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quarta-feira, 22 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24161: Dossiê Pidjiguiti, 3 de agosto de 1959 - Parte I: Eu estive lá (Mário Dias)

Guiné > Bissau > 1959 > Os 1ºs cabos milicianos Mário Dias (o primeiro, de pé, do lado direito) e Domingos Ramos (o primeiro da frente, do lado esquerdo): estiveram juntos na tropa, entre 1959 e 1960, até ao dia (novembro de 1960) em que o Domingos Ramos desertou, passando-se para o lado dos nacionalistas e independentistas do Amílcar Cabral (*)

Foto (e legenda): © Mário Dias (2006. Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 

1. Passados tantos anos, continua a haver curiosidade, da parte dos nossos leitores, sobre o que se passou em Bissau, no cais do Pijiguiti (lê-se: Pidjiguiti), ou  Pindjiguiti (como escrevem, mais recentemente, os guineenses), ainda uns anos antes da guerra em que estivemos envolvidos.  No nosso blogue, publicámos logo no início duas versões, de Luís Cabral (na altura "guarda-livros" da Casa Gouveia) e do nosso camarada Mário Dias, um dos históricos do nosso blogue (**), e que frequentou, em 1959,  o 1.º CSM que se realizou na Guiné e de que fizeram parte alguns futuros quadros do PAIGC, como Domingos Ramos, o Constantino Teixeira ou o Rui Djassi.

Escrevemos na altura (***):

(...) O "massacre do Pidjiguiti"(sic) é um dos mitos fundadores do PAIGC. Aliás, marca o início da "luta de libertação nacional", na narrativa do PAIGC (que então se chamava apenas PAI).

Este depoimento do Mário Dias é uma peça importante para se fazer a história recente da Guiné-Bissau: reivindicações laborais dos  marinheiros do serviço da cabotagem das casas comerciais de Bissau (e, em particular, da Casa Gouveia, ligada ao grupo CUF – Companhia União Fabril) estiveram na origem de graves tumultos que foram prontamente reprimidos pelas autoridades portuguesas.

O depoimento do Mário Dias terá que ser tido em conta pelos nossos historiadores (tanto de um lado como do outro). E sobretudo por nós, portugueses e guineenses, que temos direito à verdade. Eu só conhecia (e mal) a versão do PAIGC, que fala em massacre, em 50 mortos e mais de um centena de feridos. 



Notícia de primeira página do "Diário de Lisboa", edição de 4 de agosto de 1959 (em que o destaque ia para as peripécias da XXII Volta a Portugal em Bicicleta): a agència Lusa, noticiava, a partir de Lourenço Marques, um "fait-divers": "Elefantes trucidados pelo comboio no vale do Limpopo"... 

Fonte: Citação:(1959), "Diário de Lisboa", nº 13166, Ano 39, Terça, 4 de Agosto de 1959, Fundação Mário Soares / DRR - Documentos Ruella Ramos, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_17262 (2023-3-22)

Na época, é bom lembrá-lo,  a imprensa portuguesa não era livre, pelo que nunca nos poderia dar a, nós, metropolitanos, uma versão isenta dos acontecimentos. Havia a censura, a polícia política, o partido único, o Salazar... É bom não esquecê-lo. E, nós, adolescentes (eu tinha 12 anos), estávamos longe de pensar que a futura guerra da Guiné iria sobrar também para nós (dez anos depois, no meu caso)...

Infelizmente, não conheço investigação de arquivo sobre este assunto. Talvez o nosso amigo e membro da nossa tertúlia, Leopoldo Amado, possa fazer luz sobre este e outros acontecimentos que antecederam o início da guerrilha do PAIGC, na sua tese de doutoramento sobre a guerra colonial 'versus' guerra de libertação que eu estou ansioso por ver apresentada e discutida, em provas públicas, na Universidade de Lisboa. (...)

Guiné-Bissau > Bissau > 1976 >  Planta da cidade em mapa publicado a seguir à independência. Veja-se a localização do porto do Pidjiguiti (para os barcos de pesca e de cabotagem), à esquerda do porto de Bissau (para os navios da marinha mercante). Imagem gentilmente cedida por A. Marques Lopes (2005).
 

Os acontecimentos do Pidjiguiti em Agosto de 1959: 

depoimento de Mário Dias (***)

Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959 (*****). Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto).

Para melhor entendermos a greve e consequente revolta dos marinheiros, há que recuar um pouco no tempo e no contexto em que se movimentava a actividade dos marinheiros.

As principais casas comerciais da Guiné (vou designá-las pelo nome abreviado como eram conhecidas), Casa Gouveia (CUF), NOSOCO, Eduardo Guedes, Ultramarina e Barbosas & Comandita, tinham ao seu serviço frotas de lanchas 
– umas à vela e outras a motor  – que utilizavam no serviço de cabotagem transportando mercadorias para os seus estabelecimentos comerciais e, no regresso, traziam para Bissau os produtos da terra, principalmente mancarra e arroz. A maioria deste tráfego era pelo rio Geba, até Bafatá e, para o Sul até Catió e Cacine.



Guiné > Bissau > 1969 > Cais do porto de Bissau. Foto tirada do lado do Pidjiguiti.

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Anualmente, essas empresas se reuniam para acordarem os salários a pagar aos diversos elementos da tripulação das embarcações. Esse acordo tinha a finalidade de ajustar o salário nas várias frotas, de forma a evitar concorrência no engajamento do pessoal. É claro que, embora efectivamente todos os anos fossem aumentados, os marinheiros não eram tidos nem achados nestas reuniões. Era comer e calar à boa maneira da época. O mesmo se passava, aliás, em relação ao preço a praticar anualmente na compra do amendoim (mancarra) e que era fixado por tabela governamental, ouvidos os comerciantes. Os agricultores não era ouvidos nem tinham voto na matéria.

Acordo estabelecido, as várias firmas comerciais começaram a pagar aos marinheiros o novo salário. Porém, a Casa Gouveia não procedeu ao aumento e continuou a pagar pela tabela do ano anterior. Passaram-se meses e os marinheiros questionavam o gerente  –   na altura o ex-funcionário do quadro administrativo Intendente 
 [António] Carreira – sem resultados e até com uma certa sobranceria, tique que lhe deve ter ficado dos tempos de funcionário administrativo. Com o descontentamento a aumentar e ânimos cada vez mais exaltados se chegou à tristemente célebre tarde de 3 de Agosto de 1959.

E agora o relato dos acontecimentos por mim presenciados e conforme informações na altura colhidas.

Nesse dia passou por Bissau, a caminho de Angola, uma alta entidade da Força Aérea. Ocupava no governo, salvo erro, o cargo de Secretário de Estado de Aeronáutica 
 [na altura, Subsecretário de Estado da Aeronàutica, Kaúlza de Oliveira de Arriaga (1955 - 1961)].

Fosse qual fosse a sua função, a verdade é que tinha direito a honras militares à sua chegada ao aeroporto. Não havendo outra tropa com capacidades para tal missão, embora ainda recrutas e como tal impedidos regulamentarmente de prestar guardas de honra, acabámos por ser nós a fazê-lo. Bem limpos e engraxados, mauser com baioneta calada, luvas brancas, partiu a Companhia de Recrutas para Bissalanca.

A cerimónia decorreu de forma brilhante (nós éramos um espanto!) e iniciámos o regresso ao nosso quartel em Santa Luzia. Ao aproximarmo-nos da praça do Império, comecei a reparar que muita gente se dirigia apressadamente, alguns até corriam, em direcção ao rio. E, um pouco antes de atingida essa praça, fomos interceptados pelo comandante da companhia, capitão 
  [José Severiano]  Teixeira, que se dirigiu ao oficial que comandava a coluna, tenente Vaz Serra, com quem esteve a conversar por alguns momentos.


Guiné > 1970 > Vista aérea do Geba Estreito entre o Xime e Bafatá > Na época, a Casa Gouveia ainda tinha um serviço de cabotagem entre Bissau e Bafatá, embora precisasse de segurança militar próxima, no troço Xime-Bambadinca-Bafatá.. Foto do 
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Retomada a marcha, ficámos todos surpresos por virarmos à direita em direcção ao rio em vez de à esquerda para Santa Luzia. Conforme descíamos a avenida da República víamos que algo devia estar a acontecer pois cada vez havia mais pessoa aglomeradas e maior era a agitação que demonstravam. 

A certeza tive-a quando, já perto da Casa Gouveia, vi, em cima de um camião que seguia para o hospital, vários homens em grande exaltação. Um deles ficou-me na memória: de pé, escorrendo sangue de um ombro, barafustava e agitava os braços, dava punhadas no peito como um possesso. Impressionante! Ainda hoje, passados todos estes anos, quando se fala destes acontecimentos do Pidjiguiti, é esta a imagem que me ocorre.

Chegados ao local, vi uma considerável multidão nas imediações, os portões do Pidjiguiti encerrados e uma força da PSP, constituída por pouco mais de uma dezena de seguranças, como chamávamos aos polícias africanos, armados com es
pingardas Lee Enfield 7,7 mm, enquadrados por 2 ou 3 graduados europeus.

