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quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27541: Historiografia da presença portuguesa em África (508): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1952 (66) (Mário Beja Santos)

Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf
CMDT Pel Caç Nat 52

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Junho de 2025:

Queridos amigos,
É interessante notar como se vai processando a intervenção do Estado na economia, cresceu o funcionalismo, procuram-se melhorar as condições de vida das classes intermédias, dando-lhes habitação, vão surgindo novos bairros, mais alargados esquemas de saúde, substituem-se as fórmulas puramente coloniais como o imposto de palhota que dá lugar ao imposto indígena e na regulamentação não se deixa de fazer a menção de que importa pela via tributária ir procurando dissuadir a poligamia; a Guiné passa a ter uma associação de futebol, ganhou uma autossuficiência no arroz, exporta oleaginosas, não se encontra uma só menção às suas riquezas piscatórias. Usando a fórmula de Salazar, viver habitualmente, tudo parece que a Guiné engrenou nas regras do jogo colonial, procura-se melhorar a agricultura, convém recordar que Amílcar Cabral vai chegar com a sua primeira mulher e ele envidará esforços para melhorar as potencialidades da Granja de Pessubé, mais adiante irá fazer o recenseamento agrícola, a que o Governo português se comprometera com a FAO. No Boletim Oficial, até diminuíram as referências aos problemas disciplinares. Mas há homens avisados, como Castro Fernandes, antigo Ministro da Economia e agora administrador do BNU a quem cabe o pelouro da Guiné, que lançam alertas sobre a necessidade premente de passar a um novo patamar da evolução, é que o mundo vai entrar numa ebulição descolonizadora. Mas aqui, em Portugal, assobia-se para o lado.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Guiné, 1952 (66)


Mário Beja Santos

Não é explicito, quando lemos este Boletim Oficial, que a exploração dos recursos já não é feita por empresas estrangeiras, dera-se uma operação de nacionalização a partir do comércio, mesmo as concessões de aforamentos de terras recai em grandes empresas como a CUF ou a Sociedade Comercial Ultramarina ou agentes económicos portugueses, cabo-verdianos e sírio-libaneses. É assim que se pode compreender como no Boletim Oficial n.º 3, de 17 de janeiro, o Governador determina o preço das oleaginosas no ano corrente, é o caso da mancarra, coconote e óleo de palma. Quanto à mancarra definiam-se os preços de compra ao indígena (nos portos de exportação, nos centros comerciais do interior servidos por via fluvial e nas regiões fronteiriças) e ao intermediário; para o coconote eram definidos os preços de compra ao indígena e ao intermediário, o mesmo sucedendo para o óleo de palma. Eram preços fixos e únicos, o não cumprimento podia dar azo a infração. Dera-se, por conseguinte, uma intervenção clara do poder colonial do funcionamento da economia. É o que se pode ver também no Boletim Oficial n.º 10, de 6 de março, a intervenção do Governo nos preços das especialidades farmacêuticas, curiosamente os medicamentos aparecem associados às águas mineromedicinais. O diploma legislativo abre com o reconhecimento da necessidade de alterar as percentagens máximas de lucro pela venda de medicamentos e destas águas.

No Boletim Oficial n.º 11, de 13 de abril, Raimundo Serrão louva o Administrador António Carreira nos seguintes termos:
“O censo da população não civilizada de 1950 foi na Guiné inteiramente confiado ao quadro administrativo, desde as primeiras operações de notação até aos apuramentos finais. O Administrador António Barbosa Carreira foi nomeado Delegado-geral do censo da população não civilizada e como tal encarregado de dirigir, orientar e conduzir todos os trabalhos relativos aos apuramentos estatísticos da população não civilizada.
Com um devotado interesse, como é timbre deste funcionário, dedicou-se à difícil missão que lhe foi entregue, seguindo as instruções técnicas do Instituto Nacional de Estatística.
Nunca se fizera na Guiné trabalhos de notação e apuramentos concernentes à população civilizada com resultados tão satisfatórios e tão aproximados dos números verdadeiros, apesar das dificuldades que se tiveram de vencer e do volume da tarefa a realizar.

Na sua ânsia de produzir e bem servir, elaborou o Administrador Carreira logo nos princípios de 1951 o seguinte trabalho sobre o censo: ‘Apreciação dos primeiros números discriminados do censo da população não civilizada de 1950’ que mereceu de Sua Excelência o Ministro de que este funcionário fosse louvado e que se fizesse uma tiragem de mil exemplares para serem distribuídos por todas as secretarias da administração civil, administrações e postos administrativos.
Durante cerca de um ano se trabalho afincadamente nos apuramentos do censo da população não civilizada, na Administração de Cacheu, sob a orientação e presença constante do Administrador Carreira. É altura para louvar este Administrador, por ter dirigido, orientado e conduzido com notável interesse, dedicação e conhecimentos todas as operações concernentes à missão que lhe foi confiada.”


Faz-se sentir, também da leitura deste Boletim Oficial, que se entrara num patamar da vida colonial em que o lúdico e o desportivo ganhara uma popularidade interclassista. No Boletim Oficial n.º 19, de 9 de maio, são aprovados os estatutos da Associação de Futebol da Guiné, esta tem como finalidade dirigir, regulamentar e difundir a prática do futebol na região, organizar os diferentes campeonatos, e dentro da estruturação estatutária definem-se as regras, como a começar pelos direitos e deveres dos sócios. Em 1951, ao abolir-se o Acto Colonial e instituir-se o Ultramar Português, procurava-se fazer a substituição do imposto palhota pelo imposto indígena. Para tal houve que aprovar o regulamento de identificação indígena, com a alegação de que este iria facilitar-lhes a obtenção dos documentos indispensáveis à sua identificação e simplificação dos seus contratos de trabalho, exigindo-lhes de futuro apenas a apresentação de um só documento, a caderneta indígena.

Bem curiosa é a Portaria n.º 400 que se publica no Boletim Oficial n.º 19, de 10 de maio. Fazendo referência à evolução que se estava a verificar nas principais províncias ultramarinas quanto ao sistema tributário, aconselhava-se a que na Guiné se substituísse imposto palhota por uma coleta de caráter exclusivamente pessoal. Veja-se as considerações enunciadas:
“Estando já reconhecido que a incidência de impostos sobre as mulheres tem vários inconvenientes e não fazendo sentido que se usem sistemas diferentes de tributação nas várias províncias do Ultramar onde existe o regime do indigenato, era intuitivo que também se aproveitaria a oportunidade para conceder às mulheres indígenas da Guiné os benefícios de uma completa isenção e assim se fez.
Esta isenção não colide com a legislação em vigor, em que se recomenda que se contrarie a poligamia, visto que, além da atividade dos nossos missionários e da influência das escolas primárias espalhadas pelo interior, o governador pode, por simples portaria, contrapor à imoderação daquele costume, medidas tributárias que dificultem o seu desenvolvimento, fixando aos homens casados um imposto tanto mais elevado quanto maior for o número de mulheres com quem casarem, além de uma.

É que na província da Guiné, a par da necessidade de combater a poligamia entre os indígenas, a circunstância especial de grande parte da sua população estar islamizada, por viver na vizinhança de territórios cujos habitantes são ardentes propagandistas do Islão, é aconselhável, mais do que em qualquer outra província do Ultramar, que se contemporize com usos e costumes tradicionais já profundamente arreigados.
Ao elaborar-se este regulamento teve-se ainda em atenção, como principal objectivo moral, criar novos hábitos de trabalho aos indígenas, que lhes permitam um sucessivo melhoramento das suas culturas, da qualidade e do aumento das suas produções, com consequentes probabilidades de melhores condições de vida.”


E é nesta lógica que se publicou o regulamento do imposto indígena em que todos os indígenas do sexo masculino, de idade compreendida entre os 16 e os 60 anos ficam obrigados ao pagamento do imposto indígena.

