quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25172: Historiografia da presença portuguesa em África (409): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (6) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Junho de 2023:

Queridos amigos,
Depois de percorrer longamente a região Sul, o tenente da Armada Real identificou a nova porção de território da Guiné portuguesa, a península de Cacine, voltou a Bolama, aproveitou para fazer inventário, seguiu para o Casamansa, região que descreve primorosamente, mesmo recorrendo a documentação do colega francês, naquela data é hasteada a bandeira francesa, Portugal perde qualquer influência na região do Casamansa. Mas o tenente Costa Oliveira não se irá despedir de qualquer maneira, refere a importância de Bolor, está em ruínas, fará imensas considerações sobre o modo de desenvolver a Guiné, escreve com elegância, revela-se um observador atentíssimo. Pena é que este registo histórico não seja alvo de revisitação, que um estudioso procedesse a comentários à luz da atualidade, o mínimo que se pode dizer de tão precioso relatório é que ele faz parte do bilhete de identidade tanto da Guiné portuguesa como da Guiné-Bissau.

Um abraço do
Mário



Um documento assombroso: Viagem à Guiné Portugueza, por Costa Oliveira (6)

Mário Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 8ª série, números 11 e 12, 1888-1889, acolhem um documento de grande valor histórico intitulado “Viagem à Guiné Portugueza”, o seu autor é E. J. da Costa Oliveira, oficial da Armada Real, comissário do governo para a delimitação das possessões franco-portuguesa da costa ocidental de África. Fez-se a viagem de Bolama até ao Sul, o Tenente Costa Oliveira não esconde o seu deslumbramento com tanta beleza natural e vai perseguir com as suas ricas observações que permitem ao leitor de hoje perceber o que era a vida no Sul não só da Guiné portuguesa como da Guiné francesa.

É um relato quase em forma de diário, percorre-se toda esta zona do Sul, no fundo a comissão francesa faz a entrega histórica à comissão portuguesa da região de Cacine e percorrem-se territórios da fronteira do lado ocidental. Regressa-se a Bolama e o relato agora é sobre o Casamansa, é a vez da comissão francesa ir tomar formalmente conta da região. Costa Oliveira cita o seu colega francês M. Brosselard, ele começa por enaltecer a importância de Ziguinchor, e temos depois comentários da descida do rio Casamansa e Zinguichor, aqui se deixa o registo dado o seu inegável interesse:

“Acima de Sedhiou (Selho, em português) pode subir-se a algumas milhas além de Dianah. Deste porto às origens a distância não pode ser vencida senão por canoas ou pirogas de fundo chato. De Adeane a Dianah as duas margens são revestidas de uma luxuriante vegetação e árvores gigantescas, principalmente em Yatacounda, onde as únicas clareiras que se encontram são ocupadas pelas aldeias. A enchente vai até Selho e facilita a navegação de cúteres e goletas da ilha de Gorée. Um vapor vai em doze horas da embocadura do rio a Selho, as embarcações de vela gastam três dias.”

A missão francesa voltou a 24 de abril no aviso Goëland a Ziguinchor e tomou posse da aldeia portuguesa que tinha sido evacuada alguns dias antes. O pavilhão francês foi arvorado no dia seguinte de manhã na presença dos principais habitantes e saudado com 21 tiros de peça regulamentares. Mas voltemos às observações do tenente da Armada Real.

Em Ziguinchor as habitações confortáveis são raras, o mais que se pode encontrar são três ou quatro casas de negociantes construídas à europeia, as outras habitações são cubatas bastante elevadas. A ocupação de Ziguinchor regula a questão da posse do Casamansa, que se tornou de facto num rio francês. Antes de tomar posse da aldeia portuguesa, os vapores vindos da Europa descarregavam em Gorée, onde recebia os produtos do Casamansa. Doravante, estes vapores virão diretamente às pontes de Ziguinchor, esta é uma pequena colónia que parece ser destinada a capital do distrito de Casamansa; Selho conservará a sua importância militar e Carabane será o posto aduaneiro do rio. Costa Oliveira continua a invocar dados de M. Brosselard e há aqui uma observação bastante curiosa:

“A população muitas vezes mostrou a respeito do seu governador uma antipatia que se traduzia por atos de revolta. Entretanto, os portugueses manifestavam grande tolerância, haviam mesmo deixado subsistir costumes e usos pouco admissíveis sob a proteção da bandeiro de uma nação civilizada; também um dos meus primeiros atos foi suprimi-los.”

