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segunda-feira, 24 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25680: Notas de leitura (1703): O Ministro do Ultramar na Guiné, março de 1970, Horácio Caio fala na vitória (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Janeiro de 2023:

Queridos amigos,
Mais uma surpresa, uma bibliotecária dedicada deixou-me em cima da mesa de trabalho na Sociedade de Geografia de Lisboa uma revista que desconhecia totalmente, e de que não encontro referências no google, a Cartaz, pelo título palpita-me tratar-se de uma publicação do SNI, revista mensal de cultura, informação e turismo. O conteúdo tem a ver com a visita de Silva Cunha à Guiné, em março de 1970, nada que não esteja já registado. A novidade é a colaboração de Horácio Caio, não se sabe ao certo se também viajou na comitiva ministerial, já escreveu sobre a Guiné e o último livro de reportagem claramente em defesa do Ultramar é da sua lavra, já caminhamos para o 25 de Abril. Foi o primeiro repórter de guerra, terá ido pelo menos três vezes à Guiné, e podemos juntar o seu nome a Amândio César, José Manuel Pintasilgo, Dutra Faria e Avelino Rodrigues (este entrevistou Spínola, que numa dessas peças publicadas no Diário de Lisboa teve uma tirada bombástica, revela-se favorável à autodeterminação). Enfim, tratemos estes documentos como reportagens pró-regime (não será o caso das de Avelino Rodrigues), Horácio Caio era jornalista da Época (jornal do regime que sucedeu ao Diário da Manhã).

Um abraço do
Mário



O Ministro do Ultramar na Guiné, março de 1970, Horácio Caio fala na vitória

Mário Beja Santos

Já conhecia dois livros de Horácio Caio alusivos a duas viagens que fizera à Guiné. Caio tornou-se no primeiro repórter de guerra e foi autor de um bestseller Angola Os Dias do Desespero. Foi com surpresa que pude compulsar uma revista intitulada Cartaz, revista mensal de cultura, informação e turismo, ano VI, número especial março 1970, a visita de Joaquim da Silva Cunha percorreu durante dias localidades da zona Leste (chegou a aterrar em Madina do Boé), esteve no Norte, em Mansabá, no chão manjaco, foi ao Sul a Catió, Cabedu, Cacine, etc. Agradável descoberta na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, desconhecia inteiramente este relato e creio que esta revista estava ligada ao SNI. No seguimento do relato da viagem aparece um texto de Horácio Caio, é bem provável que ele havia viajado como ministro e intitula-o os caminhos para a vitória, quatro pequenas histórias que ele interliga. Aqui fica o seu resumo.

Na primeira, refere um episódio passado em Bissalanca, que assim começa:
“Às cinco horas nasce o dia. O céu pardo da madrugada fica subitamente brilhante de purpura, passa aos poucos para o turquesa e o laranja e esborrata-se em vários matizes de azul. Então, a grande bola de fogo surge majestosa no seu bom-dia de esperança. A estrada alcatroada até Bissalanca, nastro esticado no ocre da terra, avisa de súbitos rumores metálicos os bairros sociais e as tabancas. São cinco quilómetros de asfalto bordado de casuarinas e poilões onde belos pássaros gorjeiam as sinfonias da manhã.” Faz uma apreciação do que encontra no bar, anda por ali alguém a fazer limpezas enquanto a enfermeira paraquedista e os pilotos do helicóptero ouvem música do tempo. O senhor da limpeza trava conversa com o repórter, agora estava tudo muito melhor, no passado não havia helicópteros nem piquetes, agora tudo se processa com rapidez para transportar os feridos. “Tudo está muito melhor desde que veio este general.”

A segunda estória prende-se com a audácia de um capitão miliciano que se fartou de ouvir os obuses por cima do seu quartel, perdeu a paciência com aqueles guerrilheiros que matavam, roubavam, destruíam, incendiavam e raptavam gente, preparou uma operação em que levou alguns homens para observar a posição onde estavam os guerrilheiros e a população forçada a viver com eles. Feita a referência, preparou um grupo para um golpe de mão, dividiu o contingente em três grupos de homens e pelas quatro da manhã emboscou-se ali perto. Ao nascer do dia, abriu fogo, os guerrilheiros ainda resistiram, e depois fugiram, o capitão queria apanhar gente, a população não acompanhou os guerrilheiros, homens, mulheres e crianças desceram o outeiro, silenciosos, à frente dos soldados. Atrás, o fumo do incêndio subia grosso e negro, traziam setenta e seis vacas que o inimigo roubara à população dos arredores.

A terceira estória intitula-se Eu dei a minha palavra, tem a ver com um homem que se vem entregar à tropa, é interrogado, tem resposta pronta: “A Guiné é a terra onde eu nasci. Esta é a minha terra, é aqui que eu quero ficar. Venho entregar-me à tropa.” E explica que há outros que também se querem entregar, mas têm medo, estão numa tabanca no Senegal, têm medo de ser mortos, compromete-se a ir buscá-los se o deixarem. Volta quarenta dias depois, numa luminosa manhã de dezembro, avisa que os fugitivos do PAIGC estão do outro lado da fronteira, será quatrocentos desalojados que querem viver à sombra da bandeira portuguesa.

E a última estória, Dá muito trabalho para morrer, um paraninfo à bravura militar, até mete linguagem de caserna, anda um grupo de combate à procura de turras, há tiroteio, o nosso herói perde-se do grupo, apanhou um tiro no ombro, aconteceu-lhe quando andava na caça ao homem. Novamente vem à baila o nosso general, não é a primeira vez que Horácio Caio enaltece o comandante-chefe que aparece imprevistamente nos lugares de risco, houvera uma emboscada, não quis tiros, queria saber para onde ia aquele grupo de cinquenta turras, então avistou-se um depósito de material.

