sábado, 19 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20257: Os nossos seres, saberes e lazeres (360): A minha ilha é um cofre de Atlântidas (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 9 de Maio de 2019:

Queridos amigos,
Chegado à ilha de São Miguel em outubro de 1967, vivendo em Ponta Delgada em quarto alugado, aquele aspirante a oficial miliciano dispunha dos fins de semana por sua conta e risco.
Começou por visitar o Museu Carlos Machado, ao tempo museográfica e museologicamente medíocre, não deixava expandir a riqueza do seu acervo. E deu-lhe para visitar num sábado a Caldeira das Sete Cidades. Largado na povoação ainda não eram oito da manhã, o motorista informou-o que a camioneta de regresso só seria ao fim da tarde, não havia problema, iria coscuvilhar o que pudesse e levava um livro debaixo do braço, para dar trégua aos pezinhos. O busílis foi descobrir que faltavam casas de pasto ou restaurantes, depois de muitas peripécias indicaram-lhe uma taberna, houve que negociar uns ovos com chouriço e batata frita, o casqueiro era um regalo, tudo culminou com rodelas de ananás e um cafezinho de saco e uma fatura económica.
Não deu para esquecer, o termo de comparação é impossível, as Sete Cidades são hoje um poiso turístico onde, mesmo ao lado do viandante que comia um belo arroz de lapas um grupo de japonesas bem maduras, à cautela, davam gritinhos com uma caldeirada de cabrito. Isto só para dizer que tudo mudou nos Açores, o local português que mais beneficiou com o 25 de Abril, e bem merecia.

Um abraço do
Mário


A minha ilha é um cofre de Atlântidas (2)

Beja Santos

Que bem jantou o viandante, arroz de lapas com abrótea, foi num self-service onde se desdobravam pratos de carne e peixe, preferiu repetir a iguaria, andava aquoso deste manjar sem rival. E apressou-se a saber a ementa do dia seguinte, arrebitou-lhe a orelha com o boca negra e o chicharro, as lentilhas, a batata-doce, o que vale é que vai palmear uns quilómetros, está em crer que a lagoa se estende por mais de quatro quilómetros, vai dividir por partes, tem o tempo do seu lado. Regalado com a vida, de estômago apaziguado, atira-se à estrada. Vai começar pelo túnel de descarga da lagoa, inaugurado em 1937, veio resolver problemas de inundação, o que interessa é que nada desfeia o meio circundante, parece que está lá instalado desde tempos imemoriais.


A lagoa é bela de alto a baixo, tanto a beijar a terra fértil como no Pico das Éguas, a maior elevação da zona, acima dos 800 metros. O viandante tem a manhã toda por sua conta, nos baixios procura o contraste entre o plaino e o frondoso, o mundo florestal em consórcio com o mundo aquático, lá em cima a caldeira ganha outras tonalidades, acresce a instabilidade do tempo, como adiante se verá.






Já se palmilhou uma boa parte da ilha, dá-se agora descanso aos pés, com esta azália tão frondosa em frente. Bisbilhota-se o que diz um folheto sobre a região da Lagoa das Sete Cidades: “Este cenário idílico situa-se na cratera vulcânica das Sete Cidades e é o maior reservatório natural de água doce da superfície dos Açores. Esta lagoa encontra-se dividida por um canal pouco profundo onde existe uma ponte que separa de um lado as águas de tom verde e do outro as de tom azul”. E sugere-se ao leitor a visita a outras lagoas, já se falou nas Empadadas, mas há também a de Pau Pique e de Santiago, do Canário e a Rasa. O viandante não quer sair daqui, se é idílico é para gozar até ao tutano, que a lembrança se embrenhe, não se volatize.


Março, por definição, não é mês da exuberância das florescências, nada de dálias, ou verónica ou begónias ou lobélia, tem esperança de encontrar um vastíssimo mundo de cor no parque Terra Nostra, noutra etapa. Eis senão quando se depara esta hortênsia branca a rebentar, para delícia dos olhos, e por estranha associação o viandante recordou uma magnífica viagem à ilha de São Jorge, em 1991, fora convidado para ali palestrar, imagine-se dentro de um festival de música, num teatro da Calheta, elegante e íntimo, ofereceram-lhe um passeio até ao antigo concelho do Topo, se já vira milhares e milhares de hortênsias ou hidrângeas, estas, todas elas eram de um azul mineral, rebrilhavam como aço, e quando se chega ao ponto ermo do Topo aquele tapete espraia-se, estava uma tarde muito clara e alguém chamou a atenção para um ponto lá ao fundo, a Ilha Terceira, tudo inesquecível, tudo guardado no coração.


Já se almoçou, anda-se alvorotado com tão magnífico peixe, o cozido fica para as Furnas, toca de esmoer tão boa refeição, prossigamos com este renque de plátanos, daqui a uns anos estarão em esplendor, entra-se num caminho num outro ponto da lagoa, tudo beleza em redor, as águas não estão quietas, parecem dialogar com a paisagem, foi uma tarde inesquecível e quando se regressou com toda a Natureza nos bolsos, e com os olhos lavados, vieram nuvens imprevistas e houve aquele momento que pareceu tirado das imagens religiosas muito em voga nos anos 1970, a luz a sair das trevas, como a sugerir que Deus não dorme e que Nele deve estar toda a nossa esperança, transformada em desvelo pelo humano, numa palavra de amor. E com pensamentos positivos se encerra o dia, amanhã toma-se um transporte público a caminho de Ponta Delgada. Outros regalos à espera.






(continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 12 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20233: Os nossos seres, saberes e lazeres (359): A minha ilha é um cofre de Atlântidas (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Henrique disse...

Faz bem o Beja Santos divulgar as nossas ilhas que para a maioria dos portugueses ainda são um mistério. Abraço e continua.