1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Janeiro de 2023:
Queridos amigos,
Mais uma surpresa, uma bibliotecária dedicada deixou-me em cima da mesa de trabalho na Sociedade de Geografia de Lisboa uma revista que desconhecia totalmente, e de que não encontro referências no google, a Cartaz, pelo título palpita-me tratar-se de uma publicação do SNI, revista mensal de cultura, informação e turismo. O conteúdo tem a ver com a visita de Silva Cunha à Guiné, em março de 1970, nada que não esteja já registado. A novidade é a colaboração de Horácio Caio, não se sabe ao certo se também viajou na comitiva ministerial, já escreveu sobre a Guiné e o último livro de reportagem claramente em defesa do Ultramar é da sua lavra, já caminhamos para o 25 de Abril. Foi o primeiro repórter de guerra, terá ido pelo menos três vezes à Guiné, e podemos juntar o seu nome a Amândio César, José Manuel Pintasilgo, Dutra Faria e Avelino Rodrigues (este entrevistou Spínola, que numa dessas peças publicadas no Diário de Lisboa teve uma tirada bombástica, revela-se favorável à autodeterminação). Enfim, tratemos estes documentos como reportagens pró-regime (não será o caso das de Avelino Rodrigues), Horácio Caio era jornalista da Época (jornal do regime que sucedeu ao Diário da Manhã).
Um abraço do
Mário
O Ministro do Ultramar na Guiné, março de 1970, Horácio Caio fala na vitória
Mário Beja Santos
Já conhecia dois livros de Horácio Caio alusivos a duas viagens que fizera à Guiné. Caio tornou-se no primeiro repórter de guerra e foi autor de um bestseller Angola Os Dias do Desespero. Foi com surpresa que pude compulsar uma revista intitulada Cartaz, revista mensal de cultura, informação e turismo, ano VI, número especial março 1970, a visita de Joaquim da Silva Cunha percorreu durante dias localidades da zona Leste (chegou a aterrar em Madina do Boé), esteve no Norte, em Mansabá, no chão manjaco, foi ao Sul a Catió, Cabedu, Cacine, etc. Agradável descoberta na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, desconhecia inteiramente este relato e creio que esta revista estava ligada ao SNI. No seguimento do relato da viagem aparece um texto de Horácio Caio, é bem provável que ele havia viajado como ministro e intitula-o os caminhos para a vitória, quatro pequenas histórias que ele interliga. Aqui fica o seu resumo.
Na primeira, refere um episódio passado em Bissalanca, que assim começa:
“Às cinco horas nasce o dia. O céu pardo da madrugada fica subitamente brilhante de purpura, passa aos poucos para o turquesa e o laranja e esborrata-se em vários matizes de azul. Então, a grande bola de fogo surge majestosa no seu bom-dia de esperança. A estrada alcatroada até Bissalanca, nastro esticado no ocre da terra, avisa de súbitos rumores metálicos os bairros sociais e as tabancas. São cinco quilómetros de asfalto bordado de casuarinas e poilões onde belos pássaros gorjeiam as sinfonias da manhã.” Faz uma apreciação do que encontra no bar, anda por ali alguém a fazer limpezas enquanto a enfermeira paraquedista e os pilotos do helicóptero ouvem música do tempo. O senhor da limpeza trava conversa com o repórter, agora estava tudo muito melhor, no passado não havia helicópteros nem piquetes, agora tudo se processa com rapidez para transportar os feridos. “Tudo está muito melhor desde que veio este general.”
