sábado, 31 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14208: Memórias de Copá (4) : Janeiro e Fevereiro de 1974. Memórias da guerra. O abate do último avião na Guiné. (António Rodrigues)


1. O nosso Camarada António Rodrigues, ex-Soldado Condutor Auto da 1.ª CCAV do BCAV 8323, Bolama, Pirada, Paunca, Sissaucunda, Bajocunda, Copá e Boruntuma (a minha 1.ª CCAV/BCAV 8323 tinha as suas forças aquarteladas em Bajocunda e Copá), 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem:

Caros Camarigos, 


Na sequência do texto publicado neste Blog no passado dia 7 (P 14128) aqui vos deixo mais um pouco das minhas memórias da guerra, como testemunho do que se passou em Copá em Janeiro e Fevereiro de 1974. 


Copá. Janeiro e Fevereiro de 1974.
Memórias da guerra. O abate do último avião na Guiné.

Entretanto Copá continuava calmo desde o dia 7 de Janeiro de 1974 e assim se manteve durante praticamente todo o resto do mês, mas o infernal dia 7 tinha deixado vários estragos, entre os quais os pneus e o depósito de combustível da viatura (única) furados, o que fez com que durante cerca de três semanas não tivéssemos viatura para irmos à água e à lenha, remediávamos com a lenha que se ia arranjando à volta do quartel e a água, ia o pessoal de cada abrigo buscar a sua com latas. 

Mas, um belo dia eu acordei bem disposto e resolvi consertar os furos nos pneus e no depósito, neste último com um taco de madeira certo à feição e a meio da tarde desse dia 31 de Janeiro de 1974 eu tinha o carro pronto a andar e continuava com a mesma boa disposição com que me tinha levantado de manhã. 

Fui para o abrigo e até fiz o serviço do puto, lavei a mesa e os bancos e no fim sentei-me na cama sozinho a pensar numa notícia que dias antes tinha ouvido na rádio do PAIGC e que dizia que, até ao fim do mês Copá seria arrasado, ora aquele era o último dia do mês e pensando nisto de súbito comecei a sentir uma grande tristeza, não sei por que razão, mas o meu coração adivinhava algo de mal. 

Despi a roupa, peguei numa toalha e preparava-me para ir tomar um banho. 

Quando já com a toalha à volta da cintura ia a sair a porta do abrigo, ouço ao longe uma saída de morteiro, que só me deu tempo a atirar-me de barriga para o chão e já estava a rebentar na minha frente. 

Eram cerca das 17h30 e, começava assim mais uma violenta flagelação a Copá com morteiros 120, confirmava-se a tristeza que eu tinha sentido antes, porque durante esse ataque iria acontecer uma coisa trágica e quase inédita na guerra colonial ou pelo menos rara. 

Esta era mais uma flagelação da artilharia do PAIGC a Copá, quebrando a relativa paz de quase um mês, flagelação essa que iria ter a duração de cerca de hora e meia a duas horas, tendo caído dentro do arame farpado perto de 20 granadas felizmente sem consequências. Esta flagelação a Copá, foi desferida a partir de duas bases distintas: a artilharia do PAIGC estava instalada na região da fronteira frente a PANANG R e na região nordeste de Copá, SINCHA JADI. 

Visto que, como prevíamos um ataque em força, pedimos auxílio ao Comandante de Batalhão e este por sua vez pediu-o a Bissau ao Governador-Geral Bettencourt Rodrigues, que imediatamente mandou dois aviões Fiat G-91 em auxílio de Copá. 

Esses aviões tinham naquela altura o nome de código de «Miquel», enquanto Copá se chamava por sua vez «Ex-Rei-Victor» e era por estes nomes que se comunicavam os pilotos dos aviões e o homem das transmissões. 

Logo que os aviões Fiat começaram a sobrevoar a área de Copá, como de costume, o inimigo calou-se, os Pilotos pediram ao homem das transmissões as referências necessárias e prepararam-se com as manobras que entenderam para bombardear o local indicado, um de cada vez, o primeiro sobrevoou o local, depois baixou de altitude e largou a primeira bomba sobre SINCHA JADI, enquanto o segundo se mantinha à distância, mas quando o primeiro descarregou a bomba, começou a ganhar novamente altitude, embora estivesse a acontecer uma coisa estranha, ouviu-se um segundo rebentamento e o avião levava lume na cauda, a determinada altura, quando ele já ia bastante alto, vimos perto dele uma pequenina sombra que nos parecia um pássaro a voar, mas logo de seguida o avião guinou para o lado esquerdo, neste caso para o lado do Senegal e começou de novo a baixar, e nessa altura pensávamos nós em Copá que ele iria largar a segunda bomba numa outra base inimiga, que nos estava a flagelar a partir daquela direcção, (PANANG R) mas era puro engano, o avião ia acabar por se despenhar, talvez próximo ou dentro do território Senegalês a cerca de 3 a 4 Kms de Copá, enquanto o piloto que era a pequena sombra que antes tínhamos visto junto ao avião se tinha ejectado ao aperceber-se que fora atingido por um Míssil Russo (Strela Terra-Ar) e desceu de pára-quedas sem qualquer problema, só que, a área onde ele desceu era perigosa, porque era aquela onde se encontrava o inimigo e distante de Copá cerca de 5 Km. 

Quanto ao avião, ao despenhar-se no solo, provocou uma estrondosa explosão e chamas com uma altura enorme, o que foi com certeza motivo de grande alegria para os homens do PAIGC que acorreram todos para o local da queda e que com aquela acção se deram por satisfeitos naquele dia, tendo terminado por isso aquela flagelação a Copá. 

A queda do avião deu-se por volta das 7 horas da tarde, quase ao anoitecer e o inimigo dirigiu-se imediatamente para o local, pelo que passado pouco tempo era já noite, eles lançaram do local da queda um very-light vermelho, sinal luminoso que nos indicava a presença deles naquele local. O segundo avião Fiat ao aperceber-se do que tinha acontecido ao primeiro abandonou o local a todo o gás na direcção de Bissau e ninguém mais o viu. 

O piloto do avião abatido, veio a descer precisamente no local onde minutos antes tinha largado a bomba e a sorte dele, foi o inimigo ter saído dali para ir ver os destroços do avião, senão talvez tivesse sido feito prisioneiro, mas ele ao ver-se em terra, largou o pára-quedas e talvez desorientado desatou a fugir, mas não se dirigiu a Copá e, no outro dia de manhã ainda ninguém sabia dele, pelo que, nesse mesmo dia de manhã, começaram a chegar a Copá uma série de helicópteros, 2 avionetas e 2 aviões Fiat para fazerem uma busca e tentarem localizar o piloto desaparecido. Nesse conjunto de helicópteros era transportado o famoso Sargento dos Comandos Africanos, de seu nome, Marcelino da Mata e o seu categorizado e célebre grupo de homens por ele treinado e conhecido em toda a Guiné durante a guerra colonial, pela forma corajosa e eficaz como combatiam ao lado das tropas Portuguesas. 

Mas as buscas durante toda a manhã com todo aquele aparato aéreo, tornaram-se infrutíferas e o piloto não apareceu, apenas encontraram o pára-quedas e algumas granadas do PAIGC e, como o homem não aparecia, ao fim da manhã regressaram a Bissau. 

Mas por volta das 5 horas da tarde desse mesmo dia, chegou a Copá uma mensagem que dizia, que o Piloto Tenente Gil (8), tinha aparecido num aquartelamento prós lados de Nova Lamego (soube mais tarde que esse aquartelamento era Piche) e que tinha já contado a história da sua aventura, que era a seguinte: mal chegou a terra começou a andar praticamente sem destino e andou quase toda a noite e no dia seguinte, com a sorte de não ter sido apanhado por ninguém, até que chegou a uma certa povoação e pediu a um homem Africano que o guiasse até ao quartel mais próximo, o que realmente aconteceu e só nesse momento é que ele pode comunicar que estava vivo e livre de perigo e tinha terminado também aquela sua com certeza muito marcante aventura. 

