pai (Felismina Costa)
Mais um poema da nossa amiga tertuliana Felismina Costa*, neste dia dedicado ao Pai:
Homenagem ao Homem, no Dia do Pai
Pretendo homenagear o homem!
O homem avô!
O homem Pai!
O homem Filho!
O homem Marido, Amante e Amigo!
O homem, criador e criativo!
O homem… amparo e abrigo!
O homem, orgulho da sua prol
Da sua Pátria,
Do seu torrão Natal!
O Homem, orgulhoso da sua obra total!
O homem nascido, concebido no amor
Gerado para se multiplicar, para fazer crescer o mundo!
Falar da vida,
é falar do homem,
à sombra do qual, a mulher se abriga,
Os lares se enchem
A sede se mata
A fome se acaba
A luta é bendita!
Falar do Homem, é falar do sonho!
Dos sonhos todos de uma vida!
É da força do seu braço, do calor do seu abraço
Da ternura da sua voz, do seu olhar,
Das suas ideias
Da sua presença varonil, indiscutivelmente válida,
que a terra, se enche de valores.
É ai, à beira desse rectângulo humano
que a vida gira!
Que o dia começa e a noite finda!
Que novo dia desperta!
Que a terra grita!
Cada dia, soerguendo-se no horizonte
tem um rosto barbeado
uns olhos que se abrem para o mundo
Uma boca que beija
Que incendeia
Uma voz que se personaliza!
É o Homem que se diz,
Companheiro de amarguras…
de alegrias!
Companheiro de esperanças,
Presença, que se não dispensa.
Que acende a chama dos dias!
Em cada homem… um pai!
Um pai que gera e que cria!
Felismina Costa
Agualva, 18 de Março de 2012
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 8 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9579: Blogpoesia (180): No Dia Internacional da Mulher, A um modelo de mulher (Felismina Costa)
Vd. último poste da série de 8 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9586: Blogpoesia (182): Mulher - Esposa e Mãe (Juvenal Amado)
Homenagem ao Homem, no Dia do Pai
Pretendo homenagear o homem!
O homem avô!
O homem Pai!
O homem Filho!
O homem Marido, Amante e Amigo!
O homem, criador e criativo!
O homem… amparo e abrigo!
O homem, orgulho da sua prol
Da sua Pátria,
Do seu torrão Natal!
O Homem, orgulhoso da sua obra total!
O homem nascido, concebido no amor
Gerado para se multiplicar, para fazer crescer o mundo!
Falar da vida,
é falar do homem,
à sombra do qual, a mulher se abriga,
Os lares se enchem
A sede se mata
A fome se acaba
A luta é bendita!
Falar do Homem, é falar do sonho!
Dos sonhos todos de uma vida!
É da força do seu braço, do calor do seu abraço
Da ternura da sua voz, do seu olhar,
Das suas ideias
Da sua presença varonil, indiscutivelmente válida,
que a terra, se enche de valores.
É ai, à beira desse rectângulo humano
que a vida gira!
Que o dia começa e a noite finda!
Que novo dia desperta!
Que a terra grita!
Cada dia, soerguendo-se no horizonte
tem um rosto barbeado
uns olhos que se abrem para o mundo
Uma boca que beija
Que incendeia
Uma voz que se personaliza!
É o Homem que se diz,
Companheiro de amarguras…
de alegrias!
Companheiro de esperanças,
Presença, que se não dispensa.
Que acende a chama dos dias!
Em cada homem… um pai!
Um pai que gera e que cria!
Felismina Costa
Agualva, 18 de Março de 2012
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 8 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9579: Blogpoesia (180): No Dia Internacional da Mulher, A um modelo de mulher (Felismina Costa)
Vd. último poste da série de 8 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9586: Blogpoesia (182): Mulher - Esposa e Mãe (Juvenal Amado)
sábado, 19 de março de 2011
Guiné 63/74 - P7963: Blogpoesia (116): Neste dia 19 de Março, homenagem a meu Pai e a todos os Pais (Felismina Costa)
1. Mensagem da nossa amiga tertuliana Felismina Costa* com data de 16 de Março de 2011:
Caro Editor e Amigo Carlos Vinhal
Lembrando mais uma efeméride, 19 de Março, (O dia do Pai), resolvi enviar uma carta que escrevi ao meu pai, que já não vejo desde 1993, porque a morte o veio buscar, e que pretendo seja, uma homenagem a todos os pais que nela se revejam.
Quantos de nós, já temos pensado, que gostaríamos de poder escrever ao nosso pai, dizendo-lhe o que nunca lhe dissemos enquanto os tivemos junto de nós?
É isso que faço aqui!
Se achar que faz sentido, Carlos... publique.
Obrigada.
Um abraço fraterno da
Felismina Costa
Pai!
Lembras-te pai, daqueles anos em que vivíamos todos no Monte-Novo-das-Flores?
Lembras-te de me acordares todos os dias dizendo:
--São horas filha, já o sol vai alto!
O sol… nascia dentro da nossa casa!
Literalmente, nascia dentro da nossa casa!
E rapidamente se elevava, naquele céu azul, maravilhoso, umas vezes doce, suave…
E outras queimando… abrasando, impondo a sua força, em Verões caniculares!
Lembras-te pai? Daqueles dias Primaveris em que cavavas aquela terra toda, desenhando e preparando os canteiros para as sementeiras de Verão?
O cheiro bom da terra fresca, afagada, limpa, arranjada, mostrando a sua cor morena e forte, maternal e amiga, esperando apenas a semente para a transformar num espaço luxuriante de verdura, que antecedia a flor, que gerava o fruto?