No Boletim Oficial n.º 22, de 29 de maio, louva-se o Engenheiro Emídio Corrêa Guedes pelo seu desempenho na realização da ponte Comandante Sarmento Rodrigues, em Ensalmá, sobre o Canal de Impernal, relevam-se as suas notáveis qualidades de organizador e realizador.

E finaliza-se com mais uma referência ao imposto indígena, consta do Boletim Oficial n.º 39, de 1 de outubro. Faz-se saber que os ensaios efetuados para a execução do regulamento do imposto indígena tinham demonstrado a dificuldade da sua aplicação, havia a necessidade premente de um reajustamento, procediam-se a alterações, como as que se mencionam: aos chefes de povoação só será concedida a isenção do pagamento de imposto quando nos respetivos agregados sejam coletados trinta ou mais contribuintes válidos; todos os indígenas desde que possuam duas ou mais mulheres devem beneficiar apenas da isenção do imposto base (150 escudos) pagando a diferença conforme o número de mulheres que possuírem, além de uma.

E estamos praticamente chegados a 1953, último ano da presença de Raimundo Serrão na Guiné.

Imagem retirada de um filme da RTP, Guiné Portuguesa, 1960, régulo Fula desloca-se com a sua comitiva
Ponte-Cais, Bissau. Foto Serra, 1950
Fotografia tirada pelo Alferes Carvalho do BART 2924 em Tite, durante a comissão, retirada da página do Facebook Antigos combatentes da Guiné, com a devida vénia
Imagem de uma escola corânica na Guiné-Bissau

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 10 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27515: Historiografia da presença portuguesa em África (507): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1951 (65) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

Guiné 61/74 - P27515: Historiografia da presença portuguesa em África (507): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1951 (65) (Mário Beja Santos)

Mário Beja Santos, ex-Alf Mil Inf
CMDT Pel Caç Nat 52

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Maio de 2025:

Queridos amigos,
Já não há colónias, há províncias ultramarinas, o fenómeno descolonizador está em marcha, começou na Ásia, encaminha-se para o Norte de África, dele se fala amiúde nas Nações Unidas. Daí a operação de maquilhagem, logo com a revisão constitucional e a abolição completa da palavra colónia. É claro que a mentalidade não se muda de um dia para o outro, basta ver este estatuto do ensino rudimentar e tudo quanto ele prescreve. É curioso como a figura de Raimundo Serrão tem um lugar apagado na vida da Guiné. Ele encomendou a Fausto Duarte uma obra de autoelogio, intitulada "Guiné, Alvorada do Império", ricamente ilustrada. Devo o facto de procurar tal obra ter chegado ao então Arquivo Histórico do BNU, onde havia um exemplar, mal sabia eu no dia em que cheguei a este ponto de Sapadores que vinha passar quase 1 ano para preparar o livro "Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba". O panorama económico está em mutação, vai nascer a ideia de que a Guiné será um grande fornecedor de arroz, com pleno autoabastecimento, o governador é metódico, transpõe para a província a legislação conveniente e dedica-se a sério ao sistema educativo. Mas não deixou mais história, bem procurei literatura atinente, nada encontrei.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Guiné, 1951 (65)


Mário Beja Santos

O Capitão de Engenharia Raimundo Serrão será Governador da Guiné de 1951 a 1953, irão inaugurar um conjunto de empreendimentos encetados pelo seu antecessor, terá preocupações com a área educativa, verá um crescimento da administração, a Guiné está prestes a sair do ciclo da mancarra, coconote e óleo de palma, os anos 1950 assistiram a uma produção impressionante de arroz.

E o arroz poderá dar litígios, como se pode ver no Boletim Oficial n.º 8, de 22 de fevereiro, há um acórdão do conselho do império colonial que envolve duas empresas rivais, a Sociedade Comercial Ultramarina e a Barbosas & Comanditas, apresenta-se nos seguintes termos:
“A Sociedade Comercial Ultramarina interpôs diretamente recurso por despacho do governador da Guiné, de 20 de julho de 1948, que concedeu a Barbosas & Comandita autorização para instalar em Bissau uma fábrica de descasque de arroz, com o fundamento que tal autorização viola a legislação atualmente em vigor, acarretando-lhes prejuízos provenientes de concorrência desregrada.
Na sua resposta diz o governador que a autorização concedida a Barbosas & Comandita já foi considerada caduca, esclarecendo, porém, que o objetivo era o aproveitamento das vantagens de ordem económica que adviriam para a colónia da instalação de mais uma fábrica, tanto mais que, como recente inquérito prova, a capacidade atual das fábricas está longe de satisfazer as necessidades.
Interposto o recurso, o conselho do império colonial conclui que a concorrente carece de legitimidade, não mostra ter sido usada no despacho recorrido.”


Neste mesmo Boletim Oficial n.º 10 o Governador Raimundo Serrão anui ao pedido feito pela firma António Silva Gouveia para instalar no Olossato, área da Circunscrição de Farim, uma indústria mecânica destinada à extração do óleo de palma e à quebra de coconote.

Em 19 de abril, o Boletim Oficial n.º 16, anuncia que se irá proceder à abertura de propostas para a execução de empreitada de terraplanagem, drenagem e pavimentação do aeroporto de Bissau – 1.ª fase.


No Boletim Oficial n.º 20, de 17 de maio, alude-se à Portaria que no ano anterior criou um conselho administrativo para o Colégio-Liceu de Bissau. O Governador determina que o Colégio-Liceu de Bissau funcionará como instituto de ensino particular, subsidiado pelo Estado, pelos corpos administrativos e pelos concelhos e circunscrições da colónia, e será administrado por um conselho administrativo.

Crescendo o funcionalismo, torna-se imperioso ir resolvendo os problemas da habitação, como se pode constatar da Portaria n.º 307, publicada no Boletim Oficial n.º 21, de 25 de maio:
“Acabam de se construir nesta cidade quatro edifícios que se destinam a moradias de funcionários superiores, circunstância esta que permite ao Governo da colónia atribuir a certos servidores do Estado residências privativas, já que tanto não pode fazer em relação a todas as categorias.” E determina que irão ser atribuídas residências privativas aos seguintes funcionários: magistrados judicial e do Ministério Público, Conservador do Registo Predial e Comercial, Chefes de Serviço, Chefe do Gabinete e Ajudante do Governador, podendo o Governador reservar casas para habitação de outros funcionários tendo em consideração os cargos que exerce.


E logo a seguir, na Portaria n.º 308, vai falar-se da lepra:
“Verificando-se ser elevado o número de leprosos existentes em toda a colónia, torna-se urgente e inadiável proceder à sua sequestração em estabelecimento adequado ao fim em vista; Tendo sido escolhido há muito o local designado por Cumura, na ilha de Bissau, para a instalação de uma leprosaria central:
Considerando que não é possível, por enquanto, a construção de um estabelecimento de tão grande projeção, resolveu o Governo, num intento de se iniciar imediatamente uma campanha de combate a esta terrível doença, fazer executar naquele local instalações onde se possam receber alguns doentes e que se denominará ‘Aldeia dos Leprosos’; A Aldeia dos Leprosos será provisoriamente entregue aos serviços de saúde da colónia.”


Em 26 de julho, o Boletim Oficial publica o louvor de António Carreira, nos seguintes termos:
“Pelas suas inigualáveis faculdades de trabalho servidas por uma inteligência viva toda posta ao melhor exercício da sua profissão. Considerado de há muito um ótimo funcionário do quadro administrativo, tem, no entanto, nos últimos dois anos dedicado à sua função nas vastas atribuições que lhe competem, uma enorme soma de trabalho e conhecimentos. Tem neste período feito estudos interessantes e importantes da sua circunscrição, nos seus variados aspectos, dos quais destaco os referentes ao fomento económico. O seu relatório relativo a 1950 é um documento bastante elucidativo e há pontos nele focados com projeção em toda a província. No campo das realizações materiais, construiu nestes dois anos o posto sanitário e a secretaria do posto administrativo de Bula onde acabou a residência do chefe de posto; construiu em Teixeira Pinto uma residência para missionários e duas amplas enfermarias para doentes no centro de saúde; ao presente tem em construção na sede da circunscrição nada menos de quatro bons edifícios: secretaria da administração, estação e residência dos CTT, residência para o secretário e outra para o enfermeiro. Por sua iniciativa montaram-se na sua circunscrição britadeiras para o caroço do coconote e prensas para o óleo de palma, que permitiram no corrente ano um aumento e melhoria da produção local. Tudo isto demonstra que o administrador Carreira é também um homem de ação.”


