Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
domingo, 3 de novembro de 2024
Guiné 61/74 - P26112: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887) (9): Um buraco na parede
MEMÓRIAS DE UM MÉDICO EM CAMPANHA
9 - Um buraco na rede
(Mais um conto – verdadeiro – da Guiné)
Acordei a meio da noite e não fechei mais os olhos. A insónia levou-me onde bem lhe apeteceu. Gemi ao estalar do coração de uma mãe, senti o amargo do choro convulso de um pai, reabsorvi a minha dolorosa resignação… um barco e as amarras que o prendem aos olhos esbugalhados do cais, amarras que se despedaçam, pois ninguém lhes sabe desfazer os nós.
A madrugada de hoje começa a clarear. Quem olha através da rede da janela, sem vidros, julga que vai nascer uma amena manhã de primavera, mas em breve ela parecerá vomitada do ventre de uma fogueira.
Passarinhos coloridos salpicam de gorjeios o silêncio morno do amanhecer. Um grande inseto marra nervosamente de encontro à rede, numa volúpia incontida de liberdade. Eu e aquele moscardo à procura de um buraco na rede!
De um salto, corri da cama até ao chuveiro improvisado que borrifava sobre mim os mais deliciosos minutos do dia. Enquanto a água escorria em fios esganados, eu ia antevendo o prazer de uma caçada matinal às rolas. Iria pedir a carabina ao libanês senhor Heyle, o qual, àquela hora, ensonado, não se lembrava que não gostava de a emprestar. De qualquer forma, a mim nunca a recusaria, pois precisava de mim como médico.
Postar-me-ia a cem metros do arame farpado, por detrás do poço do jagudi, bem perto do canavial. Vindas das árvores que se encontram no baixio junto à bolanha, as rolas atingem, sem qualquer desconfiança, o mangueiro que está mesmo por cima da minha cabeça.
Será só apontar. Mas… nem apontar foi preciso, pois, as rolas não vieram, e as que vieram, fugiram, sem hesitações de pouso, como se, do lado de lá do canavial, alguém as tivesse avisado.
Quando se vive no isolamento, sobretudo na solidão da guerra sem sentido, o tempo jamais passa, mas as frações de tempo parecem voar como estas rolas que escarnecem de mim. Não sei se adormeci, penso que sim, movido pelo zumbido melífluo e hipnotizante de um desses enxames de abelhas selvagens que, à volta de um galho de cajueiro, ordenam a sua inquietante anarquia.
Quando acordei e olhei para cima, uma rolita inocente, vestida ainda com o castanho-torrado da primeira penugem, esticava o pescoço curioso para ver quem eu era. Estava tão perto, que eu lhe enxergava os olhitos faiscantes e quase ouvia as primeiras falas que as cordas vocais começavam a ensaiar. Instintivamente, colei-me à arma e só vi a cabecita inquieta estremecendo na ranhura do ponto de mira. Se ao menos ela fugisse! Se ao menos ela fugisse! Apertei o gatilho, e como estava tão perto, nem dei pela queda do seu minúsculo corpo.
Caiu o meio-dia sob a forma de um sol escaldante que só as árvores mais frondosas conseguiam coar. Espetei os olhos na avezita moribunda e vi que um fio de sangue lhe pintava o bico. Senti profundamente o gosto acre daquele sangue. Soube-me à guerra, a roubo, a crime, a futuro sem vida e vida sem futuro, à terra calcinada, à chacina. Torci-lhe três vezes o pescoço e atirei-a ao regato mais próximo. Puxei de um cigarro e tentei, com ele, acabar a tristeza e a amargura desta manhã.
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Nota do editor:
Vd. postes da série de:
25 de junho de 2016 > Guiné 63/74 - P16235: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (1): O Parto - ou o nascimento do Adão Doutor em Bigene
2 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16356: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (2): Cadi suma outra mulher
6 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16363: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (3): Os prisioneiros
11 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16381: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (4): Joãozinho, nunca na vida te deixarei sozinho
16 de agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16392: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (5): O diagnóstico
6 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16453: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (6): Pequenas Grandes Verdades
13 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16485: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (7): Guiné - Irkutsk
27 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16528: Memórias de um médico em campanha (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547) (8): O Tanque
quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024
Guiné 61/74 - P25174: (De) Caras (203): Nota solta (José João Domingos, ex-Fur Mil At Inf)
Nota solta
Caro Luís
Antes de mais as tuas melhoras.
Tenho tido pouca interação com o blogue mas não dispenso a sua leitura semanal. Gosto muito de seguir as publicações dos camaradas que habitualmente o fazem e que muito interesse me despertam.
Nesta altura do campeonato, em que só nos resta fazer a mala, vemos as coisas de forma diferente e, no meu caso, às vezes, assaltam-me momentos de lucidez que me espantam.
Sem preocupação de escalonar por importância é frequente concordar ou discordar de alguns “posts” ou comentários de outros camaradas sobre a temática da guerra na Guiné. Inibo-me de comentar por entender não ter grandes bases para tal até porque, e aí começa o problema, a guerra começou em 1963 e, naturalmente, as condições eram diferentes de 1973. Por outro lado, às comissões de 21/24 meses correspondiam da outra parte largos anos de guerrilha e o profundo conhecimento do terreno e a adaptabilidade ao mesmo.
Ainda na Metrópole senti que as coisas não eram levadas a sério. A vida continuava alegremente, excepto para os Pais que tinham filhos no Ultramar. Os irmãos já sabiam que mais tarde ou mais cedo iam lá parar, só não sabiam em que província e, portanto, havia que gozar a vida.
Em Leiria de passagem e depois a recruta em Santarém, onde encontrei gente de nível militar exigente mas sempre correcto, passei por Tavira onde encontrei um ambiente com ambições guerreiras mas perfeitamente anedótico onde cada um fazia o que o poder lhe permitia sem qualquer coerência.
Formação do batalhão no RI 15 em Tomar com destino à Guiné com muitos analfabetos e alguns “esperados” que, até um cego via, não tinham condições físicas para integrar uma companhia operacional.
Quando cheguei à Guiné, a Bolama, já que o “Niassa” ficou ao largo de Bissau e fomos transferidos diretamente para uma LDG (às cinco da tarde e chegámos a Bolama ao meio dia seguinte), e olhei para aquilo a primeira impressão que tive: “foi isto que estes gajos fizeram em 500 anos?”
Relativamente à guerra nunca pensei em ganhá-la porque, até outro cego via, que tal não era possível.
Descontando a diferença de armamento e da experiência em combate, com manifesta superioridade do adversário (digamos assim), o facto das unidades militares estarem em quadrícula (julgo que é assim que se diz) tornavam-nas num fácil alvo que permitia flagelações a partir das fronteiras dos países vizinhos, com intervalo para as refeições ou para satisfazer necessidades. Por vezes, apenas as valiosas intervenções das forças especiais no terreno permitiam algum descanso.
Por outro lado, as condições de vida nos aquartelamentos em que vivi eram desumanas e a fome era firme e constante, tal como a divisa do meu batalhão. Nunca percebi como é que uns se tratavam tão bem e outros passavam tão mal tendo em atenção que a dotação orçamental era semelhante.
Com o 25 de Abril a guerra na Guiné praticamente terminou tendo começado as negociações. A sobreposição do pessoal do exército colonial pelo PAIGC, pelo menos em Bissau, fez-se calmamente até Setembro, com a exceção da patifaria feita aos camaradas dos comandos africanos que ainda hoje me arrepia. Não estou em posição (nem quero) de julgar quem quer que seja mas aquela canalhice tornou a atormentar-me quando recentemente vi os Estados Unidos (e outros) abandonarem de um dia para o outro os seus colaboradores no Afeganistão.
Acabada a guerra, regresso à Metrópole, procura de emprego, constituição de família e luta constante para a sustentar o melhor possível, ambição natural de todos nós.
Após uma vida de trabalho, a almejada reforma (não venha por aí alguma patifaria) e o acompanhamento frequente dos netos, tarefa que se desempenha com alegria mas que denuncia algum cansaço próprio do avançar da idade (a pedalada começa a falhar).
Em consequência da reforma passei a receber uma prestação anual como ex-combatente que em 2023 foi de 171,90 € (em termos líquidos transformou-se em 107,90 €). Incomoda-me recebê-la por dois motivos: porque, afinal, grande parte é devolvida a quem a paga, isto é, dá com uma mão e tira com a outra, e porque não me faz falta, seria muito mais útil para reforçar o rendimento dos muitos que mais pecisados estão.
Também tive direito ao cartão de combatente que me permitiu ter um passe gratuito para os transportes urbanos (moro em Lisboa) que pode ser utilizado em toda a àrea metropolitana. Nas outras zonas do País não sei se é útil. Quanto ao PIN e à bandeira, dispenso. Contudo, não deixo de destacar a luta dos camaradas que o conseguiram.
Provavelmente, este arrazoado não tem interesse, mas é o que de momento se pode arranjar.
Um abraço
José João Domingos
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Nota do editor
Último post da série de 9 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25052: (De) Caras (201): O cap art 'comando' Nuno Rubim (1938-2023): fotos do meu álbum (Virgínio Briote, ex-alf mil 'cmd', cmdt Gr Diabólicos, Brá, 1965/67)
terça-feira, 13 de fevereiro de 2024
Guiné 61/74 - P25168: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte III: a CCAÇ 3545, de Canquelifá, no início de abril de 1974, "à beira da exaustão física e emocional"
relativas a 1974. No Arquivo Histórico-Militar estão compiladas decisões do
Cmdt-Chefe.
"1. Por decisão de 1Abr74, foi o CAOP 2 reforçado com 2 CCaç Paras / BCP 21 a seguir por meios fluviais, em 3Abr, e determinando que constituísse, no mais curto prazo, com tropa da zona, uma reserva com efectivo mínimo de 3 GComb para alternar ou reforçar a acção do BCP 12.
2. Entretanto foram recebidas mensagens da CCaç 3545 (Canquelifá), do BCaç 3883 (Piche) e do CAOP 2 (Nova Lamego) do seguinte teor:
a. Da CCaç 3545: NT completamente extenuadas psicofisicamente não permitem que se desenvolva uma reacção conforme situação.
NT estão a revelar indícios de intoxicação causados por gazes libertados sentindo vómitos e náuseas. Solicito intervenção imediata forças especiais durante longo período de tempo e reforço esta com mais 1 CCaç. Para cumprimento eficaz missão que está incumbido este Comando cumpre-lhe expor situação para salvaguardar defesa mesmo.
b. DO BCaç 3883: CCaç 3545 revela situação psicológica pessoal altamente preocupante receando-se reacções incontroláveis e imprevisíveis caso futuras flagelações. Solicito imediata decisão fim garantir segurança e acautelar desenvolvimento situação de gravíssimas consequências à qual não poderemos fazer face.
Insisto necessidade urgentíssima resolução propostas urgente rendição CCaç 3545 e intervenção Canquelifá Flnterv.
c. Do CAOP 2: Virtude potencial revelado pelo ln este Comando não tem possibilidade de fazer face à situação.
3. Em conformidade, em reunião de Comandos no Cmd-Chefe em 021000Abr74, decidi o seguinte:
a. Fazer deslocar durante o dia 2Abr por via aérea conforme solicitado pelo Cmdt do CAOP 2 dada a extrema gravidade da situação (Msg referida em 2. a.);
b. Fazer deslocar cerca 10Abrpara a Zona Leste a 1a/BCaç 4516/73 comandada pelo oficial de operações do Batalhão.
470
Esta CCaç, reforçada com 1 GComb do BCaç 3883, deverá render em Canquelifá as CCaç 3545 e 33/BCaç 4516/73, à ordem do Cmdt CAOP;
c. A CCaç 3545 fica estacionada em Piche mantendo-se integrada no BCaç 3883;
A 33/BCaç 4516/73 recolhe a Bissau logo que rendida, conforme instruções especiais para o deslocamento;
d. Fica ao critério do Cmdt do CAOP 2 a troca da guarnição do Pel Art de Canquelifá pela do Pel Art de Piche.
4. O CTIG dará instruções de carácter administrativo logístico. [... ]"
(*) Vd. poste de 1 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13078: O golpe militar de 26 de abril de 1974 no TO da Guiné: memorando dos acontecimentos, pelo cor inf António Vaz Antunes (1923-1998) (Fernando Vaz Antunes / Luís Gonçalves Vaz): Parte I
Vd. poste anterior > 3 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25130: A 23ª hora: Memórias do consulado do Gen Bettencourt Rodrigues, Governador e Com-chefe do CTIG (21 de setembro de 1973-26 de abril de 1974) - Parte I: A visita do CEME, Gen Paiva Brandão, em finais de janeiro de 1974
quarta-feira, 17 de janeiro de 2024
Guiné 61/74 - P25079: Casos: a verdade sobre... (41): "Canquelifá era o seu nome" - Uma batalha de há 50 anos (José Peixoto, ex-1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883, 1972/74) - IV (e última) Parte: O nosso batismo de fogo, na bolanha do Macaco-Cão, em 29 de agosto de 1973
José Peixoto, hoje, inspetor
(i) foi 1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883 (Canquelifá, 1972/74);
(ii) vive no concelho de Vila Nova de Famalicão, reformado da CP como inspetor;
(iii) é membro da Tabanca Grande nº 731, entrado em 30/10/2016.(**)
Deixou-nos um relato memorialistico, dramático, dos últimos tempos da sua comissão, de 12/13 páginas, que foi escrevendo ao longo dos anos, e que intitulou "Arauto da Verdade".
O texto, extenso, foi publicado na íntegra (**). Estamos agora a republicá-lo, em postes por episódios, e cruzá-lo com outros postes que temos publicado sobre Canquelifá, com referênica à situação militar que se agravou, naquele aquartelamento e povoação do nordeste da Guiné, região de Gabu, a partir de agosto de 1973.
Encontrava-me eu de serviço no posto de rádio quando se fez ouvir o disparar de armas automáticas à mistura com morteiradas e RPG 2 ou 7 (da parte do IN) e bazucada (da parte das NT). Essa emboscada foi a cerca de 3 km de distância de Canquelifá.
Logo chegou o pedido via rádio, da evacuação dos feridos, não me recordo quem era o operador (tenho dúvidas se era o Matos ou o Coelho),
Escrita a mensagem pelo então cripto Jacinto Teixeira, a mesma por mim foi difundida ao CAOP 2, Nova Lamego e Bissau.
A confirmar a veracidade do exposto, mantenho em meu poder o original da mensagem do pedido da evacuação, que exibo (vd. foto acima).
A referida emboscada ficou marcada por uma série de acontecimentos entre eles destaco!..
- aquando da chegada dos hélis ao local, em número de 3, foi constatado viajarem militares cujo destino era a passagem para Bissau, e desta à metrópole a fim de passarem férias, dificultando deste modo a total evacuação dos feridos;
- o capitão Cristo, que também fazia parte daquela operação, ao aperceber-se de tal, logo ordenou o desembarque dos referidos militares, dando-lhes como justificação não ser aquele momento e meio de transporte para fazerem turismo.
A talho de foice, como é usual dizer-se, no passado dia 4 junho 2016, no decorrer do almoço- convívio em Amarante, foram estes momentos lembrados, mais uma vez, pelo veterano José Carvalheira, a residir ali para os lados de Barcelos, que fez parte deste lote de feridos. Com todo o seu bom humor de pessoa simples, não deixou de sublinhar o facto de naquele dia lhe ter saído o totoloto duas vezes:
- Caríssimos Veteranos, todos quantos fizeram parte da CCAÇ 3545, o relato que aqui deixo gravado não se trata de uma ficção! Fazer um relato de guerra não é tarefa fácil mesmo tendo passado pelos acontecimentos.
Creiam, estas são memórias que se encontravam alojadas no meu subconsciente e que foram trazidas para o computador com algumas lágrimas à mistura, mesmo considerando o facto de poder dizer bem alto “correu bem, cheguei vivo”. Mas, mesmo assim, não se pode esquecer nunca aqueles que tombaram a meu lado e por isso temos orgulho em todos que combateram na terra, no ar ou no mar!
Aproveitando a circunstância, quero aqui deixar a todas as Famílias a eterna saudade.
Ao lerem todos estes escritos que antecedem, vão com certeza recordar aqueles momentos que muito particularmente marcaram para sempre as nossas vidas, e bem assim as das nossas famílias.
Todo este “Arauto da Verdade” foi escrito há vários anos, todos os acontecimentos transcritos são de uma percentagem de erro muito reduzida, considero eu. Relativamente aos seus meandros relatados, no tocante às datas dos acontecimentos, aceito alguma eventual discrepância.
Por outro lado, também quero dedicar este capítulo que não deixou de ser menos histórico, à minha família, especialmente aos meus filhos, Rui e Vera, hoje pessoas adultas, com a sua formação académica nas áreas de engenharia mecânica e ciências farmacêuticas, respetivamente, para que se possam orgulhar de o seu pai ter cumprido um dever de cidadania, mesmo sendo este de causas desconhecidas.
O caminho é feito caminhando, como o nosso povo costuma dizer! Era tempo de iniciar outro capítulo de vida que também não se apresentava fácil.
O construir de uma família, a subsistência dela, tudo eram interrogações que se colocavam e que apenas tinha uma só saída, escolher e seguir uma carreira profissional.
Para concluir, gostaria de registar que durante a vida devemos aproveitar todos os momentos para dizer àqueles que amamos, o quanto são importantes. Amanhã pode ser tarde para dizermos que amamos e precisamos!
Às leis do divino chefe, se efetivamente ele existe, o meu obrigado, e um bem-haja por não me ter abandonado nos momentos difíceis.
Como todos bem sabem, haveria a mencionar muitos outros momentos não menos difíceis, muito gostaria que outro camarada pertencente à CCAÇ 3545 lhe desse continuidade, se o caso o merecer.
Para dar por terminado estes meus simples capítulos, só pretendia abrir aqui um outro, na tentativa de encontrar dois bons amigos de então:
(i) Luís Henriques, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, mais conhecido por "Alcanena” e Manuel Claro, ex-Atirador, dos quais junto foto na bolanha (vd. foto acima).
Os não menos amigos:
E bem assim tantos outros que não recordo nomes, mas gostaria de os encontrar. Ergam o dedo, e digam que estão vivos, vamos a um almoço?!
Se por ventura alguém tiver dificuldade em se deslocar, relativamente a transporte, não há inconveniente ser eu a fazê-lo, de qualquer parte do país. .
Para contacto, o meu correio eletrónico é jspeixotolord@hotmail.com
Um bem.haja a todos!
Notas do editor
domingo, 14 de janeiro de 2024
Guiné 61/74 - P25070: Facebook...ando (49): O Fernando Moreira (1950-2021), ex-fur mil trms, CCS/BCAÇ 3883 (Piche, 1972/74) terá sido o último militar do exército a falar pela rádio com o ten pilav Castro Gil (1950-1979) antes do abate do seu Fiat G-91 R/4, "5437", por um Strela, em 31/1/1974, sob os céus de Canquelifá
Há uma outra versão do abate do Fiat G-91 R/4, do ten pilav Castro Gil (*): foi escrita pelo Fernando Moreira, ex-fur mil trms inf, CCS/BCAÇ 3883 (Piche, 1972/74); está ainda disponível na sua página do Facenook e foi também produzida, com a devida autorização do autor, no Blogue Especialistas da Base Aérea 12, Guiné 65/74 > domingo, 3 de fevereiro de 2013 > VOO 2688 – 31 Jan. 1974 - Míssil abate avião; eu "estava" lá.
Ficámos também a saber que o nosso camarada da FAP, então já com o posto de cap pilav, Vitor Manuel Fernandes Castro Gil (1951-1979), viria a falecer, cinco anos depois, em 5 de janeiro de 1979, aos 28 anos na BA 5, Monte Real, num acidente com um T-33. Teria nascido, pois, em 1951.
- Terça-feira, 3 de fevereiro de 2009 > 761 Abate do Fiat G 91 5437 | Arnaldo Sousa Esp MMA Guiné | Lisboa
- Quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009 > 769 Complemento ao Post do Arnaldo Sousa | António Matos TenPilav Guiné | Hoje Ten Gen Pilav Reformado
- 9 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3859: FAP (6): A introdução do míssil russo SAM-7 Strela no CTIG ( J. Pinto Ferreira / Miguel Pessoa)
- 8 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4800: Em busca de... (85) O Fiat do Pilav Gil foi abatido em Janeiro ou em Março de 1974? (José Rocha)
- 11 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20965: FAP (116): O último ano do Fiat G-91 - II (e última) Parte (José Matos)
No dia 31 de janeiro [de 1974], após aquele destacamento ter sido flagelado com mais de 50 foguetões de 122 mm em apenas duas horas (houve abrigos que não resistiram e ficaram destruídos), foi decidida uma acção de apoio aéreo. Da Base de Bissalanca [BA 12], , em Bissau, levantou uma parelha de aviões Fiat G-91 R/4 pilotados pelos tenente-coronel Vasquez e tenente [Castro] Gil (na foto).
A missão, designada de "apoio de fogo", tinha como objectivo aliviar a pressão sobre a guarnição e, como tal, impunha-se auxílio logístico às aeronaves. Essa tarefa foi atribuída ao Comando do Batalhão, em Piche.
Fomos fornecendo coordenadas para ataque ao solo e outras informações solicitadas pelos pilotos. Entre elas destacava-se o "feedback" dos nossos colegas em Canquelifá que, por outra via rádio, nos davam conta daquilo que observavam da ofensiva aérea.
Já de noite, soubemos que o avião tinha sido atingido por um míssil terra-ar SAM-7 (conhecido por Strela), durante a recuperação de um "passe de bombas", eventualmente feito sem a necessária aceleração, entrando assim no "envelope do míssil".
Entretanto, estavam já na zona os meios de busca e salvamento: várias aeronaves (nunca vi tantas!), os paraquedistas e o famoso grupo do Marcelino da Mata transportados em helicópteros.
Em Piche, cerca das 18 horas, uma multidão aguardava o tenente Castro Gil. Toda a gente o queria ver e cumprimentar. Eu ainda consegui dar-lhe um aperto de mão e identificar-me como o seu ajuda rádio durante a operação e no momento do impacto do míssil. Ele retorquiu: "Eh pá… não houve hipóteses” (de escapar)!"
Por ironia do destino, o tenente Victor Manuel Castro Gil que em 31/1/1974 resistiu, como vimos, a um míssil e a uma ejecção em zona de guerra, veio a falecer em Monte Real, a 5 de janeiro de 1979, com 28 anos, aos comandos de um T-33 durante a fase de aterragem.
(Referências: José Manuel Pinto Ferreira, em “Luís Graça & Camaradas da Guiné”; Arnaldo Sousa, em “Especialistas da Base Aérea 12, Guiné”)
Autoria: Fernando Moreira, Ex-Furriel Miliciano de Transmissões de Infantaria – Guiné-Bissau (Piche: Maio de 1973 a Junho de 1974; Bissau, CHERET, Jul. a Set. 74).
Guerra colonial : a história na primeira pessoa / texto Paulo F. Silva, Orlando Castro ; rev. Mariana Guimarães. - Vila do Conde : QuidNovi, cop. 2011-. - v. : il. ; 23 cm. - Contém bibliografia. -
1º v.: Antecedentes e Baixa de Cassange. - 111 p.
2º v.: 4 de Fevereiro e massacres de Março. - 111 p.
3º v.: Formação da Frelimo e PAI passa a PAIGC. - 111 p.
4º v.: Nova frente militar ; Criação dos comandos (1962) e primeiras operações. - 111 p.
5º v.: Operação Tridente ; Bases militares na Tanzânia e o inicío da luta armada. - 111 p.
6º v.: Operação Águia, em Mueda ; Bloqueio do porto da Beira. - 111 p.
7º v.: Fundação da UNITA ; MPLA abre a frente leste da guerra. - 111 p.
8º v.: Acções militares do ELNA-FNLA ; UNITA expande-se para Leste ; Cunene e Cahora Bassa.
9º v.: A pior situação militar ; A guerra expande-se ; Operações do MPLA no Leste. - 111 p.
10º v.: A chegada de Spínola ; Crise política na FRELIMO ; Operação Zeta ; Kaúlza nomeado comandante da Região Militar de Moçambique. - 111 p.
11º v.: Samora Machel assume a liderança da FRELIMO ; Operação Nó Górdio ; Operação Mar Verde.
12ºv.: Acção psicológica ; A terceira via de Marcelo. - 111 p.
13º v.: O papel de Costa Gomes ; O papel de Kaúlza de Arriaga. - 111 p.
14º v.: O papel de Spínola ; Morte de Amílcar Cabral ; Movimento dos capitães. - 111 p.
15º v.: A revolta dos capitães ; Operação Madeira ; Acontecimentos na Beira. - 111 p.
16º v.: O fim da guerra colonial. - 111 p. (...)
Comentários (selecionados)
José Ferreira
Mais uma bonita história dos nossos Combatentes na Guiné. Eu, que estive "de férias" ali naquela zona, incluindo Dunane, fico abismado com as diferenças em relação aos fins de 1968.
Arlindo Marques
Canquelifá, foi para a companhia 122 de Páras, da qual eu fazia parte, um lugar de má memória, porque perdemos um camarada, por rebentamento de mina, quando faziamos proteção ( guarda de flanco) a uma companhia do exército.
Neste dia em que o FIAT G91 foi abatido, encontrava-me em Copá a embrulhar fortemente para não fugir à regra do dia a dia, como acontecia por ali e em Canquelifã naquela altura. O avião foi abatido na área entre Copá e Canquelifã, que distavam cerca de 12 Kms, portanto assistimos a toda aquela cena de muito perto.
Rui Bruno
O ten Gil morreu mais tarde na BA5, já no posto de capitão (em 1979) a bordo do T-33A Tail Number 1925, quando o seu avião embateu na pista durante a recuperação de um Touneaux.... Morreu também o cap Santos Costa.
Carlos Pinto
Tive três irmãos na Guiné. Já ouvi tantas histórias deles, que nomes como Guidage, Guilege e outros locais até já me são familiares.
Antonio Victor Pegas
Aterrei num Boeing 707 à luz de archotes, com um carregamento vindo de Luanda, depois foi cerveja e ostras no Espada e para adormecer tivemos morteirada ao longe.....e o meducho dos mísseis terra ar....
Rui Costa Branco
Era um miúdo com 5 anos mas lembro-me bem da chegada do ten Gil à base de Bissalanca.
Pois é Rui Costa Branco, eu ainda não era nascido, mas já ouvi esta história contada algumas vezes pelo nosso pai.
O Gil um grande amigo meu, eu também lá estava, ele andou perdido no mato, sei a história toda, contada pessoalmente por ele, éramos grandes amigos, um tipo pequeno mas com uma enorme nobreza, depois estive com ele na BA5 quando lá fui jogar futebol de Onze, pela equipa da BA4, tive imensa pena com a morte do Gil, foram um bocado estúpidas estas mortes. Que continue em Pal a sua Ala. GVS
Maurício Gomes
Nos primeiros mêses de 1974 estava eu em Binta a fazer proteção à construção da estrada Binta - Guidage e naquela zona (o Cufeu) tinha no ano anterior sido palco de terríveis emboscadas às colunas que reabasteciam Guidage, na nossas deslocações para o local,onde estavam as frentes de trabalho que íamos proteger, encontrávmos com muita frequência minas anti-carro e anti-pessoais e tivemos até uma com elevada carga de explosivos que destruiu completamente a Berliet - rebenta minas... Também uma anti-pessoal vitimou um camarada que foi evacuado de helicóptero para Bissau, destas imagem nunca mais me esqueço e muito surpreendido fiquei com a rapidez da chegada do helicóptero ao local.
Antonio Rodrigues
Caro Maurício Gomes, quando cheguei à Guiné em Setembro de 73, não se falava de outra coisa , o assunto principal era Guidage e Guilege. A mim coube-me em sorte Copá, onde vivi e assisti a esta história do abate deste Fiat.
Estive em Catió de 72 a 74. Como conheci esta história. Guilege, Cacine, Gadamael, Cufar, pertenciam ao meu Batalhão, e ainda tinhamos a celebre Ilha de Como, bem próxima.
Jose Maria de Noronha
Geração heroica.
Carlos Santos
Estava na BA 12 nessa altura,
Alvaro Seabra
Um facto histórico!
Carlos Barbosa
Estava em Buruntuma, CCAÇ 3544. Um grande abraço a todos os ex-combatentes.
Carlos Manuel Prazeres Cerqueira
Pois nesse altura em Dunane já só estava a milicia, embora estivesse lá um Pelotão da CCAÇ 3545 ou seja o 3º Pelotão, comandado pelo nosso Alferes Francisco Presa .
Carlos Ferreira
Em Guileje foi o primeiro a ser abatido, em 25 de março de 1973... Aconteceu quase tudo igual só que era o tenente Pessoa, ainda vivo, graças a Deus.
Luis Gonzaga Rocha
Em 31 de janeiro de 1974 eu estava em Guidage na CCaç 4150.
(*) Vd. poste de 12 de janeiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25059: Casos: a verdade sobre... (39): "Canquelifá era o seu nome" - Uma batalha de há 50 anos (José Peixoto, ex-1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883, 1972/74) - Parte II: o abate do último Fiat G-91 R/4, em 31/1/1974, a recuperação do piloto, ten pilav Victor Manuel Castro Gil
(**) Último poste da série > 29 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P25013: Facebook...ando (48): No tempo em que passva na televisão o "Natal do Soldado" (A. Marques Lopes, autor de "Cabra Cega", livro de memórias, 2015, 582 pp.)
Guiné 61/74 - P25068: Casos: a verdade sobre... (40): "Canquelifá era o seu nome" - Uma batalha de há 50 anos (José Peixoto, ex-1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883, 1972/74) - Parte III: 21 de março de 1974, Op Neve Gelada, 22 cadáveres de guerrilheiros são trazidos para o quartel, lavados, fotografados e enterrados na pista de aterragem
Canquelifá em 74. Abrigo 12 visto do campo de futebol, nesse dia 31-03-74, não houve feridos, porque após a morte do furriel Agualusa da Rosa e o abandono da população, todos se abrigavamos no abrigo (vala coberta com troncos e pedra) à esquerda deste abrigo , junto ao tronco do mangueiro.
Fotos (e legendas): © José Marques (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Guiné > Zona Leste > Região de Gabu > Sector L4 (Piche) > Canquelifá > CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883 (1972/74) > Janeiro de 1974. Explosão de uma bomba durante um ataque do PAIGC ao aquartelamento de Canquelifá: foto do álbum do camarada Pereira, que vive em Almada, ex-fur mil da CCAÇ 3545, com a devida vénia, cortesia de Jorge Araújo (***)
(i) foi 1º cabo radiotelegrafista, CCAÇ 3545 / BCAÇ 3883 (Canquelifá, 1972/74);
(ii) vive no concelho de Vila Nova de Famalicão;
(iii) é membro da Tabanca Grande nº 731, entrado em 30/10/2016.
Deixou-nos um relato memorialistico, dramático, dos últimos tempos da sua comissão, de 12/13 páginas, que foi escrevendo ao longo dos anos, e que intitulou "Arauto da Verdade".
O texto, extenso, foi publicado na íntegra (**). Estamos agora a republicá-lo, em postes por episódios, e cruzá-lo com outros postes que temos publicado sobre Canquelifá, com referênica à situação militar que se agravou, naquele aquartelamento e povoação do nordeste da Guiné, região de Gabu, a partir de agosto de 1973.
José Peixoto, hoje, inspetor
Às 13h00 do referido dia 21, entrada pela porta principal, abrigo 1, em coluna apeada.
A primeira companhia dirigiu-se à porta situada no lado da Mata Sagrada, no sentido de Chauará, local onde era suposto o IN ter instalado a sua base de lançamento dos mísseis, saindo por esta para o exterior.
A segunda companhia dirigiu-se à porta de acesso à pista junto ao abrigo 5,no sentido de Sinchã Jidé, local onde era suposto o IN ter instalado o seu poderio dos mosteiros 120 mm, saindo para o exterior.
A terceira companhia ficou instalada junto ao abrigo de transmissões, de reserva, aproveitando a sombra de uma velha e grande laranjeira, cujo fruto não se podia comer, por ser muito amargo.
Volvidas que foram cerca de duas horas após a saída das duas companhias para o exterior de Canquelifá, às 15h00, foi ouvido o rebentar de um tiroteio de armas ligeiras, à mistura com algumas morteiradas.
A nossa primeira reação foi a de sempre, saltar da viatura e procurar alguma proteção debaixo da mesma, durante o desencadear do tiroteio, estimado em cerca de 10 a 15 minutos.
A evacuação da “bajudinha” já não foi concretizada, logo retrocedemos no itinerário para o denominado centro do aquartelamento. Nesta fase ainda se ouviam alguns tiros esporádicos.
Dirigi-me ao abrigo de transmissões no qual se encontrava entre outros o então major Raul Folques, procurando junto do militar, responsável pelas transmissões no terreno, inteirar-se efetivamente do que se estava a passar.
A primeira ordem que este Homem de Guerra transmitiu, honra lhe seja feita pelo trabalho coordenado, foi a saída imediata da companhia que se encontrava de reserva junto ao posto de rádio, pela porta de armas de acesso à pista no sentido de Sinchã Jidé.
À medida que o tempo passava, eram recebidas informações via rádio do resultado obtido pelas duas fações, que indicavam um número indeterminado de baixas ao IN, bem assim como material capturado.
Às 17h10, de uma tarde marcante, fazendo paralelo com as fiadas do arame farpado que dividiam o aquartelamento da vegetação, lado do Mata Sagrada, começou-se a avistar a chegada de uma das companhias, trazendo consigo aquilo a que se poderia chamar troféus de guerra, exatamente 22 corpos transportados em cima de macas improvisadas de ramos de árvores.
Chegados às imediações, a população saiu pela porta de armas ao encontro dos militares, pontapeando os corpos. Esta talvez fosse a única forma de vingança pelas mortes causadas aos seus entes queridos, em ataques anteriores.
Quando já dentro do aquartelamento, foi dada ordem para que todos os corpos fossem encaminhados para a Mesquita de Canquelifá, local de culto no qual os homens grandes praticavam as suas orações, virados para Meca.
Para efetuar a segurança durante a noite, foi escalado um pelotão da nossa companhia.
Às 17h30, quando tudo estava aparentemente calmo, eis que surge novo ataque de curta duração, com misseis, procurando assim destruir o pouco que ainda restava, como retaliação pelas suas baixas há duas ou três horas.
Às 18h00, e a pedido do então alferes Fernando de Sousa Henriques, foram reunidos uns quantos militares, de caráter voluntário, para fazer segurança a 3 viaturas (2 Unimogs e 1 Berliet) na ida ao local do confronto para recuperação do material capturado.
Ordem de partida foi dada: saída pela porta de armas lado pista de aterragem dos meios aéreos, abrigo 5.
Após progressão na ordem de 1,5 km foi desencadeado novo tiroteio. Toda a coluna parou para se poder proteger, de realçar o facto de já nos encontrarmos perto do local onde se tinha dado o conflito.
A informação que proveio de Canquelifá, e recebida por este superior, foi exatamente, que o IN voltou ao local na tentativa de recuperar os mortos que, como atrás referi, eram 22 corpos.
Na posse destes elementos, e tendo em consideração que as armas se tinham calado, fomos progredindo mais uns metros com toda a serenidade, pois estava na nossa frente posicionada uma companhia formada por elementos cuja maioria era africana, fazendo proteção ao material capturado, embora a informação da nossa aproximação já tivesse fluido antecipadamente.
Foi um tanto quanto arriscada esta operação de encontro, frente a frente de uma força com a outra, tendo culminado com total êxito, pois o local era de vegetação densa.
Feita a inversão das viaturas, procedeu-se ao carregamento do material capturado, constando de cerca de 360 granadas de morteiro 120 mm, 2 morteiros do mesmo calibre completos, montados sobre rodas e outros tantos incompletos, 1 prato, mais 1 tripé.
Tratou-se na realidade de uma operação de muito risco para todos quantos voluntariamente acederam ao pedido do então saudoso alferes [Fernando de Sousa] Henriques.
A chegada a Canquelifá já foi tardia, por volta das 23h00, todo o regresso foi feito na escuridão da densa vegetação, apenas a viatura mais da frente acendia esporadicamente os seus mínimos, de salientar o facto de um dos veículos, creio que um Unimog, ter furado um pneu, também não me recordo se à ida, ou no regresso, é facto, assim circulou até à chegada a Canquelifá. Foi uma autêntica odisseia, sem paralelo.
Não posso deixar de realçar uma situação ocorrida já dentro de Canquelifá tendo por protagonistas a minha pessoa, o então carismático furriel mecânico Pais e um militar africano da companhia de Comandos.
Tendo este em seu poder uma pequena arma, que mais se assemelhava à nossa pistola Walter, que procurava vendê-la, alegando tê-la capturado horas antes, na operação, a um elemento feminino do PAIGC, que procurava atingi-lo, protegida por uma árvore, tendo este com a sua perspicácia evitado tal, apontando-lhe a sua G3 e dando-lhe ordem para baixar a arma.
Posteriormente tentou dialogar com ela em várias línguas, sem entendimento possível, tendo finalizado o seu diálogo apontando com a mão esquerda para o seu peito onde sustentava o seu crachá, dizendo-lhe:
− Comando Africano não perdoa! − e utilizando a sua arma G3, fez uma rajada em cruz no peito da mulher, caindo esta junto à árvore.
Relativamente à pistola, o negócio estava terminado, cujo valor para mim era de 100 pesos, tendo o Furriel Pais, valorizado para o dobro, não tenho a certeza da concretização da compra por este.
Dando continuidade ao episódio dos 22 corpos que se encontravam a repousar na grande Mesquita de Canquelifá, começaria por realçar o pedido de 2 voluntários pelo Capitão Cristo, cerca das 8h00 já do dia 22 março 1974, com a pretensão de retirarem os corpos para o exterior da mesma, onde previamente tinham sido colocados uma quantidade necessária de bidões vazios,vasilhame chegado, uns com vinho da Manutenção Militar, outros de combustível para a Mecânica, a fim de os corpos serem sentados no chão, encostados aos aludidos bidões.
A dupla de voluntários então surgida era composta pelos:
(i) o nosso Oliveira, mais conhecido pelo “Mata vacas”, pois tratava-se na realidade de um homem de coragem, se bem me recordo retalhava uma vaca, depois de morta, na sua totalidade em cerca de 20 minutos, trabalho que sempre realizou em prol da alimentação da Companhia, em toda a sua comissão, por ser esta a sua profissão na vida à paisana;
-(ii) segundo voluntário, com alguma margem de incerteza, creio ter sido o carismático “Azambuja”, nome próprio, José Cruz, cozinheiro oficial da CCAÇ 3545, mas que não exerceu.
Realizada operação definida pelo comandante Cristo, cerca das 9h00 chegaram, 1 helitransporte escoltado por 1 helicanhão, para garantir a segurança da sua aterragem. Na placa da pista a segurança era assegurada por um pelotão, como acontecia em situações semelhantes.
Apeados os ocupantes de várias patentes, pertencentes ao Comando Territorial da Guiné, dirigiram-se ao centro, no qual se encontravam os corpos, sendo a primeira missão fotografar individualmente os mesmos por um fotocine vindo de Bissau para o efeito.
De seguida foram transportados num Unimog, também individualmente, sendo-lhes colocado junto ao corpo uma garrafa vazia de cerveja, que continha um ou mais documentos escritos no preciso momento, de conteúdo confidencial.
Reunidos os respetivos requisitos, seguiram destino pista da aviação, onde foram enterrados nos próprios buracos dos foguetões por estes lançados sobre Canquelifá nos dias últimos, não tendo atingido o objetivo por eles planeado.
De realçar o facto de ter sido escalado um pelotão naquele dia e no seguinte, para carga e transporte de terras em Unimog para serem tapados os buracos, entenda-se sepultura dos corpos.
Assim ficou encerrado mais um capítulo de uma guerra subversiva que muitas lágrimas provocaram aos intervenientes de ambas as partes.
(Continua)
(Seleção, revisão / fixação de texto,negritos: LG)
Notas do editor
Vd. também poste de 23 de maio de 2016 > Guiné 63/74 - P16127: (De)Caras (40): A Canquelifá da CCAÇ 3545 (1972-1974) e os acontecimentos de janeiro de 1974: a morte do "ranger" fur mil op esp Luís Filipe Pinto Soares (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)