(8) Piloto Tenente, Victor Manuel Castro Gil 




Link do episódio Nº. 17 da Série "A GUERRA" da RTP:
www.rtp.pt/programa/tv/p28097/e17

Um abraço,
António Rodrigues
Sold Cond Auto do BCAV 8323



Mini-guião: © Colecção de Carlos Coutinho (2012). Direitos reservados. 
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

7 DE JANEIRO DE 2015 > Guiné 63/74 - P14128: Efemérides (181): Copá – Janeiro de 1974 (António Rodrigues, ex-sold cond auto, 1ª CCAV / BCAV 8323, Bolama, Pirada, Paunca, Sissaucunda, Bajocunda, Copá e Buruntuma, 11973/74)


Guiné 63/74 - P14207: Agenda cultural (373): Nós, os portugueses, e os 7 mil milhões de outros: Fundação EDP, Museu da Eletricidade, Lisboa, 7 de fevereiro, 16h00... A não perder!

 

Cortesia da página da Fundação EDP > Multimédia > / mil milhões de outros > Ver aqui vídeos e imagens da inauguração.

1. Aqui vai uma sugestão cultural para este e o próximo fins de semana:

Fundação EDP (Museu da Electricidade,Belém, Lisboa) > Videio-exposição:

7 MIL MILHÕES DE OUTROS

Good Planet Foundation

8 novembro 2014 a 8 fevereiro 2015
Lisboa, Belém, Museu da Eletricidade

Sinopse:

Quem são, como vivem, o que sonham, o que têm a dizer os 7 mil milhões de habitantes do planeta? O que os une e os separa? Uma exposição que é o retrato vivo da humanidade dos nossos dias.

"7 mil milhões de Outros" é uma exposição criada em 2003, que já percorreu os quatro cantos do mundo, e que nos dá um retrato real e atual da humanidade. Palavras e testemunhos de mais de 6.000 pessoas de 84 países, incluindo Portugal.

Ao entrar em "7 mil milhões de Outros" somos convidados a fazer uma viagem à volta do mundo e ficamos a conhecer os medos, os sonhos, os problemas e esperanças de gente tão diferente e distante como um pescador brasileiro, um sapateiro chinês, um artista alemão ou um empresário afegão.

Testemunhos obtidos através de 45 perguntas, todas iguais, sobre 30 temas universais - família, amor, morte, perdão, clima, natureza, sentido da vida, desafios ou sonhos de infância - que nos ajudam a encontrar o que nos separa, mas sobretudo o que nos une.

Ver aqui vídeos e imagens da inauguração.

2. E a não perder mesmo (, já me registei, por email, vou lá estar), a última das "7 conversas sobre a humanidade!:

"Os Portugueses", 7 de fevereiro de 2015, 16h00

Intervenientes: António Barreto, Pilar del Rio, Eduardo Lourenço, Fernando Pinto (presidente da TAP), José Gil, Catarina Portas, Fernando Dacosta, Tiago Pereira (entrevistado para o documentário Portugueses).

Moderação de Catarina Furtado

A entrada é livre com marcação prévia para:

tertulia.7billion@gmail.com


Sinopse:

“Portugueses”  > Como se veem os portugueses? Como são vistos pelos outros?

Com uma história e uma cultura de muitos séculos, Portugal é hoje um destino de imigração e turismo.

Que ideia têm os portugueses de si e que ideia têm os outros de nós? O que é hoje ser Português na Europa e no mundo global?

País do fado e da saudade, de sol e de mar, Portugal é feito de “gente desenrascada, atrevida, hospitaleira, tímida e insegura”. Cliché ou realidade?

Valorizamos o que é nosso ou só o fazemos depois de alguém de fora o elogiar?

Um conjunto de portugueses anónimos e estrangeiros com ligações afetivas ou profissionais a Portugal, responde a estas e outras questões num documentário que revela um olhar peculiar sobre o que é ser português no século XXI. 

(i)                  Para os Portugueses, qual a maior qualidade do povo português? E o maior defeito?
(ii)                E para os estrangeiros?

(iii)               O que é ter orgulho em ser português?


3. Quarenta e cinco perguntas à humanidade

As 45 perguntas feitas pela equipa de repórteres  do projeto  “7 mil milhões  de Outros”:

01 Apresente-se, indicando nome, idade, profissão, situação familiar e nacionalidade.

02 Qual é a sua profissão? Gosta do que faz?

03 O que é que a família representa para si?

04 O que é que pretende transmitir aos seus filhos?

05 Em que medida ter educação, e saber ler e escrever é importante?

06 O que aprendeu com os seus pais?

07 As suas condições de vida são melhores do que as dos seus pais?

08 O que considera difícil de dizer aos seus filhos? À sua família?

09 Qual é a sua maior alegria?

10 Qual é o seu maior medo? O que é que mais o assusta?

11 O que é que mais o irrita?

12 O que sonhava em criança?

13 Qual é o seu maior sonho hoje?

14 Renunciou a quê?

15 É feliz? O que é para si a felicidade?

16 O que gostaria de mudar na sua vida?

17 O que é para si o amor? Considera que dá e recebe amor suficiente?

18 Qual foi a última coisa que o fez dar uma gargalhada?

19 Quando foi a última vez que chorou? Porquê?

20 Qual foi a prova mais difícil que teve de enfrentar ao longo da sua vida? O que aprendeu com essa situação?

21 Tem inimigos?

22 O que o levaria a matar alguém?

23 Pelo que estaria disposto a morrer?

24 Perdoa com facilidade? O que não seria capaz de perdoar?

25 Sente-se livre? Da sua vida do dia-a-dia, não conseguiria passar sem o quê?

26 O que viu mudar no seu país?

27 Gosta do seu país? Alguma vez quis sair do seu país?

28 O que significa para si a natureza?

29 Viu a natureza mudar desde a sua infância? E o que faz para preservá-la?

30 A sua vida é afetada pelas alterações climáticas?

31 O que é que o dinheiro representa para si?

32 O que é para si progresso e o que espera dele?

33 Considera que todos os homens são iguais? O mundo é justo?

34 Para si, a vida das mulheres e dos homens é igual?

35 Qual é o maior inimigo do Homem?

36 Qual o melhor amigo do Homem?

37 Porque é que os homens fazem guerras? O que podemos fazer para reduzir o número de guerras?

38 Presta contas da sua vida de todos os dias a um Deus?

39 O que acha que existe depois da morte?

40 Sabe alguma oração? Pode dizê--la?

41 Qual é, para si, o sentido da vida?

42 O que gostaria de dizer ou que questões gostaria de colocar às pessoas que o vão ver?

43 Qual é a sua canção preferida? Cante-a…

44 O que pensa desta entrevista, desta troca? Qual acha que é o seu objetivo?

45 Gostaria de acrescentar alguma coisa em jeito de conclusão?

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Nota do editor:

Último poste da série > 25 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14185: Agenda cultural (376): Apresentação dos livros "Descobrir Angola - Rumo às terras do fim do Mundo" e "Rumo ao Cazombo, 6.º e 7.º Raids todo-o-terreno do Kwanza-Sul", dia 28 de Janeiro, às 15h00, no Palácio da Independência, Lisboa (Manuel Barão da Cunha)

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14206: Notas de leitura (675): “Senhor médico, nosso alferes”, por José Pratas, By the Book, (www.bythebook.pt, telefone 213610997), 2014 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Janeiro de 2015

Queridos amigos,
São memórias, escritas com fulgor, com lembranças carinhosas e trágicas, nada de romance, são sketches admiráveis sobre o que era a preparação de um alferes miliciano médico, o confronto do jovem médico com aquelas estranhíssimas doenças tropicais, os acidentes, os mortos e os feridos; a sua indignação com uma certa hierarquia bacoca e a sua profunda admiração por gente galharda, que se lhe atravessou no destino.
Não conheço nenhum escrito com este, explosivo e terno. “Parece que não combina bem, médico e militar” ele viveu essa contradição nos termos e deixa-nos um documento de primeira grandeza para a literatura da guerra da Guiné.
Leitura imperdível.