E na sequência desses louvores deixa-se menção à criação no ano anterior do Aero-Clube da Guiné. E tecem-se louvores a quem de direito.

No Suplemento ao n.º 46, Boletim Oficial n.º 23, de 19 de novembro, temos novos estatutos da Associação Comercial, Industrial e Agrícola da Guiné, esmiúça-se a natureza da organização, a sua sede, os sócios em geral, etc.

Mais adiante, no Suplemento ao n.º 51, Boletim Oficial n.º 26, de 21 de dezembro, publica-se o regulamento do ensino rudimentar e do magistério rudimentar. O ensino rudimentar constitui o primeiro grau do ensino indígena, é ministrado exclusivamente em língua portuguesa, conforme consta do Acordo Missionário. Este ensino será essencialmente nacionalista e dirigido à preparação do indígena para poder vir a auferir meios para o seu sustento e a sua família; ensino exclusivamente reservado às crianças indígenas dos dois sexos, dos 7 aos 15 anos completos, ministrado em estabelecimentos denominados Escolas do Ensino Rudimentar. Explica-se o que se visa com a classe preparatória, logo a aquisição de vocabulário de uso mais corrente, depois pôr os alunos a falar, ler, escrever e calcular em português, e a incutir-lhes hábitos e aptidões de trabalho conducentes ao abandono da ociosidade e à preparação de futuros trabalhadores rurais e dos artífices, também se informa com as autoridades administrativas devem dar às Missões Católicas Portuguesas todo o auxílio por elas solicitado.

O regulamento cuidadosamente elaborado onde se fala dos ensinos, dos alunos, das turmas e horários, da disciplina, do aproveitamento escolar, das escolas (serão localizadas onde as autoridades eclesiásticas por melhor houverem), os livros escolares (cabe a sua aprovação ao Governo da Província, ouvido o Prelado, não podendo conter nada em desmerecimento da Nação e da civilização portuguesa, da sua história e ação colonizadora, do seu Governo e autoridade, da Igreja Católica e sua atuação missionária); estende-se até aos trabalhos agrícolas e agrícola-pecuários e enquadra a preparação do pessoal docente.

Ver-se-á adiante que Raimundo Serrão não se ficou por aqui quanto ao sistema educativo.

Notícia do falecimento do Marechal Carmona
Instalações do aeroporto de Bissalanca, em fase de conclusão das obras, fotografia de Mário Dias, já no nosso blogue
Ponte de Ensalmá, inaugurada no tempo do governador Raimundo Serrão, fotografia de Mário Dias, já no nosso blogue
Fortaleza da Amura, nos tempos da presença portuguesa
Efeitos da guerra civil no INEP, fotografia da Casa Comum/Fundação Mário Soares

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 3 de dezembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27489: Historiografia da presença portuguesa em África (506): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1950 (64) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27268: Notas de leitura (1843): "Vestígios Portugueses no Senegal", edição da Embaixada de Portugal em Dacar, 2008 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Novembro de 2024:

Queridos amigos,
Certamente que não passa de mera curiosidade, havendo, no entanto, de reconhecer que todas estas referências alusivas a património português se devem a presença multissecular, a ilha de Gorée foi paradoxalmente ponto de venda de escravos e lugar de retempero para navegadores; estudiosos portugueses como Teixeira da Silva Mota, Carreira, Silva Horta, Costa Dias, entre outros, estudaram a presença luso-africana neste ponto da então Senegâmbia, onde podemos incluir judeus e cristãos novos até ao início do século XVII; um historiador francês que aqui já se fez referência, Jean Boulègue também estudou esta expressão da luso-africanidade, que podemos situar entre o fim do século XVI até ao século XVII, autores de viagens como André Álvares de Almada e Francisco Lemos Coelho deram nota dessa presença; o padre jesuíta Baltasar Barreira pregou em Joal e Portudal, no século XVIII eram já só uma memória e os últimos luso-africanos na Senegâmbia viviam no século XIX em Joal. É uma curiosidade mas faz parte do nosso itinerário pelas partidas do mundo.

Um abraço do
Mário



Vestígios Portugueses no Senegal

Mário Beja Santos

Trata-se de uma edição da Embaixada de Portugal em Dacar, 2008, e merece atenção o texto com que o embaixador António Montenegro apresenta a obra:
“Olhando uma panorâmica aérea de Gorée, por exemplo, a primeira imagem desta obra, como o navegador Dinis Dias em 1444 não viu certamente, parece-nos ver uma miniatura de África, com o grande e côncavo golfo da Guiné retido na pequena enseada da ilha, onde muitos navegadores, portugueses, holandeses, ingleses, franceses, sossegaram dos perigos do mar e gozaram os prazeres da tranquilidade.
Quando os navegadores portugueses encontraram esta pequena ilha, a que chamaram ilha da Palma, estavam sôfregos do Oriente, onde queriam chegar depressa. Mas só chegaram ao Oriente mais de cinquenta anos depois, em 1498, com Vasco da Gama. Gorée, então ainda Palma, ficou sempre, nos dois séculos de presença portuguesa, como lugar de repouso, de encanto, de aguada para naus e navegadores recuperarem forças.
Poderá assim dizer-se que os portugueses anteciparam Gorée e a ‘petite côte’ mais a Sul, como lugar de turismo. Mal imaginavam os portugueses que, continuando pela costa de África, avistando e dobrando o Cabo da Boa Esperança, no extremo Sul, subindo a costa Leste, iam encontrar uma outra pequena ilha, a ilha de Moçambique, simétrica de Gorée. Ilha de Gorée e Ilha de Moçambique, ambas Património da Humanidade.
Na sua passagem pela Costa Ocidental de África que hoje é o Senegal, os portugueses deixaram marcas na designação geográfica (Pikine, Roufisque, Portudal, Cap Vert, Almadies, Casamanse, Ziguinchor, etc.), mas deixaram sobretudo uma serena imagem de gente do lado de cima do mar, se sente bem em toda a parte do mundo no meio de toda a gente.
Foram os cartógrafos portugueses quem desenhou os primeiros mapas do território que hoje constitui o Senegal.”


Selecionámos um conjunto de imagens que se prendem com a ilha de Gorée, de construções onde é patente a arquitetura portuguesa; a publicação inclui um conjunto de artigos alusivos à história da Igreja Católica no Senegal, aos luso africanos da Senegâmbia, e também um interessantíssimo artigo de António Carreira referente a aspetos da influência da cultura portuguesa na área compreendida entre o rio Senegal e o Norte de Serra Leoa. Penso que tem muito interesse referir algumas dessas designações: Pikini, de pequenino ou pequeno; Pintade, pintada, ou seja, a galinha do mato ou galinha da Índia; Portonké, é vocábulo composto de porto, abreviatura de Portugal mais o sufixo de origem ou procedência, da língua Mandiga, Nké, homem: homem do porto, ou seja, homem de Portugal; Portugalais, designação dada ao mestiço de origem ou de língua portuguesa; Almadie, do árabe al-madia: difundido pelos portugueses. Usado com o significado de canoa ou piroga; Argamasse, de argamassa, usado para significar barro amassado; Cebessaire, de cabeceira. Usado com o significado de: o que vai (ou está) à frente (o guia); Cheval marim, de cavalo-marinho ou hipopótamo; Cobra, de cobra; Conta de terra: colares que servem de adorno; Coutumes, de costumes. Utilizado com mais frequência para definir direitos de tráfego, impostos, tributos que, outrora, os régulos exigiam para consentir na passagem ou no estacionamento de negociantes europeus ou mestiços nos seus territórios.