Na altura já tinham terminado os tiros e encontravam-se apenas a conter a multidão e a evitar que os marinheiros e trabalhadores do cais de lá saíssem em direcção à Casa Gouveia. Fomos mandados apear das viaturas e só então nos deram as indicações da nossa missão que foi, simplesmente, cercar os terrenos anexos ao Pidjiguiti (no local onde mais tarde nasceram as Oficinas Navais e instalações da Marinha e Fuzileiros) que na altura eram terrenos baldios. Não devíamos deixar ninguém sair por esse lado que não tinha vedação. Ainda vimos alguns tentando fugir por aí, atravessando o lodo, mas desistiam ao ver o cordão por nós ali formado. 

Nós, militares intervenientes, não demos nenhum tiro. Aliás, nem podíamos pois nem tínhamos munições. Como já referi estávamos a regressar de uma guarda de honra quando fomos desviados para o local. Deve ter sido bem caricata a nossa postura, de luvas brancas, num cenário daqueles.

Ali nos mantivemos, aproximadamente 30 minutos, até os ânimos acalmarem (era o que se pretendia) e regressámos ao quartel.

Nos dias seguintes não se falava de outra coisa. Como não tinha assistido ao início dos acontecimentos, fui perguntando aos que mais de perto o tinham seguido e a versão generalizada era a seguinte:

Nessa tarde, mais uma vez, aproveitando a presença do gerente da Casa Gouveia no local [o intendente António 
Carreira],  os marinheiros e descarregadores pertencentes a essa firma comercial reclamaram pelo aumento de salário que todas as outras empresas já estavam a praticar.

– Casa Gouveia, nada. Então como é, senhor Intendente? 

As coisas começaram a azedar e teve que retirar apressadamente a bem da sua integridade física. Chamou-se a polícia. Um subchefe  que para lá se dirigiu, não sei se por falta de tacto em situações como aquela ou porque a exaltação dos marinheiros e trabalhadores era já considerável, foi agredido com um remo na cabeça e teve de imediato que ser socorrido e levado para o hospital. 

Vieram reforços, já armados, e como se organizava no cais um movimento em direcção à Casa Gouveia, armados de remos, ferros e do que havia à mão com a intenção de tudo escavacar, fecharam os portões para impedir a sua saída. Mesmo assim não desistiram e começaram a galgar o portão e a vedação.

Entretanto, o comandante militar, tenente-coronel Filipe Rodrigues, chegado ao local inteirou-se da situação e, ao ver aquele grupo armado de remos, paus, etc. a marchar agressivamente em direcção à Casa Gouveia, deu ordens aos polícias para dispararem por ser a única forma de os deter.

E foi assim que aconteceu. O resultado foram 16 mortos e não 50, ou até mais, como já tenho visto escrito. Por mim, um que fosse já era demais. Mas, atendendo às circunstâncias do momento, hoje questiono-me: que teria acontecido se não tivesse sido travada aquela multidão da única forma que foi possível? Certamente teríamos muita destruição e bastantes mais mortes a lamentar. E ter-se-ia gerado uma espiral de violência de consequências muito mais graves.

Da narração destes tristes acontecimentos podemos realçar os seguintes factos:

(i)  O PAIGC não esteve por detrás da ocorrência. Ela foi inteiramente da responsabilidade dos marinheiros e trabalhadores do cais pertencentes à Casa Gouveia, por motivos meramente laborais. Os marinheiros das outras empresas não estiveram envolvidos, pelo menos no início dos acontecimentos. É possível que, por solidariedade, alguns se lhes tenham juntado. O PAIGC aproveitou-se inteligentemente deste movimento, como sempre fez - o que só nos merece admiração - para conquistar mais uns tantos seguidores.

(ii)  Não se pode considerar o ocorrido como uma simples greve, conforme é vulgarmente referido. Foi mais do que isso. Tendo começado por greve, rapidamente se transformou numa revolta violenta cujas consequências são difíceis de prever se não tivesse sido travada. Se a referida revolta era ou não justificada, é-me difícil concluir. Sim, atendendo à injustiça de que estavam a ser vítimas. Não, pelas proporções que lhe deram.

(iii) Antes de concluir, parece-me que o termo massacre, aplicado aos acontecimentos do Pidjiguiti, é um pouco exagerado, não por o número ser muito inferior aos 50 habitualmente referidos, mas porque o conceito que a palavra implica, se refere à chacina indiscriminada, a uma carnificina injustificada do género descrito nos livros de história como passar tudo a fio de espada.

(iv) Com respeito aos massacres de populações balantas e beafadas na região de Bambadinca nos primeiros anos de 60, referidos no blogue-fora-nada (****), embora não os possa negar ou confirmar, tendo eu saído da Guiné em Fevereiro de 1966, nunca deles ouvi falar o que é estranho pois, como se diz na Guiné, noba ka ta paga cambança - aforismo com um sentido semelhante ao as notícias espalham-se depressa. Numa terra como a Guiné onde tudo se sabia e comentava, é estranho que nunca tivesse ouvido falar em tal acontecimento. Deve ter sido muito bem ocultado.

(v) E já que estamos a tratar de massacres, assunto tão melindroso e de que frequentemente acusam as nossas tropas, só tenho a dizer que durante toda a guerra colonial a que assisti e em que participei (depois da Guiné tive uma comissão em Moçambique e duas em Angola) massacres, massacres mesmo, na verdadeira acepção da palavra, só conheci um: foi o perpetrado pela UPA (mais tarde FNLA) no Norte de Angola em Março de 1961 sobre os fazendeiros brancos e suas famílias bem como sobre os negros bailundos fiéis aos seus patrões. Mas esses já estão esquecidos ou, convenientemente, nunca são referidos.

[Revisão / Fixação de texto / Negritos / Parênteses retos: LG]



Guiné-Bissau > Bissau > 2005 > Também eles, os filhos, netos e bisnetos do Pidjiguiti, os filhos, netos e binetos das vítimas da repressão da manifestação dos marinheiros e trabalhadores do Porto do Pidjiguiti, em 3 de agosto de 1959, têm direito à verdade.(*****)

Foto: © Jorge Neto (2005). Todos os direitos reservados
 [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
___________

Notas de L.G.:



(...) Eu sou o Mário Dias, fui para a Guiné com 15 anos (em 1952). De lá saí em 1966. Conheço, como seria de esperar - dada a minha longa permanência naquelas terras - a quase totalidade da Guiné. Lá cumpri o serviço militar obrigatório (recruta e CSM - Curso de Sargentos Milicianos) e, estando já na disponibilidade, regressei à efectividade de serviço (em 1963) como furriel miliciano apenas com a intenção de colaborar e ajudar na guerra que tinha já começado.

Fiz parte de um grupo de oficiais e sargentos que se deslocaram a Angola para tirar o curso de comandos e, uma vez regressados, formámos um grupo que actuou na célebre Operação Tridente, na ilha do Como (Janeiro a Março de 1964). Posteriormente, demos instrução e fizemos parte dos 3 primeiros grupos de comandos da Guiné. (...)


(****) Fui eu que fiz referência, em 2006, em e-mail interno que só circulou pela nossa tertúlia, a alegados "massacres de populações balantas e beafadas" que terão ocorrido na região de Bambadinca, no início da guerra,reportando-me apenas a conversas, soltas, que eu fui tendo, durante a minha comissão (Maio de 1969 a Março de 1971) com os meus queridos soldados (leais, valentes, insuspeitos, fulas) da CCAÇ 12 mas também com outras fontes como o malogrado Seco Camará, mandinga do Xime, extraordinário guia das NT (morto em 26 de Novembro de 1970, na Op Abencerragem Candente > post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)...

(*****) Vd. poste de 21 de março de 2023  > Guiné 61/74 - P24160: Fotos à procura de... uma legenda (171): Uma falsa imagem que anda por aí a "ilustrar" o massacre do Pijiguiti, de 3 de agosto de 1959

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23278: "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra" (António Sebastião Figuinha, ex-Fur Mil Enf) Parte IV

1. Parte IV da publicação do texto de memórias "A Minha Passagem pela Guiné-Bissau em Tempo de Guerra", de António Figuinha, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2884 (BissauBuba e Pelundo, 1969/71)


A MINHA PASSAGEM PELA GUINÉ-BISSAU EM TEMPO DE GUERRA

António Sebastião Figuinha
Ex-Furriel Miliciano Enfermeiro
CCS/BCAÇ 2884
1969/1970/1971
Parte IV

Sobre o assassinato dos Majores e para que fique registado como a mancha mais negra que trouxe da Guiné, foi este acontecimento.