“Caçámos quarenta e oito, vivos, e um montão de pistolas metralhadoras e espingardas, que eram as deles e outras que estavam escondidas. Outros fugiram, mas o que vigiava em cima da árvore estava morto, no chão, ainda por cima caiu de cabeça para baixo, tinha o pescoço partido; ele foi apanhado como um rato dentro da ratoeira. Ele podia ter caído só com o medo do barulho do tiro. E caiu daquela altura, já se vê, um tipo parte logo o pescoço, é uma chatice. Também já vi alguns morrerem só porque têm medo e quando vão a fugir e têm que atravessar um rio afogam-se porque o medo tira as forças todas a um turra.
Não querem combater e, por isso, fogem à nossa frente cheios de medo e não se entregam porque depois os chefes que vivem para lá das fronteiras mandam matá-los. É isso o que dizem todos quando se convencem de que nós os protegemos e ficam a trabalhar connosco e depois veem que é assim mesmo e são felizes ao pé da tropa.”


A história vitoriosa tem que envolver o general claro está, ele andava perdido, deu um tiro no turra que se está a esvair em sangue, virá um helicóptero bendito. Foram lá metidos, quando chegaram ao destino tinha à espera o general que lhe deu um abraço. “Eh pá, a gente sente uma coisa cá por dentro.”

Creio tratar-se da segunda viagem de Horácio Caio, e como o documento comprova ele acreditava a todo o transe que estava a escrever para mostrar aos incréus ou aos indiferentes por onde passavam os caminhos para a vitória, como ele escreveu histórias muito breves e de pouca importância para quem vive longe da guerra.

Joaquim da Silva Cunha, Ministro do Ultramar, distribuindo presentes às autoridades gentílicas durante a sua visita de março de 1970
O Ministro cumprimentando a população após a inauguração do aeroporto do Gabu, no seu quinto dia de viagem à Guiné, março de 1970
Horácio Caio (1928-2008)

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Nota do editor

Último post da série de 21 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25668: Notas de leitura (1702): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1860 a 1864) (8) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24150: Notas de leitura (1564): "Guiné 9 Dias em Março" e "Guiné 74 Vigilância e Resposta"; O repórter Horácio Caio na Guiné, em 1970 e em 1974 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Julho de 2020:

Queridos amigos,
Três repórteres se distinguiram na cobertura da guerra da Guiné, para efeitos de propaganda do Estado Novo: Amândio César, Horácio Caio e Dutra Faria. Amândio César e Dutra Faria tiveram na Guiné no tempo do Governador Arnaldo Schulz, Caio visita a Guiné em 1970 e 1974. A todos irmana o tantam da portugalidade, do amor da Guiné a Portugal, há sempre progresso, novas estradas, desenvolvimento agrícola, o inimigo dispara no território estrangeiro ou tem no interior bases temporárias. Caio não encontrou ninguém que lhe tenha falado em mísseis, por toda a parte encontrou tropa animada, régulos indefetíveis, Bissau era uma cidade completamente segura, viajou de helicóptero ou de jipe em certas estradas alcatroadas. É estarrecedor vermos hoje, à distância de meio século, como se pretendia instrumentalizar ou ludibriar a opinião pública portuguesa. Mas aconteceu, basta ler estes repórteres e sentir como o credo nacionalista podia deturpar a realidade dos factos.

Um abraço do
Mário


O repórter Horácio Caio na Guiné, em 1970 e em 1974

Mário Beja Santos

Horácio Caio (1928-2008) é considerado o primeiro repórter da guerra colonial, trabalhou para a RTP e várias publicações escritas. Pelo menos duas obras sobre a Guiné chegaram ao meu conhecimento. Em 1970, acompanha o ministro Silva Cunha de que resulta um folheto intitulado “Guiné Nove Dias em Março”. Descreve a visita do ministro do Ultramar, alvo de uma receção patriótica, a publicação está profusamente ilustrada com imagens com crianças, jovens e adultos, visitando projetos, andando de jipe entre Nova Lamego e Bafatá, saindo do helicóptero na área de Madina do Boé. Desmente tudo quanto Cabral por essa altura dissera numa entrevista à Newsweek sobre controlo do território, afirma que anda com o ministro por toda a parte, embora não diga como. É encomiástico com as transformações que se estão a operar na Guiné: “Rasgam-se e alcatroam-se estradas pelo interior da floresta; lançam-se pontes e viadutos sobre os canais dos belos rios guineenses; em toda a província se constroem habitações em aldeamentos; abrem-se escolas e hospitais; potentes máquinas desbravam as florestas e preparam terrenos para novas culturas; criam-se granjas agrícolas; reordenam-se palmares; recuperam-se bolanhas onde viceja o arroz”. O Governador Spínola mostra ao ministro o que se está a passar no Chão Manjaco, também no Chão Mancanha e Balanta, e no Quínara. Os jornalistas recebem ampla informação quanto ao que se está a passar na assistência médico-sanitária. Também Bafatá recebe em apoteose o ministro, o comandante da 1.ª Companhia de Comandos Africanos, João Bacar Djaló, é condecorado, Horácio Caio sente-se contagiado pelo portuguesismo das populações.

Viaja-se até à fronteira, vai-se de helicóptero até Sare Bacar, depois a Cambajú e depois a Canhamina, esta um complexo de aldeamentos em autodefesa. De Bafatá até Bambadinca o ministro vai de automóvel. Noutra digressão segue-se até Nova Lamego, tem novo aeroporto, uma construção que é contemporânea nos aeródromos de Aldeia Formosa e de Cufar. A guerra que se move contra a Guiné tem por detrás as potências estrangeiras e há muitos mercenários com o PAIGC, afirma e reafirma o jornalista. Não há quartel em Madina do Boé porque as populações decidiram transferir-se para o Gabú. “Mas isso não significou que esta parcela da Guiné deixasse de ser portuguesa. E a prová-lo este a presença dos visitantes nas povoações de Beli e de Madina do Boé, a escassos quilómetros da fronteira, tendo sido sobrevoadas a baixa altitude”. Houve também passeio à ilha do Como. Assim se desfaz mais uma mentira da propaganda adversária. “O Professor Doutor Silva Cunha esteve em Porto de Corcô, no centro geográfico da ilha de Como, pedaço de terra, embora de reduzido interesse, mas pedaço de terra portuguesa, onde portugueses mesmo desarmados como foi o caso, podem permanecer quando e enquanto quiserem”. A viagem prossegue até Guilege e Gadamael. “A intensa alegria com que receberam os visitantes somada à determinação que puseram nas suas afirmações, demonstraram mais uma vez a razão da sua permanência em tão inóspitas paragens”.