O teu corpo esguio, elegante, de braços compridos e mãos grandes, firmes e determinadas, quando pegavas na enxada para transformar em matéria leve e fofa, aquela terra pesada, dura, ou encharcada de água, que te encharcava o corpo de suor, eram as mesmas mãos que depois nos acariciavam, quando sorridente nos contavas velhas e divertidas histórias, e tu, o mesmo, que determinado dizia não, quando era preciso dizer não… mesmo sorrindo, mas sem desarmar.
Pai, quantas vezes me lembro de ti!
Do teu porte varonil e belo.
Vestias com gosto a roupa limpa e arranjada que sempre brilhou no teu corpo e que sempre refiro como um exemplo de brio, de galhardia.
Um dia, enquanto varejavas a oliveira grande, tivemos uma conversa que sempre recordo, que sempre te agradeço. Grande lição de vida! Uma das maiores lições que tu me deste. Eu devia ter, os meus catorze, quinze anos, e às vezes falo dela aos meus amigos.
Contei-a aos meus filhos e ao meu neto, que a escutaram respeitosamente, compreendendo, tal como eu compreendi, o teu conselho, o teu alerta, para as ciladas da vida. Preciso, sem arrogâncias, fazias-nos acreditar que as tuas palavras, os teus conselhos, eram a ajuda certa para prosseguir a caminhada.
Que bem que nos fez a tua experiência de vida!
Pai, recordo cada frase, cada gesto, cada sorriso, cada olhar… e tenho tantas saudades tuas!
Recordo cada dia, ali vividos!
Pai, recordo cada som daquele espaço!
Os meus irmãos brincando e ajudando no trabalho da quinta, o barulho do motor a dois tempos, que puxava a água do poço para o tanque, ao fim da tarde.
O tanque cheio de agua fresca e pura… espelhava a lua… e um sapo cantava, mal virávamos as costas, encantado e agradecido.
O cantar do cuco por detrás da "Soalheirinha", até ao findar do dia.
O cantar dos grilos e das cigarras acompanhava-nos ao longo do caminho até casa, casa, que de resto, ficava tão próxima, só uns cinquenta metros mais acima, e que, em dias luminosos e calmos de Outono, nos dava uma imagem idílica da vida campestre, com o fumo saindo da chaminé, vagaroso, cinzento, inclinando-se calmamente pelo espaço, ao fim da tarde.
O cheiro bom da erva que o calor ia cada dia transformando em feno, aspirava-se a plenos pulmões, e o cansaço do dia era agora minimizado na absorção desse perfume quente, gostoso e calmante.
Tudo se traduzia num entendimento perfeito, num conhecimento total das leis que regiam a natureza.
Feliz, eu cantava as cantigas em voga, que entoavam no espaço livre.
Por vezes também te ouvia cantar, cantigas dos teus tempos idos. Ainda me recordo do princípio de uma canção, ou fado-canção, que gostavas de trautear e começava assim:
(…Era uma tarde de Inverno
Em que o céu parecia o Inferno
Andavam os astros em guerra
E a ribeira mal continha
As grandes cheias que vinham
Lá dos vertentes da serra…)
E eu ouvia atenta esse teu trautear, que animava a doce calma do lugar, enquanto ia trabalhando a teu lado, feliz e segura.
Trabalhar a terra… é uma terapia que recomendo vivamente!
Ver transformado em fruto o esforço colectivo da família, era a alegria total, o agradecimento surgia naturalmente, valorizava-se cada folha, cada flor, cada grão, cada aroma, cada forma apresentada…
As figueiras, carregadas de figos pretos e brancos, eram uma delícia, uma recompensa depois do trabalho árduo, que abria o apetite, e nos tornava gratos.
No conforto doce da casa, as refeições, à base dos produtos totalmente biológicos que criávamos, tinham um sabor único, inconfundível.
Às vezes faltava o tempo para cozinhar mas, qualquer coisa que se fizesse era gostoso, reconfortante.
Cestos de fruta acabada de colher eram as fruteiras que decoravam a mesa ou os cantos da cozinha.
O espaço que habitávamos era magnífico na sua simplicidade, na sua naturalidade.
O sol tornava-o resplandecente!
E nós tudo fazíamos para o alindar.
Dávamos à terra as sementes e plantávamos árvores para que se cumprisse a vida, para que germinando e florindo, aquele espaço desenvolvesse as suas capacidades criadoras, que nos alegrava, que nos enriquecia, enquanto seres humildes.
As aves ofereciam-nos músicas de encantar e o espectáculo dos voos e das cores da sua plumagem, qual orquestra exibindo obras imortais, com todos os seus elementos vestidos a rigor.
No ribeiro que dividia a quinta longitudinalmente, a água corria docemente e as rãs cantavam para nós.
Esse pequeno espaço… era o meu mundo e nele encontrei muitos motivos de encanto.
A paz, o sossego, a luz, as cores, os sons, o afecto, a segurança…
Nele cresci, segura e feliz, na família construída sob a tua regência.
O presente era magnífico, como me poderia assustar o futuro?
A mãe?.. que saudades da minha mãe!
Todos os minutos da sua vida foram de trabalho e dedicação, de amor, de vontade, de brio, de coragem!
Mas a carta hoje é para ti, Pai!
Há muito que andava para te escrever.
Há muito que andava para te dizer das lembranças que marcaram a minha vida.
Das lembranças que me deixaste.
Lembranças da tua força… e também das tuas fraquezas… mas, a tua presença enchia a nossa casa, era a base, a solidez, a estrutura, a confiança.
Precisava de te dizer isto.
Sempre que eu e os meus irmãos nos juntamos, falamos de vós, com alegria e emoção, com orgulho, com gratidão!
Lembramos a nossa infância e adolescência até àquele dia em que, cumprindo as leis da vida, fomos deixando a casa paterna.
Tentamos todos seguir o vosso exemplo. Tentamos todos passar para os nossos filhos os vossos exemplos, a vossa ternura, a vossa verticalidade, a vossa capacidade de enfrentar os revezes, sem alarmismos, mas com determinação. Com coragem!
Foi muito bom ter nascido do vosso amor.
Obrigada meu pai, pela companhia, pela presença, pelo afecto, pelo esforço dispendido ao longo dos anos, muitas vezes menos bem, (porque a saúde às vezes falta), pela família que me ofereceste e por teres permanecido ao meu lado, ao longo de toda a tua vida.
Agradecida e Saudosa… sou a tua filha… Felismina.
Felismina Costa
Agualva, 1 de Março de 2011
____________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 22 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7844: Blogoterapia (178): Regresso ao passado (Felismina Costa)
Vd. último poste da série de 18 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7961: Blogpoesia (115): Aromas de Camabatela, Quando cheguei a Luanda (1) (Albino Silva)
Caro Editor e Amigo Carlos Vinhal
Lembrando mais uma efeméride, 19 de Março, (O dia do Pai), resolvi enviar uma carta que escrevi ao meu pai, que já não vejo desde 1993, porque a morte o veio buscar, e que pretendo seja, uma homenagem a todos os pais que nela se revejam.
Quantos de nós, já temos pensado, que gostaríamos de poder escrever ao nosso pai, dizendo-lhe o que nunca lhe dissemos enquanto os tivemos junto de nós?
É isso que faço aqui!
Se achar que faz sentido, Carlos... publique.
Obrigada.
Um abraço fraterno da
Felismina Costa
Pai!
Lembras-te pai, daqueles anos em que vivíamos todos no Monte-Novo-das-Flores?
Lembras-te de me acordares todos os dias dizendo:
--São horas filha, já o sol vai alto!
O sol… nascia dentro da nossa casa!
Literalmente, nascia dentro da nossa casa!
E rapidamente se elevava, naquele céu azul, maravilhoso, umas vezes doce, suave…
E outras queimando… abrasando, impondo a sua força, em Verões caniculares!
Lembras-te pai? Daqueles dias Primaveris em que cavavas aquela terra toda, desenhando e preparando os canteiros para as sementeiras de Verão?
O cheiro bom da terra fresca, afagada, limpa, arranjada, mostrando a sua cor morena e forte, maternal e amiga, esperando apenas a semente para a transformar num espaço luxuriante de verdura, que antecedia a flor, que gerava o fruto?
O teu corpo esguio, elegante, de braços compridos e mãos grandes, firmes e determinadas, quando pegavas na enxada para transformar em matéria leve e fofa, aquela terra pesada, dura, ou encharcada de água, que te encharcava o corpo de suor, eram as mesmas mãos que depois nos acariciavam, quando sorridente nos contavas velhas e divertidas histórias, e tu, o mesmo, que determinado dizia não, quando era preciso dizer não… mesmo sorrindo, mas sem desarmar.
Pai, quantas vezes me lembro de ti!
Do teu porte varonil e belo.
Vestias com gosto a roupa limpa e arranjada que sempre brilhou no teu corpo e que sempre refiro como um exemplo de brio, de galhardia.
Um dia, enquanto varejavas a oliveira grande, tivemos uma conversa que sempre recordo, que sempre te agradeço. Grande lição de vida! Uma das maiores lições que tu me deste. Eu devia ter, os meus catorze, quinze anos, e às vezes falo dela aos meus amigos.
Contei-a aos meus filhos e ao meu neto, que a escutaram respeitosamente, compreendendo, tal como eu compreendi, o teu conselho, o teu alerta, para as ciladas da vida. Preciso, sem arrogâncias, fazias-nos acreditar que as tuas palavras, os teus conselhos, eram a ajuda certa para prosseguir a caminhada.
Que bem que nos fez a tua experiência de vida!
Pai, recordo cada frase, cada gesto, cada sorriso, cada olhar… e tenho tantas saudades tuas!
Recordo cada dia, ali vividos!
Pai, recordo cada som daquele espaço!
Os meus irmãos brincando e ajudando no trabalho da quinta, o barulho do motor a dois tempos, que puxava a água do poço para o tanque, ao fim da tarde.
O tanque cheio de agua fresca e pura… espelhava a lua… e um sapo cantava, mal virávamos as costas, encantado e agradecido.
O cantar do cuco por detrás da "Soalheirinha", até ao findar do dia.
O cantar dos grilos e das cigarras acompanhava-nos ao longo do caminho até casa, casa, que de resto, ficava tão próxima, só uns cinquenta metros mais acima, e que, em dias luminosos e calmos de Outono, nos dava uma imagem idílica da vida campestre, com o fumo saindo da chaminé, vagaroso, cinzento, inclinando-se calmamente pelo espaço, ao fim da tarde.
O cheiro bom da erva que o calor ia cada dia transformando em feno, aspirava-se a plenos pulmões, e o cansaço do dia era agora minimizado na absorção desse perfume quente, gostoso e calmante.
Tudo se traduzia num entendimento perfeito, num conhecimento total das leis que regiam a natureza.
Feliz, eu cantava as cantigas em voga, que entoavam no espaço livre.
