Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 25 de março de 2019
Guiné 61/74 - P19621: Notas de leitura (1162): “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017 (1) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março de 2019:
Queridos amigos,
É um tomo de mais de 500 páginas, primeiro diarístico e depois mensal, 1964, Binta completamente controlada por adeptos do PAIGC, o seu potencial fogo ainda é precário, como precária é a sua capacidade de aterrorizar, Alípio Tomé Pinto tem uma Companhia bem preparada, as primeiras semanas correm a um ritmo enlouquecedor, não tivesse o essencial desta trama aparecido em obras anteriores e julgávamos tratar-se de um romance de aventuras.
Lê-se e medita-se: como a guerrilha cresceu de 1963 para 1964, tudo parte e irradia do Morés, bem se procurou desalojar a força militar do PAIGC e a sua população, o insucesso por completo.
Belmiro Tavares é de uma enorme coragem, diz desabridamente que as Unidades à volta mal saíam dos quartéis, permitiam uma quase total liberdade às forças do PAIGC.
O homem inspirador de tudo, que nesta obra é sempre incensado chama-se Alípio Tomé Pinto, permanentemente adorado por quem combateu às suas ordens naquele rincão da Guiné.
Um abraço do
Mário
Binta, Guiné, A Companhia do Capitão do Quadrado, novas memórias (1)
Beja Santos
O livro intitula-se “A nossa guerra, dois anos de muita luta, Guiné 1964/66 – CCaç 675”, por Belmiro Tavares e José Eduardo Reis de Oliveira, edição de autores, 2017. A capa é surpreendente, como se escreve: “Uma bonita abatis na estrada de Farim. Esta não cumprira a sua missão: impedir a passagem; as viaturas passavam por baixo!”. No blogue, já tive oportunidade de me debruçar sobre três livros referentes ao historial da CCaç 675: primeiro, o galvanizante “Diário de JERO”, um relato feito pelo enfermeiro da Companhia de tudo quanto se vai passando, e tudo quanto se vai passando gravita à volta de um oficial bem-amado, Alípio Tomé Pinto, que irá ficar conhecido pelo nome de “Capitão do Quadrado”, um documento publicado à sorrelfa em 1965, podia ter custado a carreira deste oficial que chegou a general; seguiu-se outra obra “Golpes de Mão’s”, se apresentava como o segundo volume do diário, leitura estimulante, mas não chegava ao sopro anímico do primeiro; terceiro, a biografia do General Tomé Pinto, da responsabilidade da jornalista e investigadora Sarah Adamoupoulos. O impulsionador deste quarto documento é um homem sentimental que ainda hoje nos impressiona tanto pela memória dos acontecimentos vividos, como pela sua arte de contar, não é a primeira vez que o oiço de voz embargada e lágrimas a bailar nos olhos, Binta e arredores não lhe saem do coração.
Entendeu Belmiro Tavares, de colaboração com JERO, regressar ao tempo dos acontecimentos, começa quase como a forma de um diário, de uma agenda volumosa, pretende contar tudo o que aconteceu, relembrar factos desagradáveis, e aí mostra-se inabalável na descrição até de atos irresponsáveis, fraquezas várias, comportamentos impensados.
Seguindo uma cronologia convencional, temos a chamada para Mafra, a recruta e a especialidade em Mafra, tudo em 1963. No início de 1964, Belmiro Tavares está no RI 16, em Évora, onde em abril se forma a CCaç 675, inicialmente o seu futuro parecia talhado para Moçambique, dá-se a mudança de rumo para a Guiné. Convém não esquecer que por essa época se estavam a precipitar acontecimentos na colónia, tudo se agravava, Arnaldo Schulz pedia mais efetivos, alguns foram-lhe concedidos, inclusive meios aéreos. O Uíge leva-os até Bissau, a narrativa recorda uma vez mais que os oficiais e os sargentos iam bem instalados e as praças viajavam em condições imundas, nas entranhas do barco, escuras e fedorentas, numa atmosfera pestilencial. Estamos em maio, chega-se à Guiné, os oficiais ficaram alojados num avelhantado prédio sem água corrente, os soldados de novo alojados em péssimas condições, camas era coisa que não havia.
Da primeira à última página deste relato que excede as 500 páginas, a figura central, carismática, tratada com todos os encómios, é o capitão do quadrado, o autor recorda que nenhum dos homens da CCaç 675 veio a sofrer do síndroma pós-traumático de guerra, a sua unidade militar era a gloriosa, era e continua a ser. Em junho, rumam para Binta, nesse tempo a guerrilha toma praticamente conta de toda a região, cultiva placidamente, do Senegal, através de Dungal avança-se para Sambuiá e daqui para o Oio, será esta a rota preparada por Osvaldo Vieira para receber Amílcar Cabral e Gérard Chaliand quando ambos visitam a região, em 1964, o livro de um dos mais eminentes historiadores dos conflitos revolucionários do século XX será publicado no ano seguinte, na Maspero. Tomé Pinto pretende atrair populações a Binta e limpar o seu setor até Guidage. E o leitor imediatamente começa a ouvir falar em Sanjalo, Lenquetó, Caurbá, e outros pontos de constante visita.
