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sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Guiné 61/74 - P22927: Notas de leitura (1412): “África Dentro”, por Maria João Avillez; Texto Editores, 2010 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Dezembro de 2018:

Queridos amigos,
Não nos esqueçamos que esta viagem da Maria João Avillez ocorreu num tempo de grande esperança, era Primeiro-Ministro Carlos Gomes Júnior, deposto por uma conjura militar em 2012. A cooperação com a Gulbenkian tinha resultados manifestos, nas áreas da educação e da saúde. Nesta digressão da jornalista percorre-se uma região do Norte, perto de São Domingos, onde o projeto VIDA marca pontos no desenvolvimento comunitário, a Missão da Cumura recebe vasto apoio, o que outrora era um hospital para tratar leprosos atende hoje um cortejo inumerável de infetados pelo VIH/SIDA; havia igualmente apoio aos centros de saúde, a economia parecia crescer em paz e reconciliação. E depois, o país retrocedeu.

Um abraço do
Mário



África Dentro, por Maria João Avillez (2)

Beja Santos

“África Dentro”, por Maria João Avillez, Texto Editores, 2010, é uma avaliação em jeito de reportagem da intervenção da Fundação Calouste Gulbenkian nas cinco ex-colónias portuguesas de África. A Gulbenkian pretendia uma reportagem captada pelo olhar de uma jornalista. Foi isso que aconteceu. Vamos falar da Guiné-Bissau, onde a Gulbenkian privilegia dois polos de cooperação, na educação e na saúde.

Visitados os projetos de educação, a jornalista dirige-se agora para a área da saúde, atravessa o rio Mansoa, depois o Cacheu, vai ao encontro da VIDA, uma ONG que se instalou no Norte da Guiné, na região de São Domingos. Na génese, integravam um movimento católico “Comunhão e Libertação”, visam o desenvolvimento comunitário, contribuíram para a criação de uma unidade de saúde base, cooperam com sete centros de saúde da região, capacitam agentes de saúde de base e as matronas (parteiras tradicionais). A participação das populações é determinante para que estas estruturas comunitárias sejam vigorosas e perdurem. E temos exemplos concretos: “As Casas das Mães, criadas para dar apoio às grávidas e garantia de condições de parto seguro e limpo, construídas e geridas pelas próprias mulheres; ou os modelos de autogestão da saúde, com preços de medicamentos e consultas decididos em plenário da comunidade; ou ainda os sistemas de seguros comunitários de saúde e a autossuficiência a nível de gestão dos programas de tendas mosquiteiras. Também o Centro de Saúde Materno-Infantil de São Domingos, o único no país com gestão comunitária, que nasceu como evolução da experiência positiva das Casas das Mães”. Também o projeto VIDA aparece ligado a outro projeto: “Jirijipe – Saúde até à Tabanca”, com objetivos precisos: melhoria de acesso a cuidados de saúde materno-infantil; intervenções com impacto na situação da saúde, e aqui há preocupações com as infeções sexualmente transmissíveis e o VIH/SIDA; desenvolvimento do sistema comunitário de saúde. É uma experiência modelar, e alguém comenta: “Esta região sanitária, ao nível da saúde comunitária, é do melhor que existe na Guiné, graças à VIDA! Há medicamentos, há vacinação, há formação, há melhor atendimento e até passou a haver a impregnação da rede mosquiteira!”

Instituição de grande prestígio é a Missão Católica Franciscana de Cumura, foi criada em 1955 por três franciscanos italianos, um deles Frei Settimio Ferrazzetta será nomeado o primeiro Bispo de Bissau. A jornalista conversa com Frei Victor Manuel Henriques, membro efetivo da Província Portuguesa da Ordem Franciscana, formado em Medicina, dirigia o hospital da Missão: “Estou aqui a trabalhar como médico, dando atendimento aos doentes pobres que chegam diariamente. Muitos padecem de lepra, tuberculose e HIV/SIDA e neste momento temos muitos deles justamente com HIV/SIDA, afetados pela tuberculose. Este hospital nasceu inicialmente para atender os doentes de lepra, mas hoje a verdadeira lepra é a infeção HIV/SIDA”. A jornalista recorda as profundas carências do país: mais de metade da população não tem acesso a água potável nem a medicamentos, e apenas 40% recebe algo de parecido com cuidados de saúde. Frei Victor Manuel Henriques faz pedidos à Gulbenkian e é compensado: um eletrocardiógrafo; um monitor de sinais vitais e outro tipo DINAMAP; um desfibrilhador. A Gulbenkian subsidiou um equipamento de radiologia, na altura havia também a promessa de um aparelho de gasometria, para tratamento e diagnóstico dos doentes de tuberculose.

E indaga-se o que é a política de saúde na Guiné-Bissau. Ao tempo, a prioridade era dar cumprimento ao Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário 2008-2017. O financiamento é escassíssimo, havia menos de seis dólares per capita por ano. O Secretário de Estado da Saúde reconhecia a ajuda da Gulbenkian, pelo que tinham feito na criação do Centro de Medicina Tropical e teceu os seguintes comentários: “A Gulbenkian intervinha não só na formação como também na parte dos recursos humanos, associada à criação de condições de trabalho nos hospitais. Foram épocas brilhantes de cooperação porque foram absolutamente decisivas para o país. Basta pensar na luta contra a oncocercose – vulgarmente conhecida como a cegueira dos rios – um programa que conheceu enorme sucesso. Hoje, já ninguém tem oncocercose no país. Foi também através da Gulbenkian que aqui se criou o melhor centro de oftalmologia da Guiné-Bissau e de toda a África Ocidental. A Gulbenkian cofinanciou três centros de saúde em Bissau”. E começa uma visita guiada aos centros de saúde, têm diversos modelos, são de três tipos: o básico, dispõe de todos os serviços de prestação de cuidados primários (consulta pré-natal, pediatria, tratamentos, sala de partos e também quatro camas para observação, é uma estrutura que cobre uma população que oscila entre os 7 e os 12 mil habitantes do setor autónomo de Bissau; o segundo tipo destina-se a uma população maior, está mais bem apetrechado, possuindo médico, laboratório, uma unidade de internamento com 20 ou 30 camas e serviço de obstetrícia; o outro modelo destina-se a zonas mais isoladas ou de difícil acesso, estão igualmente munidos de 20 ou 30 camas para internamento, possuem bloco operatório para cirurgia geral e obstetrícia de emergência e ainda um banco de sangue. As dificuldades são muitas, alguém comenta: “Temos de lutar para manter a corrente elétrica para a conservação de vacinas porque temos três geleiras onde elas estão acondicionadas. À noite, também é sempre mais complicado, a maior parte dos partos é de noite que ocorrem, tem de se transferir as parturientes para outra parte do edifício devido à falta de energia”.

A jornalista encontra o Primeiro-Ministro Carlos Gomes Júnior cheio de otimismo: “Na minha anterior governação, consegui trazer para a Guiné 30 médicos com o apoio de Fidel Castro. Chegaram aqui na altura em que o país conhecia um terrível surto de cólera. Com a ajuda deles, conseguiu-se uma cobertura sanitária eficaz e o surto foi debelado. Temos hoje uma formação de cerca de 140 médicos guineenses, pois reabriu a Faculdade de Medicina, onde clínicos cubanos se encarregam da saúde. Vão tentar criar aqui um hospital de referência. Temos grandes chagas, hospitais públicos sem quase nada lá dentro”. O então Primeiro-Ministro reconheceu existir um excelente relacionamento com a Gulbenkian e no papel determinante que esta tem no apoio às áreas da educação e da saúde.

Construção de uma cozinha e refeitório para as crianças da Missão da Cumura.
Centro materno-infantil em São Domingos.
____________

Notas do editor:

Vd. poste anterior de 17 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22915: Notas de leitura (1410): “África Dentro”, por Maria João Avillez; Texto Editores, 2010 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 20 DE JANEIRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P22922: Notas de leitura (1411): "O Povo de Santa Maria, seu falar e suas vivências", 2ª edição revista e acrescentada (2021), por Arsénio Chaves Puim, um caso de grande sensibilidade sociocultural e de amor às suas raízes (Luís Graça ) - Parte II

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20250: A Guiné-Bissau, hoje: factos e números (4): outras características socioculturais que tornam mais vulnerável a população guineense face ao risco de transmissão de HIV/SIDA e outras DST




Para saber mais sobre este grave problema de saúde pública, a infeção por HIV/SIDA nos nossos países, vd o relatório, disponível desde abril de 2018, no sítio da CPLP: Epidemia da VIH nos Países de Língua Oficial Portuguesa – 4ª Edição




1. Reproduzem-se, com a devida vénia, e as necessárias adaptações (, incluindo fixação / revisão de texto),  mais alguns excertos de um importante relatório sobre a Guiné-Bissau, relativamente às "doenças sexualmente transmissíveis" (*), com destaque para o HIV / SIDA.

A fonte consultado é o relatório da CPLP sobre a Guiné-Bissau, e que corresponde ao capítulo 4 (da pag. 272 à pag. 337) do relatório final. A autora é a consultora brasileira Helena Lima. 

Para não sobrecarregar o poste, eliminaram-se alguns parágrafos bem como as citações e as referências bibliográficas. O texto original, em pdf, pode ser aqui, consultado:



Vd. Helena M. M. Lima - Diagnóstico Situacional sobre a Implementação da Recomendação da Opção B+, da Transmissão Vertical do VIH e da Sífilis Congênita, no âmbito da Comunidade de Países de Língua Portuguesa- CPLP: Relatório final, volume único, dezembro de 2016, revisto em abril de 2018. CPLP - Comunidade de Países de Língua Portuguesa, 2018 [documento em formato pdf, 643 pp. Disponível em: https://www.cplp.org/id-4879.aspx]



2. Listagem de mais algumas características socioculturais do país e de comportamentos de risco da população, que facilitam a propagação do HIV/SIDA e outras doenças sexualmente transmissíveis:



(i) Sexualidade precoce:

A sexualidade precoce, antes dos 15 anos, é comum nas meninas da Guiné Bissau, cerca de 27% [,dados de 2010]. 
Cerca de 7,1% das meninas casaram-se com menos de 15 anos 
e 37,1% com menos de 18 anos. 

Dados de 2011 mencionam que 13% das meninas de 15 a 24 anos 
tiveram sua primeira relação sexual 
com um homem 10 anos mais velho que ela, 
sendo 38% deles já casados.

(ii) Contraceção: 

O baixo uso de preservativo pelas mulheres (3,2% em 2010) é compreendido à luz da desigualdade de género, sendo que o poder está do lado dos homens.


(iii) Dependência da mulher:

A dependência da mulher para sua sobrevivência, ou seja, em tudo, inclusive nas decisões sobre sua própria saúde, 
aliados ao medo do repúdio e divórcio 
ao se notificar o parceiro sobre o resultado positivo 
de um teste de HIV/SIDA, 
são fatores de aumento da vulnerabilidade feminina à infecção.


(iv) A poligamia:


É legitimada pela religião muçulmana:  por lei, o homem pode ter até 4 esposas, desde que possa sustentá-las. Também há a poligamia informal, incluindo pessoas de todos os credos e etnias, sem distinção. 

A percentagem de pessoas entre 15 e 49 anos que estão numa união poligâmica é de 44,0% entre as mulheres e 25,8% dos homens. 

Nos homens casados, durante o período de aleitamento materno das suas mulheres, procuraram parceiras ocasionais, comadres e/ou outras esposas legítimas.
 

(v) Permissividade sexual na sociedade balanta;

Existem, entre os balantas,  normas e práticas socioculturais 
que instigam a promiscuidade e liberdade sexual dos jovens. 
A prática cultural e sexual “Pnanhga” que consiste 
na entrega sexual de uma rapariga/mulher a outrem 
durante a sua hospedagem, 
é disso um exemplo.(...)

(vi) Gerontofilia:

 O fenómeno de gerontofilia e as suas consequências na promiscuidade sexual: sendo social e tradicionalmente aceitável o casamento entre gerações diferentes, essa prática aumenta os casos de infidelidade entre os envolvidos, sobretudo nas mulheres (que por norma são sempre bastante novas em relação aos maridos). 

Assim, a promiscuidade é bastante frequente nas famílias dos centros urbanos, chegando a ser também banalizada em certas tradições de grupos étnicos. Por exemplo, na etnia Beafada a infidelidade não é reprovada, mesmo que seja de uma mulher casada e, por consequência, caso tenha terminado em filho, consideram uma sorte para o marido legítimo da mulher.


(vii) Tio do noivo como deflorador da noiva, mantendo relação sexual com a mesma na noite de núpcias:

Essa prática é algumas vezes mencionada como realidade 
na etnia Balanta, porém não praticada na atualidade. 
É uma contradição que merece ser melhor estudada e compreendida, 
por ser uma prática que vulnerabiliza.



(viii) Circuncisão masculina:

Um aspecto que pode ser melhor explorado é a constatação que 79,9% dos homens entre 15-49 anos declaram ter sido circuncidados. Integrar as ações de saúde aproveitando esse momento – lugar – tempo em que o homem passa pela circuncisão pode ser estrategicamente interessante para auxiliar na promoção de saúde e aumento do autocuidado seguindo as referências de saúde ocidentais, aspectos quase negligenciados entre os homens da Guiné-Bissau.(...)

(ix) Planeamento familiar:

Em estudo recente (2014) foi demonstrado que mulheres 
em idade fértil 58,2% não conheciam um único método 
de prevenção à infecção pelo HIV/SIDA. 
O fato de não haver conteúdos sobre anticoncepção nem explicações sobre uso do preservativo no manual de formação dos agentes comunitários de saúde (2011) tem relação direta com esse fato. 


A taxa de contracepção em Guiné Bissau é estimada
 entre 10% e 14% (dados de 2015).

O planeamento  familiar é considerado “primo pobre” 
na implementação de uma política que permita 
às mulheres alguma liberdade de escolha 
de método contraceptivo adequada 
ao seu caso e às suas necessidades.


(x) Levirato:

Uma prática relacionada às modalidades de luto e tratamento de heranças e legados é o Levirato. Nesse sistema de casamento, o irmão do falecido é obrigado a casar com a esposa (viúva) do irmão falecido, tendo ele ou a viúva HIV/SIDA  ou não, sem que se mencione o assunto SIDA de modo explícito.


(xi) “Negação/ Medo" do HIV/SIDA: 

  A negação/medo faz com que a comunicação social seja truncada 
e os estigmas prevaleçam.
 “Como se” não houvesse impacto com a gravidez 
antes dos 15 anos, 
com a poliinfecção de mulheres e homens, 
com SIDA, blenorragia e outras DST.


(xii) Analfabetismo, infoexclusão:

A maioria da população com 15 anos ou mais é analfabeta e 60% das mulheres não são alfabetizadas. A alta taxa de analfabetismo dificulta todas as ações de prevenção, assistência e adesão aos tratamentos.

No país, há pouco acesso às ferramentas de comunicação social: o uso de computadores entre jovens de 15-24 anos é de 17,2% para os homens e 10,3% para as mulheres; o uso de internet segue a mesma proporção: homens 16,8% e mulheres 9,4%. Cerca de 30,5% dos homens ao menos uma vez por semana tem acesso à comunicação social impressa, radiofônica ou televisiva, e apenas 11,7 das mulheres.

(xiii) Economia informal ou paralela

As mulheres guineenses, que compõem 51,5% da população do país, estão no setor informal. Ou seja, com o trabalho e sem direitos laborais, a sua vulnerabilidade aumenta – ao precisar interromper o trabalho, não têm direito a licenças ou qualquer remuneração.


(xiv) Não há um único médico psiquiatra 

num país de 1,8 milhões de habitantes:

A ausência de profissionais de saúde mental no país é um fator extremamente importante, um ponto de vulnerabilidade programática que precisa ser cuidado o quanto antes. 

Em 2015 havia apenas um profissional, um enfermeiro com formação em psiquiatria, para todo o país.

(Continua)
______________

Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série:

11 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20228: Guiné-Bissau, hoje: factos e números (3): em bom crioulo nos entendemos (ou não ?): mandjidu, kansaré, muro, djambacu, baloba, balobeiro, ferradia, tarbeçado, doença de badjudeca, rónia irã... O Cherno Baldé, nosso especialista em questões etnolinguísticas, explica para a gente...

9 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20223: A Guiné-Bissau, hoje: factos e números (2): prevalência do HIV/SIDA; comportamento de risco e práticas socioculturais e tradicionais, que tornam mais vulnerável a população guineense face ao risco de transmissão de HIV/SIDA e outras DST

4 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20204: A Guiné-Bissau, hoje: factos e números (1): população e morbimortalidade; etnias, idiomas e religiões; doenças sexualmente transmissíveis

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20228: Guiné-Bissau, hoje: factos e números (3): em bom crioulo nos entendemos (ou não ?): mandjidu, kansaré, muro, djambacu, baloba, balobeiro, ferradia, tarbeçado, doença de badjudeca, rónia irã... O Cherno Baldé, nosso especialista em questões etnolinguísticas, explica para a gente...


Foto nº 1


Foto nº 2 

Guiné > Região de Bafatá >Setor L1 > Bambadinca > Destacamento de Nhabijões  > 1970 > O furriel miliciano Henriques, da CCAÇ 12 (, Luís Graça, fundador e editor deste bloge) junto a uma "baloba" (Foto nº 1), um dos locais de culto dos irãs (espíritos da floresta). 

A população era maioritariamente balanta, animista. Era conhecida a sua colaboração com o PAIGG, sobretudo com as populações e os guerrilheiros de Madina/Belel, no limite do Cuor, a Noroeste de Missirá, mas também com os do subsetor do Xime. O reordemanento desta população, considerada até então sob duplo controlo e pouco colaborante com (e senão mesmo hostil a) as NT, iniciou-se em 1969, sob a iniciativa do Comando e CCS do BCAÇ 2852 (1970/72), tendo sido continuada pelo BART 2852 (1970/72). Foi criado um destacamento para apoio a (e defesa de) o reordenamento (Foto nº 2)

No seu diário de então, o furriel Henriques consideraca este reordenamento (um dos maiores, se não o maior, de então, no CTIG) como um exemplo de "etnocídio",  pela destruição do habitat socioecológico das populações "reordenadas".

Fotos (e legenda): © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]





Guiné > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambadinca > c. 1973/74 > Uma "ferradia": o ferreiro e o seu ajudante (que alimenta a forja)...Tradicionalmente em África, o ferrador e o caçador são dotados de dons sobrenaturais, diz-nos o Cherno Baldé, o nosso especialista em questões etnolinguísticas.. Em muitas comunidades animistas, o ferreiro e o balobeiro são a mesma pessoa ou ambos possuem o poder de curar e de fazer a ligação com o além  ou as forças ocultas como os Irãs ou os espíritos do mato e da floresta.
Fotos (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



1. No poste P20223 (*), o editor Luís Graça comentou que íamos precisar da preciosa ajuda nosso assessor para as questões etnolinguísticas, o Cherno Baldé... 


Há termos em crioulo ou noutros idiomas, que ele tem de nos explicar, para melhor se compreender um recente relatório da CPLP sobre o HIV/SIDA e outras doenças sexualmente transmissíveis, na parte que respeita à Guiné-Bissua (**)...


Eis alguns desses termos:


"mandjidu" (em manjaco), prática interdita;

"kansaré" (papel), entidade sobrentaural que pode castigar ou fazer mal (?);

"muros, djambacus e balobeiros" (crioulo), curandeiros tradicionais;

"balobas" de "ferradias" (crioulo), locais ou práticas (?);

"tarbeçado" (crioulo);


doença de "badjudeça" (crioula);

cerimónia de "rônia iran" (crioulo), (?)