Recordo como fosse hoje. Dia vinte de Abril de 1970. Cerca de dois meses antes sentimos sopros de liberdade e que a guerra se aproximava do fim. Naquela zona da Guiné, as nossas tropas movimentavam-se com liberdade havendo ordens de se evitarem contactos com o PAIGC. As escoltas para Bissau faziam-se sem armas. O Chefe da guerrilha da zona esteve no nosso Quartel trocando impressões com o nosso Comando. Levou umas caixas de batatas porque disse ele terem armas, mas não alimentos. Soldados nossos que gostavam de caçar, infiltravam-se no mato com muita tranquilidade.

Dia vinte de Abril. Levantei-me cedo para apanhar a escolta em mais uma ida minha a Bissau. Manhã cinzenta e triste.

 Verifiquei um movimento fora do normal no Quartel. Procurei saber o que se estava a passar. Baixinho me disseram que uns Majores iam para uma reunião com a guerrilha para acertarem o fim da guerra na Guiné.

Parti na escolta para Bissau sem qualquer arma de defesa tal como todos os militares que na mesma iam, com a missão de me protegerem e aos outros que a consultas externas iam ou para férias.

De regresso ao fim da tarde quase noite depois de a jangada ter atravessado o Rio Mansoa, uma patrulha chefiada pelo alferes Francisco da nossa Companhia 86, muito nervoso por nos ver sem qualquer arma de defesa, se dirigiu a mim como o mais graduado da escolta, para termos o máximo dos cuidados de não ligarmos as luzes dos meios de transportes que tínhamos porque se encontrava um grupo de guerrilha estranho na zona e que os Majores ainda não tinham regressado do mato o que era muito estranho e que algo estava fora do controle. 

Fiquei como todos os que comigo se encontravam em pânico.
Felizmente fazia luar. Todos nós apoquentados por não termos meios de defesa em caso de ataque da guerrilha. Em grande aceleração já que a estrada bem alcatroada o permitia como também, o luar nos iluminava.

São e salvos chegámos já bem noite ao Quartel no Pelundo. O ambiente que encontrei era pesado demais para o habitual. Toda a gente de rosto cabisbaixo. Na aldeia quando por lá tínhamos acabado de passar não se viu ninguém nas ruas. Perguntei ao primeiro militar com quem me cruzei o que se passava. Resposta seca. – Os Majores ainda não regressaram!

Aproximei-me da zona de Comando e o vai e vem era enervante. Soube naquele momento que a maior tristeza era não poder sair qualquer patrulha nossa ao encontro dos nossos Majores e demais acompanhantes. Tinha sido negociado um compromisso de, durante vinte e quatro horas, não haver qualquer movimento das nossas tropas para se evitarem confrontos. Tudo bem estudado pelo inimigo. Mesmo assim, os nossos militares e acompanhantes arriscaram já que, tinham como missão tentar acabar com a guerra.

Com uma noite mal dormida derivado a toda a agitação do dia anterior, levantei-me mais cedo que o habitual e, logo deparei com o General Spínola muito agitado e a chorar.

Soube que as nossas tropas tinham saído de madrugada à procura dos nossos Majores e demais acompanhantes. Dirigi-me rapidamente para o Posto Médico para saber pelo Dr. Dinis Calado quais os preparativos a tomar. Não foi necessário esperarmos muito porque vimos chegar a patrulha com as viaturas onde os nossos se tinham deslocado e, os corpos esfacelados, noutras viaturas.

Acompanhei o Médico até junto dos corpos para este examinar as causas das mortes e, se possível há quantas horas os casos teriam acontecido.  Com eles tinha seguido também um representante do Governo da Gâmbia que também todo cortado apresentava as suas mãos esfaceladas só em pedacitos de pele tanto como, os dois ex-guerrilheiros que com eles seguiram para servirem de intérpretes.

Verifiquei também que os jipes tinham os capôs com descrições a giz onde se podia ler o seguinte: - Nem só com homens as guerras se ganham.

Uma onda de raiva percorreu todo o meu corpo. Andei dois dias sem poder encarar um negro. A população da aldeia receosa não saiu de casa. Porem, ao fim da tarde do segundo dia, um grupo de homens vieram pedir armas e seguirem com os nossos para o mato procurando os assassinos. Este gesto da população veio a acalmar os ânimos.

Esta era a quarta e última reunião agendada com a guerrilha do Norte da Guiné para, a partir desta parte do território levar ao fim o conflito.

O Major Pereira da Silva que tinha conhecido em Buba, por várias vezes tinha-se encontrado com a guerrilha inclusive, dormido em seus acampamentos. O Major Passos Ramos conheci-o pouco tempo antes, quando veio ter comigo ao Posto Médico pedir-me uma aspirina para as dores de cabeça que naquele dia sentia, mas, só se não fizesse falta para os soldados. Homem extraordinário e muito estimado pelos nativos daquela zona. Do Major Osório, só de ouvir falar muito dele e das suas capacidades operacionais que tantas baixas iam causando ao PAIGC.
 
O Alferes Miliciano Mosca (meu colega de profissão civil) fazia parte dum grupo destinado à acção psicológica, da qual eu fazia parte também.

Devo acrescentar que os nossos militares foram para esta reunião sem com eles levarem qualquer arma conforme o combinado e, era também norma, a guerrilha não ter armas nestas reuniões. Acontece que estes guerrilheiros foram surpreendidos por um outro grupo de altas patentes contrárias ao fim do conflito. No grupo da guerrilha que se encontrava com os nossos, havia um infiltrado para dar o golpe final e liquidar de uma só vez a chamada fina flor dos nossos oficiais na Guiné.

Muitos fuzilamentos viemos a saber que aconteceram entre aqueles com quem os Majores se encontravam. Aos naturais de Cabo Verde que chefiavam o PAIGC não interessava os objetivos que se prepunham nestas reuniões e que eram acabar com a guerra. Daquela forma eles não faziam parte dos resultados finais, ou seja, de dois países unidos e independentes. Cabo Verde ficava sem qualquer hipótese de se tornar um país independente porque nunca foi Colónia de Portugal, mas sim, ilhas povoadas pelos Portugueses.

Com aqueles acontecimentos foi meu pensamento que Amílcar Cabral tinha os seus dias contados. Os guerrilheiros interessados no fim da guerra, e que escaparam aos fuzilamentos, não mais lhe perdoariam ter autorizado aquele massacre, isto porque Spínola mandou bombardear todas as bases conhecidas causando muitas baixas à guerrilha.

Ainda hoje ao escrever estes acontecimentos, retenho as imagens do passado que são as lembranças mais dolorosas daqueles tempos. Soube anos mais tarde por um colega meu natural da Guiné e que várias vezes com ele me encontrava em Lisboa, que o infiltrado naquele grupo e se gabava de ter matado os Majores, tinha posto fim à sua vida na prisão onde foi parar numa das várias revoltas que lá aconteceram, enforcando-se nesta. Teve o fim que merecia.
Pelundo > Dia da inauguração da escola e da residência para o professor, pelo General Spínola. Este fez um discurso arrasador para o Régulo Vicente. Isto aconteceu pouco tempo após o massacre dos três Majores, do Alferes, do representante do governo da Gâmbia e dos três ex-guerrilheiros do PAIGC.

Voltando ao meu dia a dia no Pelundo, breves dias depois da inauguração do Posto Médico Civil e da Escola, esta começou a funcionar com uma professora de origem cabo-verdiana, mais um irmão que a complementava. Cabe-me dizer, que a Escola possuía lateralmente residência para os professores.

Um dos casos de saúde que muito, desde então até aos dias de hoje, me preocuparam e me deixam indignado, está relacionado com as jovens, e algumas já menos jovens mulheres, que vão sofrendo mutilações sexuais.

A certa altura no ano de 1970 fui chamado por dois adultos ligados à família de Régulo Vicente, para os poder acompanhar a uma zona nos arredores da população e, deste modo, verificar alguns casos de saúde. Achei estranho, pedirem-me para ir fora do perímetro da população já que, ou vinham ao posto médico ao quartel ou solicitavam ajuda à companhia para fornecer meios de transporte para estes casos. Confesso que pensei duas vezes mas, falando para dentro de mim, achei que não deveria mostrar receio e confirmei que os seguiria e só, conforme o pedido deles.

Receoso à medida que muito me afastava para o interior do mato, chegamos a uma clareira onde se encontrava um grupo de jovens, neste caso rapazes. Seminus, com uma espécie de forquilha presa à anca para que o pénis ficasse no meio e, deste modo, não tocar nas suas pernas. Espantado e meio aterrorizado com o que meus olhos observavam, perguntei que barbaridade era aquela? Furiosos com a minha pergunta, resolveram entrar em ameaças já que me encontrava sozinho. Respondi, logo de seguida, que não lhes tinha medo, mas sabe Deus como eu me encontrava fragilizado. Então o que se passava. Fizeram a circuncisão com lâmina e a sangue frio àqueles jovens. Alguns deles apresentavam grandes infeções. Teriam que ser rapidamente tratados com antibióticos, mas queriam que eu me deslocasse lá ao que me recusei imediatamente. Pensaram bem e acabaram por ceder na condição de ser só eu a saber do caso e também apenas ser eu a tratá-los. Aproveitei, a ignorar os acontecimentos e exigir que me informassem do que estava a acontecer às jovens que eu soube se encontravam fora da população. Responderam-me que fazia parte do “Fanado” nas meninas e que constituía no corte do clitóris.