Outro aspeto muito curioso da publicação é a indicação de nomes de origem portuguesa de famílias senegalesas que se encontraram na lista telefónica de Dacar, são exemplos: Alcântara, Alexandre, Gomis, Monteiro.


Ilha de Gorée
Mapa manuscrito de Casamansa, cerca de 1800.
Pela convenção de 12 de maio de 1886 entre Portugal e a França, Casamansa passou para a administração francesa
Comissariado de polícia, construído no local onde existiu a primeira capela e cemitério portugueses em Gorée
Casas de traça portuguesa, São Luís (antiga capital)
Saly Portudal, construção sobre fortim português
Casa da traça portuguesa, Ziguinchor, Casamansa
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Nota do editor

Último post da série de 27 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27259: Notas de leitura (1842): "Os Có Boys (Nos Trilhos da Memória)", de Luís da Cruz Ferreira, ex-1º cabo aux enf, 2ª C/BART 6521/72 (Có,1972/74) - Parte I: Apresentação sumária (Luís Graça)

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24852: Historiografia da presença portuguesa em África (394): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
O seu a seu dono, António Carreira continua a ser de leitura obrigatória para quem estuda Cabo Verde e Guiné. Obviamente que as fontes se têm vindo a diversificar e surpresas não faltam. O nosso mais notável geógrafo do século XX, Orlando Ribeiro, encontrou no Arquivo Histórico Ultramarino memórias de António Pusich, alguém natura de Ragusa (Dubrovnik), que conheceu em Turim o nosso ministro, o conde de Linhares, veio para Lisboa, e fez vida em Cabo Verde, onde foi governador, acabou por sofrer as consequências das lutas políticas do seu tempo. Temos nas suas memórias dados importantes sobre o povoamento, caso das ilhas de S. Vicente e do Sal, uma exposição sobre a qualidade do terreno e do clima, a proveniência dos seus habitantes, a divisão dos terrenos e o modo de os cultivar, tem mesmo pormenores bastante curiosos, cinjo-me a uma citação: "A cultura do milho, feijão e abóbora merece o primeiro cuidado destes insulares. A qualidade este fruto não é igual em todas as ilhas, pois o milho das ilhas do Fogo e da Brava é superior ao das outras ilhas, por ser miúdo, mais pesado e mais farinhoso. O feijão de Santiago e de Santo Antão é também melhor que o das outras ilhas e não se corrompe com tanta facilidade. A abóbora é quase igual em todas elas, e é abundante e mui boa." Temos aqui um retrato altamente impressivo para melhor entender os grandes acontecimentos da História de Cabo Verde do século XIX. O país tem uma história de literatura riquíssima, merecia que a conhecêssemos melhor, é nela que se vê despontar a riqueza do sentimento euroafricano.

Um abraço do
Mário



Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné,
Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (2)


Mário Beja Santos

A primeira edição de Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), por António Carreira, data de 1972, é uma investigação de arromba que começa nos contratos de arrendamento, os regastes nos Rios da Guiné, referencia lançados, cristãos-novos, como se obtinham os escravos e quais os seus preços, as mercadorias envolvidas, as companhias monopolistas, o povoamento de Cabo Verde e a formação do crioulo, a abolição da escravatura. Trabalho solitário (obviamente com sugestões preciosas de peritos à altura), que o investigador, sempre tão modesto, apresenta como a pequena história de Cabo Verde. E não se esquece de explicar a capa, utilizou um desenho de “Casa Grande, situada em S. Martinho Grande, nos arredores da Praia, a única sobrevivente da época escravocrata”.

Já se falou um tanto dos primeiros séculos depois do descobrimento (há ainda incertezas de quem chegou primeiro), dos contratos de arrendamento, o tráfico de escravos, as companhias monopolistas, as fomes e secas. É tempo de introduzir o crioulo, tema que merece a António Carreira uma posição um tanto controversa, outros contestam a sua tese.

O povoamento era feito com brancos, nobres e plebeus, degredados e escravos. Ainda no século XV vieram casais do Algarve em companhia de António de Nola. As áreas foram divididas em donatarias e começou o povoamento de Santiago e Fogo, a mestiçagem ia-se processando e dando frutos. O número de brancos nunca foi grande. Carreira observa que a imigração branca (forçada) tomou maior vulto no século XIX. “De 1802 a 1882 (nem em todos os anos) foram mandados para as ilhas 2433 degredados, uma média de 38 indivíduos por ano. O comportamento destes delinquentes, alguns autênticos facínoras, mostrou-se pernicioso e influiu bastante no dos escravos e no dos homens livres – pretos e mestiços. De modo geral, os degredados foram distribuídos pelas várias ilhas, embora em Santiago tivesse ficado o maior número. Adaptaram-se com facilidade e as relações com pretos e pardos seguiram o seu curso.”

É evidente que havia discriminação baseada na chamada “diferença de sangue” (cristãos e judeus). No decurso do tempo, Carreira anota três fases distintas da composição da sociedade cabo-verdiana: diminuto número de europeus e apreciável quantidade de escravos da costa da Guiné; poucos europeus e um pequeno número de estrangeiros, brancos naturais das ilhas, mulatos, escravos nascidos nas ilhas ou trazidos dos Rios de Guiné; reduzido número de europeus, brancos nascidos nas ilhas, um número crescente de mulatos e pretos nascidos e de libertos, uns e outros já nados aqui. De onde vieram esses escravos? Fundamentalmente, da Senegâmbia, os estudiosos, a própria literatura de viagens põe ênfase na Gâmbia, nos Jalofos, nos Rios da Guiné, mas também no rio Senegal e por extensão até à Serra Leoa. A questão é mais importante do que se pensa, chega em entroncar no dado ideológico da unidade Guiné-Cabo Verde, seriam povos irmãos, os contestatários da argumentação de Amílcar Cabral negam que a História seja comum, quer pela formação da sociedade escravocrata e proveniência dos escravos, quer pela língua e o substrato cultural. Nem tudo ficou resolvido com a separação efetiva dos dois países, a discussão ideológica subsiste, mas perdeu o calor que teve nos anos 1980. Agora o crioulo.

“Só as relações mantidas nas ilhas de forma contínua, assídua, pacífica e prolongada dos brancos com os escravos, nas casas-grandes e nas plantações, podia levar à formação de um meio eficiente de comunicação pela palavra falada. Contrariamente, a permanência do branco nos portos fluviais da costa africana foi durante largo tempo precária, sem estabilidade nem continuidade que pudesse permitir relações suscetíveis de dar lugar à formação de uma língua. Em nosso entender, o crioulo foi criado nas ilhas de Cabo Verde e, posteriormente, levado para os portos fluviais do continente, da chamada costa da Guiné, pelos mulatos e pretos-forros, quando os brancos os utilizaram como elo de ligação com os negros não aculturados, e com a finalidade de assegurar as relações comerciais. Mulatos e pretos-forros, todos eles crioulos na língua, com robustez física para suportar os rigores do clima, viraram lançados e, desse modo, tornaram-se os grandes agentes da propagação do crioulo naquele setor da costa.”

E Carreira socorre-se da opinião de Baltasar Lopes: “Suponho que o crioulo falado na Guiné é, não uma criação resultante diretamente do contacto do indígena com o português, mas sim o crioulo cabo-verdiano de Sotavento levado pelos colonos idos do arquipélago.” E Carreira também observa: “O crioulo falado na área Senegal-Gâmbia-Rio Nuno é um tanto diferente de o das ilhas. Não se deve estranhar que assim seja. Mesmo em Cabo Verde o crioulo de Santiago, mais aproximado do do Maio, é foneticamente diferente do do Fogo.” Fiquemos por aqui, a tese é polémica e contestada, basta pensar nos trabalhos de Benjamim Pinto Bull sobre o crioulo da Guiné-Bissau.