Por vezes também te ouvia cantar, cantigas dos teus tempos idos. Ainda me recordo do princípio de uma canção, ou fado-canção, que gostavas de trautear e começava assim:
(…Era uma tarde de Inverno
Em que o céu parecia o Inferno
Andavam os astros em guerra
E a ribeira mal continha
As grandes cheias que vinham
Lá dos vertentes da serra…)
E eu ouvia atenta esse teu trautear, que animava a doce calma do lugar, enquanto ia trabalhando a teu lado, feliz e segura.
Trabalhar a terra… é uma terapia que recomendo vivamente!
Ver transformado em fruto o esforço colectivo da família, era a alegria total, o agradecimento surgia naturalmente, valorizava-se cada folha, cada flor, cada grão, cada aroma, cada forma apresentada…
As figueiras, carregadas de figos pretos e brancos, eram uma delícia, uma recompensa depois do trabalho árduo, que abria o apetite, e nos tornava gratos.
No conforto doce da casa, as refeições, à base dos produtos totalmente biológicos que criávamos, tinham um sabor único, inconfundível.
Às vezes faltava o tempo para cozinhar mas, qualquer coisa que se fizesse era gostoso, reconfortante.
Cestos de fruta acabada de colher eram as fruteiras que decoravam a mesa ou os cantos da cozinha.
O espaço que habitávamos era magnífico na sua simplicidade, na sua naturalidade.
O sol tornava-o resplandecente!
E nós tudo fazíamos para o alindar.
Dávamos à terra as sementes e plantávamos árvores para que se cumprisse a vida, para que germinando e florindo, aquele espaço desenvolvesse as suas capacidades criadoras, que nos alegrava, que nos enriquecia, enquanto seres humildes.
As aves ofereciam-nos músicas de encantar e o espectáculo dos voos e das cores da sua plumagem, qual orquestra exibindo obras imortais, com todos os seus elementos vestidos a rigor.
No ribeiro que dividia a quinta longitudinalmente, a água corria docemente e as rãs cantavam para nós.
Esse pequeno espaço… era o meu mundo e nele encontrei muitos motivos de encanto.
A paz, o sossego, a luz, as cores, os sons, o afecto, a segurança…
Nele cresci, segura e feliz, na família construída sob a tua regência.
O presente era magnífico, como me poderia assustar o futuro?
A mãe?.. que saudades da minha mãe!
Todos os minutos da sua vida foram de trabalho e dedicação, de amor, de vontade, de brio, de coragem!
Mas a carta hoje é para ti, Pai!
Há muito que andava para te escrever.
Há muito que andava para te dizer das lembranças que marcaram a minha vida.
Das lembranças que me deixaste.
Lembranças da tua força… e também das tuas fraquezas… mas, a tua presença enchia a nossa casa, era a base, a solidez, a estrutura, a confiança.
Precisava de te dizer isto.
Sempre que eu e os meus irmãos nos juntamos, falamos de vós, com alegria e emoção, com orgulho, com gratidão!
Lembramos a nossa infância e adolescência até àquele dia em que, cumprindo as leis da vida, fomos deixando a casa paterna.
Tentamos todos seguir o vosso exemplo. Tentamos todos passar para os nossos filhos os vossos exemplos, a vossa ternura, a vossa verticalidade, a vossa capacidade de enfrentar os revezes, sem alarmismos, mas com determinação. Com coragem!
Foi muito bom ter nascido do vosso amor.
Obrigada meu pai, pela companhia, pela presença, pelo afecto, pelo esforço dispendido ao longo dos anos, muitas vezes menos bem, (porque a saúde às vezes falta), pela família que me ofereceste e por teres permanecido ao meu lado, ao longo de toda a tua vida.
Agradecida e Saudosa… sou a tua filha… Felismina.
Felismina Costa
Agualva, 1 de Março de 2011
____________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 22 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7844: Blogoterapia (178): Regresso ao passado (Felismina Costa)
Vd. último poste da série de 18 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P7961: Blogpoesia (115): Aromas de Camabatela, Quando cheguei a Luanda (1) (Albino Silva)
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
Guiné 63/74 - P7064: Notas de leitura (152): Memórias e Reflexões, de Juvenal Cabral (Mário Beja Santos)
1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Setembro de 2010:
Queridos amigos,
Li Juvenal Cabral com imensa surpresa. As autoridades de Cabo Verde dizem estar a prestar homenagem ao pai daquele que foi o fundador de duas nacionalidades.
Lendo esta colectânea de memórias, ficamos com o quadro do intelectual cabo-verdiano do seu tempo, um “civilizado” que se orgulhava de Cabo Verde e Portugal.
Um abraço do
Mário
Juvenal Cabral, o pai de Amílcar Cabral
Beja Santos
O escritor Juvenal Cabral nasceu em Cabo Verde, foi ainda criança para Portugal, regressou depois à sua terra natal, onde frequentou o Seminário-Liceu de S. Nicolau e aos 22 anos embarcou para a Guiné, onde fez um périplo entre Bolama e Bafatá. Mais tarde, regressou a Cabo Verde onde se revelou muito activo na defesa dos interesses cabo-verdianos. O Instituto da Biblioteca Nacional, de Cabo Verde, editou em 2002 as suas impressivas “Memórias e Reflexões”, inicialmente publicado em 1947, na Cidade da Praia. Falando da Guiné, Juvenal Cabral mostra como procurou servir a nação portuguesa e, diz ele, “transformar em cidadãos prestáveis puros gentios da tribo” e mostrar a sua admiração pelos encantos naturais deste coração da Senegâmbia, recordando até a peregrina formosura de uma adolescente fula. Apresenta-se como um simples recruta entre os escritores que, garbosamente, enfileiram na ala dos profissionais da pena.
