segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20238: Notas de leitura (1226): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Desta vez, inesperadamente, ruma-se para Quipedro, Angola, uma narrativa que começa em tom muito ameno e ordeiro, com o ritmo de uma memória a funcionar pela infância e juventude, o contexto familiar, a recruta e as especialidades, este alferes Eduardo vive numa grande tensão, dorme horrivelmente, precisa de Vesparax, estamos a pensar que se trata de uma máquina literária formal, a sua companhia irá ser transferida para o Leste e iremos ser confrontados com uma prosa truculenta, jamais me fora dado ler prosa tão sanguinária, tanto ódio à solta naquela frente de guerra.
E fica a pergunta no ar: Como é possível ter passado à margem da crítica este violentíssimo e chocante "O Alferes Eduardo"?

Um abraço do
Mário


Uma das mais explosivas obras da literatura da guerra colonial: 
“O Alferes Eduardo”, por Fernando Fradinho Lopes (1)

Beja Santos

No início, tudo parece formal, um tanto estereotipado, rotineiro, já abordado em muitíssimas outras obras. E subitamente, no leste de Angola, entra-se numa atmosfera de chacinas, assassinatos, terríveis execuções. Esta edição do Círculo de Leitores data de 2000, não conhecia qualquer referência ao título, não conhecia igualmente qualquer menção ao chocante do seu conteúdo. Na introdução refere algo que está longe de ser verdade, imagine-se que o autor é praticamente desconhecedor das toneladas de papel publicado neste subgénero literário das guerras de África, veja-se o que diz:
“Alguns escreveram ao longo das últimas décadas sobre as suas vivências em África, sem grande preocupação de verdade e de isenção, utilizando quase sempre um estilo literário patrioteiro de cariz colonialista ou então uma linguagem eivada de oposicionismo balofo. Disseram apenas aquilo que lhes convinha dizer no contexto do momento em que escreveram, ocultando factos relevantes e distorcendo a realidade histórica.
Exceptuando trabalhos jornalísticos avulsos sobre um ou outro acontecimento em particular, nunca vi qualquer obra feita com a objectividade e a imparcialidade adequadas à apresentação de um quadro real sobre a experiência dos jovens combatentes da geração de Eduardo, que consumiram uma parte das suas vidas nas florestas africanas para manterem, pela força das armas, a presença de Portugal naquelas paragens”.

É uma declaração que não pode passar sem um breve comentário. Basta atender-se à antologia “Os Anos da Guerra”, com organização de João de Melo, Publicações Dom Quixote, em 1988 e 1998, ler os nomes de Álvaro Guerra, José Martins Garcia, Álamo Oliveira, Abílio Teixeira Mendes, Lobo Antunes, João de Melo, Carlos Vale Ferraz e perceber a grave injustiça ínsita ao que Fernando Fradinho Lopes apresenta como um retrato acabado. E vamos adiante.

Há algo de diarístico, nesta obra. Estamos em 14 de janeiro de 1967, Eduardo parte da Covilhã, vai para a guerra, rememora as etapas por que passou nas Caldas da Rainha, Vendas Novas, Figueira da Foz, Lamego e Abrantes, transitou do curso de sargentos para o curso de oficiais, comeu o pão que o diabo amassou em Lamego, tudo isto lhe aflora ao espírito enquanto viaja de comboio até chegar a Abrantes. A 21 de janeiro, embarca no Vera Cruz com destino a Luanda, dias antes rompera namoro e não parte feliz. Não avisou a família da sua partida, os seus familiares viram-no por mero acaso no telejornal. Ruma com os seus homens para o Grafanil. O seu batalhão, o BCAÇ 1901, encaminha-se para a região dos Dembos. Há uma curta paragem em Nambuangongo, é uma viagem extenuante, são amistosamente recebidos na fazenda do Quixico, alguns quilómetros à frente começam as viaturas a atascarem-se na picada, e assim se chega ao destino, aqueles quarenta e tantos camiões chegam a Quipedro. “O Batalhão 1901 atravessou a ponte sobre o rio Lué, guardada por um pelotão aquartelado no local. Finalmente, nove quilómetros depois, atingiu Quipedro. A Companhia 1638 ficou e as restantes continuaram para Micula, a uns quarenta quilómetros a norte”. Eduardo fica em Quipedro, um lugar isolado, situado num vale encravado entre montanhas. “Naquela região as populações haviam desaparecido totalmente. Apenas a fazenda do Lué era habitada por algumas centenas de trabalhadores contratados no Centro de Angola. Antes de 1961 existira em Quipedro uma bela fazenda cujos vestígios quase haviam desaparecido. Os rebeldes, seis anos antes, haviam assassinado selvaticamente muitos brancos e seus criados negros”. Começa o reconhecimento da região, o maravilhamento daquelas densas florestas, as plantas, os sons, os animais, os cheiros, as cores. Sente-se impressionado pela fauna, pelas formigas-brancas e pelas bisontes, o alferes adapta-se, prosseguem os patrulhamentos de rotina, voltou à montanhosa zona de Catembo, constava que era bastante elevado o número de guerrilheiros na região. Sente-se profundamente confrontado com usos e costumes, um grupo de militares a rezar o terço na capela leva-o até à sua adolescência, onde se iniciara o seu agnosticismo.