A obra de Carreira muda de rumo, fala-nos dos assaltos dos corsários, na situação social na época que antecedeu a abolição da escravatura, como esta ocorreu, e a importância que tiveram os tratados assinados entre Portugal e Inglaterra. Procurando sintetizar o que de mais essencial há neste trabalho de indiscutível envergadura, destaca-se: o período de formação da sociedade cabo-verdiana nas ilhas de Santiago e Fogo (séculos XV e XVI); período de transição para o aparecimento de uma pequena burguesia local (século XVII); o tempo de uma sociedade semilivre e decorrente da abolição da escravatura (inicia-se com a emergência de grupos multirraciais, marcados por estatuto social até ao virar do século XIX, em que se consolidou um classe dominante composta por reinóis, brancos da terra e alguns pretos – é este grupo que possui as melhores terras e controla o sistema económico, tem perto de si a classe intermédia que possuiu uma grande amplitude em Barlavento e reduzido número em Sotavento, na base da pirâmide o campesinato, trabalhadores indiferenciados e escravos ainda não completamente libertos.

O trabalho de Carreira não esquece a emigração, mas também o regresso à terra de origem, pautado pela vontade de quem triunfou lá fora se colocar ao lado dos brancos da terra. Deram-se profundos arranjos e disposições no edifício social, ao longo do século XIX, foi o tempo de um povoamento como jamais acontecera. Carreira também enfatiza a importância do papel do clero. Importa não esquecer que a difusão do ensino nas ilhas ocorreu logo nos primórdios do povoamento, o bispado de Cabo Verde surgiu em 1532 e é tido como primeiro do género em toda a África. Em meados do século, os dignatários desse cabido eram já cerca de três dezenas, abrangiam mestres-escola e mestres de gramática. Moldou-se, assim, um substrato cultural, a par do enraizamento de valores e crenças tradicionais, e o cristianismo conseguiu cobrir o vazio espiritual de populações arrancadas do continente. Este clero contribuiu para uma postura multirracial, que gerou uma dimensão ímpar na identidade cabo-verdiana (e diga-se sem hesitação até hoje).

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Ruínas da antiga Sé Catedral da Cidade Velha, retirado do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24831: Historiografia da presença portuguesa em África (393): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24831: Historiografia da presença portuguesa em África (393): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Abril de 2023:

Queridos amigos,
Dificilmente se entenderá o comércio de escravos na ampla faixa da Senegâmbia, a partir do século XV, e depois em espaços mais reduzidos, nomeadamente após o período filipino, sem decifrar a narrativa como tão admiravelmente António Carreira desenvolve na sua magna investigação Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878). 

Os primeiros colonos aportaram à ilha de Santiago em 1462, na Ribeira Grande, ali se fundou uma feitoria, daqui emergiu uma sociedade como nunca o português tinha forjado, com base na miscigenação prolongada, três grupos étnicos foram formando este espaço insular: brancos (os reinóis), negros maioritariamente provenientes da costa africana e de Angola, e mestiços, aqui convivem os "senhores" (portugueses, italianos, espanhós, flamengos...), os brancos da terra (os mestiços) e os escravos (a grande maioria da população). 

Começa-se por habitar Santiago e Fogo, só mais tarde se estenderá a ocupação efetiva das outras ilhas. Como Carreira sublinha, a designação de escravos de confissão ou ladinos irá ser atribuídas àqueles que frequentaram a catequese e que ascenderam a um patamar que se aproximava do modelo civilizacional de então. Como escreve Carreira, o papel dos agentes do Cristianismo em Cabo Verde foi decisivo na formação cultural das populações em missões, colégios e escolas de todo o espaço insular, e os seus frutos são visíveis nos dias de hoje.

Um abraço do
Mário



Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné,
Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1)


Mário Beja Santos

A primeira edição de Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), por António Carreira, data de 1972, é uma investigação de arromba que começa nos contratos de arrendamento, os regastes nos Rios da Guiné, referencia lançados, cristãos novos, como se obtinham os escravos e quais os seus preços, as mercadorias envolvidas, as companhias monopolistas, o povoamento de Cabo Verde e a formação do crioulo, a abolição da escravatura, trabalho solitário, que o investigador, sempre tão modesto, apresenta como a pequena história de Cabo Verde. E não se esquece de explicar a capa, utilizou um desenho de “Casa Grande, situada em S. Martinho Grande, nos arredores da Praia, a única sobrevivente da época escravocrata”.

Atenda-se ao que nos diz na nota explicativa:

“Na redação, como é meu velho hábito, não me preocupei em apurar o estilo. Expressei-me informalmente sem qualquer pretensão de fazer trabalho literário. Fui dominado apenas pela ideia de clareza e da honestidade na exposição e apreciação dos problemas, dando sempre o ‘seu ‘ a ‘seu dono’. 

O tema tratado é ingrato e por motivos diversos não entusiasma a maioria dos leitores. Seja por preconceito próprio de uma educação tradicionalista (no mau sentido do termo), seja por receio descontentar certos setores, tudo quanto envolva a apreciação do tenebroso período da escravatura mexe com a maneira de ser de algumas camadas da nossa sociedade. Todavia é preciso vencer esse sentimento de culpa acerca de um passado para o qual as atuais gerações nada puseram, nem depuseram. E isso só se consegue mostrando as duas faces da questão: a boa e a má, comprovadas por documentação honesta e incontestada. 

É indispensável ver o problema da escravidão no seu próprio tempo e segundo a mentalidade da época.
Neste particular é de apontar o exemplo da Inglaterra. Nenhuma nação negociou tanto como ela em escravos. Com esse negócio amealhou lucros fabulosos. Em certo sentido, e no seu interesse direto, arvorou-se em campeã do abolicionismo. Nessa campanha usou de todos os processos, lícitos e ilícitos. Abusou da sua força. Publicou livros sobre o tráfico, nuns descrevendo os seus horrores e condenando-o; em outros defendendo a sua manutenção. E não parece que haja algum inglês que tenha qualquer sentimento de culpa pelo que os seus antepassados fizeram – e numa escala nunca igualada por nenhum outro povo.”


São incontestáveis os pontos de coincidência, as linhas tangentes nas histórias de Cabo Verde e Guiné. Carreira descreve metodicamente os contratos de arrendamento, o papel exercido pelos mercadores em Santiago; dedica um aprimorado capítulo à figura dos lançados ou tangomaos (em espaço separado aqui se referenciou cuidadosamente o pensamento do autor sobre este fenómeno que acabou por ser marcante sobre a presença portuguesa no continente); situou a atividade de judeus autênticos ou de cristãos novos bem como de fidalgos no tráfico de escravos e tece a seguinte observação:

“As medidas restritivas da fixação de residência de fidalgos e de cristãos novos em Santiago e nos Rios de Guiné, inseria-se no plano manuelino de perseguição de judeus e cristãos novos, e para além da questão religiosa, no receio deles se fixarem e, com o seu conhecido tato comercial, prejudicarem ainda mais o negócio dos cristãos e do próprio monarca.”

Prossegue a exposição sobre as operações de captura e vamos percecionando que o espaço onde se exerce este comércio é inicialmente o correspondente ao da Senegâmbia, mas a área, um tanto aproximada do que é hoje a Guiné, deu um enorme contributo a este tráfico, como ele observa:

“De Arguim ao Gâmbia a melhor mercadoria para a compra de escravos era o cavalo; do rio Gâmbia para Sul passava a ser a manilha de latão. Compreende-se perfeitamente esta preferência. Nas áreas alagadas, na floresta húmida, o cavalo não tinha grandes condições de sobrevivência. A mosca do sono por um lado, o alto grau de humidade, o mosquito e os pastos pouco adequados, por outro, condenavam a sua presença. As populações das rias (do Gâmbia para Sul) não o conheciam nem o sabiam tratar convenientemente. 