A segunda estória prende-se com a audácia de um capitão miliciano que se fartou de ouvir os obuses por cima do seu quartel, perdeu a paciência com aqueles guerrilheiros que matavam, roubavam, destruíam, incendiavam e raptavam gente, preparou uma operação em que levou alguns homens para observar a posição onde estavam os guerrilheiros e a população forçada a viver com eles. Feita a referência, preparou um grupo para um golpe de mão, dividiu o contingente em três grupos de homens e pelas quatro da manhã emboscou-se ali perto. Ao nascer do dia, abriu fogo, os guerrilheiros ainda resistiram, e depois fugiram, o capitão queria apanhar gente, a população não acompanhou os guerrilheiros, homens, mulheres e crianças desceram o outeiro, silenciosos, à frente dos soldados. Atrás, o fumo do incêndio subia grosso e negro, traziam setenta e seis vacas que o inimigo roubara à população dos arredores.
A terceira estória intitula-se Eu dei a minha palavra, tem a ver com um homem que se vem entregar à tropa, é interrogado, tem resposta pronta: “A Guiné é a terra onde eu nasci. Esta é a minha terra, é aqui que eu quero ficar. Venho entregar-me à tropa.” E explica que há outros que também se querem entregar, mas têm medo, estão numa tabanca no Senegal, têm medo de ser mortos, compromete-se a ir buscá-los se o deixarem. Volta quarenta dias depois, numa luminosa manhã de dezembro, avisa que os fugitivos do PAIGC estão do outro lado da fronteira, será quatrocentos desalojados que querem viver à sombra da bandeira portuguesa.
E a última estória, Dá muito trabalho para morrer, um paraninfo à bravura militar, até mete linguagem de caserna, anda um grupo de combate à procura de turras, há tiroteio, o nosso herói perde-se do grupo, apanhou um tiro no ombro, aconteceu-lhe quando andava na caça ao homem. Novamente vem à baila o nosso general, não é a primeira vez que Horácio Caio enaltece o comandante-chefe que aparece imprevistamente nos lugares de risco, houvera uma emboscada, não quis tiros, queria saber para onde ia aquele grupo de cinquenta turras, então avistou-se um depósito de material.
“Caçámos quarenta e oito, vivos, e um montão de pistolas metralhadoras e espingardas, que eram as deles e outras que estavam escondidas. Outros fugiram, mas o que vigiava em cima da árvore estava morto, no chão, ainda por cima caiu de cabeça para baixo, tinha o pescoço partido; ele foi apanhado como um rato dentro da ratoeira. Ele podia ter caído só com o medo do barulho do tiro. E caiu daquela altura, já se vê, um tipo parte logo o pescoço, é uma chatice. Também já vi alguns morrerem só porque têm medo e quando vão a fugir e têm que atravessar um rio afogam-se porque o medo tira as forças todas a um turra.
Não querem combater e, por isso, fogem à nossa frente cheios de medo e não se entregam porque depois os chefes que vivem para lá das fronteiras mandam matá-los. É isso o que dizem todos quando se convencem de que nós os protegemos e ficam a trabalhar connosco e depois veem que é assim mesmo e são felizes ao pé da tropa.”
A história vitoriosa tem que envolver o general claro está, ele andava perdido, deu um tiro no turra que se está a esvair em sangue, virá um helicóptero bendito. Foram lá metidos, quando chegaram ao destino tinha à espera o general que lhe deu um abraço. “Eh pá, a gente sente uma coisa cá por dentro.”
Creio tratar-se da segunda viagem de Horácio Caio, e como o documento comprova ele acreditava a todo o transe que estava a escrever para mostrar aos incréus ou aos indiferentes por onde passavam os caminhos para a vitória, como ele escreveu histórias muito breves e de pouca importância para quem vive longe da guerra.
Joaquim da Silva Cunha, Ministro do Ultramar, distribuindo presentes às autoridades gentílicas durante a sua visita de março de 1970
O Ministro cumprimentando a população após a inauguração do aeroporto do Gabu, no seu quinto dia de viagem à Guiné, março de 1970
Horácio Caio (1928-2008)
_____________
Nota do editor
Último post da série de 21 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25668: Notas de leitura (1702): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1860 a 1864) (8) (Mário Beja Santos)