Um abraço do
Mário


O médico militar na guerra colonial: um testemunho surpreendente (2)

Beja Santos

Não é a primeira vez que um médico escreve sobre a guerra que experienciou, na I Guerra Mundial houve testemunhos que hoje fazem parte da História, como os de Jaime Cortesão, e na guerra colonial basta recordar o que escreveu António Lobo Antunes. Mas “Senhor médico, nosso alferes”, por José Pratas, By the Book (www.bythebook.pt, telefone 213610997), 2014, é, a todos os títulos, um acontecimento documental relevante e inconfundível. José Pratas fez a sua comissão na Guiné entre 1971 e 1973, na região do Gabu e do chão Manjaco. Não conheço nenhum testemunho como o de este alferes miliciano médico: a sua admiração pelo valor dos nossos soldados, a sua indignação pela amnésia do poder político, incapazes de perceber que a mobilização perto de um milhão de portugueses não é estigma e devia ser motivo de reconhecimento da pátria pelos seus bravos: o desassombro das suas críticas à preparação dos médicos militares que marchavam para África com uma incipiente preparação profissional. José Pratas desvela o que era o ensino da Faculdade de Lisboa e como o médico aprendia à sua custa num ambiente e num quadro sociocultural totalmente desconhecido. Mas também a incompreensão e a boçalidade de certas chefias que estavam sempre à espera de dons miraculosos do médico.

Vemo-lo em primeiro lugar em Pirada, o que dá motivo para exaltar os seus colaboradores que não tinham mãos a medir para atender aos doentes daquele ponto do Leste onde diariamente chegavam senegaleses. Discreteia sobre as doenças tropicais, fala da sua própria doença, das suas relações litigiosas com oficiais superiores, um capitão execrável e capelães que pairavam sobre a realidade. Em Pirada, tinha um agente da PIDE na vizinhança, bom para seviciar e intimidar, o Carvalho, substituído pelo senhor Pereira que tinha farroncas mas com as flagelações termia como varas verdes.
Também em Pirada vivia Mário Soares, com quem Pratas conviveu, pode aperceber-se como o Soares intermediava entre o PAIGC e as autoridades portuguesas, houve encontros secretos à mesa da sua sala de jantar ou no respaldo das cadeiras de lona. Tinha acesso privilegiado às informações da PIDE, ascendente junto das redes de informadores locais, geria com astúcia o assédio e a adulação das autoridades locais. Reflete sobre o drama deste protagonista entre dois campos em confronto: “O tempo corria em seu desfavor, porque a guerra no terreno se perdia em cada dia que passava e era facilmente previsível a derrota da teimosia de Lisboa. No seu relacionamento com a tropa, este europeu, porventura o branco mais africano que conheci, só a muito custo conseguia refrear os impulsos beligerantes das chefias militares, sedentas de ação, indisponíveis, por dever de ofício, para tolerar diplomacias paralelas de que muitas vezes é feita uma guerra de guerrilha”.

E veio a independência e mais problemas para Mário Rodrigues Soares: “Poucos dias depois seria preso e enviado para Bissau. Ter-lhe-á valido a intervenção de Alpoim Calvão, que intercedendo a tempo junto do novo dono do Palácio do Governo, o terá arredado da mira das armas de um pelotão de fuzilamento. Deportado, chegou a Lisboa com a roupa suja que ainda trazia vestida, para ser detido de imediato no aeroporto da Portela pelo COPCON e arbitrariamente preso em Caxias sem culpa formada. Libertado sem julgamento, ultrapassou tranquilo todas as prepotências e perdoou com indiferença aos mandantes e funcionários do PREC”.

Por dever de ofício, o seu dia-a-dia também é composto pela fiscalização dos alimentos. Atividade de alto risco, como ele nos conta: “Numa região de cisticercose endémica, o médico – improvisado veterinário – achava-se obrigado, por força do regulamento a fazer a autópsia de uma vaca, comprada viva, esquálida e lazarenta. Mais de cinco cisticercos na superfície do músculo da vaca equivalente à da palma da mão, havia que rejeitar e mandar enterrar miudezas e carcaça regadas com gasolina, para desespero da contabilidade do sargento vagomestre. Sangue e fígados infetados de fascíolas, à temperatura de 40ºC, provocam um vómito esquisito”.

Sentiu-se gratificado com o trabalho feito lá para as regiões do Cacheu, sobretudo no contacto que estabeleceu com oficiais e sargentos que comandavam uma força de marinheiros fuzileiros africanos. Pode comparar os tratamentos entre os três das Forças Armadas, e deixa o seguinte comentário: “Sobressaía a inexplicável iniquidade de trato nos três ramos das Forças Armadas, já que a dotação de recursos para alimentação por cada homem era obrigatoriamente idêntica para todos os militares nas mesmas circunstâncias. Definitivamente os estômagos não eram de facto todos iguais e a cultura de conforto e bem-estar experimentados pelos militares da Marinha e da Força Aérea não tinha paralelo com a prática do desmazelo e incúria na maioria das unidades do exército”.
José Pratas foge ao romanceado, o que aqui regista é um olhar amplo que vai da incipiente preparação, a qualidade humana ou a sua falta, os paradoxos da perceção dos militares e civis sobre o que efetivamente podia fazer, com aqueles limitados recursos, o alferes médico. É um testemunho, adverte-nos que nunca fará considerações sobre a guerra, o que lhe interessa sobre maneira são as histórias reais a que ele chama dramas, desesperos, sacanices, ilusões, privações, a doença, a infelicidade das gentes. Pelo que se lê, foi bem-sucedido nessa contradição dos termos. Lega-nos páginas belíssimas como aquela em que fala do seu estado de alma enquanto aguarda a lancha que o vai levar até Bissau:
“Remoía a desilusão de que, em quase nada, afinal, havia contribuído para mudar o rumo da guerra que, depois de mim, outros ainda tiverem de continuar a penar. Sem capacidade para ajudar a silenciar o fogo das armas, sem competência para apaziguar as razões que se travaram no campo daquela batalha, sem a expectativa de uma solução à vista para o conflito que Portugal dirimia no Ultramar, apenas me prestava a vaga convicção de ter pessoalmente proporcionado algum alívio aos que sofriam e algum conforto àqueles a quem piedosamente menti, nos momentos finais da sua agonia. Para a maioria dos combatentes era impossível adivinhar o desfecho da guerra e antecipar a data do armistício e a maior aspiração de cada um era a de, tão-somente, ver chegar o dia como aquele que àquela hora para mim estava quase a raiar e voltar para casa tentando esquecer o que jamais se pode esquecer”.

Para mim, este “Senhor médico, nosso alferes” foi o mais importante acontecimento literário da guerra colonial da Guiné, em 2014.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14190: Notas de leitura (674): “Senhor médico, nosso alferes”, por José Pratas, By the Book, (www.bythebook.pt, telefone 213610997), 2014 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14205: Historiografia da presença portuguesa em África (56): Revista de Turismo, jan-fev 1956, número especial dedicado à então província portuguesa da Guiné: anúncios de casas comerciais - Parte VIII (Mário Vasconcelos): Mais 4 lojas de Bissau, três delas já com telefone















Fotos: © Mário Vasconcelos (2015). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Mário Vasconcelos
1. Continuação da publicação de anúncios de casas comerciais, da Guiné. Reproduzidos, com a devida vénia, de Turismo - Revista de Arte, Paisagem e Costumes Portugueses, jan/fev 1956, ano XVIII, 2ª série, nº 2. (*).

Trata-se de uma gentileza do nosso camarada Mário Vasconcelos [,ex-alf mil trms, CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, COT 9 e CCS/BCAÇ 4612/72,Mansoa, e Cumeré, 1973/74; foto atual à direita] que descobriu um exemplar, já raro, desta edição, no espólio do seu falecido pai.