A minha indignação naquele momento foi enorme e acabei por lhes dizer que tudo o que observei e o que não vi, mas que me acabavam de descrever, era um crime de saúde pública pois, no caso das meninas, estavam a privá-las de satisfação de prazer sexual a partir daquele acto. Voltaram a não gostar de me ouvir e repetiram novas ameaças. Virei costas e regressei ao Quartel.

Durante os dias seguintes lá fui tratando das infeções aos rapazes e em algumas jovens também. Acrescento que por fim, aquando na festa final da realização do “Fanado”, reparei que duas ou três mulheres já com filhos faziam também parte do grupo.

Já em Portugal, por várias vezes citei este crime de saúde pública sempre que tinha na minha frente pessoas ligadas à saúde e naturais de África. Houve uma Médica que me respondeu dizendo que este assunto era culpa política do tempo de Salazar. E hoje? Pergunto de novo!
Pelundo > Refeitório dos Sargentos > Um colega da Granja de Bissau mais o chefe da secretaria. Este meu colega de nome Elói ,veio para Lisboa logo a seguir ao 25 de Abril, com quem continuei a encontrar-me.

Voltando de novo à parte militar, cabe-me dizer que quando tive que me ir juntar ao Batalhão no Pelundo e após a travessia do Rio Mansoa, a estrada que tínhamos de percorrer durante muitos quilómetros se encontrava em terra batida tal como a que nos separava da cidade de Teixeira Pinto. Como tal, os sapadores iam primeiro na frente picando o percurso, não fossemos apanhar minas na estrada. Assim, nos primeiros meses, verifiquei não só a construção das nossas novas instalações como aquelas estradas foram alcatroadas e lateralmente foi desmatado, de modo a dificultar ao inimigo realizar emboscadas.

Além do posto Médico e da Escola, foi também construída uma Igreja mais ou menos ao centro da aldeia.
A minha aproximação com a população foi diariamente aumentando, contribuindo para tal a jovem que cuidava da minha roupa de nome Judite. O carinho que ela me começou a dedicar e também todos os seus familiares, tornou-se conhecido na aldeia e no Quartel. Ainda hoje, aquando nos encontros para almoços do Batalhão alguns me falam dela.

Como referi em páginas anteriores, a minha missão na Guiné não se resumia apenas a cuidar da saúde dos nossos militares que comigo se encontravam, mas também da população. Uma outra missão me foi solicitada e se referia a ajudar os locais a cuidar das suas safras, de modo diferente da que efetuavam, de modo a poderem aumentar os seus bens alimentares.

Assim, além do arroz e mandioca, também semeavam feijão e amendoim (aqui conhecido por mancarra). Outras culturas como a bananeira, a papaia, a manga e o coco, sem esquecer o milho e a castanha de caju (esta uma das grandes riquezas da Guiné) mais as palmeiras das quais extraíam o óleo de palma para temperar os seus alimentos.

No Pelundo verifiquei que as culturas de sementeira (exemplo do feijão e do amendoim) após esta, os possuidores destas culturas só lá voltavam para a colheita. Deste modo, observei que as plantas infestantes eram mais que as plantas cultivadas. Acresce, e antes que me possa esquecer, que praticamente todo este trabalho era efetuado por mulheres, muitas delas com idade avançada que, bem cedo, ainda antes do Sol nascer, lá iam de sachola ao ombro para o campo.

As árvores que produziam as mangas, encontravam-se espalhadas ornamentando as ruas da aldeia. Estas árvores frutificavam com abundância, embora do meu ponto de vista técnico de fraca qualidade, já que seus frutos eram resinosos e muito fibrosos. A população mordiscava os frutos sugando o sumo.
As bananeiras que pude ver e observar bem, produziam bananas de tamanho muito reduzido embora muito saborosas. O tamanho do fruto era resultante das plantas não serem podadas. O pé da bananeira que produzir fruto deve ser eliminado para que outro que rebenta possa ser mais forte e assim produza cachos com frutos mais desenvolvidos.
Papaeiras vi muito poucas naquele local. Plantamos no último ano que lá estivemos, e em frente da entrada do Quartel, várias destas plantas frutíferas que foram fornecidas pelo meu colega da Guiné que chefiava a granja de Teixeira Pinto.

Assim, cumprindo a minha tarefa de ajuda técnica agrícola à população, falei com um dos filhos de Régulo Vicente, para acertarmos o dia e o lugar onde poderia dar uma palestra com os chamados Homens Grandes. Deste modo, acertei com eles uma manhã de fim-de-semana para não complicar com o meu horário de trabalho na saúde.

Com todo o grupo reunido num terreno que servia duma espécie de quintal, como previamente se tinha combinado, a palestra seria sobre o cultivo da mandioca cuja farinha era uma das bases da sua alimentação.
 
Este terreno encontrava-se inculto, não cavado e cheio de plantas infestantes. Esta escolha feita por mim teve um propósito de poder verificar em loco, como preparavam a terra. Pedi-lhes então que me fizessem a preparação do terreno conforme os seus hábitos para plantar as estacas de mandioca.

Um dos homens presentes segurou numa espécie de enxada e, com ela, foi virando leiva sobre leiva executando assim o camalhão sobre o qual se espetariam as estacas de mandioca.

Acabado por eles este trabalho, tomei a palavra, dizendo-lhes que com aquele amanho da terra se justificava terem plantas com raízes tão rudimentares que produziam tão pouca farinha tão necessária para a sua alimentação. Aconselhei-os primeiro a cavarem toda a terra, sacudirem dela todas as ervas e então, construírem o camalhão onde com a terra fofa aplicariam as estacas de modo a produzirem raízes grossas e, como tal, mais farinha.

Responderam-me em coro que daquela maneira dava manga de trabalho. Nega doutor, disseram-me eles. Respondi então que de outro modo não valia a pena eu ensinar-lhes formas da aumentarem a produção de bens alimentares. Fiquei desiludido.

Falei dias depois com o meu colega guineense, pessoa muitas vezes já citada nesta minha passagem por este país Africano. Alertou-me para desistir de lhes dar conselhos, dizendo-me serem pessoas que não gostavam muito de vergar as costas.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20284: Notas de leitura (1231): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,

A comissão de Eduardo começa em Quipedro e tem o seu término em Barraca. O imprevisto de toda esta narrativa é, como se observou anteriormente, haver uma descrição oficinal a ritmo moderado, o que começa por se contar parece um fotomaton que cabe no currículo de muitos de nós, e de chofre, depois de uma estadia em Quipedro, numa tensão habitual de guerrilha, chega-se ao Leste e é uma autêntica descida aos infernos, daí não hesitar em dizer que nada de mais explosivo se escreveu sobre os horrores da nossa última guerra em África.

E termina-se com uma citação um tanto cabalística do autor na apresentação do seu livro:

"Um forte sentimento de culpa, aliado a laços de camaradagem e de cumplicidade, tem levado os ex-combatentes ainda vivos a silenciarem acontecimentos dramáticos que protagonizaram de modo ativo ou passivo. Esse é um dos grandes óbices a que se escreva a verdadeira história da guerra colonial".

Um abraço do
Mário


Uma das mais explosivas obras da literatura da guerra colonial: “O Alferes Eduardo”, por Fernando Fradinho Lopes (3)

Beja Santos

A obra “O Alferes Eduardo”, por Fernando Fradinho Lopes, Círculo de Leitores, 2000, centrada em acontecimentos ocorridos na guerra de Angola, é um documento com imenso significado. A roda da fortuna lançou um jovem alferes em Quipedro, no Norte, tudo parece levar a crer que é uma guerra de guerrilhas que opõe as forças portuguesas e as surtidas rebeldes, é certo que há população afetada, mas muitíssimo menos grave do que ele vai presenciar no Leste.

Ele escreve em 17 de setembro de 1967, no Alto Cuíto:

“O Alto Cuíto era um simples morro que dominava uma extensa chana onde corria o rio Cuíto, de águas cristalinas. Dentro do espaço protegido por arame farpado, no topo da colina, existiam improvisadas barracas de madeira para utilização da tropa. Contrastavam com a confortável casa de alvenaria do Administrador de Posto.

O Administrador Raposo tinha sob as suas ordens cerca de duas dúzias de milícias mal vestidas e de pés descalços, armadas de velhas espingardas de repetição. Mantinham a sua própria segurança, com um sentinela permanente num torreão de madeira.

Sendo aquela uma zona de guerra, onde as populações haviam abandonado as suas sanzalas e passado para o controlo da UNITA ou do MPLA, não fazia sentido continuar a existir no Alto Cuíto uma autoridade administrativa, pensava o Alferes. Mas o certo é que o Raposo mantinha-se no seu posto como se tivesse sido esquecido pelos seus superiores hierárquicos ou como se estes ignorassem a situação de guerra no terreno.