São memórias e reflexões onde ele nos fala de Rufina Lopes Cabral, que pertencia a uma família de lavradores da Ribeira do Engenho, na ilha de Santiago. Uma senhora rica e sua madrinha, D. Simoa dos Reis Borges Correia, mandou-a estudar em S. Tiago de Cassurães, perto de Mangualde, tinha ele oito anos. Recorda mestres e amizades feitas no seminário de Viseu. Nostálgico, diz que passou aqui os melhores anos da sua vida. Descreve Viseu como a rainha da Beira. De regresso à ilha de Santiago, vai para o Seminário de S. Nicolau, a experiência corre mal. Em Abril de 1911, segue para a Guiné, com destino a Bolama. Transforma-se num funcionário público, amanuense da Câmara com um ordenado de 15 000 Reis. Aqui esteve 45 dias e depois passou para a Fazenda, colocado como aspirante provisório. Outra experiência que não correu lá muito bem. Seguiu para alfândega. É então que Juvenal Cabral se tornou professor primário. Foi nomeado professor da Escola de Cacine em 1913. Ele escreve: “Cacine, a circunscrição civil ao tempo menos movimentada, não tinha, como nunca teve, fauna escolar apreciável. Dedicando-me, pois, ao ensino da meia dúzia de alunos que compunham a frequência, não deixava de ocupar-me no cultivo de um quintal, cuja produção – mandioca e batata-doce – constituía precioso reforço à minguada verba do meu vencimento oficial. Monótona, aborrecida por vezes, era a vida em Cacine. Se contássemos – administrador, amanuense, telegrafista, chefe do posto aduaneiro, professor, enfermeiro e um comerciante – teríamos concluído o recenseamento da população que, com a reduzida família, habitava as cinco existentes na sede da circunscrição. A presença do Capitão Teixeira Pinto, que ali fora, a fim de meter na ordem uns chefes desobedientes, foi o acontecimento mais notável que se verificou em Cacine, durante a minha permanência ali como funcionário”. Foi depois transferido para Buba, antigo presídio, que ele descreve assim: “O que resta da sua antiga magnificência não é hoje mais do que a carcaça de um velho gigante que, nos primeiros séculos da colonização portuguesa, proporcionou riqueza e renome a todos os obreiros do seu desenvolvimento e grandeza. A nova escola que eu ia dirigir não tinha, mau grado, frequência superior à da que eu acabava de deixar. À excepção de quatro ou cinco civilizados, apenas dois gentios, filhos de régulos, se matricularam. Do facto, nasceu, arreigando-se, a minha convicção de que uma escola entre gentios – excepção feita de Missões devidamente organizadas – somente poderia produzir frutos apreciáveis, se a obrigatoriedade de ensino, assegurada por um meio de severas sanções, fosse uma realidade da Guiné”. Descreve alguns episódios picarescos de dois alunos filhos dos régulos de Forreá e do Corubal. A seguir é colocado na escola de Bambadinca e mais tarde em Bafatá, onde vai nascer Amílcar Cabral. É um capítulo riquíssimo, vale a pena desenvolvê-lo no post seguinte.
Juvenal Cabral, depois desta experiência como professor na Guiné, como se disse, regressa a Cabo Verde. É uma experiência de grande importância, mas o que escreveu e como participou na vida cívica e literária não cabe neste blogue. Leopoldo Amado já tinha chamado a atenção para o vulto cultural que foi Juvenal Cabral, cabo-verdiano fervoroso, que deixou este testemunho, como ele escreveu, a enaltecer a pátria portuguesa.
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 30 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7058: (De) Caras (3): A emboscada em Malandim e a descontrolada reacção do 1º Cabo Costa, na noite de 3 de Agosto de 1969: Branco assassino, mataste uma mulher (Beja Santos)
Vd. último poste da série de 27 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7045: Notas de leitura (151): Manual Político do PAIGC (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Li Juvenal Cabral com imensa surpresa. As autoridades de Cabo Verde dizem estar a prestar homenagem ao pai daquele que foi o fundador de duas nacionalidades.
Lendo esta colectânea de memórias, ficamos com o quadro do intelectual cabo-verdiano do seu tempo, um “civilizado” que se orgulhava de Cabo Verde e Portugal.
Um abraço do
Mário
Juvenal Cabral, o pai de Amílcar Cabral
Beja Santos
O escritor Juvenal Cabral nasceu em Cabo Verde, foi ainda criança para Portugal, regressou depois à sua terra natal, onde frequentou o Seminário-Liceu de S. Nicolau e aos 22 anos embarcou para a Guiné, onde fez um périplo entre Bolama e Bafatá. Mais tarde, regressou a Cabo Verde onde se revelou muito activo na defesa dos interesses cabo-verdianos. O Instituto da Biblioteca Nacional, de Cabo Verde, editou em 2002 as suas impressivas “Memórias e Reflexões”, inicialmente publicado em 1947, na Cidade da Praia. Falando da Guiné, Juvenal Cabral mostra como procurou servir a nação portuguesa e, diz ele, “transformar em cidadãos prestáveis puros gentios da tribo” e mostrar a sua admiração pelos encantos naturais deste coração da Senegâmbia, recordando até a peregrina formosura de uma adolescente fula. Apresenta-se como um simples recruta entre os escritores que, garbosamente, enfileiram na ala dos profissionais da pena.