Dos 4 anúncios acima apresentados, registe-se a particularidade de se tratar de lojas já com telefone... [Recorde-se que a moderna sede
dos Correios e Telégrafos data de 1950 e é obra do arquiteto lourinhanense Lucínio Cruz, que pertencia ao Gabinete de Urbanização Colonial]:

(i) Luz António de Oliveira, telefone nº 67

(ii) Mamud ElAwar & Co Lda

(iii) Casa Humberto,. de Humberto Salgueiro Rosa, telefone nº 43

(iv) João Baptista Pinheiro & Irmão, telefone nº 102

Mamud ElAwar, tal como Aly. Souleiman e  Michel Ajouz, já aqui referidos, era então um dos mais conhecidos comerciantes da Guiné, de origem libanesa. O  Salim Hassan ElAwar devia ser seu irmão  (ou membro da família):tinha lojas em Bafatá e Cacine.

Não sabemos se o Mamud ElAwar era muçulmano (provavelmente era, pelo nome e apelido). Já o Michel Ajouz devia ser cristão maronita, por celebrar o natal cristão e ter uísque em casa para oferecer aos militares de Bissorã, como foi o caso do nosso camarada Manuel Joaquim, que passou com ele o natal de 1965.  (Os cristãos maronitas  são cerca de de 3,2 milhões em todo o mundo, obedecem ao Papa da Igreja Católica, mas têm uma liturgia própria; no Líbano, serão um pouco mais de 1 milhão, constituindo mais de 20% do total da população). (LG)

PS - Não sei se este Pinheiro e irmão eram famíliares do nosso camarada Carlos Pinheiro, um dos nossos cicerones de Bissau do nosso tempo. Tenho ideia que o Carlos tinha lá, em Bissau,  uma família de comerciantes, seus parentes. Havia também um Costa Pinheiro, que era um casa importanmte, Enfim, é um assunto que  o nosso camarada pode esclarecer, se assim o entender.

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Notas do editor:

Último poste da série > 26 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14191: Historiografia da presença portuguesa em África (51): Revista de Turismo, jan-fev 1956, número especial dedicado à então província portuguesa da Guiné: anúncios de casas comerciais - Parte VII (Mário Vasconcelos): Quem não se lembra da Casa António Pinto ou "Pintosinho". alegadamente a melhor e a mais moderna loja da província ?

Postes anteriores:

24 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14178: Historiografia da presença portuguesa em África (50): Revista de Turismo, jan-fev 1956, número especial dedicado à então província portuguesa da Guiné: anúncios de casas comerciais - Parte VI (Mário Vasconcelos): (i) João Said Handem (Gadamael); (ii) Jacinto Maria de Figueiredo Duarte (Bedanda, com filial no Chugué e Cafine); (iii) Michel Ajouz (Bissorã); e (iv) Hipólito da Costa Ribeiro (Fulacunda): compra e venda de mancarra, coconote, óleo de palma, fazendas, miudezas, mercearias...


24 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14178: Historiografia da presença portuguesa em África (50): Revista de Turismo, jan-fev 1956, número especial dedicado à então província portuguesa da Guiné: anúncios de casas comerciais - Parte VI (Mário Vasconcelos): (i) João Said Handem (Gadamael); (ii) Jacinto Maria de Figueiredo Duarte (Bedanda, com filial no Chugué e Cafine); (iii) Michel Ajouz (Bissorã); e (iv) Hipólito da Costa Ribeiro (Fulacunda): compra e venda de mancarra, coconote, óleo de palma, fazendas, miudezas, mercearias...

22 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14173: Historiografia da presença portuguesa em África (49): Revista de Turismo, jan-fev 1956, número especial dedicado à então província portuguesa da Guiné: anúncios de casas comerciais - Parte IV (Mário Vasconcelos): Há, pelo menos, 6 comerciantes libaneses em Bafatá: Jamil Heneni, Toufic Mohamed, Rachid Said, Fouad Faur, Salim Hassan Elawar e irmão

21 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14169: Historiografia da presença portuguesa em África (48): Revista de Turismo, jan-fev 1956, número especial dedicado à então província portuguesa da Guiné: anúncios de casas comerciais - Parte III (Mário Vasconcelos)

20 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14167: Historiografia da presença portuguesa em África (47): Revista de Turismo, jan-fev 1956, número especial dedicado à então província portuguesa da Guiné: anúncios de casas comerciais - Parte II (Mário Vasconcelos)

20 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14164: Historiografia da presença portuguesa em África (47): Revista de Turismo, jan-fev 1956, nº especial dedicado à então província portuguesa da Guiné: anúncios de casas comerciais - Parte I (Mário Vasconcelos)

Guiné 63/74 - P14204: (Ex)citações (259): Sobre o paradeiro do Pintosinho, e mais histórias de Bissau no pós-independência... E já agora, quando querem fazer um encontro da Tabanca Grande aqui no Fundão ? Prometo ter "ostras e camarões da Guiné"... (Mário Serra de Oliveira)

1. Resposta, com data de 28 do corrente, de Mário Serra de Oliveira a um pedido de informação sobre o Pintosinho, a conhecida casa de António Pinto, em Bissau, do nosso tempo (*):

[foto à esquerda: Mário Serra de Olievria, ex-1.º cabo escriturário, BA 12, Bissalanca, 1967/68; viveu nos EUA; é autor de Palavras de um Defunto... Antes de o Ser (Lisboa: Chiado Editora, 2012, 542 pp, preço de capa 16€]


Olá, grande e estimado Luís Graça:

E um prazer imenso trocar algumas palavras com a pessoa por detrás de um dos blogues que eu mais aprecio... quiçá por me tocar também a mim fazer parte da tertúlia.

Agora, antes de responder, permite-me pedir desculpa pela falta de acentos. Estou a usar um portátiç devido a que, já depois de aqui chegar, a EDP teve a gentileza de ter uma queda de tensãoo, e queimou-me o computador com o teclado português. Sei que vais compreender.

Respondendo... começo por dizer que conheci, e muito bem, o Pintosinho (creio que pai e filho). Foi lá que comprei uma carrinha Renault 4 (de "gola" alta) e muita outra mercadoria.

Ter sido preso não foi do meu conhecimento directo. Eu continuei a vida de labutar - e mais ainda depois do 25 de Abril - por ter adquirido casas do meu ramo (comes e bebes) a alguns dos nossos que decidiram vir embora.

Casa Pintosinho, Bissau, 1956 (*)
Creio que o Pintosinho não ficou em Bissau. Recordo, isso sim, um representante nativo que, por casualidade, até andava a cobrar dívidas, incluindo algumas minhas. O que era mais que nomal, uma vez que se comprava a mercadoria a 30, 60, 90 dias, era prática corrente, tal como numa economia livre. Recordo que, temporariamente ou não, aquilo tinha fechado.

Agora, se quiseres saber mais, tenho muitos amigos guineenses, alguns nos EUA, alguns em Dakar (Embaixada dos EUA - ex-colegas de trabalho na mesma Embaixada onde trabalhei também, em Bissau) e, mesmo na Guiné penso ainda estar vivo o António Pinheiro - da Casa Pinheiro, localizada ao lado direito da rua paralela à avenida principal, se esvermos a olhar para o Palácio, junto ao rio - om quem tratei de alguns assuntos com ele em Braga, à frente de uma exportadora ICIC, qualquer coisa.

Ele estava ligado a uma empresa de Angola chamada a "Friango" (Angola Free) para onde as Caves Primavera exportaram cerca de 5 milhões de contos em vinho tinto. Eu tentei arranjar crédito para a LC (Letter of Crédito) do Banco Nacional de Angola...e até era possível, misturando a mesma LC (má) com outras LC boas, tal como fizeram os bancos americanos ao misturar "crédito bom com crédito mau, sobre empréstimos imobiliários. Algo assim parecido esteve quase a ser realizado, à custa de "algo para alguém" que tratava do assunto. Talvez se lhe posssa chamar "vigarices" mas, na guerra, vale tudo! Não seria guerra com armas mas guerra económica.