Chegou a vez de visitar o Chão Manjaco, fala-se em construções como uma maternidade, ampliação da missão de combate a doenças tropicais, o elevado número de postos sanitários, reordenamentos rurais, estava em curso a construção de três mil casas de habitação. Com efeito, Spínola apostava no Chão Manjaco, um mês depois ali ocorrerá uma tragédia, suponha-se que grupos do PAIGC aceitassem ser integrados nas fileiras do Exército Português, os oficiais de negociadores foram retalhados à catana.

Em janeiro de 1974, é a vez de Baltazar Rebelo de Sousa, o novo ministro do Ultramar, visitar a Guiné, irá a Catió, a Caboxanque, Bafatá, Nova Lamego, Farim, Cacheu, Teixeira Pinto e Bubaque. O livro "Guiné 74, Vigilância e Resposta", é editado no mês seguinte. Não há áreas libertadas. Apenas 5% da população está sob o jugo do PAIGC. As flagelações deste são realizadas à distância, ou de acampamentos temporários ou nos territórios do Senegal ou da República da Guiné. Há cada vez mais progresso, começara a laboração da CICER, Fábrica de Cervejas e Refrigerantes, o maior investimento privado na Guiné, caminhava para a inauguração o Hotel Ancar, havia cada vez mais estradas asfaltadas. O jornalista está a engraxar os sapatos, o engraxador é um jovem de 15 anos que aspira ser Comando. Bissau é uma cidade seguríssima. “Nenhuma das pessoas com quem conversei me falou em bombardeamentos, tiros ou foguetões. A campanha de falsas notícias, insidiosamente montada pelo inimigo e quantas vezes acreditada até por pessoas de boa fé, não corresponde à realidade observada”.

O repórter assiste ao encontro entre o ministro e o rei de Bassarel, no Pelundo, fala-nos da fortaleza de Cacheu, de Honório Pereira Barreto e de sua mãe D. Rosa Carvalho Alvarenga. Depois os helicópteros rumam para Cufar, Catió, Caboxanque, no Cantanhez. “Aí convivemos durante uma manhã inteira com esses bravos soldados que defendem a terra e as populações”. Os encontros são muitos, com o dirigente do Turismo, um alferes promovido a capitão, na saúde e do ensino, aqui pontificam os militares e as suas mulheres, entrevista-se o proprietário do Hotel Ancar, há visita à Imprensa Nacional da Guiné, o ministro inaugura o estádio escolar que inclui campos de futebol, campos de voleibol e basquetebol, balneários, salas de jogos, pista de atletismo. Volta-se ao investimento da CICER, enumeram-se as cervejas e os refrigerantes, tudo parecia um investimento promissor. Edição profusamente ilustrada como a anterior, uma narrativa de rasgada fé na portugalidade guineense, refere-se textualmente que são 500 mil guineenses antes separados por odiosas rivalidades fomentadas pelo PAIGC, ele via por toda a parte a nossa Guiné fraterna e exclama: “Com uma farda de Comando, com indumentária da Mocidade Portuguesa – movimento que na Guiné tem presença vigorosa – ou com um distintivo da ação nacional popular, o jovem – milhares de jovens – da Guiné está personalizado e é o fermento da vida nova que freme e acoroçoa a aurora que desponta”. É verdade que a guerra traz incómodos, sacrifícios, destruição e mortes. “Clareado o que tenho na minha frente, o que antevejo é o futuro da Guiné, onde todos participam com ânimo, aceitando desafios constantes à inteligência e à imaginação”.

E tudo termina com uma citação do ministro do Ultramar, produzida em Cacheu no dia 17 de janeiro: “A Guiné dos nossos dias está apostada em se defender dos ataques que lhe são dirigidos, já que ela, por si própria, é pacífica, não ofende ninguém e não ambiciona nada senão que a deixem trabalhar em paz e progredir em paz, a favor da sua gente”.
E meses depois aconteceu o 25 de abril.

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Nota do editor

Último poste da série de 13 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24141: Notas de leitura (1563): Cadernos Militares - Convencer a malta do Exército dos malefícios da descolonização (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20589: Notas de leitura (1258): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (42) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Entrou-se numa fase tranquila no BCAV 490, o bardo anda disfarçado de polícia militar e não se queixa.
Alguém que acompanha o blogue, que foi alferes em Moçambique, veio à estacada falar do seu irmão, um furriel miliciano do BCAV 490, louvado e condecorado. Impossível não acolher tão oportuna e benfazeja intervenção, oxalá que apareçam mais.
Põe-se termo às intervenções de Dutra Faria, o primeiro dos jornalistas que veio até à Guiné (uma série a que se podem juntar nomes como os de Amândio César, Horácio Caio e José Manuel Pintasilgo, série essa que culminará com um conjunto de reportagens de Avelino Rodrigues com uma polémica entrevista a Spínola onde se aflora a autodeterminação, pasme-se). E na linha do contraditório, dá-se a palavra a alguém que virá a ter reputação mundial como escritor e investigador dos movimentos revolucionários, Gérard Chaliand, que entre maio e junho de 1966 acompanhou Amílcar Cabral e outros dirigentes do PAIGC na região do Morés.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (42)

Beja Santos

“Continuamos a trabalhar
a missão desempenhámos.
Acabámos de rondar,
à Amura regressámos.

A placa contornando,
vemos as pernas às mocinhas.
Vão-se dando umas voltinhas
pela rua das montras passando,
à esquerda do sinaleiro voltando,
segue-se na rua à beira-mar.
Vêm-se os namoricos a gozar
nos bancos do jardim
e, com esta vidinha assim,
continuamos a trabalhar.

Voltando pelo mesmo lugar,
tomamos a rua do Hospital
e antes do quartel-general
tornamos à esquerda a voltar.
Aos Bombeiros vamos passar
e as duas gémeas miramos.
Ao Alto-Crim chegamos
e seguimos até à Flor do Minho.
E nas tabancas por outro caminho
a missão desempenhamos.