São memórias e reflexões onde ele nos fala de Rufina Lopes Cabral, que pertencia a uma família de lavradores da Ribeira do Engenho, na ilha de Santiago. Uma senhora rica e sua madrinha, D. Simoa dos Reis Borges Correia, mandou-a estudar em S. Tiago de Cassurães, perto de Mangualde, tinha ele oito anos. Recorda mestres e amizades feitas no seminário de Viseu. Nostálgico, diz que passou aqui os melhores anos da sua vida. Descreve Viseu como a rainha da Beira. De regresso à ilha de Santiago, vai para o Seminário de S. Nicolau, a experiência corre mal. Em Abril de 1911, segue para a Guiné, com destino a Bolama. Transforma-se num funcionário público, amanuense da Câmara com um ordenado de 15 000 Reis. Aqui esteve 45 dias e depois passou para a Fazenda, colocado como aspirante provisório. Outra experiência que não correu lá muito bem. Seguiu para alfândega. É então que Juvenal Cabral se tornou professor primário. Foi nomeado professor da Escola de Cacine em 1913. Ele escreve: “Cacine, a circunscrição civil ao tempo menos movimentada, não tinha, como nunca teve, fauna escolar apreciável. Dedicando-me, pois, ao ensino da meia dúzia de alunos que compunham a frequência, não deixava de ocupar-me no cultivo de um quintal, cuja produção – mandioca e batata-doce – constituía precioso reforço à minguada verba do meu vencimento oficial. Monótona, aborrecida por vezes, era a vida em Cacine. Se contássemos – administrador, amanuense, telegrafista, chefe do posto aduaneiro, professor, enfermeiro e um comerciante – teríamos concluído o recenseamento da população que, com a reduzida família, habitava as cinco existentes na sede da circunscrição. A presença do Capitão Teixeira Pinto, que ali fora, a fim de meter na ordem uns chefes desobedientes, foi o acontecimento mais notável que se verificou em Cacine, durante a minha permanência ali como funcionário”. Foi depois transferido para Buba, antigo presídio, que ele descreve assim: “O que resta da sua antiga magnificência não é hoje mais do que a carcaça de um velho gigante que, nos primeiros séculos da colonização portuguesa, proporcionou riqueza e renome a todos os obreiros do seu desenvolvimento e grandeza. A nova escola que eu ia dirigir não tinha, mau grado, frequência superior à da que eu acabava de deixar. À excepção de quatro ou cinco civilizados, apenas dois gentios, filhos de régulos, se matricularam. Do facto, nasceu, arreigando-se, a minha convicção de que uma escola entre gentios – excepção feita de Missões devidamente organizadas – somente poderia produzir frutos apreciáveis, se a obrigatoriedade de ensino, assegurada por um meio de severas sanções, fosse uma realidade da Guiné”. Descreve alguns episódios picarescos de dois alunos filhos dos régulos de Forreá e do Corubal. A seguir é colocado na escola de Bambadinca e mais tarde em Bafatá, onde vai nascer Amílcar Cabral. É um capítulo riquíssimo, vale a pena desenvolvê-lo no post seguinte.
Juvenal Cabral, depois desta experiência como professor na Guiné, como se disse, regressa a Cabo Verde. É uma experiência de grande importância, mas o que escreveu e como participou na vida cívica e literária não cabe neste blogue. Leopoldo Amado já tinha chamado a atenção para o vulto cultural que foi Juvenal Cabral, cabo-verdiano fervoroso, que deixou este testemunho, como ele escreveu, a enaltecer a pátria portuguesa.
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 30 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7058: (De) Caras (3): A emboscada em Malandim e a descontrolada reacção do 1º Cabo Costa, na noite de 3 de Agosto de 1969: Branco assassino, mataste uma mulher (Beja Santos)
Vd. último poste da série de 27 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7045: Notas de leitura (151): Manual Político do PAIGC (Mário Beja Santos)
domingo, 27 de setembro de 2009
Guiné 63/74 - P5019: Meu pai, meu velho, meu camarada (13): Mindelo, ontem e hoje ( Lia Medina / Nelson Herbert / Luís Graça)
Cabo Verde >Ilha de São Vicente > 2006 > Ponta João Ribeiro > Restos do quartel das forças expedicionárias portuguesas, ali estacionadas durante a II Guerra Mundial. Estas posições de bateria de anti-costa protegiam a baía do Mindelo. A Ponta João Ribeiro fica hoje a 3 km da cidade do Mindelo. Em frente, a uns escassos 600/800 metros, situa-se o ilhéu dos Pássaros.
Fotos: © Lia Medina (2009) / Blogue Luís Graça & Caranaras da Guine. Todos os direitos reservados
Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 1943 > "As peças antiaéreas do Monte Sossego [monte sobranceiro a João Ribeiro, pelas indicações que o meu pai me dá; também havia artilharia contra-costa]. Fotografia oferecido pelo meu amigo Boaventura em 21/7 (?)/43 em Mindelo. S. Vicente. Luís Henriques" [1º cabo nº 188/41, 1º Pelotão, 3ª Companhia, 1º Batalhão do Regimento de Infantaria nº 5, expedicionário em Cabo Verde, na Ilha de São Vicente, cidade do Mindelo, de 1941 a 1943]. Portugal, receoso das intenções dos beligerantes, mobilizou alguns milhares de homens para defender as suas ilhas do Atlântico, em especial os arquipélagos dos Açores e de Cabo Verde, para os quais havia planos (secretos) de ocupação por parte dos ingleses (na hipótese da invasão alemã da Península Ibérica, com a cumplicidade do Franco).
Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > 1943 > "Posição das peças anti-áereas no Monte Sossego, São Vicente, Cabo Verde. Fotografia oferecida pelo meu amigo Boaventura [ Horta, natural da Lourinhã, já falecido, pai dos meus amigos de infância Carlos, Olga e Elisa ] em 21/3/43. Luís Henriques".
Fotos: © Luís Graça (2009). Direitos reservados
1. Mensagem, com data de 8 de Junho de 2009, enviada por Lia Medina:
Assunto - Militares portugueses em São Vicente [, Cabo Verde]
Dr. Luís Graça
Chamo-me Lia Medina e sou cabo-verdiana, filha duma portuguesa com um cabo-verdiano. Sou professora em algumas instituições de ensino superior aqui na ilha de São Vicente, e a minha formação também é sociologia, pela Universidade de Coimbra.
Há uns dias atrás, a realizar pesquisas na Internet, descobri num dos seus vários blogs algumas informações e fotografias sobre a presença de militares portugueses aqui na ilha, durante a segunda guerra mundial, incluindo o seu pai (se não me engano).
Estou-lhe a escrever pelo seguinte, tenho uma turma do 1º ano de turismo cujos alunos desconhecem os dois quartéis militares de Alto de Bomba(ou Paiol de São João) e o de João Ribeiro. Então, resolvi fazer uma visita de estudo com estes alunos aos pontos de defesa da Baía do Porto Grande. Contudo, como vim a descobrir, não existem cá documentos com informações como as datas de construção e desactivação, etc.
Entrei em contacto com o comando militar aqui da ilha, onde fui informada de que os documentos, que existiam em Cabo Verde sobre a presença militar portuguesa nas ilhas, foram quase todos queimados, e os que sobreviveram às fogueiras estão desaparecidos.
Os motivos que me levam a escrever são dois. Um primeiro para lhe pedir autorização para usar fotografias e alguns dados, que consegui encontrar num dos seus blogs, na preparação da visita de estudo. E um segundo, para lhe perguntar se, por acaso não terá mais informações ou mesmo mais histórias sobre a presença dos militares portugueses aqui em Cabo Verde, que me possam ser úteis ou interessantes.
Muito obrigada pela sua atenção.
Os meus cumprimentos.
Lia Medina
2. Resposta de L.G., no mesmo dia:
Minha cara amiga:
Pode utilizar todos os materiais do nosso blogue para efeitos didácticos... A nossa missão também é essa, preservar e divulgar a memória dos portugueses e de outros povos lusófonos, com interesse historiográfico, socioantropológico, linguístico, cultural... Prendem-me, além disso, laços afectivos a Cabo Verde, onde tenho amigos e antigos alunos, e por onde passou o meu pai...
Gostaria que me autorizasse a publicação do seu mail...Em contrapartida, tenho mais fotos e histórias que irei publicar, sobre a presença de expedicionários portugueses em Cabo Verde, nomeadamente durante a II Guerra Mundial...
Essa memória corre um sério risco de se perder... O meu pai, por exemplo, tem já 89 anos. Há um amigo dele, que já morreu, e que tinha também um belo álbum fotográfico... No verão vou ver se consigo recuperar algumas e digitalizá-las... O pai do Nelson Herbert, editor sénior da Voz da América (serviço português para África) - caboverdiano que emigrou e casou na Guiné - também esteve no Mindelo, nos anos 40... Vou também publicar a sua história...
A Lia podia fazer a ponte connosco... Se assim o entender, pode juntar-se aos já 340 membros do nosso blogue, fazendo parte de uma tertúlia a que chamamos Tabanca Grande, uma metáfora, que dá uma ideia da nossa pluralidade e multiculturalidade...
Mantenhas para si. Luís Graça
(Na Tabanca Grande, tratamo-nos todos por tu...)
3. No mesmo dia, recebemos a seguinte mensagem do Nelson Herbert:
Bem hajam, os vrios tentáculos do blogue !
O meu velho está aí a chegar, aos Estados Unidos, no próximo dia 19 de Junho... Pedi aos meus irmãos em Cabo Verde, que com a ajuda dele, vasculhassem os arquivos fotográficos desse período específico da vida dele... Em todo o caso, a vinda dele é já uma boa oportunidade para o registo dos seus depoimentos e experiência durante esse período !
Haver vamos se é desta ..tal como reza o ditado português.. que os santos da casa [não] fazem milagres...
Mantenhas
NHL
4. Resposta da Lia Medina, com data de 9 de Junho:
Olá, Luís
Claro que tem a minha autorização para publicar o email.
É com muito gosto que farei parte da vossa comunidade. E sempre que necessitarem de alguma coisa, daqui das ilhas, estejam à vontade.
Muito obrigada por tudo.
Um abraço.
5. Em 9 de Junho o editor L.G. tinha pedido à Lia (e ao Nelson) para identificar alguns dos locais referidos no poste P4926 (*):
Lia e Nelson): Se puderem confirmar ou identificar os locais, óptimo... Por exemplo, chã de Alecrim (*) hoje está integrado na cidade (digo eu, que não conheço o Mindelo in loco). Abraço.
6. Resposta do Nelson:
Chã de Alecrim ou Lecrim (em crioulo) foi e é de facto um bairro, a norte da cidade do Mindelo..sempre fez parte da cidade e onde esteve instalado o comando militar, isto desde a época colonial...
Com a independência do país, o quartel foi ainda herdado e com mesma finalidade pelas Forçaas Armadas caboverdianas...