Vou perguntar sobre o Pintosinho à minha amiga Nené Cabral, em Dakar, cujo marido foi preso após o golpe de Novembro, do Nino, derrubando o Luís Cabral. Eu estava lá. Fui acordado pelo meu chefe americano, para que me refugiasse na Amembassy. Lá fora, só se ouviam disparos tipo castanholas e, aqui e ali, uma morteirada. Era excitante a alegria que se sentia, pelo menos por mim, e pelos locais...já que que o sentimento de descontameto pairava no ar. Uma tensão de "cortar à faca".

Desculpa lá o desvio da conversa principal mas eu vivo isto a cada dia da minha vida. Tanta injustiça que presenciei, que, o que sinto, está enraizado em mim.

Entratanto, gostaria de levar à consideraão dos organizadores dos almoços, a possibilidade de, numa próxima, o mesmopoder ser relalizado noutro cantinho de Portugal. Por exemplo, cá na minha aldeia, onde existem vários ex-camaradas anánimos (não têm computador). Existe o Carlos Couto, dono do Hotel Samasa (Fundão) que me conheceu no Pelicano. tem capacidade para organizer tudo o que for necessário. Prometo ter "Ostras e Camarão" da Guiné. Prometo tentar ter a presenca do Embaixador da Guiné.

Abraço fraternal

Mario S. de Oliveira (**)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 26 de janeiro de 2015 >  Guiné 63/74 - P14191: Historiografia da presença portuguesa em África (51): Revista de Turismo, jan-fev 1956, número especial dedicado à então província portuguesa da Guiné: anúncios de casas comerciais - Parte VII (Mário Vasconcelos): Quem não se lembra da Casa António Pinto ou "Pintosinho". alegadamente a melhor e a mais moderna loja da província ?

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14203: Manuscrito(s) (Luís Graça) (44): A triagem de Manchester e o paciente português




A triagem de Manchester
e o paciente português




por Luís Graça






Na sala de espera
do banco de urgência
há pacientes que desesperam
com paciência,
pacientes com paciência de santo,
leia-se com a compostura do santo,
sentado num banco.

Gente que não conhece
a porta do cavalo do hospital.
Muito menos tem santo-e-senha
para entrar no paraíso
no dia do juízo final.
– Mais logo, eu estou de banco, apareça!–
...Ou então esqueça e desapareça,
arre!,
da lista dos (im)pacientes vivos,
que só atrapalham quem trabalha
e quem se empenha!
Sangrai-o e sangrai-o
e, se morrer, enterrai-o.


Há um jovem casal
de apaixonados,
just married,
ela de fitinha amarela, no pulso,
lívida, branca, exangue, gravidíssima,

no banco do hospital.

Há dois negros que dormitam
e que devem sofrer de paludismo.
Estão ali há horas, quiçá dias,
semanas, meses, anos, séculos,
Poderiam ter vindo dos arrozais do Sado,
há décadas atrás,
tremendo de sezonismo.
Estão de fita verde, ecológica...
Mas... mal por mal,
antes cadeia que hospital
e antes justiça que misericórdia.


Há um casal de paquistaneses
ou de indianos,
eu sei lá,
hindus ou muçulmanos.
Ele é o (im)paciente,
de fita laranja,
que o sistema de Manchester
é quem mais ordena
e não olha à cor ou ao tom da pele,
muito menos à raça
que, no reino, foi abolida por decreto real:
– Racista, eu, sra. enfermeira ?
Até tive um amigo preto da Guiné,
ex-combatente da guerra colonial,
meu camarada,
de saudosa memória.
Trabalhava, no gosse gosse,
no estaleiro do subempreiteiro,
que dizia que não era mal nenhum aquela tosse,
que o matou,
mas isso é outra história,
era da tísica,
era da sida,
era do catarro,
era do tabaco,
era do bagaço,
era do tempo
que fazia no hemisfério norte.
Afinal, foi o trabalho que o matou,
dizendo-lhe, esses, sim, os racistas,
que o trabalho era bom p´ró preto!
E quem tem trabalho tem sorte!...

Há velhos.
Muitos.
Azuis.
Em saldo.
Doentes de solidão,
abandono,
exaustão.
Doentes de Alzheimer,
Parkinson,
fim de estação.
Chegam ambulâncias,
de Almoçageme, Alcáçovas, Alcácer, Almargem...
Da outra margem,
tristes lugares ao sul,
onde a morte se veste de branco e azul
em paredes caiadas:
– Tentativa de suicídio –
diz o bombeiro para o securitas,
e p’rós mirones, voyeuristas
e tabagistas,
que estão lá fora,
ao relento da noite.
– A velha quis matar-se com comprimidos,
imaginem, a maluca!
Digam-me lá se tinha alguma necessidade de fazer isso ?!–
pergunta,
entre raiva e a mágoa,
a nora que chora,
como a nora que range
sob os alcatruzes ajoujados de água.

Alentejanos, ciganos,
mouros, sefarditas, africanos,
jovens de brinquinho,
colarinhos azuis, muitos,
brancos, poucos,
dourados, nenhuns,
ativos e não ativos,
pescadores, traficantes,
toxicodependentes,
mães solteiras, aflitas,
domésticas em robe de dormir,
famílias monoparentais,
doentes pré-terminais...
E até um um cão,
um canito, magricela,
a quem os (im)pacientes dão bolachas.

Há um português emergente
em cada dez.
Vermelho.
Doente,
(im)paciente,
dormente,
pouco ou nada eloquente,
muito menos inteligente,
quiça moribundo,
diz o sistema de triagem de Manchester.

Há um português muito urgente
que vem na ambulância do 112,
da emergência médica pré-hospitalar.
De um triste lugar ao sul.
Há um português laranja,
que fica em segundo lugar,
e que tem direito a subir ao pódio
no jogo da sorte e do azar.

O resto não conta,
são verdes, azuis e amarelos,
fura-greves,
racha-sindicalistas,
proletas,
marretas,
hipocondríacos,
daltónicos,
queixinhas,
refratários,
fujões,
desertores,
contribuintes ilíquidos,
grafiteiros,
com camisas às florinhas,
cidadãos de segunda,
gente que não presta,
feios, porcos e maus,
vítimas de todas as gripes sazonais,
uni-vos!,
gente de baba e ranho,
pouca honesta,
que fuma
e que bebe
e que come a street food,
as bifanas de Vendas Novas
ou as sandes de coiratos,
e que vive da economia subterrânea,
paralela,
informal,
e dos subsídios da exclusão social,
que anda sempre com o credo na boca
e a crise na algibeira,
e que nunca ouviu o professor Pádua
a dizer que no andar é que estava o ganho!...

Que já não há o azul
nem o verde
do meu país,
nem as outras cores do arco-íris,
na paleta das cores do gestor
dos doentes e das doenças.

Que há fé,
e até caridade,
mas pouca, muito pouca, esperança,
Senhor;
por isso, seja paciente,
tenha compaixão de nós,
ponha lá isto na sua lista
de recados e lembretes,
e não nos deixe cair em tentação
de fugir ao fisco.
E muito menos nos deixe expor ao risco
de perder a cabeça
quando ela um dia for precisa para pensar.

Queimaram-lhe os ossos,
depois de morto,
ao pobre do Garcia d' Orta,
o patrono.
Ironia, mau sinal, pior prenúncio.
Não se põe nome de cristão novo
na porta,
na tabuleta,
no anúncio!

Haja Deus!,
implora o bravo pescador português,
quando a medonha tempestade
parece querer engolir
o seu barco, casca de noz.

Haja saúde!,
Senhor,
Senhor Ministro.
com a sua licença,
Senhor Ministro da Doença,
que eu vou escrever no livro amarelo de reclamações,
que a palavra vem do latim minister,
de minus,
menos, servidor,
aquele que serve alguém, superior,
um mestre, magister,
que, esse sim, vem de magis, mais, maior...
E esse alguém, aqui,
só pode ser o povo,
o pobre do paciente português,
perdido no labirinto
do sistema de triagem de Manchester.

E a não ser assim, 
sou eu que minto,
ou então é porque é cínica
a declaração da missão vigente,
é blá-blá a acreditação clínica,
é treta o novo organograma, afinal:
Em cima o utente,
Em baixo o presidente!


...É triste e feia e fria
a sala de espera da urgência
do hospital.

Luís Graça
v8 29 jan 2015



O sistema de triagem de Manchester, adotado em Portugal em 2004. Fonte: Cortesia de Governo e Portugal > Ministério da Saúde > Centro Hospitalar de Leiria

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Nota do editor:

Guiné 63/74 - P14202: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (36): Fazendo votos para que o tchon Manjaco, o tchon Fula, o tchon Pepel e o tchon do Largo São Domingos se entendam sempre como nestes últimos 40 anos.



Lisboa, Festival Todos - Caminhada de Culturas, 11 de Setembro de 2011... Largo de São Domingos > Monumento "Lisboa, cidade da tolerância", lema de Lisboa para o mundo, escrito em 34 línguas... Memorial, inaugurado em 2008, às vítimas judaicas do massacre de Lisboa de 19 de Abril de 1506... O Largo de São Domingos é, na baixa lisboeta,  um dos locais de encontro preferidos de muitos dos nossos antigos camaradas guineenses (fulas, manjacos, papeis, mandingas...) que se fixaram em Portugal, depois da independência da Guiné-Bissau

Foto e legenda: © Luís Graça / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2011). Todos os direitos reservados.


1. Mensagem do nosso "mais velho" Antº Rosinha [ex-fur mil em Angola, 1961/62, topógrafo da TECNIL, Guiné-Bissau, em 1979/93, ex-colon e retornado, como ele gosta de dizer com a sabedoria, bonomia e o sentido de humor de quem tem vidas para contar ...]:


Data: 18 de janeiro de 2015 às 18:59

Assunto: Colonizações, Descolonizações e Emigrações-Os muçulmanos do General De Gaulle e os do General Spínola)


Como espero que não melindre demais e dentro de certa "liberdade de expressão", como agora está na moda este termo, publica se entenderes, Luis Graça,  e cumprimentos para todos.

Luis Graça,  podes considerar impróprio, mas oportuno penso que é,  este assunto dentro de uma "guerra colonial", que é daquilo que de certa maneira  se trata hoje em plena Europa ex- colonial, com aquelas confusões francesas.

Não sei se é verdade ou mentira, mas quando foi da independência de Argélia, falava-se em Luanda por entre a censura de Salazar, que o gen De Gaulle teria dito, naquela euforia dos argelinos, que "ainda vão sentir muito a nossa falta".

Mas, verdade ou mentira De Gaulle ter dito tal coisa,  foram milhões de argelinos que não passaram sem aquela vivência e tranquilidade francesa e refugiaram-se lá [, na França].

E naquela altura, quem vivia como eu, futuro retornado, em Luanda,  sabíamos que ia ser mais ou menos o que se passou e passa, só que não sabíamos que ia ser tão grave para os europeus e africanos. (Na Argélia, foram genocídios tribais sem conta,)

E agora vamos, embora numa dimensão pequeníssima, à emigração dos nossos  "spinolistas"  guineenses.

Então é assim:

Os Guineenses em Lisboa fizeram do  Largo de São Domingos um simpático ponto de encontro e, como a maioria são ou eram inicialmente fulas de tendência muçulmana, superam em muito as  meia dúzia de idosas cristãs que frequentam aquela velha igreja desse Largo de São Domingos.

Penso que aquela igreja passava a ter mais frequência de muçulmanos como mesquita do que hoje com meia dúzia de idosas cristãs. E quem discordava de aquela igreja virar mesquita se os muçulmanos não lançassem a moda dos véus e burkas das bajudas?

E quem levava a mal, se os muçulmanos não proibissem as bajudas de entrar nas marchas de Santo António de Lisboa em Junho?

Também ninguém condenava coisas desses africanos, nossos amigos, e alguns antigos companheiros de tropa, se não trouxessem hábitos normais na terra deles, mas muito estranhos em Lisboa, tais como a excisão feminina.

E, desde que os muçulmanos de Lisboa condenassem ou pelo menos não adoptassem burkas nas mulheres e excisões nas bajudas, e não proibissem as esposas se estas quisessem  entrar nas marchas de Santo António,  talvez  muitos  portugueses e guineenses lisboetas que não são ateus,  se entendessem religiosamente.

Sem dúvida que a Europa tem que pregar aquele ditado que diz que "Em Roma sê Romano". Mas a Europa, que não considera os íberos europeus de corpo inteiro, dá muitos tiros nos pés, por tradição.

E um  dos piores tiros que deu nos pés, depois das 3 Grandes Guerra perdidas, a 1ª a 2ª e a Guerra Fria, foi as independências (abandonos de milhões de povos africanos totalmente impreparados para se autogovernarem fora das tradições milenares em que viveram sempre).

E os Americanos, Russos e Suecos, com a «dignidade abolicionista»  da Guerra Fria,  tiveram muitas culpas na desgraça dos africanos que atravessam a nado o Mediterrâneo e invadem a Europa aos milhares onde se inserem muitos lobos (terroristas) no meio dos cordeiros.

Quem diria que um dia assistiríamos a um tipo de guerra tribal em plena Paris! Na Nigéria e no Niger já se passa coisa idêntica.

E como estamos no blogue da Guiné, fazemos votos que, como até aqui, que o Tchon Manjaco e o Tchon Fula e o Tchon do Largo São Domingos e o Tchon Pepel se entendam sempre como estes últimos 40 anos.

Antº Rosinha

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Guiné 63/74 - P14201: Os nossos regressos (33): Ficámos na Amura, a aguardar embarque no Uíge... Partimos para Lisboa em 30 de outubro de 1968 (Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art MA, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68)

1. Texto enviado pelo Mário Gaspar [ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), autor do livro de memórias "O Corredor da Morte" (Lisboa, 2014)], enviado a 13 do corrente:


Caros Camaradas da Tabanca Grande

A Companhia de Artilharia 1659 (CART 1659), com o lema “Os Homens não Morrem”, foi rendida pela CART 2410, penso que em 20 de Outubro de 1968. Rumámos a Bissau, do mesmo modo como chegáramos a 19 de Janeiro de 1967, quando rendemos a Companhia de Caçadores 798, na LDM e no Batelão. Para eles era a alegria do fim da comissão. Saíam já outras viaturas com os militares da Companhia rendida, que gritavam sorridentes em altíssimos berros:
- Salta periquito, salta periquito…

Pouco ou nada lembro da viagem para Bissau. Parece mais que o regresso não existiu, e que eu fiquei lá nas matas e nas bolanhas da Guiné.Não me recordo de ter tirado fotografias, na lancha em que segui para Bissau, mas elas existem e estavam num rolo da minha máquina fotográfica Canon, e estão aqui.






Guiné > Outubro de 1968> LDM  > Viagem Gadamael-Bissau  > Na LDM, de regresso a Bissau: o  meu Pelotão, estou de tronco nu e lenço no pescoço, na segunda fila a contar de baixo.




Guiné > Outubro de 1969 > LDM  > Viagem Gadamael-Bissau > A minha secção, sou o terceiro de cima





Guiné > Bissau > Outubro de 1968 > Eu, no Forte da Amura, a muitos poucos dias de embarcar no Uíge




Guiné > Bissau > Praça do  Império > Monumento Ao Esforço da Raça > Outubrod e 1968 > Eu, Mário Gaspat, aguardando o regresso


Lembro-me sim de chegar a Bissau, de entrarmos em viaturas. Fizemos muito barulho, cantámos, também a Marcha da Companhia, querendo acordar Bissau. Ficámos aquartelados no Forte da Amura. Ficámos a fazer todos serviços inerentes ao posto de cada um. Tínhamos os dias livres, e procurávamos comprar algumas prendas para oferecer aos nossos familiares quando do regresso, tão desejado, a casa. Dali, seria Lisboa o destino. As esplanadas estavam cheias, e enquanto conversávamos uns com os outros, íamos bebendo umas cervejas, normalmente algumas mesas na esplanada enorme do Hotel Portugal.




