quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20250: A Guiné-Bissau, hoje: factos e números (4): outras características socioculturais que tornam mais vulnerável a população guineense face ao risco de transmissão de HIV/SIDA e outras DST




Para saber mais sobre este grave problema de saúde pública, a infeção por HIV/SIDA nos nossos países, vd o relatório, disponível desde abril de 2018, no sítio da CPLP: Epidemia da VIH nos Países de Língua Oficial Portuguesa – 4ª Edição




1. Reproduzem-se, com a devida vénia, e as necessárias adaptações (, incluindo fixação / revisão de texto),  mais alguns excertos de um importante relatório sobre a Guiné-Bissau, relativamente às "doenças sexualmente transmissíveis" (*), com destaque para o HIV / SIDA.

A fonte consultado é o relatório da CPLP sobre a Guiné-Bissau, e que corresponde ao capítulo 4 (da pag. 272 à pag. 337) do relatório final. A autora é a consultora brasileira Helena Lima. 

Para não sobrecarregar o poste, eliminaram-se alguns parágrafos bem como as citações e as referências bibliográficas. O texto original, em pdf, pode ser aqui, consultado:



Vd. Helena M. M. Lima - Diagnóstico Situacional sobre a Implementação da Recomendação da Opção B+, da Transmissão Vertical do VIH e da Sífilis Congênita, no âmbito da Comunidade de Países de Língua Portuguesa- CPLP: Relatório final, volume único, dezembro de 2016, revisto em abril de 2018. CPLP - Comunidade de Países de Língua Portuguesa, 2018 [documento em formato pdf, 643 pp. Disponível em: https://www.cplp.org/id-4879.aspx]



2. Listagem de mais algumas características socioculturais do país e de comportamentos de risco da população, que facilitam a propagação do HIV/SIDA e outras doenças sexualmente transmissíveis:



(i) Sexualidade precoce:

A sexualidade precoce, antes dos 15 anos, é comum nas meninas da Guiné Bissau, cerca de 27% [,dados de 2010]. 
Cerca de 7,1% das meninas casaram-se com menos de 15 anos 
e 37,1% com menos de 18 anos. 

Dados de 2011 mencionam que 13% das meninas de 15 a 24 anos 
tiveram sua primeira relação sexual 
com um homem 10 anos mais velho que ela, 
sendo 38% deles já casados.

(ii) Contraceção: 

O baixo uso de preservativo pelas mulheres (3,2% em 2010) é compreendido à luz da desigualdade de género, sendo que o poder está do lado dos homens.


(iii) Dependência da mulher:

A dependência da mulher para sua sobrevivência, ou seja, em tudo, inclusive nas decisões sobre sua própria saúde, 
aliados ao medo do repúdio e divórcio 
ao se notificar o parceiro sobre o resultado positivo 
de um teste de HIV/SIDA, 
são fatores de aumento da vulnerabilidade feminina à infecção.


(iv) A poligamia:


É legitimada pela religião muçulmana:  por lei, o homem pode ter até 4 esposas, desde que possa sustentá-las. Também há a poligamia informal, incluindo pessoas de todos os credos e etnias, sem distinção. 

A percentagem de pessoas entre 15 e 49 anos que estão numa união poligâmica é de 44,0% entre as mulheres e 25,8% dos homens. 

Nos homens casados, durante o período de aleitamento materno das suas mulheres, procuraram parceiras ocasionais, comadres e/ou outras esposas legítimas.
 

(v) Permissividade sexual na sociedade balanta;

Existem, entre os balantas,  normas e práticas socioculturais 
que instigam a promiscuidade e liberdade sexual dos jovens. 
A prática cultural e sexual “Pnanhga” que consiste 
na entrega sexual de uma rapariga/mulher a outrem 
durante a sua hospedagem, 
é disso um exemplo.(...)

(vi) Gerontofilia:

 O fenómeno de gerontofilia e as suas consequências na promiscuidade sexual: sendo social e tradicionalmente aceitável o casamento entre gerações diferentes, essa prática aumenta os casos de infidelidade entre os envolvidos, sobretudo nas mulheres (que por norma são sempre bastante novas em relação aos maridos). 

Assim, a promiscuidade é bastante frequente nas famílias dos centros urbanos, chegando a ser também banalizada em certas tradições de grupos étnicos. Por exemplo, na etnia Beafada a infidelidade não é reprovada, mesmo que seja de uma mulher casada e, por consequência, caso tenha terminado em filho, consideram uma sorte para o marido legítimo da mulher.


(vii) Tio do noivo como deflorador da noiva, mantendo relação sexual com a mesma na noite de núpcias:

Essa prática é algumas vezes mencionada como realidade 
na etnia Balanta, porém não praticada na atualidade. 
É uma contradição que merece ser melhor estudada e compreendida, 
por ser uma prática que vulnerabiliza.