Nos primeiros trinta anos de Quinhentos as espécies mais utilizadas e as cotações seguidas variavam consoantes os setores. Assim temos:
- No rio Senegal, terra de jalofos, dava-se 1 cavalo por 10 escravos;
- No rio Gâmbia, ou Cantor, 1 cavalo por 7 escravos. 
- No rio Grande de Buba, terra de biafadas, 6 a 7 cavalos ou 20 a 25 manilhas de latão; ou 10 a 14 cavalos; ou ainda 6 a 7 cavalos por 1 escravo.
- No rio de S. Domingos e na Serra Leoa (1526) segundo os valores estabelecidos nos regimentos dos capitães dos navios do trafico, cada escravo podia ser adquirido por qualquer das seguintes quantidades de mercadorias: 17 ou 18 côvados mouriscos de pano; 38 a 40 alaqueca (pedra semipreciosa); duas mantas de Alentejo; 40 a 50 manilhas de latão; 5 bacias grandes de barbeiro; 1,5 côvados do Reino de pano vermelho (?); 30 a 40 côvados mouriscos de lenço francês.”


E, mais adiante, Carreira refere que em toda a Guiné a valia da cera de 3 quintais por negro era um pagamento corrente (opinião do investigador P. António Brásio). O autor não esquece também do preço dos escravos em moedas quando eram reexpedidos com destino a Lisboa, Antuérpia, Sevilha, Índias de Castela, dá-nos referências de preços até ao fim da escravatura.

Carreira dedica um capítulo para a indicação das diferentes mercadorias levadas à costa africana, que vão desde panos, mantas, contaria e muitas outras. Trata igualmente com cuidado os contratos de arrendamento das áreas dos tratos e regastes. 

O período filipino, abundantemente estudado também no que toca à presença portuguesa na costa ocidental africana, deixa claro como se ia reduzindo a presença comercial, tornara-se precária, cada vez mais distante, a conceção entre Arguim e Cabo Verde, eram holandeses e franceses que usufruíam então a posição vantajosa; aliás, os holandeses irão ocupar a fortaleza de Arguim em 1638. Tentar-se-á animar todo este tráfico com uma sucessão de Companhias e revitalizar a importância de Santiago como placa giratória da reexpedição de escravos.

Vale a pena retomar o discurso de Carreira:

“Cabo Verde e a Guiné atravessaram no final do século XVII aos meados do século XVIII um período difícil, durante o qual se acentuou a decadência: crise de comércio, ausência absoluta de navegação nacional e com tudo isso a progressiva fuga de capitais e de homens brancos, mestiços e pretos, tanto os de Cabo Verde como os de Cacheu.

Todo o período decorrido até à instalação da Companhia do Grão-Pará e Maranhão, ficou marcada pela ruína das vilas e das fazendas agrícolas, pela fuga de homens brancos, pela queda vertical das atividades económicas – desde o comércio de géneros e mercadorias até ao de escravos.”


E há as crises de fome e de epidemias, outra via para o despovoamento, Carreira vai anotando as datas destas calamidades até ao século XIX, é indispensável estar atento a estes acontecimentos para se entender a resiliência e a vontade de emigrar do cabo-verdiano. Obviamente que o autor dedica muita atenção à ocupação e exploração das ilhas, ao braço escravo como força de trabalho, refere o algodão e a urzela como os primeiros géneros da economia destes ilhéus, vem depois a cana do açúcar, a tecelagem, as produções de subsistência, os milhos, os feijões, a batata-doce a mandioca, um pouco de vinho. O pescado era economicamente insignificante, um quase recurso alimentar, faltavam embarcações capazes de permitir uma saída para o largo.

Não menos relevante é a narrativa tecida pelo autor quanto à religiosidade, já que datam da primeira década de 1500 as primeiras leis para a ministração do batismo aos escravos. Aparecem assim os ladinos, batizados e ensinados a trabalhar e a falar a língua portuguesa (certamente que o crioulo. Faziam-se batismos em massa, os missionários não escondiam o que pensavam da escravização injusta, daí as tentativas tendentes a obter a ladinização dos escravos, um dos caboucos que irão fundamentar a identidade cabo-verdiana e a sua cultura. Assim se cristianizaram as gentes de todas as ilhas. 

“E de tal forma a semente deu seus frutos desde os alvores de Quinhentos, que no decurso deste quase meio milénio, a doutrina e a moral cristã, se propagaram de geração em geração radicando-se no espírito das atuais 270 mil almas que povoam o arquipélago. E terá havido algo de parecido em qualquer outra terra portuguesa, nos trópicos ou no equador?”

Igreja da Nossa Senhora do Rosário, Cidade Velha, Cabo Verde, Património Mundial
Ruínas da antiga Sé Catedral da Cidade Velha, retirado do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24813: Historiografia da presença portuguesa em África (392): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)", por António Carreira; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1972 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24813: Historiografia da presença portuguesa em África (392): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)", por António Carreira; Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, 1972 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Março de 2023:

Queridos amigos,
Nos preparativos de uma viagem que fiz a S. Vicente e Santo Antão fiz algumas leituras recapitulativas e meti no saco outras que me permitissem entender melhor a presença portuguesa naquele arquipélago. Resolvi reler uma obra indispensável de António Carreira, "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata", com sucessivas edições tanto em Portugal como em Cabo Verde, e foi assim que vi o modo tão bem organizado como este investigador de nomeada refletiu sobre a importância dos tangomaos ou "lançados" a quem Carreira atribui um papel de extrema utilidade. 

Esta obra data de 1972 e prenuncia outros estudos tanto de sua lavra como de outros. Carreira irá escrever sobre o tráfico de escravos, anunciará nesta obra da formação de uma sociedade escravocrata a presença nos rios de Guiné de judeus e cristãos novos, tema que outros autores desenvolverão. Neste trabalho aprofundará o papel das companhias majestáticas e dos seus insucessos. Aborda sempre conceitos todos este comércio negreiro, a partir do século XIX vilipendiado, dentro de um quadro da mentalidade do tempo em que para todos o comércio da escravidão era lícito.

Um abraço do
Mário



Lançados ou Tangomaos, a análise de António Carreira

Mário Beja Santos

Quando publicou em 1972 esta obra ainda hoje referencial, António Carreira já tinha largo percurso historiógrafo, consultara em Cabo Verde o registo de escravos, produzira a importante obra Panaria Cabo-Verdiana-Guineense, As Companhias Pombalinas de Navegação, Comércio e Tráfico de Escravos. No prefácio justifica porque é que o tema é ingrato já que tem a ver com o tenebroso período da escravatura e socorre-se do exemplo inglês: 

“Nenhuma nação negociou tanto como ela em escravos. Com este negócio amealhou lucros fabulosos. Em certo momento, e no seu interesse direto, arvorou-se em campeã do abolicionismo. Nessa campanha usou de todos os processos, lícitos e ilícitos. Publicou livros sobre o tráfico, nuns descrevendo os seus horrores e condenando-o; em outros defendendo a sua manutenção. E não parece que haja algum inglês que tenha qualquer sentimento de culpa pelo que os seus antepassados fizeram – e numa escala nunca igualada por um outro povo.”

Na capa da segunda edição, bem como na primeira edição, de iniciativa do autor, aparece a Casa-grande de S. Martinho, nos arredores da Praia, seria uma das últimas reminiscências da época escravocrata.

Voltei a ler esta obra exemplar em jeito de me preparar para uma viagem que fiz às ilhas de S. Vicente e Santo Antão e verifiquei que,  para além da história dos contratos de arrendamento, da obtenção de escravos, das mercadorias usadas neste comércio, da formação do crioulo e até se chegar à situação social na época que antecedeu a abolição, Carreira tratava com a melhor investigação possível do seu tempo os lançados ou tangomaos, e assim considerei da maior utilidade fazer uma recensão de personagem tão determinante do seu tempo.

“Na fase inicial, os lançados eram constituídos apenas por brancos (cristãos e judeus) estantes em Santiago, e por alguns reinóis não moradores que com aqueles se mancomunavam e faziam parceria nos negócios. Poucos anos volvidos o seu número avolumou-se não apenas pela afluência de mais brancos como pelo surto de mulatos e de pretos-forros, uns e outros de inteira confiança dos brancos. 