São avistados grupos de guerrilheiros muito próximo de Quipedro. Começam as escoltas a camiões civis, a escassos quilómetros de Quixico um tiro isolado, à queima-roupa, veio gerar a confusão no pelotão de Eduardo. Há um ferido, o “Travanca”, uma bala entrara-lhe pela anca esquerda e alojara-se na anca direita, foi impossível contar com um helicóptero, o “Travanca” morre. Prosseguem as incursões na zona de Catembo, são recebidos pelos guerrilheiros com extenso tiroteio, impunha-se retirar, o comandante de companhia não gostou, manda repetir. Eduardo fala-nos de Pereira que cumpria a sua segunda comissão em Angola, desta vez como voluntário. Era um aldeão que não se deu bem com o regresso à vida civil e aos trabalhos da lavoura, sentia-se bem no Exército. “Preferia a insegurança das matas de Angola à infelicidade que sentia na sua pacata aldeia natal. Nem sequer era motivado pelo dinheiro. Ia de novo combater a troco de quase nada”. Entretanto o cabo enfermeiro atira-se para o chão, está aterrorizado, o medo domina-o, houve necessidade de o fazer regressar à unidade. E o grupo interna-se pela floresta. Eduardo medita as consequências de avançar para território francamente hostil, onde não pode contar com quaisquer apoios. “Reuniu o pelotão em círculo e disse aos rapazes que, em consciência, teria de desistir outra vez da missão que lhe fora imposta pelo comandante de companhia. Se caminhavam pelo único trilho que conheciam, seriam flagelados e, além disso, corriam o risco de encontrar o terreno armadilhado. Se entravam pela mata virgem, perdiam-se nela. Portanto, regressariam a Quipedro”. Surpreendentemente, o capitão deu razão ao Alferes. Dias depois, deslocação ao comando do batalhão em Micula, com imenso calor e chuva torrencial, depois de muitas peripécias, regressa-se a Quipedro. Nova saída desta vez com rumo a Quixico, a missão é proteger Engenharia Militar. Eduardo gosta do ambiente humano de Quixico, daquela verdejante fazenda cuja principal cultura era o café.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 11 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20229: Notas de leitura (1225): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (27) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Angola, Quipedro e Micula...Que maravilha de descrição, e de entendimentos!
Num blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné...

Abraço,

António Graça de Abreu

Fernando Ribeiro disse...

Formigas bisontes? É assim que está escrito no livro? Se estiver, então está mal. Em Angola, essas formigas são chamadas quissondes. Quissondes e não bisontes. Também já ouvi chamar-lhes formigas-soldados, e é fácil perceber porquê. São formigas pretas grandes (há formigas iguais ou parecidas nas matas e pinhais portugueses), que constituem exércitos de milhares e milhares de formigas, que avançam permanentemente pela floresta em grossas e densas colunas, sem parar e devorando tudo à sua frente, incluindo carne humana. São eternas nómadas, que não constroem qualquer formigueiro. Caminham sem parar, desde que nascem até que morrem. Vi muitos exércitos de quissondes no norte de Angola, alguns dos quais de dimensões assustadoras.

As "formigas-brancas" referidas no texto são de facto térmitas, as quais, como é sabido, não são brancas, mas sim rosadas. Mas havia quem lhes chamasse, erradamente, formigas-brancas. Os angolanos dão-lhes o nome de salalé.

Quanto às terras referidas no texto, em rigor não as conheci, mas estive tão perto delas em operações! Tão perto, tão perto! Nunca cheguei a entrar em Quipedro, nem em Quixico, nem sequer no Lué, mas estive pertíssimo destes lugares, sobretudo do Lué. Vi a fazenda Lué do cimo de um monte, claramente vista e claramente ouvida. E os turras ali mesmo ao lado!


Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alferes miliciano da CCAÇ 3535, do BCAÇ 3880, Angola 1972-74