(viii) Circuncisão masculina:

Um aspecto que pode ser melhor explorado é a constatação que 79,9% dos homens entre 15-49 anos declaram ter sido circuncidados. Integrar as ações de saúde aproveitando esse momento – lugar – tempo em que o homem passa pela circuncisão pode ser estrategicamente interessante para auxiliar na promoção de saúde e aumento do autocuidado seguindo as referências de saúde ocidentais, aspectos quase negligenciados entre os homens da Guiné-Bissau.(...)

(ix) Planeamento familiar:

Em estudo recente (2014) foi demonstrado que mulheres 
em idade fértil 58,2% não conheciam um único método 
de prevenção à infecção pelo HIV/SIDA. 
O fato de não haver conteúdos sobre anticoncepção nem explicações sobre uso do preservativo no manual de formação dos agentes comunitários de saúde (2011) tem relação direta com esse fato. 


A taxa de contracepção em Guiné Bissau é estimada
 entre 10% e 14% (dados de 2015).

O planeamento  familiar é considerado “primo pobre” 
na implementação de uma política que permita 
às mulheres alguma liberdade de escolha 
de método contraceptivo adequada 
ao seu caso e às suas necessidades.


(x) Levirato:

Uma prática relacionada às modalidades de luto e tratamento de heranças e legados é o Levirato. Nesse sistema de casamento, o irmão do falecido é obrigado a casar com a esposa (viúva) do irmão falecido, tendo ele ou a viúva HIV/SIDA  ou não, sem que se mencione o assunto SIDA de modo explícito.


(xi) “Negação/ Medo" do HIV/SIDA: 

  A negação/medo faz com que a comunicação social seja truncada 
e os estigmas prevaleçam.
 “Como se” não houvesse impacto com a gravidez 
antes dos 15 anos, 
com a poliinfecção de mulheres e homens, 
com SIDA, blenorragia e outras DST.


(xii) Analfabetismo, infoexclusão:

A maioria da população com 15 anos ou mais é analfabeta e 60% das mulheres não são alfabetizadas. A alta taxa de analfabetismo dificulta todas as ações de prevenção, assistência e adesão aos tratamentos.

No país, há pouco acesso às ferramentas de comunicação social: o uso de computadores entre jovens de 15-24 anos é de 17,2% para os homens e 10,3% para as mulheres; o uso de internet segue a mesma proporção: homens 16,8% e mulheres 9,4%. Cerca de 30,5% dos homens ao menos uma vez por semana tem acesso à comunicação social impressa, radiofônica ou televisiva, e apenas 11,7 das mulheres.

(xiii) Economia informal ou paralela

As mulheres guineenses, que compõem 51,5% da população do país, estão no setor informal. Ou seja, com o trabalho e sem direitos laborais, a sua vulnerabilidade aumenta – ao precisar interromper o trabalho, não têm direito a licenças ou qualquer remuneração.


(xiv) Não há um único médico psiquiatra 

num país de 1,8 milhões de habitantes:

A ausência de profissionais de saúde mental no país é um fator extremamente importante, um ponto de vulnerabilidade programática que precisa ser cuidado o quanto antes. 

Em 2015 havia apenas um profissional, um enfermeiro com formação em psiquiatria, para todo o país.

(Continua)
______________

Nota do editor:

(*) Vd. postes anteriores da série:

11 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20228: Guiné-Bissau, hoje: factos e números (3): em bom crioulo nos entendemos (ou não ?): mandjidu, kansaré, muro, djambacu, baloba, balobeiro, ferradia, tarbeçado, doença de badjudeca, rónia irã... O Cherno Baldé, nosso especialista em questões etnolinguísticas, explica para a gente...

9 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20223: A Guiné-Bissau, hoje: factos e números (2): prevalência do HIV/SIDA; comportamento de risco e práticas socioculturais e tradicionais, que tornam mais vulnerável a população guineense face ao risco de transmissão de HIV/SIDA e outras DST

4 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20204: A Guiné-Bissau, hoje: factos e números (1): população e morbimortalidade; etnias, idiomas e religiões; doenças sexualmente transmissíveis

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O ponto (vii), o direito do tio do noivo desflorar a noiva, na noite de núpcias, teria a ver com o chamado"jus primae noctis", o direito à primeira noite, um alegado "direito" ou "privilégio" do senhor feudal na Europa, que seria o de "dormir", na primeira noite, com a noiva do seu servo... Em português também se diz "direito de pernada"...

Parece não haver consenso, entre os historiadores especialistas da Alta Idade Média (até ao fim do séc. X), sobre a existência, devidamnente documentada, "de jure et de facto", deste prerrogativa dos senhores feudais... Admite-se, sim, a existência de abusos, tal como existiam por parte dos donos de escravos em relação às(aos) suas (seus) escravas(os)...

Talvez o nosso especialista em questões entolinguísticas, o Cherno Baldé, tenha algo mais a acrescentar... Mas isto paasa-se (ou passava-se) sobretudo entre os balantas...