Guiné-Bissau > Região do Óio > Maqué > 20 de Novembro de 2006 > Poilão, árvore sagrada, habitada pelos irãs... Mais uma chapa do famoso poilão de Maqué. Tirada pelo nosso camarada Carlos Fortunato, ex-Fur Mil da CCAÇ 13 (Os Leões Negros), na sua viagem  de 2006 à Guiné e à região do Óio.

Foto (e legenda): © Carlos Fortunato (2007). Todos os direitos reservados.
 [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Pronta resposta do Cherno Baldé [, Bissau], com data de ontem (*):


Em resposta ao pedido do Luís Graça, aqui vai um pequeno resumo sobre o significado das expressões em Crioulo da Guiné no texto (*).


(i) “Mandjidu”


Refere-se àquilo que está interdito e a interdição vem sempre de forças ocultas, do desconhecido, por isso, de evitar a todo o custo, pois não se sabe o que pode acontecer em caso de violação dessa interdiçãoo.


Uma forma muito prática de proteger a propriedade privada dos individuos, da família e/ou da aldeia em relação ao comportamento indesejado de terceiros, sejam eles pessoas ou animais domésticos:um simples pau enfeitado com um pedaço de tecido vermelho e colocado em lugar visível é suficiente para interditar um campo de amendoim ou plantação de cajueiros.


Uma nota interessante é que esta interdição também se aplica às pessoas (mulheres) e propriedades (terrenos e casas).


(ii) “Kansaré”

É um ritual animista consagrado aos mortos, baseado na compreensão de que não há mortes naturais, mas sim mortes provocadas por forças do mal.

O "Kansaré" é o elemento móvel da "Baloba", feita de paus e coberta de tecidos vermelhos, é carregado por quatro jovens possantes e que caminham, supostamente, dirigidos pelo espírito do morto com o objectivo de desmascarar o(s) autor(res) da morte. O(s) membro(s) da comunidade assim descoberto(s) e acusado(s) de feitiçaria perde(m) todos os seus direitos, inclusive o direito à vida e os seus bens e haveres confiscados em benefício da comunidade como forma de vingar a morte do defunto e fazer o seu "choro", aplacando assim a dor da família que perdeu um dos seus.


Muitos antropólogos, africanistas e investigadores viram nessas práticas animistas uma forma subtil de regulação económica e social dentro das sociedades " primitivas" e/ou práticas escamoteadas de ajustes de contas e de eliminação de rivais e elementos não desejados, muitas vezes bem sucedidos, e cujas riquezas provocam inveja aos restantes elementos da comunidade e que necessitam de ser redistribuídas colectivamente a fim de nivelar (por baixo) os membros dessas comunidades.


(iii) «Muro»


O mesmo que "mouro" (árabe ou berbere do Norte de África), termo utilizada para referir-se aos "marabus" -chefes religiosos - de confissão muçulmana.

No meio urbano da Guiné tem o mesmo significado que "Djambacus", provavelmente de origem mandinga e "Baloba", do grupo dos Brames (Papel/Manjaco/Mancanha).


(iv) «Balobas»


Sao os locais, entre alguns povos da Guiné-Bissau, chamados animistas do grupo dos Brames (Papel / Manjaco / Mancanha), reservados às cerimónias dedicadas aos Irãs e que são feitas, normalmente, mediante o uso de aguardente e sangue de animais imolados em sua intenção.


A referência feita às "ferradias" remete-nos para as oficinas tradicionais onde se trabalha(va) o ferro. Na África profunda e multissecular, de uma forma geral, o ferreiro assim como o caçador, são facilmente assimilados àqueles que praticam artes secretas e/ou mágicas e logo possuidores do dom imanado do espírito dos Irãs.


Em muitas comunidades animistas, o ferreiro e o "balobeiro" são a mesma pessoa ou ambos possuem o dom da cura e do poder de contacto e intermediação com forças ocultas como os Irãs ou espíritos do mato/floresta.

Nesses casos um simples metal (o ferro), por eles confeccionado, pode servir de guarda a fim de um indivíduo se proteger dos espíritos maus. Uma prática muito frequente dentre os habitantes originários dessas etnias do litoral guineense.


(v) "Tarbeçado"


Parto anormal quando a criança vem numa posição invertida com os pés primeiro em lugar da cabeça, uma expressão, provavelmente, de origem balanta.

(vi) "Doença de badjudeça"

Quer dizer período menstrual ou quando aparecem, nas meninas, os sintomas das primeiras mentruações. De origens diversas.



(vii) «Rônia Irã»


Segundo alguns investigadores, tem origem na palavra em português arcaico “erronear”, ou seja, deambular de um lado para outro.

Durante o período em que estas cerimónias são feitas, sobretudo entre os Papéis, há grupos de mulheres que viajam de aldeia em aldeia, de sítio em sítio, carregados de objectos diversos, para cumprir determinados rituais e cerimónias tradicionais, de acordo com um calendário e trajecto pré-definido.


Ao que parece, as "Balobas" (ou não seriam os "balobeiros" ?) e os seus Irãs estão, de certa forma, hierarquizados ou, para usar uma expressão moderna, especializados em determinadas matérias do mundo espiritual ou dos mortos e cada aldeia ou família teria o seu próprio percurso em função da tradicão e/ou das suas necessidades espirituais ao serviço das almas dos seus mortos em diferentes épocas.

Todas estas expressões ou conceitos antropológicos acima apresentados, sendo de origem étnica ou tribal, já fazem parte do léxico corrente em crioulo.


PS - Uma Nota sobre o ponto V:


Quando disse que é uma expressão, provavelmente, de origem balanta, queria referir-me ao conceito intrínseco pois que, entre eles o fenómeno é seguido de algumas cerimónias feitas para exconjurar as forças maléficas do fenómeno anormal, e não à origem da palavra que é claramente crioula, resultante da corruptela da palavra portuguesa "atravessado".
________________

Notas do editor:

(*) Último poste da série > 9 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20223: A Guiné-Bissau, hoje: factos e números (2): prevalência do HIV/SIDA; comportamento de risco e práticas socioculturais e tradicionais, que tornam mais vulnerável a população guineense face ao risco de transmissão de HIV/SIDA e outras DST



(**) Vd. Helena M. M. Lima - Diagnóstico Situacional sobre a Implementação da Recomendação da Opção B+, da Transmissão Vertical do VIH e da Sífilis Congênita, no âmbito da Comunidade de Países de Língua Portuguesa- CPLP: Relatório final, volume único, dezembro de 2016, revisto em abril de 2018. CPLP - Comunidade de Países de Língua Portuguesa, 2018 [documento em formato pdf, 643 pp. Disponível em: https://www.cplp.org/id-4879.aspx]

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20223: A Guiné-Bissau, hoje: factos e números (2): prevalência do HIV/SIDA; comportamento de risco e práticas socioculturais e tradicionais, que tornam mais vulnerável a população guineense face ao risco de transmissão de HIV/SIDA e outras DST



Guiné-Bissau > Bissau > HIV / SIDA > Dístico colocado sobre a estátua Maria da Fonte, na rotunda do Império, praça dos Heróis Nacionais, em Bissau. Foto de DW - Deutsche Welle / B. Darame. Com a devida vénia...



1. Mais alguns dados sobre a Guiné-Bissau, relativamente às "doenças sexualmente transmissíveis" (*), com destaque para o HIV / SIDA.


A fonte consultado é o relatório da CPLP sobre a Guiné-Bissau, e que corresponde ao capítulo 4 (da pag. 272 à pag. 337) do relatório final. A autora é a consultora brasileira Helena Lima.

Fonte: Helena M. M. Lima - Diagnóstico Situacional sobre a Implementação da Recomendação da Opção B+, da Transmissão Vertical do VIH e da Sífilis Congênita, no âmbito da Comunidade de Países de Língua Portuguesa- CPLP: Relatório final, volume único, dezembro de 2016, revisto em abril de 2018. CPLP - Comunidade de Países de Língua Portuguesa, 2018 [documento em formato pdf, 643 pp. Disponível em: https://www.cplp.org/id-4879.aspx]


(iii) Doenças sexualmente transmissíveis (DST)(Continuação

HIV / SIDA

Prevalência de HIV entre mulheres grávidas: 5%

Prevalência de HIV entre grávidas 15-24 anos: 3,4%

Prevalência nacional geral: 3,3% | Meio rural: 2,3% | Urbano: 3%


Prevalência por género: Homens: 1,5% | Mulheres: 5%


% de recém-nascidos filhos de mães HIV + que nascem infectados pelo HIV: 26%


Número de pessoas vivendo com HIV (2013): 41 mil


Crianças < 15 anos vivendo com HIV: 6.100


Órfãos por causa da doença: 10.614




(iv) Comportamentos de risco e práticas socioculturais e tradicionais, que tornam mais vulnerável a população guineense face ao risco de transmissão de HIV/SIDA e outras DST:




Tráfico de mulheres e violência de género



Alguns problemas estruturais vulnerabilizam a população de Guiné Bissau para os agravos diversos relacionados  com a sexualidade, como tráfico de mulheres e as diversas modalidades de violência baseada em género. 

O modelo patriarcal legitima as práticas socioculturais e tradicionais sobre grupos étnicos que compõem o país.



Circuncisão feminina e masculina



A Mutilação Genital Feminina (MGF), embora proibida por lei, é praticada em ambiente doméstico. 

Estima-se que as mutilações genitais tenham atingido 44,9% das mulheres entre 15-49 anos e cerca de 49,7% das crianças 
entre 0 – 14 anos.

A circuncisão masculina é socialmente incentivada e tem apoio no serviço público de saúde. 

Em inquérito de 2014, alguns dados apresentados sobre a situação dos inquiridos perante a circuncisão / MGF, por sexo:  
64,1% dos homens confirma a circuncisão, contra 35,9% que ainda não foi circuncisada. 

Para o sexo feminino 37,2% respondeu 
que sim foi submetida a MGF,
contra 62,8% que responde que Não.


Casamento precoce



Em relação ao casamento precoce, 7,1% referem-se a crianças com menos de 15 anos e 37,1% entre menores de 18 anos.



Contracepção


Em relação à taxa de contracepção, 
dados de 2014 apontam que 84% da população não usa método algum contraceptivo.


Os homens nunca são responsabilizados por eventual esterilidade, esta é uma questão meramente feminina e de mulheres, em alguns casos são sancionadas pelo divórcio. 

Essa verdade não é diferenciada por zonas ou espaços rurais/urbanos, 
é uma realidade cultural. 



A religião, a cultura e a tradição obrigam as mulheres a procurarem formas de conseguir despistar os maridos para poderem usufruir dos métodos contracetivos, porque,  segundo estes, elas são casadas para se procriar. 



Para se livrarem dos maridos, muitas das vezes, elas inventam desculpas em levar as crianças para as vacinas e/ou consultas e aproveitam para fazer controlo 
do implante dos métodos.




Planeamento familiar, gravidez e aborto 
entre os manjacos e os papéis



Segundo inquérito de 2014,  entre os manjacos, as mães não deixam os filhos fazer o planeamento e, quando aparecem grávidas, não as deixam fazer o aborto, porque é uma prática tradicionalmente interdita ("mandjidu") (...) 



Similaridade em Quinhamel, entre os papéis, onde se testemunhou um grau de liberdade das raparigas em ambientes noturnos e, quando aparecem grávidas, as mães não as exigem, temendo represálias de defuntos e/ou "kansaré". 



Segundo a crença dos papéis, se uma mãe se zangar com a filha grávida, ela não poderá tocar na criança após a nascença, porque representa uma rejeição a priori, o que faz com que as mães tenham que se consentir com a gravidez das filhas. 



Ainda neste mundo animista, segundo um técnico entrevistado em Caió, uma localidade de elevada taxa de prevalência do VIH, os homens desta localidade contraem matrimónio com mais de cinco mulheres, o que se associa a um elevado índice de promiscuidade, sobretudo nas deslocações de mulheres ao Senegal e das oportunidades sexuais que se lhes assistem.



Curandeiros tradicionais, muros, djambacus e balobeiros





Outras experiências demonstram que 
as mulheres casadas em dificuldade de gravidez recorrem sempre aos "murus" ou "djambacus" para receberem tratamentos tradicionais ou ainda as "balobas" de "ferradias",  fazendo pedidos e consequente promessas, em detrimento de aconselhamento e/ou tratamento médico.



Relativamente ao HIV/SIDA, segundo as perceções de alguns técnicos de saúde 
e ativistas de organizações 
que lidam diariamente com esta pandemia, 
uma larga percentagem de pessoas infetadas recusa a existência, considerando-a "tarbeçado", doença de "badjudeça".

De acordo com certas tradições animistas,  a doença é igualmente interpretada como falta de cumprimento de alguns rituais, 
caso de se tornar "djambakus" 
e/ou cerimónia de "rônia iran".


Fonte: Excertos do supracitado relatório. 
Com a devida vénia...

(Continua)

segunda-feira, 11 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19574: Os nossos médicos (87): José Luís Champalimaud (Nova Lisboa / Huambo, Angola, 1939 - Lisboa, 1996): foi médico do meu BCAÇ 3880, em Zemba, por um mês, em abril de 1973, e um dos autores da descoberta do VIH 2 em 1986 (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-al mil at inf, CCCAÇ 3535, Zemba e Ponte de Rádi, 1972/74)


José Luís [Antunes Feio Terenas] Champalimaud (Nova Lisboa / Huambo, Angola 15-09-1939 – Lisboa, 26-11-1996). Foto: cortesia de Toponimia de Lisboa



1. Texto de Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil atirador de infantaria, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, Angola 1972-74:


O Fernando de Sousa Ribeiro foi alf mil at inf,  CCAÇ 3535 (Zemba e Ponte de Rádi, 1972/74), do BCAÇ 3880;  é licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto; vive no Porto; está reformado; é membro da nossa Tabanca Grande desde 11/11/2018, sentando à nossa sombra do nosso poilão nº lugar nº 780.].

Neste texto que se segue (, retirado de comentário seu  ao poste P19563), o nosso camarada evoca (e faz uma justa homenagem a) um dos nossos médicos, por sinal angolano (, nascido em 1939, em Nova Lisboa, hoje Huambo, em Angola), e que infelizmente nos deixou muito cedo, em 1996: José Luís Champalimaud, "o médico português que identificou o HIV2"...

Comvirá esclarecer o seguinte:  A prof Odette Ferreira [1925-2018], a nível laboratorial, e o dr. José Luís Champalimaud,  a nível clínico, levaram a amostra da nova variante do VIH a Paris, ao Instituto Pasteur, que confirmou a descoberta, o  VIH 2, em 1986. Tinha sido colhida por Kamal Mansinho em doentes oriundos da Guiné-Bissau.   [Fonte: Público, 7 de outubro de 2018] [LG]


Ainda há poucos dias, evoquei na página no Facebook do meu batalhão (BCAÇ 3880, que esteve em Angola) um médico que veio a desempenhar, mais tarde, um papel absolutamente vital no combate à epidemia de SIDA na Guiné e na África Ocidental em geral: José [Luís] Champalimaud

José Champalimaud esteve em Zemba, no norte de Angola, em abril de 1973, a substituir o médico do meu batalhão (um pediatra obrigado pelas circunstâncias a tratar de uns marmanjos que éramos nós), enquanto este esteve de férias. Como não sabiam como se pronunciava Champalimaud, os nossos soldados chamaram-lhe "Chapa Limão". Em Luanda, os seus colegas médicos chamavam-lhe "Champa".

Quando soube que era o Champalimaud que iria substituir o médico do batalhão, o tenente-coronel não se cansou de dizer:

- Vem para cá um professor universitário! Não é um doutor qualquer! É um professor universitário! Aqui em Zemba!!!

Na verdade, o Champalimaud era assistente da Faculdade de Medicina de Luanda. Tinha a especialidade de Medicina Tropical. Com uma tal especialidade em Zemba, ele foi, de facto, o homem certo no lugar certo, tendo exercido a sua função com toda a competência.

Mas mais do que competente, ele foi extremamente humano. Tratava os doentes com um carinho impressionante. Isto era particularmente evidente no imenso cuidado com que ele observava as crianças. Não havia dúvidas de que ele era médico por vocação.

Quando o Champalimaud chegou a Zemba, a malta perguntou-lhe logo que parentesco é que ele tinha com o banqueiro Champalimaud. Respondeu ele:

- Eu sou o parente "pobre" da família.

Logo a seguir, explicou:

- Na verdade, eu não sou pobre. Felizmente, dinheiro foi coisa que nunca me faltou. Mas, comparado com o meu primo António, sou um miserável...

Estava tudo a correr bem com o Champalimaud, quando se deu a queda de um avião em Zemba, um pequeno Auster  em que morreram o capelão do batalhão, o primeiro-cabo analista de águas, da CCS, e o piloto do aparelho. 

Pois o Champalimaud esteve para embarcar no avião acidentado! Ele só não embarcou naquele avião, porque reparou que se tinha esquecido de qualquer coisa e voltou atrás para ir buscá-la. Em lugar dele, embarcou o capelão ou o analista (não sei qual deles). Assim que se deu o acidente, o Champalimaud ficou em estado de choque. Só dizia:

- Podia ter sido eu... Podia ter sido eu... Podia ter sido eu...

Alguns dias depois, o Champalimaud voltou para Luanda, ainda profundamente abalado, quando o médico do batalhão regressou de férias.

Entretanto o tempo passou-se, nós terminamos a nossa comissão e o Champalimaud acabou também por vir para Portugal na sequência da descolonização de Angola. Estabeleceu residência em Lisboa, entrou para os quadros do Instituto de Higiene e Medicina Tropical como investigador, exerceu clínica no hospital ao lado, o Hospital Egas Moniz, e abriu um consultório privado no Saldanha.

Nos anos 80 deu-se o aparecimento da terrível epidemia de SIDA, que se espalhou pelo mundo como fogo em palheiro, causando milhares e milhares de mortos. Começaram a chegar doentes com SIDA ao Hospital Egas Moniz, vindos de África, e o Champalimaud passou a dedicar-se de alma e coração ao combate a esta terrível doença. Tornou-se mundialmente conhecido nos meios de combate à SIDA, sendo considerado uma das maiores autoridades a nível mundial. Ele foi um dos investigadores mais escutados e respeitados em todo o mundo.

Entretanto, houve um grupo de doentes com SIDA vindos da Guiné, nos quais os tratamentos usados no combate à doença não tinham qualquer resultado. Os doentes vindos de outros países melhoravam com os tratamentos, mas os da Guiné não. Foi então que o Champalimaud e a sua equipa de colaboradores descobriram que afinal não havia só um vírus causador da SIDA, o vírus da imunodeficiência humana ou VIH (HIV em inglês). Havia um outro vírus, que era muito semelhante ao primeiro, mas que não era o VIH "normal". Era este o vírus que afetava os doentes vindos da Guiné. 

Além de ter descoberto a existência deste outro vírus, chamado VIH2 (HIV2 para os anglo-saxónicos), o Champalimaud e a sua equipa desenvolveram novos tratamentos apropriados e tomaram medidas para que este outro vírus não se espalhasse mais do que já se tinha espalhado, tanto na Guiné como fora dela. Mais do que nunca, o Champalimaud tornou-se um dos três ou quatro investigadores sobre SIDA mais considerados do mundo!.

De repente, o Champalimaud morreu. Um enfarte matou-o, quando ainda havia muito a esperar da sua ação. Em sua homenagem, foi dado o seu nome a um largo de Lisboa, próximo da Praça de Espanha e da Fundação Gulbenkian: o Largo José Luís Champalimaud.

Fernando de Sousa Ribeito
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