O administrador convidou o alferes a deslocar-se à secretaria do seu posto administrativo, para participar num interrogatório de negros suspeitos de ligações com a UNITA.

O primeiro detido, ao ser perguntado sobre a localização dos guerrilheiros, nada disse. Os cassetetes dos dois sipaios de serviço funcionaram então implacavelmente, tal como as mãos e os pés do administrador. O interrogado rebolou no chão como se de um objecto qualquer se tratasse.

O segundo detido enfrentou o Raposo com uma aparente serenidade. Também parecia mostrar-se decidido a não declarar nada. E nem sequer reagia às violentas pancadas que um dos sipaios lhe infligia. Poucos saíam dali vivos”.

Mais tarde, o alferes avistou duas vítimas no chão, uma delas com um lago de sangue à sua volta. À noite, os milícias deitaram os corpos num rio.

E comenta-se:

“No Leste, a vida dos adversários ou dos meros suspeitos não tinha significado algum para cada uma das partes do conflito. Assassinava-se a sangue frio, sem dó nem piedade, por tudo e por nada”.

A tropa de Eduardo dá proteção à Junta Autónoma das Estradas, prepara-se uma ponte numa área de intervenção do MPLA, protegem-se serrações de madeiras a 75 e a 95 quilómetros do Alto Cuíto. Ocorrem emboscadas, morre o 1.º Cabo Costa, vítima de uma emboscada próximo da serração do Nhonga. Faz a contabilidade, com apenas um terço da comissão tinham sido feridos e mortos em combate nove soldados. O contexto do terrífico e do horror não abranda.

Ele escreve a 26 de outubro:  

“De manhã saiu, em missão de patrulhamento, uma secção comandada pelo Furriel Marta. Ao cruzar-se com dois negros desarmados, deteve-os e não tardou a eliminá-los, utilizando um processo cruel. Amarrou-os um ao outro, costas com costas. Depois colocou uma granada defensiva despoletada entre os corpos e afastou-se. À distância, gozou o espectáculo macabro dos dois condenados a serem despedaçados pelos estilhaços do engenho explosivo”.

Sucedem-se os patrulhamentos, numa sanzala controlada pela UNITA, os habitantes mostravam-se aterrorizados, nada lhes aconteceu. No regresso de um outro patrulhamento, já perto do Alto Cuíto, “viu o jipe do administrador carregado com cinco negros de mãos atadas atrás das costas, escoltados por sipaios. Não duvidou do destino que os desgraçados teriam mais tarde”.

Os interrogatórios em casa do administrador Raposo não param, Eduardo está enojado, pensou mesmo em prendê-lo mas temeu as consequências. Termina as observações desse dia escrevendo:  

“O morro do Alto Cuíto era um barril de pólvora que mais tarde ou mais cedo teria de explodir”.

Prossegue a atividade operacional, a guerrilha estende-se como mancha de azeite. Os acidentes também não param, caso de um soldado que caiu numa armadilha e ficou espetado num pau aguçado, que lhe entrou na virilha e avançou até perto do pescoço.

Eduardo regressa a Munhango, tinham sido distribuídas armas a uns tantos homens numa sanzala próxima, esses homens passaram-se com armas e bagagens para a UNITA. Já estamos em 1968, os patrulhamentos não abrandam. O relacionamento entre Eduardo e outro alferes é cada vez mais tenso, e o relacionamento com o Capitão Francisco já teve melhores dias. O alferes volta a Cangonga, vem com a missão de penetrar em zonas “libertadas” e surpreender gentes da UNITA, os resultados são magros.

Descreve a 29 de janeiro:

“Verificou que as sanzalas, tempos antes habitadas, iam sendo progressivamente abandonadas pelas populações, entaladas entre as pressões da UNITA e as das tropas portuguesas. Quando se aproximou para cumprimentá-lo, o Sr. Vilaça, madeireiro em Cangonga, insinuou de modo crítico que o alferes era excessivamente brando para com os negros. Defendia que deveria, no mínimo, ser tão duro como o seu antecessor Barradas. A população branca que ainda permanecia no Leste exigia sangue. Queria acções de represália contra os suspeitos. E por ali toda a gente negra era suspeita. Muitos acreditavam que aquela guerra só poderia resolver-se com o terror do branco contra o terror do negro".

Este jogo do gato e do rato com a UNITA, o convite a que as populações se apresentassem frutifica, vão-se apresentando pessoas num pinga a pinga que vai aumentando, vão ser necessárias obras de construção para albergar alguns daqueles que haviam participado em atos cruéis de terrorismo. Melhoram as relações entre os oficiais da companhia, o sofrimento das populações é inesgotável, os episódios de horror repetem-se, como se exemplifica:

“Sentado junto de uma tenda de campanha, vi um negro cambaleante e esfarrapado aproximar-se da porta de armas do quartel de Munhango. Desatou o cordão que trazia amarrado à cabeça e o maxilar inferior caiu-lhe de imediato, deixando-lhe a boca escancarada.

Segurou o queixo com uma das mãos e, quase imperceptivelmente, foi balbuciando o seu drama.
Residia na sanzala de Magimbo quando uma bala lhe destroçou a face. Refugiara-se na floresta, receoso de ser apanhado pela tropa ou pela UNITA. Mas a fome e o medo acabaram por obrigá-lo a apresentar-se às autoridades portuguesas. Ali estava ele em busca de paz e de alimento”.

Os episódios sangrentos avantajam-se, houvera uma emboscada e a tropa reagiu, dois grupos de combate foram tentar a sua captura e fazer justiça.

E repete-se o horror:

“O jovem oficial levava consigo farinha e peixe, a servir de isco. Era um artifício destinado a incutir nos aldeões a ideia de amistosidade. As pessoas, embora desconfiadas inicialmente, quando viram a comida aproximaram-se, na expectativa de alcançarem a sua quota-parte.

Depois dos habitantes estarem reunidos, apareceu o guia denunciante, incumbido de identificar os elementos hostis. Foi nesse momento que compreenderam a intenção da tropa. Assustadas, procuraram fugir em todas as direcções. Eram centenas de negros em fuga precipitada. O alferes não hesitou. Ordenou aos militares que atirassem impiedosamente. Homens, mulheres e crianças tombavam como animais no matadouro”.

Em março, a CCAÇ 1638 viaja para Barraca, um lugar situado a cerca de cem quilómetros a sudeste da capital, junto da estrada que ligava Luanda ao Dondo. A corrente de alta voltagem que se vivera na região Leste vai-se diluindo, regressa-se ao trivial, às situações corriqueiras, fazem-se férias e em fevereiro de 1969 retoma-se a viagem para Luanda, é o regresso.

“Quando chegou à Covilhã, olhou o recorte noturno da montanha sob o céu escuro. A mesma que via desde a sua infância. Os pais acharam-no pouco falador, muito menos do que outrora. Nunca fora expansivo. Mas parecia-lhes claro que ele não desejava falar sobre a sua vivência em Angola. Antes de deitar-se tomou um Vesparax completo. E adormeceu. Não ouviu nem sentiu o forte tremor de terra dessa noite de 27 para 28 de fevereiro de 1969. O maior das últimas décadas em Portugal”.

E assim se chega ao termo de uma obra avassaladora, onde as descrições no Leste de Angola atingem o pico do horror, do medo, da existência sem sentido, como se sobreviver fosse o santo-e-senha.
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Notas do editor

Vd. postes de:

14 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20238: Notas de leitura (1226): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (1) (Mário Beja Santos)
e
21 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20263: Notas de leitura (1228): "O Alferes Eduardo", por Fernando Fradinho Lopes; Círculo-Leitores, 2000 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 26 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20276: Notas de leitura (1230): "Retalhos das memórias de um ex-combatente", de Ângelo Ribau Teixeira (1937-2012): excerto do capítulo 11, "Mina na Companhia 305", evocação, pungente, da morte do cap inf Oscar Fernando Monteiro Lopes, vítima de mina A/C, na estrada Buela-Pangala, Norte de Angola, em 10/7/1962

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20241: Dignidade e Ignomínia (Episódios do Meu Serviço Militar) (Fernando de Sousa Ribeiro, CCAÇ 3535, Angola, 1972/74) - Parte VI: Não aos crimes de guerra: os bravos não são cruéis e os cruéis não são bravos



Foto nº 2 > Angola > CCAÇ 3535  (1972/74) >  O grupo de combate do alf mil  Fernando de Sousa Ribeiro no decurso  da operação que levou à conquista e destruição da base de Catoca, da UPA / FNLA. Foto do álbum do  fur mil  Luís Macedo.