Já o levirato é comum entre os muçulmanos, e portanto, deve ser ainda uma prática entre os fulas e mandingas... Na ausência de esquemas (institucionalizados) de proteºção social na morte, viuvez e orfandade, o levirato parece fazer sentido, na cultura islâmica.

Um dos meus antigos soldados, qu<ndo cá veio a Portugal, contou-me uma história dessas: morreu-lhe um irmão e teve que "herdar" a viúva e os filhos, agravando com isso a sua situação financeira e patrimonial... já que tinha uma primeira esposa e uma filha ou um filho.

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Luis Graça,

Sobre o tema: Listagem de mais algumas características socioculturais do país e de comportamentos de risco da população, que facilitam a propagação do HIV/SIDA e outras doenças sexualmente transmissíveis:

Tenho a dizer que, na generalidade, trata-se de realidades socio-culturais inegáveis historicamente falando, mas que, nao sendo estanques e imutáveis, fazem ou fizeram parte do modo de vida dos povos da Guiné e, como nao podia deixar de ser, sujeitos a evoluçoes, transformaçoes e mudanças constantes.

Pelo acima exposto, aconselharia a que informaçoes desta natureza e indole fossem sempre lidas e entendidas como tentativas de interpretaçao social e cultural, feitas dentro de certos padroes e limites que nos interpelam para algumas reservas, (ver cautelas) por representar, em alguns casos, simples estereótipos sociais em franco desuso ou ja abandonados (como o caso citado do direito a defloraçao), mas que ficaram colados a pele dos mais conservadores e ultimos praticantes, da mesma forma do que teria acontecido, em tempos passados, com os casos da prática do canibalismo entre certos grupos étnicos.

Posto isto, vou fazer breves comentarios a volta de alguns dos aspectos mencionados, prourando esclarecer ou indicar tendencias na actualidade.

iv. A Poligamia - Uma pratica social que ja existia antes da islamizaçao entre fulas e mandingas e que continua à existir em todos os grupos chamados animistas. A importancia socio-demografica que confere esta pratica do ponto de vista da resiliencia e perenidade populacional faz com que todos a considerem vital para a sobrevivencia colectiva face à um meio com muitas adversidades concomitante a uma elevada taxa de mortalidade.

Do meu ponto de vista, seria muito errado ver nesta pratica o excessivo gosto do africano pelo sexo, como muitos pensam. E deve-se ver nesta crença uma das fortes razoes do fracasso da religiao crista (que nunca ultrapassou na Guiné a taxa de 5% da populaçao total, ao contrario do que esta investigadora afirmou no Poste anterior) no meio africano que advoga a monogamia, mesmo que disfarçada sob outros aspectos que, também eles, conduzem a outras formas de promiscuidade sexual.

(v)- Permissividade sexual na sociedade balanta – A pratica do “B’nanhga ou Pnanhga” ainda é uma realidade o que confere a mulher balanta uma grande liberdade individual de decisao e de escolha do(s) parceiro(s), mas que do ponto de visto da saude ja nao é bem visto. E uma contradiçao social entre o livre arbitrio individual e a necessidade da protecçao da saude sexual. Mas, atençao, a pratica de entregar uma rapariga/mulher a outrem como forma de hospitalidade no meio africano era generalizada entre os diversos grupos sociais e etnicos e, em tempos, muitos administradores e chefes de postos portugueses e/ou caboverdianos terao usufruido desses serviços sociais gratuitos, sobretudo entre os régulos fulas da zona Norte/Leste/Sul.

Cont...

Cherno Baldé disse...


Cont...


(viii) – Circuncisao masculina – Acho que a percentagem é superior a 79,9% visto que exceptuando os cristaos de origem europeia ou asiatica, que é menos de 5% do total, entre todos os grupos etnicos a circuncisao masculino é obrigatoria. O sincretismo religioso é uma pratica ja antiga e bem enraizada na igreja e outras religioes na Guiné-Bissau.

(x) Levirato – Aqui existem praticas diferentes entre aqueles que ainda continuam a basear-se na tradiçao matrilinear (onde o herdeiro dos bens da familia nao é o irmao nem os filhos, mas um dos seus sobrinhos, filhos da sua irma) que ja começa a ser posto em causa devido a influencia das diferentes religioes, mas que é largamente praticado no seio do grupo dos Brames (Papeis, Manjacos e Mancanhas) e o grupo dos muçulmanos onde o irmao mais novo tem a obrigaçao de assumir e proteger a familia e os bens do defunto irmao que deve acontecer após o prazo dos 40 dias reservados ao luto pelo marido e também para se certificar que a mulher nao estava gravida do desaparecido.

Hoje em dia, em virtude de muitos conflitos sociais e contradiçoes diversas a que esta associado, o primeiro tipo de herança tradicional (matrilinear) começa a perder força a favor do modelo patrilinear, advogado pelas religioes monoteistas e também por força da globalizaçao, encabeçada pela cultura ocidental.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé