quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25174: (De) Caras (203): Nota solta (José João Domingos, ex-Fur Mil At Inf)

1. Mensagem do nosso camarada José João Domingos, ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé, Canquelifá, 1973/74), com data de 13 de Fevereiro de 2024:

Nota solta

Caro Luís
Antes de mais as tuas melhoras.

Tenho tido pouca interação com o blogue mas não dispenso a sua leitura semanal. Gosto muito de seguir as publicações dos camaradas que habitualmente o fazem e que muito interesse me despertam.

Nesta altura do campeonato, em que só nos resta fazer a mala, vemos as coisas de forma diferente e, no meu caso, às vezes, assaltam-me momentos de lucidez que me espantam.

Sem preocupação de escalonar por importância é frequente concordar ou discordar de alguns “posts” ou comentários de outros camaradas sobre a temática da guerra na Guiné. Inibo-me de comentar por entender não ter grandes bases para tal até porque, e aí começa o problema, a guerra começou em 1963 e, naturalmente, as condições eram diferentes de 1973. Por outro lado, às comissões de 21/24 meses correspondiam da outra parte largos anos de guerrilha e o profundo conhecimento do terreno e a adaptabilidade ao mesmo.

Ainda na Metrópole senti que as coisas não eram levadas a sério. A vida continuava alegremente, excepto para os Pais que tinham filhos no Ultramar. Os irmãos já sabiam que mais tarde ou mais cedo iam lá parar, só não sabiam em que província e, portanto, havia que gozar a vida.

Em Leiria de passagem e depois a recruta em Santarém, onde encontrei gente de nível militar exigente mas sempre correcto, passei por Tavira onde encontrei um ambiente com ambições guerreiras mas perfeitamente anedótico onde cada um fazia o que o poder lhe permitia sem qualquer coerência.

Formação do batalhão no RI 15 em Tomar com destino à Guiné com muitos analfabetos e alguns “esperados” que, até um cego via, não tinham condições físicas para integrar uma companhia operacional.

Quando cheguei à Guiné, a Bolama, já que o “Niassa” ficou ao largo de Bissau e fomos transferidos diretamente para uma LDG (às cinco da tarde e chegámos a Bolama ao meio dia seguinte), e olhei para aquilo a primeira impressão que tive: “foi isto que estes gajos fizeram em 500 anos?”

Relativamente à guerra nunca pensei em ganhá-la porque, até outro cego via, que tal não era possível.
Descontando a diferença de armamento e da experiência em combate, com manifesta superioridade do adversário (digamos assim), o facto das unidades militares estarem em quadrícula (julgo que é assim que se diz) tornavam-nas num fácil alvo que permitia flagelações a partir das fronteiras dos países vizinhos, com intervalo para as refeições ou para satisfazer necessidades. Por vezes, apenas as valiosas intervenções das forças especiais no terreno permitiam algum descanso.

Por outro lado, as condições de vida nos aquartelamentos em que vivi eram desumanas e a fome era firme e constante, tal como a divisa do meu batalhão. Nunca percebi como é que uns se tratavam tão bem e outros passavam tão mal tendo em atenção que a dotação orçamental era semelhante.

Com o 25 de Abril a guerra na Guiné praticamente terminou tendo começado as negociações. A sobreposição do pessoal do exército colonial pelo PAIGC, pelo menos em Bissau, fez-se calmamente até Setembro, com a exceção da patifaria feita aos camaradas dos comandos africanos que ainda hoje me arrepia. Não estou em posição (nem quero) de julgar quem quer que seja mas aquela canalhice tornou a atormentar-me quando recentemente vi os Estados Unidos (e outros) abandonarem de um dia para o outro os seus colaboradores no Afeganistão.

Acabada a guerra, regresso à Metrópole, procura de emprego, constituição de família e luta constante para a sustentar o melhor possível, ambição natural de todos nós.

Após uma vida de trabalho, a almejada reforma (não venha por aí alguma patifaria) e o acompanhamento frequente dos netos, tarefa que se desempenha com alegria mas que denuncia algum cansaço próprio do avançar da idade (a pedalada começa a falhar).

Em consequência da reforma passei a receber uma prestação anual como ex-combatente que em 2023 foi de 171,90 € (em termos líquidos transformou-se em 107,90 €). Incomoda-me recebê-la por dois motivos: porque, afinal, grande parte é devolvida a quem a paga, isto é, dá com uma mão e tira com a outra, e porque não me faz falta, seria muito mais útil para reforçar o rendimento dos muitos que mais pecisados estão.

Também tive direito ao cartão de combatente que me permitiu ter um passe gratuito para os transportes urbanos (moro em Lisboa) que pode ser utilizado em toda a àrea metropolitana. Nas outras zonas do País não sei se é útil. Quanto ao PIN e à bandeira, dispenso. Contudo, não deixo de destacar a luta dos camaradas que o conseguiram.

Provavelmente, este arrazoado não tem interesse, mas é o que de momento se pode arranjar.

Um abraço
José João Domingos

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Nota do editor

Último post da série de 9 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25052: (De) Caras (201): O cap art 'comando' Nuno Rubim (1938-2023): fotos do meu álbum (Virgínio Briote, ex-alf mil 'cmd', cmdt Gr Diabólicos, Brá, 1965/67)

6 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Meu caro camarada Domingos:

És bem vindo, e a tua colaboração, com maior ou menor regularidade, será preciosa para nos continuar a motivar, agora que chegamos, neste ano (23 de abril de 2024) aos 20 anos de blogue.

Precisamos (nós, os editores, os colaboradores mais próximos, os autores que ainda escrevem, os leitores que anda leem e comentam...) de, olhando em redor, sentir que não estamos cada vez mais sós, e desamparados no meio da picada...

A picada é longa, foi longa, está cada vez com mais minas & armadilhas, e tem acabado abruptamente para muitos de nós... (Só de pensar nos bons amigos e camaradas que ficaram pelo caminho, nestes últimos anos!)

O desencanto, o cansaço, o esgotamento da(s) memória(s), mas também o apaziguamento em relação à guerra e à Guiné (a maior parte de nós já fez contas com o passado...), o envelhecimento, as doenças agudas ou crónicas, o estado do mundo, da África, da "nossa" Guiné, da Europa, do país, a par da demagogia e o populismo que envenenam a nossa vida política e social (e até as nossas relações de amizade), a pobreza de conteúdos das nossas redes sociais, etc.,... tudo isso não nos ajuda a ter ânimo para levar este barco a bom porto...

Às vezes apetece mesmo desistir!... Mas exemplos como o teu e de outros bons e corajosos camaradas, a começar pela nossa pequena equipa, vão-nos dando um "suplmento de alma"...

Também penso, como tu, que lá deixámos nos matos e bolanhas da Guiné o melhor dos nossos verdes anos...Estúpida, cruel, inutilmente, sem honra nem glória!... Olhando para trás, perguntamo-nos como aguentámos dois anos de comissão, como aguentámos mais de uma década, entre 1961 e 1974...

Confesso que tenho dificuldade em comemorar o quer que seja, a não ser o facto de ainda estar vivo e lúcido q.b... Mas continuo, de algum modo, preso a este blogue pelo meu direito e pelo meu dever de memória, como português, cidadão e antigo combatente...Amanhã é outro dia, vou passar a manhã a fazer exames e análises para ser operado, dentro de dias, a uma catarata (só me faltava esta!)...

Resumindo, precisamos de vocês, "periquitos", para ir passando o testemunho... E não ligues ao meu "estado de alma", amanhã é outro dia!... Um alfabravo. Luís

Hélder Valério disse...

Caro amigo e camarada José Domingos

Pois que sejas bem vindo a este espaço, agora de forma formal.
Realmente, 20 anos é obra! E o Blogue tem sido um caso de longevidade.
Claro que como qualquer "corpo vivo" tem fases, uns dias melhores que outros, mas o que por aqui se vai deixando é mesmo muito importante, como legado, principalmente.

Abraço
Hélder Sousa

Hélder Valério disse...

Para o Luís ....

Calma amigo, sendo verdade que tens tido, ultimamente, muitos pequenos (e grandes) contratempos, não penses que esses problemas se esgotam em ti.
Problemas com as pernas, a próstata, as vistas, etc. são o "pão nosso de cada dia".
Fazem parte da vida da maioria dos "velhotes"....
Essa coisa das "cataratas" já não são, em geral, problemáticas.
Vai com confiança, vai correr tudo bem!
Abraço
Hélder Sousa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Obrigado, Hélder,já percebeste que não gosto de hospitais... Ironia, passei uma vida a olha -los de dentro para fora...Inverteram-se os papéis... Obrigado pelo "ombro amigo"
Luís.

Anónimo disse...

Caro Luís, só não fico triste porque sei que vais ficar melhor. Claro que ninguém gosta de hospitais , mas olhando-os como sítios onde nos melhoram a saúde há que entrar lá com algum consolo ou, pelo menos, sair de lá consolados. E é isso que eu e todos os camaradas te desejam. Obrigado, chefe da nossa Tabanca Grande. Um grande abraço.

Carvalho de Mampatá

Anónimo disse...

Caro Domingos.

Estive em Mampatá, C.Art 6250, 1972/1974. Por certo passaste alguma vez pela enfermaria de Mampatá onde eu era enfermeiro. Lembro-me do teu batalhão e da vossa passagem e permanência, julgo que por poucos meses, em Colibuia, sítio onde também estive alguns dias. Sempre que passa por aqui alguém que pisou o mesmo sítio, sinto um prazer acrescido ao ler o que escreve sobre a nossa guerra. Neste caso subscreveria tudo o que dizes no teu texto.

Um grande abraço.
Carvalho de Mampatá