Passando ao Alto-Crim, novamente,
perto do Capitão se vai torcer
e as estudantes vamos ver
ao avançar prudentemente
à esquerda da rua em frente.
Vê-se a Milú a passear.
Ouve-se o Concha a tocar
com sua amabilidade
e correndo o resto da cidade
acabamos de rondar.

Temos que incomodar a rapaziada,
mandando apertar os botões
e manda-se desarregaçar os calções
e andar de farda asseada.
A malta às vezes é tarada,
e com eles nos chateamos
alguns malandrecos encontramos
que só obedecem a bastão
e levando-os ao nosso Capitão
à Amura regressamos.”

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O bardo prossegue a cantilena do quotidiano com roupagem de polícia militar, patrulham Bissau e não esquecem os namoricos. Aqui se faz um desvio e profundo. Acontece que quem acompanha o bardo escreve com regularidade num jornal de Tomar, com lastro de pergaminhos, O Templário. A propósito de uma recensão sobre Tomar e os seus tesouros, um leitor interveio com várias sugestões, Tomar não é só cidade, há tesouros pelas redondezas como Alviobeira, Asseiceira, S. Pedro da Beberriqueira, Bezelga, Carregueiros, Casais, Junceira, Madalena, Olalhas, Paialvo, Pedreira, Sabacheira e Serra, toca de inventariar tais tesouros de tais localidades. E depois de se apresentar como alferes miliciano de Cavalaria em Moçambique, onde permaneceu de outubro de 1972 a janeiro de 1974, na região de Cahora Bassa e de fevereiro a outubro de 1974 na Beira, lembrou que um seu irmão fora furriel miliciano de Cavalaria do BCAV 490. E deu pormenores, desta maneira:  
“Aqui vai a foto da Cruz de Guerra de 3.ª Classe com que o (então) Fur. Mil. Cav. António Augusto Pimenta Henriques Simões da CCav 488 do BCav 490 foi agraciado (entregue nas cerimónias do 10 de Junho em Tomar) pelos feitos em combate, designadamente em S. Nicolau na Ilha do Como - Guiné na Operação Tridente.
Irei fotografar o louvor do CMDT de Batalhão TCor Cav Fernando Cavaleiro que deu origem à condecoração e tempestivamente enviar-lho-ei.”


Mais tarde chegou o seguinte mail:

“Aqui vai a foto de um quadro com os louvores do meu irmão António Augusto Pimenta Henriques Simoes da CCava 488 BCav 490.”



E por fim o seguinte mail:
“Como prometi aqui remeto quatro fotos do meu irmão António Augusto Pimenta Henriques Simões (Fur. Mil. Cav. da CCav 488/BCav 490) em operações na Guiné 1963.1965.”





Um agradecimento profundo a João Manuel Pimenta Henriques Simões pelas cativantes lembranças que nos ofereceu sobre o seu irmão.
E voltamos a Dutra Faria e ao conjunto de textos intitulados “Na Guiné Portuguesa junto da Cortina-de-Ferro” que foram dados à estampa no jornal “Diário da Manhã”, inequivocamente ligado à ideologia do Estado Novo. O diretor da ANI – Agência de Notícias de Informação aproveita a oportunidade para referir movimentos rivais do PAIGC e não lhe escapou o despotismo de Sékou Touré e entrevista inclusivamente um fugitivo ao regime que se abrigou na colónia portuguesa. Deplora que uma boa parte dos portugueses não perceba que Portugal está em guerra contra o seu inimigo de estimação, o comunismo. Há a guerra, ele está absolutamente convicto que o terrorismo será em pouco tempo pulverizado, a rejeição dos verdadeiros guineenses é inequívoca. A sua reportagem culmina com uma visita a Bor, um asilo que tem funcionamento primoroso:
“Em Bor, os rapazes permanecem até aos sete ou oito anos, idade em que transitam, com largo pranto dos garotos e muitas lágrimas, também, nos olhos das Irmãs para outro asilo; as raparigas, porém, ficam até se casarem – ou até aos vinte e um anos, se acaso não se casam antes dessa idade. Aqui aprendem a ler e a escrever, a cozinhar e a costurar, a ter uma casa bem arrumada e a cuidar dos filhos que lhes hão de nascer um dia. Nas horas vagas, bordam, e das suas mãos saem então maravilhas só comparáveis aos bordados da Madeira e dos Açores.”

E a reportagem termina com um certo desconcerto:
“Ao sair pergunto à Irmã Rosa se os terroristas alguma vez as ameaçaram ou importunaram.
A resposta é encantadora:
- Porque haviam de fazê-lo? Nós educamos-lhes aqui as filhas…
Só Deus sabe, efectivamente, quantos dos indígenas que vemos pelos campos, debruçados para a terra a cavar, não trocam, à noite, a enxada pela pistola-metralhadora – ou, ao menos, não têm na palhota, bem escondido, o distintivo do PAIGC. Mas, se os pais ainda podem ser suspeitos, os maridos das raparigas que saem de Bor já são todos – e em grande parte graças à benéfica influência que sobre eles exercem as mulheres – portugueses dos melhores. E assim também combatem o terrorismo – à sua maneira – as seis boas freirinhas da Missão-Asilo de Bor”.

Findo este texto apologético de Dutra Faria, procura-se um contraditório, a viagem que Gérard Chaliand fez à Guiné entre maio e junho de 1966, é um dos primeiros brancos que acompanha Amílcar Cabral, atravessam a fronteira senegalesa, embrenham-se pelo mato, de piroga chegam a terra firme que os conduz ao Oio. Gérard Chaliand não esqueceu esta viagem e mais tarde no seu primeiro livro de memórias “La Pointe du Couteau”, Robert Laffont, 2011, revelará o entusiasmo que tal incursão lhe provocou, ficou marcado pela personalidade do líder do PAIGC. O seu livro “Lutte armée en Afrique” foi editado na Livraria François Maspero em 1967.
Investigador de reputação mundial em movimentos revolucionários, Chaliand começa por dizer que a luta armada mais consequente do continente africano era a que se desenrolava na Guiné, e menciona um comunicado do PAIGC, emitido em Conacri em 9 de maio de 1966, acerca da viagem em que Chaliand acompanhou Cabral. Tratou-se de uma itinerância pelo Norte, Cabral e a sua comitiva visitaram escolas, dispensários, bases de guerrilha e unidades das forças revolucionárias. O líder do PAIGC era acompanhado por Osvaldo Vieira e Francisco Mendes bem como por um responsável do MPLA e pelo jornalista e escritor francês Gérard Chaliand. Uma visita em que se percorreu Djagali, Maké e toda a base do Morés. Segue-se a narrativa da incursão.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 17 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20567: Notas de leitura (1256): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (41) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 20 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20577: Notas de leitura (1257): Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: Liberdade ou Evasão, por António Lobato (3) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20567: Notas de leitura (1256): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (41) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Depois da tempestade veio a bonança para o BCAV 490, atividades em Bissau, o bardo descreve-as álacre, até se faziam ações policiais com a detestada PM, imagine-se. Com o caminhar para o fim desta épica, não se pode descurar o que de um lado e de outro se dizia sobre aquela luta armada que tinha largos antecedentes para os acontecimentos de 1963. Por isso entrou em cena Basil Davidson, reputado jornalista britânico que durante a II Guerra calcorreara a Jugoslávia em guerrilha e que não esconde a profunda admiração pelo pensamento e ação do líder do PAIGC.
Vários repórteres portugueses foram à Guiné em tempo de guerra, recorde-se Amândio César, Horácio Caio e mais tarde José Manuel Pintassilgo. Mas não se pode esquecer que o primeiro de todos se chamou Dutra Faria, ele irá publicar no início de 1964 um conjunto de textos que serão publicados no inequívoco jornal do regime, o "Diário da Manhã". E, como o leitor constatará, dirá coisas do arco da velha, sem tirar nem pôr, a reportagem será intitulada "Na Guiné Portuguesa, junto da Cortina-de-Ferro". Dutra Faria ainda nos irá fazer companhia, a par de outro importante admirador de Cabral, Gérard Chaliand.

Um abraço do
Mário


Missão cumprida… e a que vamos cumprindo (41)

Beja Santos

“Como irmãos todos se dão,
na Polícia Militar
os doentes do Batalhão
estão sempre a alinhar.

Os cozinheiros a dividir o comer
não fazem de nós excepção.
O nosso capitão
nisso tem muito prazer.
Pelo Natal e Ano Novo nos quis ver
juntos no mesmo serão.
Houve uma reunião
onde o Entretela tudo orienta,
pois a PM e o quatro noventa
como irmãos todos se dão.

Na rua somos encontrados
mas não nos podem ralhar,
porque gostamos sempre de andar
com os botões apertados.
Andamos sempre asseados
vendo as raparigas passear
elas só querem namorar
oficiais e não soldados.
Mas há algumas praças desenrascados
na Polícia Militar.

O Borba e o 1.º Fortunato
em Bissau vão continuando
e para o Dakota vão mandando
para quem está capaz de mato.
O Primeiro torna-se chato
mas é essa a sua missão.
Faz muita opinião
em os cabelos mandar cortar
e está sempre a engatar
os doentes do Batalhão.

Albino e Joaquim, condutores,
Mário e Andrade, barbeiros,
Paulo e Vidinhas, enfermeiros,
são muito trabalhadores.
Nos quartos dos superiores
temos o Gomes a labutar.
O Mendes farta-se de trabalhar
e Artur guiando todos os dias
e os inutilizados das companhias
estão sempre a alinhar.”


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A Comissão do BCAV 490 aproxima-se do seu termo, o bardo aqui fala de rotinas e ocorre-nos trazer para a liça documentação a servir a causa do PAIGC e mais outra, bem nacionalista, uma reportagem publicada no Diário da Manhã, alguém que aterrou em Bissalanca em janeiro de 1964, o Governador era Vasco Rodrigues e o Comandante-Chefe Louro de Sousa.

Basil Davidson conheceu Amílcar Cabral e apoiou-o em Londres quando o líder do PAIGC visitou a capital do Reino Unido pela primeira vez. Sentir-se-á companheiro da causa de Amílcar Cabral, não esconde a admiração que por ele tem, visita a guerrilha e publicará em 1969 “A Libertação da Guiné, aspectos de uma revolução africana”, a edição portuguesa aparecerá em 1975. Como é evidente, narra a luta armada de forma encomiástica, é uma escrita com bastantes testemunhos e elogios rasgados. E traz elementos que podem abrir luz para o contexto histórico que precede e acompanha a vivência do bardo. Davidson ouve António Bana, um combatente com responsabilidades, e dá-nos o seu testemunho por escrito: “Éramos então sete, em 1961, Chico Mendes, Osvaldo Vieira, Nino, Domingos Ramos, Constantino Teixeira. Tínhamos acabado de regressar de um ano de instrução militar na Academia Militar de Nanquim, onde fomos muito bem treinados. Cabral fez-nos um curso intenso de política, depois explicou as tarefas que cabem a cada um de nós e como nos havíamos de desempenhar”. Um outro guerrilheiro, de nome Armando Ramos diz ao jornalista britânico: “Chamamos zona libertada a uma área em que temos controlo quotidiano, em que apenas excepcionalmente temos de usar o nosso exército para neutralizar uma possível surtida portuguesa a partir de uma dessas guarnições e em que a população está mobilizada para o nosso lado tanto no sentido político como no sentido militar da palavra”. É neste quadro de considerações que Davidson definirá o PAIGC como um movimento revolucionário que se baseia numa análise marxista da realidade social: “O ponto importante é que o PAIGC é um movimento baseado na análise da realidade social na Guiné”.

Basil Davidson
Acrescente-se que toda esta laude não invoca minimamente o contraditório. Se é verdade que foi capturado em 22 de maio de 1963 o então Sargento António Lobato, é descarada mentira dizer que os guerrilheiros deitaram dois aviões abaixo, o que acontecera foi que tinham tocado nas asas, um despenhou-se e o piloto morreu, o Sargento Lobato conseguiu manobrar e aterrar numa bolanha onde foi capturado. Alguém diz ao jornalista que as tropas portuguesas tinham sido desbaratadas no porto de Cachil pelas forças nacionalistas sob o comando de Agostinho de Sá, em 1 de junho de 1963, na ilha do Como, as forças portuguesas tinham sido forçadas a retirar-se e a refugiar-se em Bolama, uma outra mentira descarada. Falando mais adiante da batalha do Como, que durou mais de 70 dias, em 1964, o jornalista, sem titubear, informa que as forças portuguesas tinham sofrido pesadas baixas, fora a pior derrota de sempre em toda a história do colonialismo português. Alguém diz e ele escreve, sem qualquer hesitação: “Calculamos as baixas do inimigo em 650 homens”.

O jornalista Dutra Faria, diretor da ANI – Agência de Notícias de Informação vai à Guiné e publica no Diário da Manhã entre janeiro e fevereiro de 1964 um conjunto de crónicas intituladas “Na Guiné Portuguesa, junto da ‘Cortina de Ferro’”. Descreve o território, a sua complexidade, os heróis portugueses que por ali passaram, dirá que Amílcar Cabral, em Bissau, quando estudante, era um rapazinho que ia à missa todos os Domingos. Cabral deixou-se empolgar pelo marxismo no Instituto Superior de Agronomia onde conheceu a jovem com quem viria a casar-se. E escreve: “Pela fotografia que alguém nos mostra, é uma linda rapariga de olhos claros e cabelos talvez aloirados. Branquíssima. Ambos, concluído o curso, viveram e trabalharam em Bissau, onde, afirma-nos alguém – um chefe de Serviço, pelas suas gafes monumentais e por um estúpido racismo de última hora, completou no jovem agrónomo de cor a obra iniciada em Lisboa, no Instituto, pelos seus colegas comunistas e continuada, depois, pela esposa – revolucionária exaltada”. Dutra sabia pouco da história do PAIGC, mas adianta que tinha andado em digressão com outros revolucionários numa longa viagem entre a Cortina de Ferro e a Cortina de Bambu, alguns dos seus companheiros tinham frequentado escolas de agitação política e sabotagem, os quadros da guerrilha guineense estavam longe da improvisação dos ministros e generais de Holden Roberto, “criaturas que eram, ontem ainda, alfaiates e barbeiros; quando é Moscovo que organiza o terrorismo, tudo se faz a tempo e horas, sem pressas, sem precipitações, meticulosamente”.

Assombra tal elogio mas logo a seguir percebe-se porquê, Dutra está a picar nos EUA, a política norte-americana confiara declaradamente em Holden Roberto: “O lamentável é que sejamos nós a pagar as custas da aprendizagem. Nós, portugueses, que na batalha dos dois imperialismos pela posse de África nos encontramos entre dois fogos”. Dirá noutro texto que o PAIGC estava a ter relativo sucesso junto dos Balantas, pudera, era uma etnia onde o roubo se assumia como instituição…

O que se passava na atividade do PAIGC era infiltração, “os terroristas de Amílcar Cabral nunca conseguiram desalojar os nossos soldados de qualquer ponto por estes ocupado”. Dutra escreve muito com base no diz-se e consta, como adianta: “Ao que parece, cada grupo de terroristas – e, segundo me afirmam, não haverá, em toda a Guiné, mais do que uns oito – é constituído por um número de homens variável entre os trezentos e os quinhentos”. E ainda neste clima do diz-se e do consta, adianta que os guerrilheiros faziam patrulhas de dois e três homens, que tinham oficiais e comandantes, que o camarada oficial estava encarregado das operações de guerra, que havia um encarregado da distribuição das munições e conservação das armas. Eram mulheres afetas que vinham fazer compras às povoações e que tinham por missão espiar os movimentos das Forças Armadas Portuguesas e conclui drasticamente: “Não será de admirar que em Bissau e noutros centros algumas delas expressamente se prostituam… por amor ao partido”. Logo a seguir, informa que há duas grandes florestas na Guiné, a do Cantanhez, entre os rios Cacine e Cumbijã, e na parte central a Mata do Oio. Amílcar Cabral, proclama o jornalista, alimentava-se do exagero, a Rádio Conacri emitia os seus comunicados, no final do ano de 1963 afirmava que a guerrilha tinha abatido quinze aviões militares portugueses, Cabral chegara mesmo a proclamar que antes do fim de 1963 os nacionalistas entrariam em Bissau.


Mas havia mais vida para além do PAIGC, como ele escreve na edição do “Diário da Manhã” de 31 de janeiro de 1964. Em meados do ano anterior reunira-se em Dar-es-Salam a chamada “Comissão Coordenadora dos Movimentos de Libertação da África” que decidira enviar a Conacri e a Dacar uma missão para verificar qual era o mais representativo dos vários partidos que proclamavam os seus propósitos de emancipar a Guiné e o Arquipélago de Cabo Verde. Tudo correra a favor do PAIGC, o representante da FLING enterrara-se e desacreditara-se, ao chegar a Dacar já estava demitido. Fala-se em François Mendy e Henri Labéry, Dutra não chega a nenhuma conclusão sobre a importância dos movimentos de que eles fazem parte. Num outro texto vem dizer que há muita gente em fuga da Guiné Conacri, a ditadura de Sékou Touré é verdadeiramente insuportável. E no texto seguinte vai surpreender o leitor (atenda-se que o “Diário da Manhã” era o jornal dos indefetíveis do Estado Novo): “Portugal está em guerra: em Lisboa ainda talvez seja possível a alguns esquecer essa realidade que nos foi imposta – a que não podíamos fugir sem devolver à anarquia esta África que descobrimos um dia e que pacificámos ao longo dos séculos”.

(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 10 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20545: Notas de leitura (1254): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (40) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 13 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20555: Notas de leitura (1255): Um relato que se vai aprimorando de edição para edição: Liberdade ou Evasão, por António Lobato (2) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 26 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19622: Notas de leitura (1163): O que "ultra" Dutra Faria (citado pela doutoranda e nossa grã-tabanqueira Sílvia Torres) pensava de Amílcar Cabral: um menino de coro (que "ia à missa, todos os domingos, em Bissau"), transviado em Lisboa pelo marxismo e por uma mulher, 'branquíssima'...






Guiné > Bissau > Jornal diário "O Arauto", quarta-feira,  27 de jlho de 1967, Ano XXV, nº  6242 > Cabeçalho do jornal "O Arauto", "diário da Guiné Portuguesa", diretor e editor: José Maria da Cruz.

Notícia: "A Companhia de Cavalaria de Catió termina a sua missão de soberania nesta Província"... A notícia  não refere o número da unidade (o que estava conforme as normas de segurança militar, mas sabemos que era a CAV 1484, a que pertencia o nosso querido amigo, camarada e grã-tabanqueiro Benito Neves). Diz apenas que era comandada pelo sr. Capitão Rui Manuel Soares Pessoa de Amorim, que esteve mais de um ano em Catió e que cumpriu "com exemplar dignidade, heroísmo e espírito de sacrifício a sua sagrada missão, arrecadando resultados francamente positivos no campo militar"...
 
À despedida, houve jantar (melhorado ?), no refeitório do Batalhão local, que serviu para confraternização entre todos os militares do Quartel de Catió, e as autoridades civis e militares. "Aos brindes, falaram o comandante do Batalhão de Catió, o Administrador do Concelho, [o ou um ?] agente da Pide e ainda um representante da Milícia, que puseram em destaque as qualidades reveladas pela Companhia e a simpatia que goza em todos os sectores de actividade do concelho" 

Anúncio das famosas ostras do "Miramar": (i) eram da rocha; (ii) abertas à pressão; e (iii) uma travessa gigante custava 20 pesos e dava para almoçar a meia dúzia de "desenfiados do mato",,, Nãoi se diz, mas eram regados com "lima" e acompanhavam com cerveja ou vinho branco... A "champanha" era muito cara!... (Dois anos depois, continuavama  a custar os mesmos 20 escudos da Guiné ("pesos"), o que equivaleria hoje a 6,3 € - preço de 1967 - ou 5,5 € - preço de 1969 -, considerando que 100 "pesos" equivaliam a 90 escudos da metrópole. Com 20 pesos comia-se um bife com batatas fritas e ovo a cavlo e um cerveja... em Bafatá, no Restaurante "Transmontana", no 2º trimestre de 1969...


Fotos (e legendas): © Benito Neves (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




TORRES, Sílvia - A Guerra Colonial na imprensa portuguesa da Guiné. A cobertura jornalística do conflito feita pelos jornais O Arauto, Notícias da Guiné e Voz da Guiné, entre 1961  e 1974  / The Colonial War in the Portuguese press of Guinea. The media coverage of the conflict made by the newspapers O Arauto, Notícias da Guiné and Voz da Guiné, between 1961 and 1974.

PRISMA.COM (33) 2017, p. 33-46 DOI 10.21747/16463153/33a2 33


A nossa amiga Sílvia Torres (que tem sete referências no nosso blogue e é membro nº 736 da  Tabanca Grande) (*)  escreveu este artigo, no âmbito do Doutoramento, em curso,  em Ciências da Comunicação, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa. 

 Este artigo centrou-se na análise da na imprensa portuguesa da Guiné publicada durante a Guerra Colonial.   A autora quis perceber que tipo de cobertura jornalística fazia esta imprensa colonial sobre o conflito:

"A presente investigação (,,,) visa também recuperar a história do jornalismo então português praticado em tempo de censura (e autocensura), durante a Guerra Colonial e numa das províncias ultramarinas envolvidas no conflito", tendo a autoria concluído que "a imprensa portuguesa da Guiné também serviu as Forças Armadas e que o Governo, da metrópole e da Guiné Portuguesa, se serviu desta imprensa."

No período em análise, entre 1961 e 1974, existiram apenas três jornais na Guiné Portuguesa, em períodos distintos: (i) "Arauto" (até 1968), (ii) "Notícias da Guiné" (1968-1970); e (iii) "Voz da Guiné"  (1972-1974). São estes três periódicos que foram objeto do estudo.

Já aqui falámos do "Arauto" (**), cujos primórdios remontam a 1942, ano em que surgiu sob a forma de boletim, policopiado, da responsabilidade das missões católicas.  Em 1943,  passa a mensário, e é impresso na tipografia da Imprensa Nacional, em Bolama. O diretor é o padre Afonso Simões, e a redação e a administração são na Residência Missionária de Bolama.

Em 1945, passa a ser impresso na Tipografia das Missões e, no início da década de 50, torna-se um jornal  diário (só não saindo à  segunda-feira), com novo diretor:  o padre, também franciscano,  José Maria da Cruz Amaral. Em 1958, o "Arauto"  passa a designar-se "O Arauto". Em 1961, era vendido, em Bissau,  por 1$00.

"Por esta altura, já continha também notícias internacionais, provenientes de agências noticiosas nacionais e estrangeiras" e, "apesar de a publicação não incluir ficha técnica", sabe-se que a equipa era reduzida: só tinha redatores para a "página desportiva"... O resto é feito só por um homem, o padre Cruz Amaral.

 "O retrato é feito por Dutra Faria, então diretor executivo e enviado especial da ANI (Agência
Noticiosa de Informação), a 7 de fevereiro de 1964, n’O Arauto, num texto sobre a Guerra
 Colonial. Dutra Faria revelava que Portugal estava em guerra, “uma guerra revolucionária – e
que abrange, por isso todas as frentes”, sendo uma delas a informação." (Torres, pp. 35/36).

 A falta de recursos humanos, já referenciada por Dutra Faria, bem como os problemas financeiros e técnicos que se agravam, levam ao  encerramento, em 1968, o único jornal diário da província. 

Sobre Dutra Faria [Angra do Heroísmo, 1910 - Lisboa, 1978], Sílvia Torres faz-nos revelações interessantes;

(...) "Dutra Faria, então diretor da agência ANI, foi à Guiné como enviado especial. Desta viagem, fez vários artigos com o mesmo antetítulo – “Na Guiné Portuguesa, junto da Cortina de Ferro”. O segundo texto, intitulado “Entre dois fogos”, foi proibido de ser publicado na edição de 30 de janeiro de 1964. Neste artigo, Dutra Faria diz que o inimigo das Forças Armadas Portuguesas, na Guiné, não se pode “desprezar” porque foi “bem” treinado para a luta de guerrilhas em escolas de Praga e de Moscovo. Faz ainda referência à qualidade e à abundância do armamento que o inimigo possui e à sua inteligência." (p. 40)

Mais interessante, é o que Dutra Faria  escreve sobre o líder do PAIGC, Vamos citar  mais um  excerto do artigo de Sílvia Torres (p. 431):

(...) Amílcar Cabral, “um rapazinho que ia à Missa todos os domingos”, em Bissau, tal como Mário de Andrade o fazia, em Luanda. Os dois, em Lisboa, foram estudantes universitários que “se deixaram empolgar pelo marxismo”: “(…) há responsabilidades a que não podemos fugir e esta é uma delas – não soubemos defender de influências nefastas estes dois rapazes e muitos outros estudantes ultramarinos”.

"Segundo Dutra Faria, também Maria Helena de Ataíde – “uma linda rapariga de olhos claros e cabelos talvez aloirados. Branquíssima” – então esposa de Amílcar Cabral, estudou em Lisboa. Foi na capital da metrópole que se conheceram e que ela exerceu sobre ele “decisiva influência”. O casal chegou a trabalhar em Bissau, “onde (…) um Chefe de Serviços, pelas suas ‘gafes’   monumentais e por um estúpido racismo de última hora, completou no jovem agrónomo de
coroa obra iniciada em Lisboa, no Instituto [Superior de Agronomia], pelos seus colegas comunistas e continuada, depois, pela esposa – revolucionária exaltada: Amílcar Cabral passou-se assim, definitivamente, para o campo dos inimigos de Portugal”.

Por é que este texto, escrito por um dos homens da "ala dura" do regime, foi censurado ?

Sílvia Torres explica (pp. 41/42):

(...) "A 12 de fevereiro de 1964, o Governador da Guiné Portuguesa, capitão-de-fragata Vasco António Martins Rodrigues, envia uma carta para o ministro do Ultramar, onde comunica que aprovou a proibição do texto de Dutra Faria por destacar os “sucessivos êxitos que o inimigo vem conseguindo”; por comparar o inimigo da Guiné, de “superior qualidade”, com o inimigo de Angola; por atribuir responsabilidades a Portugal pelo caminho seguido por Amílcar Cabral; e por desprestigiar o serviço público, ao criticar um seu funcionário." (...)

De qualquer modo, Dutra Faria terá sido injusto em relação a Amílcar Cabral e a Maria Helena de Ataíde Rodrigues, a transmontana de Chaves que foi a primeira mulher do líder do PAIGC e uma das primeiras mulheres a formar-se em engenharia agronómica, e que não era loura, e muito menos estúpida... A história de amor destes dois seres humanos é lindíssima, como todas as grandes histórias de amor... Dutra Faria nunca leu as cartas de amor que eles escreveram um ao outro... E as suas insinuações estão eivadas de racismo e machismo...

Maria Helena [de Ataíde] Vilhena Rodrigues, engenheira agrónoma, transmontana de Chaves, casou em 1951 com Amílcar Cabral, de quem teve duas filhas, Iva e Ana. Iva Maria nasceu em 1953, é hoje historiadora e vive na Praia, Cabo Verde. Conhecia-a pessoalmente em Bissau, em 2008, por ocasião do Simpósio Internacional de Guiledje. Quanto à  Ana Luísa,  nasceu em 1962 e, segundo li, licenciou-se em medicina e vive discretamente em Braga. 

Maria Helena e Amílcar separaram-se definitivamente em meados da década de 60. Cabral irá casar, em segundas núpcias, com Ana Maria Foss Sá, mais conhecida como Ana Maria Cabral, em maio de 1966. É assassinado em 20 de janeiro de 1973, na presença da segunda mulher. É muitas vezes confundida, por alguns camaradas nossos, como a "Maria Turra", a locutora da rádio "Libertação", do PAIGC.

Enfim, ainda em relação a "O Arauto", sabe.se que a publicação, em julho de 1965, de "notas biográficas"   de alguns destacados líderes africanos da época não foi bem vista pelo novo ministro do ultramar, Joaquim Moreira da Silva Cunha [1920-2014]. (, esteve no cargo entre 19 de março de 1965 e 7 de novembro de 1973),  por serem apontados "como "símbolo da auto-determinação e da revolta dos povos de cor contra os países colonizadores"... Na sequência desse desagrado, solicita-se ao governador que: (i) transmita à comissão de censura as necessárias instruções par "põr cobro à publicação das biografias"; e (ii) passe a  estar atento à “orientação seguida pelo jornal”, uma vez que que não estava a  corresponder “aos interesses nacionais” (cit por Torres, p. 42).

Recorde-se que o governador-geral (e comandante-chefe) era então o gen Arnaldo Schulz. Mas estes "mal-entendidos" não são matéria que possa ser tomada como suficiente para que o padre franciscano José Maria da Cruz [Amaral] (1910-1993) venha, mais tarde, alegar que foi vítima de perseguição política  por parte do antecessor de Spínola.

Dois anos depois deste "incidente",  no aniversário de "O Arauto", em 5 de julho de 1967,  José Maria da Cruz  viria a agradecia ao governador [, o gen Arnaldo Schulz,] a concessão de um subsídio de 50 mil escudos [, em dinheiro da metrópole era o equivalente hoje a c. 17.600 €, bastante dinheiro, dava para comprar uma viatura automóvel tipo FIAT 127 ou gama superior...]. Em 1966 o défice do jornal era já de 486 mil escudos [, mais de 178,6 mil euros, hoje, um a pipa de massa] e o diretor já  se questionava  sobre a sua viabilibilidade económica.

Luís Graça (***)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17052: Tabanca Grande (426): Sílvia Torres, filha de ex-combatente, doutoranda em ciências da comunicação pela NOVA, autora do livro "O jornalismo português e a guerra colonial", nossa grã-tabanqueira nº 736

(**) Vd. poste de 13 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19581: Notas de leitura (1158): o caso do jornal diário "O Arauto", extinto em 1968, num artigo da doutora Isadora Ataíde Fonseca, sobre a imprensa na época colonial (Luís Graça)

(***) Último poste da série >  25 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19621: Notas de leitura (1162): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (Mário Beja Santos)