Uma outra metade, já nos anos 90 e durante a minha gestão (director geral da Televiso de Cabo Verde), foi recuperada para a instalação do centro de produção da televisão nacional caboverdiana, para as ilhas do Barlavento ...Ainda hoje lá funciona !
Nas instalações dos oficiais daquele quartel, funcionou ou funciona ainda hoje o Hotel 5 de Julho que chegou a pertencer ao BANA... a voz cabovediana.
Chã de Alecrim é hoje um dos modernos bairros de Mindelo...
Quanto ao quartel, acredito que deixou de existir como tal !
7. Resposta da Lia Medina:
Olá, Luís
Gostei muito das fotografias (*). Acho que nunca tinha visto nenhuma delas.
Hoje Chã de Alecrim faz parte da cidade, sim, mas penso que o quartel já não deve existir pois nunca vi lá nenhuma construção do género das fotografias.
Vou ver se consigo saber junto das pessoas mais idosas se consigo identificar pelo menos o local exacto do quartel.
Um abraço.
Ps- mando umas fotografias actuais do quartéis de Ponta de João Ribeiro.
8. Novo mail da Lia Medina, de 10/9/2009:
Aqui vão mais fotografias. A número 50 ainda é do quartel de João Ribeiro. São de 2006, as de João Ribeiro continuam na mesma, já o quartel de Monte Sossego está muito mal.
Como os acessos a este quartel são melhores a população já desmontou quase todos os canhões (só ficou um) e a câmara destruiu muitas das construções para evitar que pessoas fossem lá morar.
As fotografias são todas de Pedro Marcelino, um amigo meu.
Um abraço.
Lia
9. A Lia Medina passa a integrar a nossa Tabanca Grande, tendo respondido amavelmente ao nosso convite, em 9 de Junho último:
Olá Luís
Claro que tem a minha autorização para publicar o email [, de 8 de Junho].
É com muito gosto que farei parte da vossa comunidade. E sempre que necessitarem de alguma coisa daqui das ilhas estejam à vontade.
Muito obrigada por tudo.
Um abraço.
Lia
10. Comentário, posterior, ao Poste 5022, de Carlos Cordeiro, professor de História Contemporânea em Ponta Delgada, irmão do malogrado Cap Pára-quedista João Manuel da Costa Cordeiro da CCP 123. É um leitor atento do nosso Blogue. Ele próprio foi, salvo erro, combatente em Angola, durante a guerra colonial:
Um espólio formidável que o blogue tem aqui arquivado. É de destacar este trabalho exigente de pesquisa e divulgação. Veja-se que, no caso concreto, Luís Graça procurou responder a uma solicitação de uma professora caboverdiana para apoiar uma acção pedagógica. É de louvar vivamente.
Quanto à participação de Portugal na Guerra, os historiadores falam em "neutralidade colaborante". E sobre o caso específico de Cabo Verde, António José Telo ("Os Açores e o Controlo do Atlântico", p. 280) diz o seguinte: "Ao longo de 1941, foram enviados cerca de 5000 soldados para o arquipélago [de Cabo Verde], mas que só têm praticamente armamento ligeiro. A defesa do vital porto de S. Vicente continua a basear-se quase só em três peças de 150 mm, reforçadas em 1941 com quatro peças antiaéreas, 12 metralhadoras e uma secção de morteiros de 81 mm. O cônsul americano em Cabo Verde garante que, caso se dê um desembarque no arquipélago, a resistência será meramente simbólica".
Saudações, Carlos Cordeiro
__________
Notas de L.G.:
(*) Vd. último poste da série:
9 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4926: Meu pai, meu velho, meu camarada (12): 1º cabo Ângelo Ferreira de Sousa, S. Vicente, 1943/44 (Hélder Sousa)
Vd. postes anteriores desta série:
20 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4059: Meu pai, meu velho, meu camarada (1): Memórias de Cabo Verde, São Vicente, Mindelo, 1941/43 (Luís Graça)
21 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4060: Meu pai, meu velho, meu camarada (2): Militar de carreira, herói da 1ª Grande Guerra, saiu do RAP 2 como eu (David Guimarães)
21 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4062: Meu pai, meu velho, meu camarada (3): No Dia Mundial da Poesia (António Graça de Abreu)
24 de Maio de 2009> Guiné 63/74 - P4407: Meu pai, meu velho, meu camarada (4): Não é um elogio fúnebre que te quero dedicar... (António G. Matos)
26 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4420: Meu pai, meu velho, meu camarada (5): A minha família e o RAP2 (Vila Nova de Gaia) (David Guimarães)
16 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4694: Meu pai, meu velho, meu camarada (6): Ex-Cap Pára João Costa Cordeiro, CCP 123/ BCP 12 (Pedro M. P. Cordeiro / Manuel Rebocho)
17 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4700: Meu pai, meu velho, meu camarada (7): Cap Pára João Costa Cordeiro: Um homem de carácter (António Santos / Carlos Matos Gomes)
17 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4703: Meu pai, meu velho, meu camarada (8): Sobre o Capitão-Pára João Costa Cordeiro (Manuel Peredo)
18 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4705: Meu pai, meu velho, meu camarada (9): Testemunho do Coronel Pára Sílvio Araújo sobre o Cap-Pára João Costa Cordeiro (João Seabra)
18 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4706: Meu pai, meu velho, meu camarada (10): Depoimento e fotos sobre o Cap-Pára João Costa Cordeiro (Miguel Pessoa)
24 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4731: Meu pai, meu velho, meu camarada (11): Mensagem do filho do Cap-Pára João Costa Cordeiro (Pedro Miguel Pereira Cordeiro)
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