Crachá da Companhia de Caçadores 3535, baseado no suposto brasão pretensamente pessoal do capitão miliciano Lamas da Silva. Eu nunca andava com este crachá ao peito. A Idade Média acabou há séculos. Eu
não tinha nada que trazer ao peito o presumido brasão alegadamente do Lamas, como se o Lamas fosse meu senhor feudal. Se ele quisesse brincar aos fdalgos, que brincasse sozinho. Por outro lado, e o que era muito mais grave, eu não podia aceitar um lema tão repugnante como o que se encontrava no crachá. 


lema, "A cada um a sua própria morte", foi cirurgicamente retirado de uns versos do Livro das Horas de Rainer Maria Rilke, de tal forma que o seu sentido fcou completamente adulterado. Os versos dizem o seguinte: Senhor, dá a cada um a sua própria morte. / Morrer que venha dessa vida / durante a qual amou, sentido encontrou, teve má sorte. O que era uma frase que fazia parte de uma oração a Deus foi transformado num lema que é um incitamento ao homicídio! Se dúvidas eu tivesse a propósito do verdadeiro significado do lema, elas dissiparam-se quando foram distribuídos, pelo pessoal da companhia, lenços de cor preta, para proteger a cara do pó da picada durante as colunas auto. 

Tal como o lema, a cor preta dos lenços não foi escolhida por acaso. Com um tal lema assassino e com tais fúnebres lenços pretos, quiseram fazer de nós emissários da morte. Porém, nós agimos de modo precisamente contrário




Foto nº 1 > Na picada que subia da Ponte do Rio Dange para norte, havia esta placa de trânsito, de cimento, indicativa de um desvio para o Mucondo, que ficava a poucas centenas de metros de distância. Amarrada a esta placa, estava uma tabuleta de madeira que dizia "AQUI COMEÇA O INFERNO". Esta tabuleta é a haste horizontal da mancha negra em forma de cruz que se vê acima da placa de cimento.


Fotos (e legendas): © Fernando de Sousa Ribeiro (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Fernando de Sousa Ribeiro:


(i) ex-alf mil at inf, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880 ( Zemba e Ponte do Zádi, Angola, 1972/74);

(ii) é membro da Tabanca Grande desde 11 de novembro de 2018, com o nº 780;

(iii) licenciado em Engenharia Electrotécnica pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto;

(iv) está reformado, e 
vive no Porto, mas também tem boas recordações de Lisboa onde viveu e trabalhou;

(v) tem página no Facebook;

(vi) a CCAÇ 3535 foi mobilizada pelo RI 16, partiu para Angola em 13/6/1972 e regressou em 28/8/1974; esteve em Zemba, P. R. Zádi. Comandantes: cap mil inf José Manuel de Morais Lamas Mendonça e Silva, e cap mil inf José António Pouille Nobre Antunes.

(vii) pertencia ao BCAÇ 3880, sediado em Zemba e Maquela e comandado pelo ten cor inf Armando Duarte de Azevedo; as outras duas subunidades eram a CCAÇ 3536 (Cambamba, Fazenda Costa) e a CCAÇ 3537 (Mucondo, Béu);

(viii) o ficheiro, em formato pdf, que estamos a publicar, tem 165 pp, imagens incluídas.


Dignidade e Ignomínia 

(Episódios do Meu Serviço Militar)

 > Crimes de guerra 
(pp. 49-63)(*)


por Fernando de Sousa Ribeiro



Pouco tempo antes da nossa partida para Angola, quando ainda estávamos em Santa Margarida aguardando o dia da partida, os aspirantes das companhias operacionais do BCaç 3880 fizeram uma espécie de juramento. Digo «uma espécie», porque não foi um juramento formal, mas sim um compromisso que os aspirantes tomaram uns perante os outros. Se não todos, pelo menos quase todos (eu incluído), levaram esse compromisso a sério, como se de um verdadeiro juramento se tratasse.

Foi num dia ao imm da tarde que esse compromisso teve lugar, enquanto tomávamos banho e nos arranjávamos para irmos jantar à messe de oficiais do Campo Militar de Santa Margarida. Alguns de nós preparavam-se para tomar banho, completamente nus e prontos para entrar no chuveiro. Outros tinham acabado de tomar banho e
saíam do chuveiro, igualmente nus. Outros ainda, incluindo eu próprio, estavam a fazer a barba, com uma toalha à cintura. Sem que ninguém o fizesse prever, um dos aspirantes presentes no local chamou a atenção dos restantes, dizendo:

— Ó malta, vamos assumir um compromisso!

Não me lembro de quem foi que falou, mas tenho a vaga ideia de ter sido o falecido aspirante Leite, que viria a ser alferes miliciano da CCaç 3537.

Nós interrompemos o que estávamos a fazer, para ouvirmos o que ele tinha para nos dizer. E ele disse, muito aproximadamente, o seguinte:

— Nós não sabemos o que nos espera na guerra. Não sabemos que perigos é que iremos enfrentar, nem que horrores é que iremos testemunhar. Nem sequer sabemos se vamos estar no lado certo ou no lado errado da guerra. Só quando chegarmos a Angola é que viremos a saber. Mas independentemente de estarmos no lado certo ou no lado errado da guerra, independentemente de tudo o que nos vier a acontecer, havemos de agir sempre de acordo com o que a nossa consciência nos determinar. Não sabemos se tal será possível no meio de uma guerra.

E continuou:


— Poderemos enfrentar situações que nos levem a cometer atos que em condições normais nunca cometeríamos. Não sabemos. Mas mesmo assim e
independentemente de tudo, procuraremos agir sempre de acordo com a nossa consciência, custe o que custar.

E, quando já todos nos manifestávamos a favor do compromisso, assumindo-o, ele repetiu, martelando as palavras:

— CUS...TE... O... QUE... CUS...TAR!

— Custe o que custar — repetimos.

Apesar de terem sido ditas numa circunstância e num lugar pouco apropriados a um juramento solene, estas palavras valeram como tal. Os aspirantes das companhias operacionais do BCaç 3880 comprometeram-se assim, uns perante os outros, a seguir os ditames da sua consciência na sua conduta durante a guerra. Foi com esta
disposição que eles partiram para Angola.

Após uma curta estada no quartel do Grafanil, nos arredores de Luanda, onde ficou assim que chegou a Angola, a minha companhia viajou para Zemba, o seu destino na guerra. Não houve quaisquer incidentes durante a viagem, felizmente. 


De entre as paragens que se fizeram durante a deslocação, destaca-se uma que se fez no Mucondo. Esta paragem durou cerca de meia hora, talvez, antes da partida para Santa Eulália e Zemba, já ao fim da tarde. Enquanto permanecemos no Mucondo, eu estive na messe de oficiais a descansar. Sem que nada o fizesse prever, os oficiais da companhia local, que ainda não tinha sido rendida pela CCaç. 3537, começaram a gabar-se perante nós, "maçaricos", dizendo:

— Nós somos os "Assassinos do Mucondo"! Nós não fazemos prisioneiros. Tudo o que encontrarmos na mata a mexer-se é turra, é para abater, seja homem, mulher, criança, cão ou galinha. Somos os "Assassinos do Mucondo". Não perdoamos a ninguém. Nunca fazemos prisioneiros. Atiramos primeiro e perguntamos depois. Somos implacáveis. Somos os "Assassinos do Mucondo"!

Eu achei graça àquilo, pensando que eles estavam a tentar impressionar-nos, novatos que nós éramos, cheios de medo a caminho da guerra. Não levei aquelas palavras a sério, de maneira nenhuma.


Na picada que subia da Ponte 

do Rio Dange para norte, havia esta placa de trânsito, de cimento, indicativa de um desvio para o Mucondo, que ficava a poucas centenas de metros de distância. Amarrada a esta placa, estava uma tabuleta de madeira que dizia "AQUI COMEÇA O INFERNO". Esta tabuleta é a haste horizontal da mancha negra em forma de cruz que se vê acima da placa de cimento 

[Foto nº 1, acima; e em pequeno reduzido à direita]


Quando chegamos a Zemba já era de noite. Logo a seguir ao jantar, fui para o quarto, juntamente com os restantes alferes da 3535, arrumar as minhas coisas.

Nessa altura, os alferes da companhia que fomos render (a CCaç 3346, do BCaç 3840), também foram ao nosso quarto, mas para falar connosco com toda a seriedade. O que eles nos disseram foi o seguinte:

— Nós temos uma revelação para vos fazer, que é muito constrangedora para nós. Mas é preferível que vocês saibam da nossa boca do que por terceiros. A revelação é: a nossa companhia cometeu um massacre.

Perante a nossa surpresa, exclamaram logo a seguir:

— Por amor de Deus, não nos interpretem mal! Nós condenamos o que se passou, tanto como vocês. A sério! Mas a verdade é que houve um massacre cometido por militares da nossa companhia. Infelizmente houve. Nós condenamos, mas houve.

Passaram então a contar o que se passou:

— Uma vez, no Zemba "Turra", um alferes mandou fuzilar 21 prisioneiros que tinham acabado de ser capturados. Ele confessou que estava aterrorizado por se encontrar num sítio tão perigoso como era o Zemba "Turra". Mandou alinhar os prisioneiros e ordenou aos soldados que os fuzilassem. E assim aconteceu. O alferes já não está cá.

Foi castigado por causa disso e transferido, embora o texto da punição não faça referência ao massacre.

E os alferes da 3346 repetiram e voltaram a repetir:

— Vocês não pensem que nós costumávamos agir desta forma. De maneira
nenhuma! Nós condenamos o massacre tanto como vocês. Mas a verdade é que aconteceu. Foi o único massacre que houve na nossa companhia, por culpa de um cobarde. Ele mesmo confessou que estava aterrorizado e já não está cá. Por amor de Deus não pensem mal de nós! Nós também condenamos o massacre. Acreditem que é verdade! Nós sempre procuramos respeitar as vidas humanas. Aquele cobarde é que não respeitou.

Depois de terem contado o episódio do massacre, envergonhados, os alferes da 3346 saíram, para nos deixar ficar a arrumar as nossas tralhas no quarto. O alferes Arrifana, da minha companhia, saiu também de imediato e dirigiu-se diretamente para a caserna do seu grupo de combate. Reuniu os seus soldados e cabos e contou-lhes o que tinha acabado de saber. Por fm, acrescentou:

— Vocês livrem-se de cometer atos semelhantes a este! Se algum de vocês matar um só inocente que seja, vai ter que se haver comigo! Juro que lhe faço a vida num inferno! Se há coisa que eu não admito no meu grupo de combate é cobardes. Se algum de vocês for cobarde e assassino, garanto que me vai ter à perna. Nunca mais terá sossego comigo!

No dia seguinte de manhã, quando entrei na caserna do meu próprio grupo de combate, ouvi os meus homens comentarem o sucedido uns com os outros. O "sermão" do Arrifana também tinha chegado ao conhecimento deles. Diziam os meus cabos e soldados:

— Um homem que é homem não dispara contra quem não se pode defender. Se o outro estiver armado, pode disparar, pois nesse caso estarão de igual para igual; se ele não disparar, o outro disparará primeiro. Mas atirar contra uma pessoa desarmada é cobardia.

E diziam uma frase que ouvi repetida por eles várias vezes ao longo dos dias que se seguiram:

— Só quem tem medo de tudo e de todos é que está disposto a matar tudo e todos. É um cobarde.

Perante tais palavras, achei que não valia a pena eu fazer também um "sermão" aos meus homens. O do Arrifana chegou.

Passaram-se vários meses. Quantos? Não me lembro. Só me lembro de que um dia ouvi o comandante do batalhão fazer referência aos "Assassinos do Mucondo". Não me lembro das circunstâncias em que ouvi tal referência, nem tenho a certeza de que ele tenha pronunciado textualmente as palavras «Assassinos do Mucondo». Só
me lembro de ouvir o tenente-coronel lamentar o facto de a CCaç 3537 não se comportar como a companhia que a antecedeu, que varria tudo à sua frente. Achava ele que o terror espalhado pela companhia anterior deveria ser continuado pela CCaç 3537, mas «infelizmente» não era. «Aquilo é que era uma companhia que impunha respeito», disse ele sobre a companhia anterior. Quase só lhe faltou chamar
mole e piegas à 3537.


Eu ouvi as palavras do tenente-coronel Azevedo com um certo espanto. «Será que no princípio da comissão os autodenominados 'Assassinos do Mucondo' tinham-nos mesmo falado verdade?», interroguei-me. «Até o comandante se refere a eles! Como foi que ele soube?» Instalou-se a dúvida no meu espírito a respeito dessa companhia.

Algum tempo mais tarde realizou-se uma operação ao Catoca, na qual o papel principal foi desempenhado pelo meu próprio grupo de combate. O grupo não foi comandado por mim, mas sim pelo valente furriel Macedo, porque eu estava em gozo de licença anual. 

Além da conquista e destruição da base do Catoca propriamente dita, o resultado final dessa operação ultrapassou em muito tudo quanto se tinha esperado dela: a UPA/FNLA abandonou, pura e simplesmente, toda a zona do Catoca! Os guerrilheiros fugiram para o Mufuque, que era a base principal do movimento na região do Mil e Vinte (assim chamada por nela haver três montes com a mesma altitude de 1020 metros), e deixaram entregue à sua sorte a população nos acampamentos que tinham controlado na zona do Catoca.

 
Foto nº 2 (acima; em formato 
reduzido, à direita) Fotografia feita pelo furriel Luis Macedo na zona do Catoca


Em Zemba, ninguém se tinha dado ainda conta do das verdadeiras consequências da operação, com o abandono do Catoca por parte da UPA/FNLA, até ao momento em que chegou um SITREP, que era um relatório semanal distribuído pelos batalhões dando conta da evolução da guerra em Angola. 

Neste relatório em concreto, o batalhão de Vista Alegre dava conta da apresentação, naquela localidade, de numerosos elementos da população e, até, de guerrilheiros armados, oriundos da zona do Catoca. O batalhão de Vista Alegre congratulava-se vivamente com o facto, que atribuía à ação psicológica por si mesmo desenvolvida.

O comandante do nosso batalhão, assim que leu o SITREP em questão, foi a correr ao posto de rádio, para comunicar ao brigadeiro de Santa Eulália que as apresentações registadas em Vista Alegre não se deviam a ação psicológica nenhuma, mas sim à ação militar empreendida pelo Batalhão de Caçadores 3880, que conquistou o Catoca. O brigadeiro respondeu-lhe, do outro lado, que já sabia,
porque também se estavam a verificar apresentações em Santa Eulália de pessoas vindas do Catoca. O brigadeiro aproveitou a oportunidade para dar os parabéns ao tenente-coronel pelo êxito militar.

As apresentações de pessoas vindas do Catoca só se verificaram em Vista Alegre e Santa Eulália. Significativamente, ninguém se apresentou no Mucondo. Absolutamente ninguém. Quando o brigadeiro perguntou aos que se apresentaram em Santa Eulália porque motivo percorreram tantos quilómetros até lá chegarem, em vez de se apresentarem no Mucondo, que ficava muito mais perto do Catoca, recebeu a seguinte resposta:

— A tropa do Mucondo mata.

É claro que não era a Companhia de Caçadores 3537 que matava, mas sim a sua antecessora, a companhia dos "Assassinos do Mucondo", cuja fama permaneceu depois da sua saída.

De um momento para o outro, o tenente-coronel deixou de elogiar os "Assassinos do Mucondo", que tinha apresentado como exemplo a seguir, para passar acondená-los:

— Se não fossem aqueles sacanas, — dizia — teria havido apresentações no Mucondo. Esse seria mais um ponto a nosso favor.

Cerca de meio ano depois, estive em Luanda mais ou menos durante um mês. Ao longo desse tempo, dei alguns passeios pela região envolvente à capital angolana.

Num desses passeios fui até à barragem das Mabubas. Para meu espanto, encontrei aquartelada nas Mabubas, junto à barragem, a companhia dos "Assassinos do Mucondo"! Reconheci logo o capitão, que aliás era do quadro permanente. Não falei com ninguém da companhia. Falei apenas com o médico militar que lá se encontrava e que eu conhecia de vista do Porto.

O médico falou longamente de uma epidemia de cólera que se iniciou muito perto dali, na Barra do Dande, e que já se estava a espalhar por Angola inteira, tendo já causado dezenas de mortos. Ele estava indignadíssimo com o comportamento das autoridades sanitárias coloniais, as quais, em vez de tomarem medidas para combater a epidemia, tudo fizeram para escondê-la, «para que o inimigo não saiba e não a aproveite para fazer propaganda». Resultado: a doença espalhou-se para lá do que era possível esconder e O MUNDO INTEIRO, e não só o "inimigo", ficou a saber que havia uma epidemia de cólera em Angola!

A certa altura da conversa, e sem que eu lhe fizesse qualquer pergunta a respeito da companhia que estava colocada lá nas Mabubas, o médico começou a falar dela, comentando que nem parecia uma companhia veterana, já em fim de comissão.

Acrescentou, por sua própria iniciativa, que os militares da companhia se chamavam a si mesmos "Assassinos do Mucondo". O médico nunca tinha estado no Mucondo, mas sabia que aquela companhia era dos "Assassinos do Mucondo"!

— Se eles foram ou não assassinos lá no Mucondo, não sei, mas que se chamam a si próprios assassinos, chamam, e eu acredito que tenham sido, — disse o médico — porque são uma tropa muito fraca.

A corroborar a falta de qualidades militares da companhia, o médico passou a relatar um episódio passado algum tempo atrás, lá mesmo nas Mabubas:

— Certa noite, um soldado sentiu necessidade de defecar. Ou porque estava aflito com diarreia ou por outro motivo qualquer, em vez de se dirigir aos sanitários, resolveu fazer o "serviço" no meio do capim, no escuro, do lado de fora do quartel.

Passou para o exterior do arame farpado e, a uma certa distância do quartel, começou a "arriar o calhau". Um sentinela viu um vulto na escuridão e começou a disparar sobre ele. O pobre soldado, vendo-se alvejado, pôs-se a gritar para não dispararem, porque era ele, Fulano, que estava ali. Mas quanto mais ele gritava, mais
o sentinela disparava. De um momento para o outro, toda a companhia desatou a disparar para todos os lados, numa barulheira infernal! 