Guiné > Bissau >Outubro de 1968 > A dias do embarque de regresso, na esplanada do Hotel Portugal


Era o nosso local de encontro. Falava-se só de guerra. Nós acompanhávamos toda a situação de guerra em toda a Guiné. Até viemos a saber que a Companhia [, CART 2410,] que nos rendera já tinha tido problemas graves. À noite, numa esplanada, ainda comprei umas catanas, e outras prendas. No Mercado de Bissau, adquiri, máscaras de pau-preto, piripiri ou jindungo e muitos petiscos – principalmente pombos verdes no “Zé da Amura”, os pregos no “Benfica”, e cerveja, ostras e camarões em todo o lado. E mulheres todas, até as do MNF [, Movimento Nacional Feminino], que até tinha bons pedaços.




Guiné > Bissau > s/d m[. c 19690/70]   > "Praça Honório Barreto e Hotel Portugal"... Bilhete postal, nº 130, Edição "Foto Serra" (Colecção "Guiné Portuguesa") (Detalhe). 

Colecção: Agostinho Gaspar / Edição: Blogue  Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).



Como o General Spínola, na última visita que nos fizera em Gadamael Porto, pedira para que fossem distribuídos camuflados novos a toda a Companhia, visto aqueles que possuíamos estarem todos rôtos, a nossa Companhia começou a ser conhecida em Bissau por ZORBA, outros militares julgando sermos uma Companhia de periquitos, visto vestirmos fardas acabados de chegar do Casão Militar, diziam sempre:
– Salta periquito!...
– Salta? Vai já saltar! – Respondíamos quase em uníssono – afinal éramos a Família ZORBA. E toca de mandar umas bofetadas a quem tinha dito tal frase. Foram-se habituando à nossa presença, e já diziam:
– Esses tipos são velhos, são da ZORBA!

Os dias foram passando. Ainda fiz um serviço de Sargento da Guarda. Foi quando conheci pessoalmente, o agora cantor consagrado, Marco Paulo.

Na Casa da Guarda, vendo a documentação existente, verifiquei que tinha um preso detido. Depois de pensar que esta situação me poderia trazer alguns problemas, decidi mandar chamar o 1.º Cabo Cozinheiro. Disse-lhe o que se passava, tendo ele respondido:
– Eles possuem as chaves da prisão, costumam sair por vezes, e regressam depois! – Respondi-lhe:
– Pelo sim pelo não, faz-me o favor de mandar chamá-lo?!

Depois de falar com o rapaz que estava preso, dizendo-lhe que estava no fim da comissão, e que não fosse acontecer-lhe algo, eu poderia ser prejudicado,  ele respondeu:
– Volto já para a prisão, meu Furriel, tem razão!

Comecei a ler um livro de Rainer Maria Rilke, oferecido por uma das minhas madrinhas de guerra.





Guiné > Bissau > Outubro de 1968 > Almoço de despedida da CART 1659


Os dias todos iguais demoravam a passar e o paquete Uíge, da CCN [, Companhia Colonial de Navegação] nunca mais chegava. A CART 1659 organizou um almoço num grande restaurante em Bissau. Foi uma grande festa e cantámos, mais de uma vez, a Marcha do Regresso, a música foi executada por meio dos sons dos pratos, dos talheres, de palmadas das mãos nas mesas e com o bater dos pés no chão.

Finalmente no dia 30 de Outubro de 1968 embarcámos para Lisboa. Tal como sucedeu, no embarque numa lancha para Bissau, não me recordo da saída de Gadamael, nem mesmo como entrei no Uíge e foi parar ao porão uma mala de cânfora, com alguma bagagem dentro. (*)

Não regressaram três camaradas.

Mário Vitorino Gaspar
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 1 de agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13455: Os nossos regressos (32): Fotos do álbum do ex-1º cabo bate-chapas, pelotão de manutenção comandado pelo alf mil Ismael Augusto, CCS/BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70)

Guiné 63/74 - P14200: Parabéns a você (854): Luís Graça (Henriques), ex- Fur Mil de Armas Pesadas Inf da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71), fundador e Editor deste Blogue de ex-Combatentes

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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14192: Parabéns a você (853): Mário Serra de Oliveira, ex-1.º Cabo Escriturário da BA 12 (Guiné, 1967/68)

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Guiné 63/74 - P14199: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (18): Férias

1. Em mensagem do dia 26 de Janeiro de 2015, o nosso camarada Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), depois uma longa ausência para recuperar energias, enviou-nos a sua décima oitava "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

18. Férias


Bissorã, 13/9/1966 - Fur. Milicianos Adrião Mateus e António Magalhães, da CArt 1525, e Manuel Joaquim (CCaç 1419) posam na pista de aviação enquadrados por camaradas da CArt 1525 e ansiosos por partir para férias. No fundo da foto percebe-se a imagem do DAKOTA CR-GAT que levará os três para Bissau. 

Foto: © Adrião Mateus. 

Vale de Figueira, 13/3/66

(... ... ...)
Faltam poucos meses para gozares as tuas férias. Regozijo-me com o saber que terás possibilidades disso. Mas, meu querido, tal como vivo contente, ansiando a hora de te abraçar, tremo de temor e de insegurança; receio este encontro contigo. (...).

Meu querido, sê razoável e compreensivo ao analisares o que vou dizer-te. (...). Sugiro-te que seria melhor não regressares daí sem teres terminado definitivamente a comissão estipulada.
Mais vê:

Depois de passares cá as férias, já com perfeito conhecimento e experiência do que por aí se passa, será bastante mais difícil e doloroso teres de voltar para o mesmo inferno. É que já vais com os olhos bem abertos. Não vais decerto como quando foste inicialmente, com a esperança de que isso aí é melhor do que o que por cá se conta.

Para mim também terá um sabor bastante amargo. Compreendes-me, querido? Não quero dizer, terminantemente, que não venhas. Faz o que entenderes. É apenas uma opinião minha.
(... ... ...)

Bissorã, 17/3/66
(... ... ...)
Esperemos que isto vá correndo razoavelmente e cá fico a pensar, para já, em Setembro, altura em que irei ter contigo. Mas ainda falta tanto tempo! (...). Escolhi Setembro por verificar que seria essa altura aquela em que eu mais precisaria de descansar. Além disto arranjaria alento para a arrancada final, sempre a mais difícil de suportar.

Setembro será o mês do ano! Será o mês do nosso encontro. Ah, quanto eu desejo abraçar-te, quanto desejo ouvir-te, minha querida, sentir-te feliz junto de mim!
(... ... ...)

Vale de Figueira, 23/3/66

Tenho comigo a tua última carta. Gosto muito dela, meu querido. E, perante a tua alegria e todo o teu entusiasmo pela possibilidade de uma visita próxima, peço-te desculpa se as minhas palavras, que já deves ter em teu poder, ensombram de algum modo toda essa alegria, toda essa esperança. Decerto, meu querido, que compartilho também essa alegria. Mas eu desperdiço muitas vezes possíveis momentos de felicidade, só porque o terrível pessimismo anda comigo.

Vem sim, meu amor. Eu quero-te aqui comigo. Receio esse contacto? São preocupações antecipadas que nada adiantam. É muito mais sublime e nobre encarar os problemas de frente e resolvê-los calmamente no momento oportuno. (...).

Meu M. querido, (...) parte da última carta é já sem valor. Porque eu quero que venhas. Queria mesmo que viesses hoje se tal fosse possível ... Peço muita desculpa se te indispus e quero agora significar todo o meu apoio ao teu projecto de férias. (...). Ah, Setembro! Quando apareces? (...).
(... ... ...)

Quinta de S. Lourenço, 9/4/66
(... ... ...)
Meu querido M., tenho a comunicar-te que passei um domingo de Páscoa na mais completa satisfação e alegria que me foi possível. Estive com os teus pais no Casal Novo.

E então, gostas? Sabes que tu, meu amor, estiveste sempre presente? Não sentiste? Eu sei que te alegras com a nossa alegria, que sentes a nossa tristeza, que comungas da nossa possível felicidade.
Domingo de Páscoa fizeste connosco o voto de em Setembro nos encontrarmos de novo. Saudosamente te esperamos.
(... ... ...)

Maqué, 10JUL66

Não, não mudei de terra. Estou, simplesmente a "estagiar" num "lindo sítio" (...) onde o meu grupo faz segurança a uma ponte. (...). O abrigo onde estamos instalados é uma autêntica fortificação. Ainda bem. (...). Salve-se a pele que o resto suporta-se. (...).

Em Setembro aí estarei. Não poderei faltar. (...). Anseio pelas férias. Não interessa que passem depressa ou que, ao regressar, sinta ainda maior dor do que a que senti quando vim da 1ª vez.
Preciso, em primeiro lugar, de descanso. Depois ... preciso de vos ver, a ti e a todos os elementos que mais unidos estão a este teu querido.
(... ... ...)

Vale de Figueira, 12/7/66

(... ... ...)
Estamos a poucos meses do nosso reencontro mas parece-me que agora os meses têm mais dias e os dias mais horas. É a ansiedade, a vontade de precipitar esse acontecimento (...). Aguardemos então esse dia com alegria e certeza (...).
(... ... ...)

14/9/1966 - Chegada a Lisboa

Após o entusiasmo da chegada, surgiu o problema da repartição do tempo de férias de modo a poder visitar os meus familiares e amigo(a)s mais chegado(a)s. Era previsível que, no fim, alguém se queixaria.


Lockheed L-1049G Super-Constellation: Terá sido este o avião utilizado para as minha férias. Fez a carreira Lisboa-Bissau no período de 1961-1967. 

Imagem retirada, com a devida vénia, de «restosde coleccao.blogspot.com»

Cacém, 15/9/66

Reencontrei-te! ... Nos beijos e abraços, gestos de amor e paixão, toda a diversidade de sentimentos, de estremecimentos, de sensações neles experimentei! (...) Não te reconheci, de início, no meio da multidão, meu querido. Era o nervosismo, a ansiedade de cair nos teus braços e de depor nos teus lábios ardentes e sensuais o calor dos meus beijos, (...). Lembras-te do que te disse ontem?

Custaram-me mais a aguentar os momentos de expectativa que antecederam a tua chegada, (...), do que todo o tempo que já passei afastada de ti. (...).

Beijos da tua N., extensivos à tua mãezinha.

Até sábado, meu Amor

Foi chegar e partir de novo no dia seguinte, agora a caminho de Pombal, para os braços da Mãe querida. E os dias de férias lá foram sendo geridos com base em três polos: Pombal, Leiria (ligações escolares e profissionais) e Lisboa (área de trabalho e de residência da namorada).

Logo verifiquei que o tempo era pouco para o que queria fazer. Ainda por cima tinha programado encontrar-me com algumas das minhas correspondentes. Não tendo transporte próprio, estava sujeito aos horários de comboios e de autocarros, transportes lentos e por vezes escassos.

Foi um mês de lufa-lufa, de um lado para o outro. Se houve razões de queixa da Mãe, a verdade é que nunca mas mostrou. Não aconteceu o mesmo com a namorada.

Eu queria acudir a todo o lado, actualizar-me recolhendo informações sobre o que se passava na chamada Metrópole, discutir os problemas político-sociais, esquecer-me do dia-a-dia da guerra, coisa difícil de esquecer quando estava entre os meus entes mais queridos. O tema "guerra" e o fantasma do meu regresso estavam sempre presentes, o tempo tinha outra dimensão, parecia-nos muito mais perto o dia do doloroso regresso.

Perante isto surgiram alguns desentendimentos, não com a Mãe mas com a namorada. Esta, ao invés de ter tido umas semanas felizes junto de mim, deu por si a lamentar-se pelas minhas "longas" ausências. Sabia e compreendia bem que minha mãe tivesse prioridade mas via os outros como seus "inimigos" na luta pela minha presença. Disfarçou mais ou menos bem até ao fim das férias. Mas durante o tempo de espera de embarque, no aeroporto, apareceu-me fria e distante, de pouca conversa e dispersiva nos diálogos, comportamento que atribuí às amarguras da despedida. E assim, disto convencido, regressei à Guiné a 19 de Outubro.

Logo na sua carta de 23 de Outubro me deu o toque quanto à razão da sua frieza na despedida. Poderia o caso ter ficado por aqui mas resolvi replicar a tal toque, defendendo o meu comportamento, de que resultou uma polémica que durou bastante tempo. E só então percebi que não houve só prazer e alegria no nosso encontro e quão difícil lhe foi suportar as minhas ausências, ausências que ela não imaginara virem a ser tão frequentes, principalmente as motivadas pelos encontros que tive com as minhas correspondentes.


Lockheed L-1049G Super-Constellation em Bissalanca, aeroporto "Craveiro Lopes". 

Imagem em postal ilustrado, edição «Foto Serra-Bissau».

Mansoa, Outubro-24/66

Cá estou, minha querida, respirando o calor e o "calor" deste famigerado ambiente. Um poucochinho roído de saudades, com uma vontade doida de correr para ti. Cá, a situação continua na mesma. Ainda estou em Mansoa mas talvez vá hoje para Bissorã. Se não for, melhor. Tenho de aproveitar todas as oportunidades que se me deparam para me safar da guerra. Eu quero é ir para ti (...).
(... ... ...)

Cacém, 23/Outubro/1966

Não infiras, pelo meu comportamento um pouco frio na despedida, que nele haveria sinais de desprendimento. (...). Se o sentiste, e agora doi-me sobremaneira, se o meu comportamento devido ao meu estado psíquico nesse dia te induziu a tais conclusões, quero dizer-te agora para o não levares a sério. Contrariamente a tudo isso, e abstendo-me já de pieguices e lamúrias, amo-te cada vez mais e também cada vez mais de maneira diferente, com mais conhecimentos, mais responsabilidades na arte de amar e de me fazer amar.

Com esta nova separação, corajosa e duramente enfrentada, (...), começou para mim mais uma etapa para uma nova vitória para, novamente minada pela saudade, voltar a experimentar a alegria incontrolável do reencontro. (...).

Sem dúvida, meu M. querido, a despedida terá sido bem mais dolorosa para ti. Esperam-te mais uns meses de árdua labuta. Quando actuamos porque é forçoso actuar, em prol do que nunca ousaríamos levantar um dedo, amarfanhando princípios e ideais, nada nos poderá sorrir (...).
Mais um esticão e estarás de volta, meu Amor. Reage ao desalento como sempre o tens feito e, se possível, abstém-te, torna-te estranho a todo esse ambiente de guerra e devassidão política em que estás metido. É a minha opinião, na ânsia de ajuda que te quero prestar.
(...)

Há ainda uma coisa que hoje quero referir, meu M. querido. As nossas relações neste curto período de contacto não se processaram dentro daquele quadro de harmonia que eu esperava. Não tenho de me queixar pois para tal dei contributo. Actuei, reconheço-o, umas vezes por orgulho mas verdadeiramente mais por teimosia e despeito. Nem por isso expresso o meu total arrependimento porque não seria verdadeira ao afirmá-lo.

Meu Amor, é assim a tua N. A que encontraste, modificada, mais bela mercê do teu entusiasmo e da ansiedade em a sentires real a teu lado, reflexo da felicidade e do entusiasmo que a dominavam; a que deixaste, mais melancólica mas mais gaiata, reflectindo as certezas da nossa magnífica união, a total certeza na sobrevivência do nosso Amor; e ainda a que encontrarás no teu regresso, mais bela ainda, mais mulher na reflexão da suprema ventura de nos sabermos definitivamente a respirar no mesmo ambiente, (...).

Nestas três pessoas descortinarás a tua mulher, estou certa. Essa hora soará e as páginas que escreveremos de aí em diante ofuscarão brilhantemente a fúnebre e horrenda palavra guerra, a qual agora nos aparece como prato diário. Paz queremos nós! É esta a ambição que se nos instila para seguramente virmos a alcançar essa paz, (...).

Amorosamente te beijo e abraço, meu querido.

Tua N.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de junho de 2013 > Guiné 63/74 - P11767: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (17): Jovens politicamente atentos