Admitimos que a participação de mulatos e de pretos-forros nas atividades comerciais de brancos (compra de géneros e de escravos, venda de mercadorias) nos rios de Guiné só foi possível após a formação de um meio de comunicação válido entre esses dois grupos – de brancos e de pretos e mulatos – ou seja, incontroversamente, a língua crioula.

Independentemente do condicionalismo criado pelas leis de comércio, temos também de considerar como outros dos factores a influir do surto do lançado os resultantes das normas fixadas para a residência de brancos no Ultramar (limitações postas ao fornecimento aos brancos de Santiago das chamadas mercadorias defesas necessárias aos tratos e resgates, política seguida no arrendamento das áreas de comércio e limitações postas à residência de brancos nos rios de Guiné).”


As referências aos lançados surgem no início do século XVI, são tratados como cristãos omiziados. E Carreira questiona de onde vem o nome de lançado e pouco depois o de tangomaos. Todos os cristãos que se instalassem nos rios e portos africanos sem licença régia eram havidos por lançados (de lançar, tomado no sentido de internar-se, avançar pelo sertão a negociar). O teor das cartas de arrendamento é drástico na proibição do que faziam os lançados, deviam ser mortos ou entregues aos capitães dos navios. Da documentação existente regista-se a presença de branco e de provavelmente judeus, e que faziam concorrência ao comércio régio, desarticulando-o, daí a pena de morte e o confisco de bens.

“Aparece nas leis (certamente já como linguagem corrente), um outro vocábulo que define esses mesmos transgressores: o de Tangomao e suas diferentes formas gráficas (Tanguomããos, Tamgo mãos, tangomao, tango-mao, tangosmaus, tangomagos, etc.), sempre com significado igual ao dado a lançado.” 

Carreira afasta qualquer hipótese de se relacionar este termo a uma divindade, refere apreciações da literatura de viagens como Valentim Fernandes, o padre Manuel Álvares que referem ídolos com tal nome, mas não encontra qualquer relação.

A economia mais afetada pela atividade dos tangomaos era a de Santiago, há pedidos constantes da câmara para tirar da Guiné os tangomaos. As ameaças não surtiram nenhum efeito, os tangomaos estavam de pedra e cal. Missionários como o padre Manuel Álvares tinham deles uma opinião que não era nada favorável dizendo que colaboravam com o gentio idólatra. André Donelha, em 1625, aponta a presença de tangomaos entre os Jalofos, na Serra Leoa e no rio de S. Domingos, outros relatos referem-nos nos Bijagós, em Cacheu e em partes de Geba.

E Carreira prossegue:

“No século XIX, e mesmo no atual, alguns autores tentaram esclarecer a origem do termo tangomao. A análise mais remota é de Tavares de Macedo, em 1857 que, depois de aludir às ordenações manuelinas e doações ao Hospital de Todos-os-Santos, cita o jurisconsulto Molina, tangomao é palavra que em terra de pretos significa os que vão pelas feiras e trocam mercancias por negros escravos que trazem aos portugueses a vender.”

Há outros autores que falam de tangomao como Pombeiro ou negociante de escravos. Carreira procura ser pormenorizado e avança com outras opiniões em que inclui Correia Lopes e Teixeira da Mota. Em sua opinião, os que viravam tangomaos não deveriam ser apenas reinóis idos acidentalmente aos resgates. Seriam, na grande maioria, os tais brancos estantes em Santiago e no Fogo e outros conluiados. Inicialmente tentou-se uma política de brandura para impedir a formação destes bandos de tangomaos, não resultou e mais adiante procurou-se a aplicação de sanções pecuniárias e depois a pena de morte.

E Carreira dá-nos o seguinte entendimento:

“Os lançados serviam de intermediários entre o traficante não estante, nacional e estrangeiro, e os chefes locais e as cáfilas procedentes do interior, vendedores de escravos e de géneros. Fixaram-se próximo do interior ou nos locais de concentração das caravanas, em regra junto aos portos de mar ou fluviais. Para atuar mais eficazmente valeram-se do seu conhecimento do meio e das línguas nativas. Esses homens duros e resolutos adaptaram-se facilmente a cada meio africano. Não se importaram de sacrificar a sua moral, a sua educação, a sua religião. Não temeram o clima de África, de si esgotante, nem a floresta ou as terras. O isolamento obrigou-os a ceder perante enormes forças sociais. Para se integrarem nos mais diferentes aspetos das sociedades onde viviam juntavam-se facilmente à mulher africana. Abjuravam da sua religião para seguir o chamado paganismo; aliavam-se a chefes amigos para combater e dominar inimigos. Não se intimidaram com a excomunhão. A onda de tangomaos cresceu por todo o século XVI e mais ainda na centúria seguinte, na proporção em que surgiam mais interessados no tráfico. Os primeiros a aparecer na competição foram os franceses, logo seguidos pelos ingleses e estes, a curto intervalo, pelos holandeses. De todos eles os tangomaos se tornaram clientes prestimosos.”

Em jeito de conclusão, os lançados ou tangomaos eram portugueses que violaram as ordens régias indo de Lisboa ou Santiago para os rios de Guiné na mira de enriquecer, adaptaram-se, socorreram-se de cerimónias mágicas para meter medo aos seus cativos, procedimento que deixou rasto, os escravos que irão para as ilhas de Cabo Verde manterão superstições (como aliás também muitos brancos) haverá nas ilhas feiticeiros e adivinhadores.

O caso mais célebre de tangomao que se conhece é de João Ferreira, natural do Crato, chamado pelos negros o Ganagoga, o que quer dizer na língua dos biafadas homem que fala todas as línguas. 

“Da ação dos tangomaos resultou, em parte apreciável, a ruína do comércio português em todos os setores do tráfico. Mas, a eles ficou devendo em grande medida o conhecimento pormenorizado de vastas regiões, do curso dos rios, das gentes e seus costumes e práticas, dos processos de comércio seguidos, das mercadorias preferidas, das produções locais de maior interesse. Difundiram costumes e concorreram para a formação e difusão do crioulo e do português. E ao fazer um balanço desapaixonado, tudo quanto se lhe aponta de nocivo fica compensado pelo que de bom e de útil fizeram.”
António Carreira, indiscutivelmente o mais influente e importante historiador de origem cabo-verdiana da sua geração. A sua obra "Cabo Verde, Formação e extinção de uma sociedade escravocrata", 1972, continua a ser incontornável na investigação universitária
Imagem constante no texto A poderosa "Bebiana Vaz" e o aparecimento dos "gans" Vaz e Gomes em Cacheu, por Celina Tavares, com a devida vénia
Imagem alusiva às “Signares”, que tiveram um papel determinante na construção do mundo moderno africano, a Guiné não escapou à sua influência, caso de Aurélia Correia
Imagem antiga da colonização portuguesa
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24793: Historiografia da presença portuguesa em África (391): Grandes surpresas na publicação "As Colónias Portuguesas", Revista Ilustrada (6) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Guiné 61/74 - P24574: Notas de leitura (1608): "Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900)", por António Carreira; edição de autor, Lisboa, 1984 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Setembro de 2021:

Queridos amigos,
António Carreira foi bastante ousado neste seu ensaio, não lhe faltou ambição, alerta o leitor, procura pôr à sua disposição informações sobre as principais causas da escassa presença portuguesa na região da chamada Senegâmbia Meridional, disseca as incúrias que incorreram para este fracasso, e desmonta a teoria da conquista da região cuja posse efetiva não ultrapassou cerca de 60 anos. Não foge à polémica e dá mesmo as suas razões para dizer que o crioulo que se fala na Guiné é visceralmente herdeiro do crioulo cabo-verdiano, é língua veicular recente, começou a titubear na década de 1920 e confirmou-se como língua franca na década de 1960. Benjamim Pinto Bull não concordaria com esta opinião e talvez outros estudiosos da génese do crioulo guineense. Estamos perante um ensaio que remexe nas entranhas da ocupação portuguesa, das relações comerciais, mantém-se atento àqueles grupos de judeus que se fixaram à volta do rio Senegal, estuda o comércio em torno do Casamansa, do Cacheu, do estuário do Geba, do Rio Grande de Buba; mostra o esforço desenvolvido na Restauração para se conseguir fixação no território. Enquanto tudo isto se passa, os guineenses vivem fora da economia de mercado, tudo se alterará com o cultivo em larga escala da mancarra e do arroz. Obra incontornável, não se percebe como se ficou numa edição modesta, é mais do que credora de uma nova edição para quem estuda a Guiné com bases no rigor dos dados e na desmontagem de mitos e falácias.