Era suposto esta companhia ser constituída por veteranos, que já tinham feito uma guerra no Mucondo, e não por "maçaricos" cheios de medo, acabados de chegar do "Puto". Pois foi como "maçaricos" que estes veteranos se comportaram. 

No fim, quando o tiroteio acabou, o soldado que tinha estado na origem desta confusão saiu do capim, branco como a cal da parede, mas incólume. Gastaram-se muitas centenas ou mesmo milhares de
munições em poucos minutos e nem uma só acertou no homem… Felizmente! 

Uma semana depois, dizia-se em Luanda que as Mabubas tinham sido atacadas!

Como se vê, os indícios de que a companhia aut
odenominada "Assassinos do Mucondo" cometeu crimes de guerra,  foram-se acumulando no meu espírito à medida que o tempo passava. Só o facto de os militares dessa companhia terem escolhido chamar-se "assassinos" é, só por si, muito preocupante. 

A palavra "assassino" tem uma carga negativa fortíssima. Ninguém gosta de ser chamado "assassino". No entanto, foi este nome, e não outro, que eles escolheram para si próprios. Era deste nome que eles se orgulhavam, como eu próprio testemunhei. Por algum motivo o terão feito. Mesmo que tenham provocado uma só morte de um inocente, esta morte já é de mais. 

É verdade que eu não tenho provas concretas, factuais, de que algum crime tenha sido cometido por elementos dessa companhia. Tenho apenas as suspeitas que acabo de expor, mais o que passo a expor a seguir.

Muito recentemente, soube através da internet,  que um antigo militar que tinha estado no Mucondo tinha publicado um livro. Fiquei cheio de curiosidade. O antigo militar em causa chama-se Rogério Pires de Carvalho, foi furriel miliciano e o seu livro tem como título "Alenterra". Um título destes pode sugerir tudo menos a guerra colonial ou a tropa em geral, mas enfm, quer tenha sido bem ou mal escolhido, foi este o título que o autor deu ao livro. Encomendei um exemplar, recebi-o e li-o.

Pouco tempo depois, descobri que este antigo militar tinha pertencido à companhia dos "Assassinos do Mucondo". Voltei a pegar no livro e reli-o, agora sob uma nova perspetiva. Tudo se encaixou.

O livro "Alenterra", de Rogério Pires de Carvalho, é uma pequena obra autobiográfca de 91 páginas, que aborda, sobretudo, a experiência militar do seu autor. 

É um livro muito bem escrito, que revela um escritor de primeira água. Embora seja autobiográfco, o livro é tudo menos monótono e linear, graças aos numerosos saltos no tempo que contém, para a frente e para trás, que são dados sem aviso. Por isso, este livro exige do leitor um certo cuidado, para não se perder relativamente à época a que o autor se refere a cada momento.

Eu não vou fazer aqui um resumo do livro. Vou apenas respigar uma ou outra passagem que possa esclarecer o pensamento e, sobretudo, a ação do autor, assim como da companhia a que pertenceu. Comecemos então.


(...) «Há coisas que nem nos segredos se devem aflorar. Coisas de nada, mas também outras coisas, densas, plúmbeas, excessivas. Como o remorso, o reverso do acto irreversível.

«Ou a dor, que mesmo descrita, não passa de retórica aos ouvidos dos outros. Sente-se na carne, nos ossos, na pele, nas unhas, mas dela nada se pode dizer, porque ela existe para ser sentida nas entranhas. A palavra não a redime, nem a dissolve.» (Rogério Pires de Carvalho, "
Alenterra"!, 2010, Prólogo, pág. 13)

(...) «Como o soldado que se vangloriava de... olhe, não sei se lhe conte, porque não são coisas fáceis de escutar. Histórias de gente que se mata à bala e à faca, gente que sangra outra gente, é sempre gente sofredora. Gente é gente, desde que nasce até que morre, e gente que se mata mal acaba de nascer também é gente, ou poderia tê-lo sido. E é dessas histórias que me recuso a contar-lhe, porque tenho vergonha. Apesar deste tempo todo, ainda tenho vergonha, do que fiz e do que não fiz, do que vi fazer e do que ouvi contar. E por isso não lhe conto, porque não precisa de sofrer o que os outros já sofreram. Ponto final.» (Ibid., pág. 43)

(...) «Aqui e além, disfarçadas na vegetação que começava a revelar-se mais densa, vislumbrámos as primeiras cubatas feitas de paus e palha grossa. Alguns vultos andrajosos voltavam na nossa direção o inexpressivo rosto da hostilidade. Bastava aquele aparente alheamento em relação à nossa presença, para percebermos que não éramos bem-vindos. Nós éramos homens de guerra e era a guerra que carregávamos connosco, embora restasse em nós alguma reserva de inocência. A inocência dos que ainda não tinham trilhado os caminhos da infâmia.» (Ibid., pág. 56)

(...) «O sofrimento cicatriza as emoções. Cobre-as com uma casca rija, casca grossa onde a crueldade se instala. A guerra promove esta neurose, alimenta-se dela, porque só sobrevivem os mais coriáceos. É preciso pôr a humanidade de lado para fazer nascer a verdadeira natureza humana: feroz, assassina e impiedosa. O homem finalmente despido de todas as roupas civilizadas e morais, deixando à solta a sua natureza instintiva e primária, é isto que a guerra autoriza.» (Ibid., pág. 85)

(...) «Ao fim de quatro dias de combates, fomos recolhidos pelos helicópteros, e tivemos a recepção que só é concedida aos heróis. Mas todos estávamos vazios, ocos por dentro, como um saco roto. Não havia nada em nós, nem emoções, nem sentimentos, nem um traço de humanidade. Nada. Um deserto interior feito de apatia e desinteresse por tudo e por todos.

«De uma vez por todas, tinha conseguido atingir o objectivo supremo: já não ia sofrer mais com os males dos outros ou com os meus próprios, porque uma parte de mim tinha deixado de existir. A batalha deixara sobreviver uma legião de fantasmas, articulados por
fora como bonecos, mas mortos por dentro.

«No sítio da alma havia um buraco negro.» (Ibid., pág. 87)

Como se vê, ele emprega palavras como «remorso», «infâmia», «vergonha», «crueldade», etc. Todas estas palavras apontam no mesmo sentido, o da confirmação de que existiram atos que foram, no mínimo, reprováveis e de que há um arrependimento por parte do autor do livro. Existe, contudo, uma passagem, em que ele talvez procure uma desculpabilização e que eu não posso deixar passar em claro.

Nesta outra passagem, o autor ofende quem agiu de modo diferente. A passagem é a que se segue:

(...) «E aquele ser sem eira nem beira lá ia de camarada com os restantes, todos feitos da mesma massa, todos ruminando pensares que iam e vinham, desatinados. Sôfregos de atenção, sôfregos de estima, que quem ali ia não ia para ser estimado, mas para ser odiado. E temido, claro, temido como só os bravos o sabem ser. Os bravos ou os cruéis, ou ambos, porque ambos são a mesma coisa.» (Ibid., pág. 61)

É inacreditável esta frase: «Os bravos ou os cruéis, ou ambos, porque ambos são a mesma coisa.» Esta frase é um insulto aos meus maravilhosos camaradas de armas que, apesar de todos os perigos e de todas as provações por que passaram (que em nada ficaram a dever às que foram vividas pelo autor do livro), se comportaram SEMPRE como valentes seres humanos, abnegados e generosos, mesmo nas circunstâncias mais extremas. 


Ao contrário do que Rogério Pires de Carvalho afrma, os bravos não são cruéis e os cruéis não são bravos. DE MANEIRA NENHUMA! Agora sou eu que digo: «Ponto final».







Capa do livro Alenterra, de Rogério Pires de Carvalho, "Alenterra", edições Alfarroba, 2010, 96 pp.


Excerto de notícia do jornal 'on line' TInta Fresca, sobre o lançamento do livro, em Torres Novas, em 24/5/2012:

(...) O autor, nascido em Zibreira [, Torres Novas,]  nos idos de 1948 e residente em Castelo Branco, é professor, licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em literatura e cultura portuguesa pela Universidade Nova. Trabalhou na Segurança Social e foi arqueólogo no IPPAR. Alenterra constitui-se como um romance autobiográfico, centrado na Guerra Colonial, onde o trauma e a culpa definem as coordenadas da narrativa. (...)

Mais dados biobliográficos sobre o autor:

(...) encontra­‑se aposentado do ensino secundário. Entre os anos de 1969 e 1973 cumpriu o serviço militar obrigatório, tendo sido mobilizado para a região dos Dembos, em Angola.

Publicou:

- As três guerras do Mucondo (2001), Roma Editora; 

- Os funerais de dona Soledade; (2003), Roma Editora; 
- Alenterra (2010), Alfarroba Editora; 
- Histórias Parvas (2013), Fonte da Palavra Editora. (...)