O diário da guerra abre com uma descrição de Binta e no dia 3 de julho abrem-se as hostilidades, visita-se a Tabanca de S. João, a 4 quilómetros e depois Genicó Mandinga. População em fuga, há tiros, a tropa apercebe-se que toda aquela gente vive o drama de ter que tomar um partido, crueldade não falta, mesmo que se fuja para o Senegal há sempre ameaças, é preciso estar do lado da guerrilha, há aldeias queimadas, picadas intransitáveis. No dia seguinte, é o batismo de fogo, em Lenquentó, descobre-se que a picada para Guidage está polvilhada de abatises.
No adianto do relato, Belmiro Tavares explica-nos o funcionamento do quadrado:
“Saindo a pé do quartel, normalmente em noite escura, seguíamos em fila indiana; ao amanhecer, se aconselhável, passávamos a duas filas: os dois pelotões deslocavam-se lado a lado. Quando nos aproximávamos de um local potencialmente mais perigoso, ou havendo contacto com o inimigo, em escassos segundos, formávamos o nosso quadrado. Esta formação de combate era, para nós, muito querida, porque nos permitia grande poder de fogo em todas as direcções. Caminhar em fila, no meio do mato, entre árvores ou arbustos, no meio do capim, muitas vezes mais alto do que nós, não era tarefa fácil e o homem da frente tinha de ser substituído com alguma frequência. Caminhar pelas matas em quadrado, é uma tarefa muito mais desgastante porque a linha da frente tem de abrir 16 trilhos… Apenas tantos quantos os homens das duas secções que as constituem. Se seguíssemos em duas filas paralelas e se se tornasse obrigatório formar o quadrado fazíamo-lo em dois tempos: as duas secções da frente, uma de cada pelotão, formavam uma linha de 16 homens; as duas secções seguintes afastavam-se lateralmente uma da outra, colocando-se no enfiamento de dois extremos da linha da frente; as duas últimas secções formava, em simultâneo, a linha da retaguarda daquela hábil e eficiente formação de combate.
Progredir em quadrado no meio do matagal era difícil e extenuante; fazê-lo em corrida e debaixo de fogo, era dose para leão. Rodar o quadrado em velocidade, sem desalinhar (como se no cruzamento das diagonais houvesse um eixo vertical) para que enfrentássemos adversários sempre com uma frente de 16 atiradores, era tarefa hercúlea. A verdade é que fazíamos aquilo em absoluta sincronia. Se uma das laterais era atacada em força, a frente e a retaguarda alinhavam com esse lado e logo atacávamos com uma linha de 40 combatentes. Se fossemos atacados pela retaguarda, o quadrado não rodava; todos fazíamos meia volta e, em quadrado, logo atacávamos, afugentando os guerrilheiros. Estas mudanças bruscas eram uma grande surpresa para eles. Por vezes, o nosso sábio capitão e os subalternos entendiam que ainda não era hora de mudar a formação e já um outro soldado alertava os oficiais para se proceder à alteração. Era difícil e cansativo mas era preferível andar em quadrado e ter segurança do que procurar facilidade que só nos traziam perigo. As secções de cada pelotão rodavam as posições sempre que saíamos para o mato, para que não fossem sempre os mesmos a enfrentar o maior sacrifício, encabeçando o quadrado. Cada secção sabia, em cada dia, qual era o seu lugar na coluna. Se saíamos nas viaturas a ordem era a mesma”.
E vamos entrar agora num rodopio operacional tão persistente, tão atuante, que o PAIGC, à cautela, abandona todas as posições que detinha na região de Binta.
(continua)
Belmiro Tavares, o primeiro à direita, segue-se o JERO, o comandante do navio e Virgínio Briote, um contemporâneo da CCaç 675, fotografia já existente no nosso blogue (, publicada aquando da entrada do Belmiro Tavares, em 1/11/2009, para a Tabanca Grande), A foto é do JERO.
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Nota do editor
Último poste da série de22 de março de 2019 > Guiné 61/74 - P19610: Notas de leitura (1161): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (78) (Mário Beja Santos)
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1 comentário:
Parabéns, Belmiro, parabéns, Jero... Mas 2017 foi há dois anos... Vocês não disseram nada ?... Grandes malandros... LG
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