Voltemos agora ao discurso direito do Costa Oliveira, ele também se deu ao trabalho de se pronunciar sobre o Casamansa:

“A barra do Casamansa é desabrigada, cheia de escolhos, de difícil acesso a todas as embarcações, particularmente às da vela. É por isso que toda a navegação de cabotagem é feita pelos rios Cajinolle e Elinkin, e principalmente por este, mais profundo e largo do que aquele. É também por este rio, o Elinkin, que facilmente se consegue introduzir contrabando na Guiné portuguesa, como vamos explicar. Nenhum português, desconhecido daquelas tribos, se atreve a desembarcar em Bolor, e com maior razão as autoridades aduaneiras, militares ou civis. Sendo assim, como é, qualquer negociante, de Cacheu, por exemplo, pode estabelecer os seus depósitos ou armazéns, na certeza de que o fisco não o irá perturbar com as suas exigências legais! Estabelecidos os depósitos longe da ação fiscal, o resto é simples e pertence às canoas que de noite, ocultas pelas sombras dos mangais, vão rio acima descarregar os artigos que pretendem furtar aos direitos, nas pequenas sucursais espalhadas pelas margens dos rios e esteiros.”

Ocupada Ziguinchor, reunidas as comissões, e depois de longos debates, assina-se finalmente o processo verbal, Costa Oliveira regressa a Bolama e fica à espera de um paquete que o conduza a Lisboa. É neste compasso de espera que ele vai omitir opiniões e apresenta propostas, é talvez um dos pontos altos em que se revela o seu poder descritivo:

“Naquele país sem outeiros nem vales por toda a parte se navega por entre muralhas impenetráveis de viçosíssimos mangais que tapam as margens, sotopostas às verdes palmeiras de dez castas diferentes, aos corpulentos poilões, aos elevados cedros e mil outras espécies de árvores tão antigas como o solo aonde prendem. A perspetiva exterior da Guiné é, pois, encantadora; mas assim como entre essas ramagens floridas se aninham venenosas serpentes, também à sombra desse arvoredo parado se aspiram miasmas que ameaçam morte; tudo está em resistir ao primeiro combate: a vitória fica segura para sempre.

É nesses plainos intermináveis e paludosos da Guiné portuguesa que correm os rios de S. Domingos, de Geba, do Corubal, o Grande de Bolola, o Tomboli (certamente o rio Tombali), o Cubac (?), o Combilham (Cumbijã) e o Cassini (Cacine).

Na embocadura do rio S. Domingos, em Chão de Felupes e no extremo de uma extensa praia de areia que para ali se estende desde a aldeia Jefunco, veem-se ainda hoje as ruínas do presídio de Bolor, que era formado por dois meios redutos horizontais e céspede e fachina sobre estacaria… miseravelmente tem caído em ruína pelo completo abandono em que tem estado aquele ponto, e, contudo, não merece tal desprezo: de toda a nossa Guiné é esta a posição mais saudável e para lá vão convalescer os doentes de Cacheu, por ser um solo de areia desassombrado de matas em derredor e exposto às virações frescas do mar; pela sua situação já indicada é ali que deveria estar a alfândega de Cacheu e talvez a força, como queria Gonçalo de Gamboa; embora ficasse Cacheu como está, uma feitoria fortificada, os habitantes aqui viveriam em perfeito sossego e livres dos contínuos rebates a que em Cacheu estão sujeitos, nada tendo a recear do gentio Felupe, que adora os brancos; além do muito arroz que se faz anualmente neste chão e de que se sustenta a praça de Cacheu (a qual morreria de fome se lhe faltasse o arroz de Bolor), concorre a este ponto todo o trato de cera e couros da grande região dos Felupes, e o da mata de Putama, o comércio de Ziguinchor por aqui passa forçosamente para ir a Cacheu e também é aqui a escala entre Bissau e Cacheu.”


O relato do tenente da Armada Real vai agora prosseguir com uma descrição muito rápida das lanchas que conviriam ao serviço da Guiné, seguir-se-ão ainda mais observações e, por fim, as conclusões, está praticamente no seu termo o relato admirável de alguém que foi assistir à chegada de uma porção de território, a região de Cacine, e ao fim da presença portuguesa no Casamansa.

Carta da Guiné Portuguesa, século XIX, Arquivo Histórico-Ultramarino
Carta da província da Guiné, 1912
Carta da colónia da Guiné, 1933
Antiga Sede do Banco Nacional Ultramarino em Bolama, posterior Hotel do Turismo, hoje completamente desaparecidoAtual edifício do Centro de Formação Pesqueira de Bolama. Imagem retirada do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia.

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 7 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25144: Historiografia da presença portuguesa em África (408): Um documento assombroso: "Viagem à Guiné Portugueza", por Costa Oliveira (5) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Os franceses hastearam a bandeira em Ziguinchor com uma salva de 21 tiros.


Era mais difícil chegar com um canhão à tabanca de Cabedú para hastear a bandeira portuguesa com 21 tiros.