Um abraço do
Mário



Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900) – 2:
Leitura indispensável


Mário Beja Santos

António Carreira (1905-1988) foi um administrador colonial que deixou um impressionante legado historiográfico, a Guiné foi o centro dos seus trabalhos. Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900), edição de autor, Lisboa, 1984, é uma obra de leitura obrigatória, insere uma síntese admirável sobre diferentes incursões do autor nos campos da etnografia, da economia, do tráfico negreiro e o histórico da presença portuguesa na Senegâmbia meridional. Inevitavelmente, disserta sobre a questão do tráfico negreiro, fazia parte da permuta de mercadorias e bens por escravos, chamava-se resgate. A moeda surge mais tarde, no último quartel do século XVII, ganha então importância a pataca espanhola, em prata. Carreira observa que a difusão da prata amoedada deve-se quase exclusivamente aos espanhóis, a pataca impôs-se a todas as outras moedas no mercado do setor.

E refere os itinerários da escravatura:
“As carregações de escravos eram encaminhadas (pelo menos de 1468 a 1645/47) em regra para a ilha de Santiago e dali com destino a Portugal, Cádis, Sanlúcar de Barrameda, Canárias, Índias de Castela, Antilhas, Santo Domingo, Cartagena, Nova Espanha (México), Barbados, norte do Brasil. E o autor também elenca os géneros de origem africana movimentados em exclusivo na costa, caso do algodão e respetivos panos, âmbar, anil vegetal, nozes de cola".

De 1700 a meados de 1800, observa o autor, iremos assistir à desorganização das trocas comerciais, era grande a pressão dos régulos para fazer transações fora das alfândegas, a desorganização abriu as portas à desagregação – ruínas das fortificações, insuficiência das guarnições militares, recessão comercial, ausência de navios de longo curso, falta de rendimentos para as mais elementares despesas, assistiu-se a um apagamento de Cacheu, Farim e Ziguinchor. E tudo foi agravado pelas constantes lutas intestinas entre etnias e fações de uma mesma etnia, passaram a ser endémicas.

Tenta-se uma resposta, é criada a Companhia de Grão-Pará e Maranhão, entidade que teve no encargo, em exclusivo, a governação e a exploração económica das ilhas de Cabo Verde e dos presídios da Guiné, de 1755 a janeiro de 1758 – a empresa administrou os presídios, cobrou receitas públicas e pagou despesas com a manutenção desses organismos, adquiriu géneros de produção africana e, acima de tudo, escravos. Carreira dá-nos o contexto para a panaria cabo-verdiana e depois a guineense, os chamados “panos da terra”.

Todo o seu notável ensaio sobre quatro séculos de presença portuguesa nos rios de Guiné tem um cunho profundamente didático. Veja-se um exemplo:
“Capitania e suas dependências é a designação usada para definir o governo de Cabo Verde, sob cuja jurisdição estava a parte continental conhecida por ‘Rios de Guiné’. O esquema que podemos chamar divisão territorial baseou-se nas praças, presídios, pontos ou postos e feitorias. O número de praças, de presídios e postos manteve-se quase sempre o mesmo e nos mesmos locais até 1831, quando por razões ligadas à penetração francesa no rio Casamansa, se criaram dois postos militares, o de Bolor, na margem direita do Cacheu, e o de Gonzo, na margem esquerda do Casamansa".

Um outro dado importante que Carreira põe em destaque é o fim da supremacia Mandinga e a invasão dos Fulas. Tudo começa com a invasão do Cabu. Em 1850/1851 teve lugar o recontro mais violento conhecido por batalha de Bérécolom e cerca de 1853/1854 cresceu a intervenção dos Futa-Fulas. E dá-se a batalha de Turuban em que foram derrotados e submetidos os Mandingas, assim como os outros povos das regiões periféricas. O mesmo aconteceu com os Manjacos da Costa de Baixo que se sublevaram e se independentizaram do poder central. A presença portuguesa entrara num vespeiro. Com um novo poder do Cabu, com os Fulas-Pretos a libertarem-se dos Fulas-Forros e a encaminharem-se para o Sul, deu-se o confronto entre estes Fulas e os Beafadas. Todo o território do Cabu foi invadido por uma expedição procedente do Casamansa, dirigida por Mussá Mõló que se declarou porta-bandeira da libertação dos Fulas cativos ou Fulas-Pretos do domínio de outras etnias. Eclodiu um tipo de guerra de libertação acompanhado de pilhagens e escravização.

Foi uma guerra que se prolongou até cerca de 1899 e que teve aspetos desastrosos para a presença portuguesa, impotente para intervir numa autêntica Guerra Santa do Islão, o suserano do Cabu decretara em 1874 a anexação do território de Bolola, os derrotados eram escravizados pelos grupos islamizados dominantes, Fulas-Forros e Futa-Fulas. Todos os regulados à volta viviam em estado de terror. Quando acabaram as guerras, o Islamismo vingou, quase todo o Forreá aceitou o Islão, embora o povo tenha permanecido animista. Com toda a dificuldade da falta de recursos, foi nos presídios de Geba e Buba que se reagiu recorrendo a tratados de paz. Em 1881, assinou-se em Bolama, com certo aparato, o tratado de paz com os régulos Fulas, Futa-Fulas do Forreá e do Futa-Djalon. O tratado nunca foi cumprido, representou para Portugal um processo dilatório, um compasso de espera para permitir o rearmamento.

Chegada a hora de proceder às conclusões, Carreira é muito frontal quanto a tudo o que apreciou no seu trabalho:
“Parece lícito afirmar que até à segunda metade do século XIX a evolução do processo histórico da Guiné mostra que o território viveu quase fechado a culturas estranhas, com a sua economia de subsistência, esta auxiliada um tanto pela comercialização, em modesta escala, de couros, cera, algum marfim, panos e bandas de algodão. E escravos.
O comércio das praças cingia-se à troca de mercadorias importadas por géneros de cultivo ou de realização africanos. A moeda praticamente não funcionava.

A mancarra será cultivada em apreciável escala em 1919-1920. Os couros que se exportavam não provinham do território da Guiné. Pode dizer-se que só a partir daí as populações guineenses entraram na economia de mercado. As praças e presídios serviam de pontos de apoio para fins meramente mercantis – a europeus, mestiços e cristãos da terra. A convivência dos ocupantes das praças e presídios com as populações em derredor dependia da vontade das autoridades tradicionais.

Em nossa opinião, não se criou nenhum crioulo na área conhecida por Guiné. O que se deu foi a difusão dos rios da Guiné do crioulo nado em Cabo Verde. Havia elementos de ligação (os Línguas) que falavam o proto crioulo, o Pidgin. O crioulo cabo-verdiano só se transformou com intensidade em língua franca acessível a todas as etnias nos anos 1920 e seguintes e de forma rápida nos anos de 1960”
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A historiografia possui poucas sínteses deste valor, é deplorável que este trabalho não tenha vindo a ser reeditado, atendendo ao papel incontornável que ocupa nos estudos portugueses e guineenses.

Mapa de África (1689), de Van Schagen
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE AGOSTO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24565: Notas de leitura (1607): "Os Portugueses nos Rios de Guiné (1500-1900)", por António Carreira; edição de autor, Lisboa, 1984 (1) (Mário Beja Santos)