1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2023:
Queridos amigos,
O seu a seu dono, António Carreira continua a ser de leitura obrigatória para quem estuda Cabo Verde e Guiné. Obviamente que as fontes se têm vindo a diversificar e surpresas não faltam. O nosso mais notável geógrafo do século XX, Orlando Ribeiro, encontrou no Arquivo Histórico Ultramarino memórias de António Pusich, alguém natura de Ragusa (Dubrovnik), que conheceu em Turim o nosso ministro, o conde de Linhares, veio para Lisboa, e fez vida em Cabo Verde, onde foi governador, acabou por sofrer as consequências das lutas políticas do seu tempo. Temos nas suas memórias dados importantes sobre o povoamento, caso das ilhas de S. Vicente e do Sal, uma exposição sobre a qualidade do terreno e do clima, a proveniência dos seus habitantes, a divisão dos terrenos e o modo de os cultivar, tem mesmo pormenores bastante curiosos, cinjo-me a uma citação: "A cultura do milho, feijão e abóbora merece o primeiro cuidado destes insulares. A qualidade este fruto não é igual em todas as ilhas, pois o milho das ilhas do Fogo e da Brava é superior ao das outras ilhas, por ser miúdo, mais pesado e mais farinhoso. O feijão de Santiago e de Santo Antão é também melhor que o das outras ilhas e não se corrompe com tanta facilidade. A abóbora é quase igual em todas elas, e é abundante e mui boa." Temos aqui um retrato altamente impressivo para melhor entender os grandes acontecimentos da História de Cabo Verde do século XIX. O país tem uma história de literatura riquíssima, merecia que a conhecêssemos melhor, é nela que se vê despontar a riqueza do sentimento euroafricano.
Um abraço do
Mário
Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné,
Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (2)
Mário Beja Santos
A primeira edição de Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878), por António Carreira, data de 1972, é uma investigação de arromba que começa nos contratos de arrendamento, os regastes nos Rios da Guiné, referencia lançados, cristãos-novos, como se obtinham os escravos e quais os seus preços, as mercadorias envolvidas, as companhias monopolistas, o povoamento de Cabo Verde e a formação do crioulo, a abolição da escravatura. Trabalho solitário (obviamente com sugestões preciosas de peritos à altura), que o investigador, sempre tão modesto, apresenta como a pequena história de Cabo Verde. E não se esquece de explicar a capa, utilizou um desenho de “Casa Grande, situada em S. Martinho Grande, nos arredores da Praia, a única sobrevivente da época escravocrata”.
Já se falou um tanto dos primeiros séculos depois do descobrimento (há ainda incertezas de quem chegou primeiro), dos contratos de arrendamento, o tráfico de escravos, as companhias monopolistas, as fomes e secas. É tempo de introduzir o crioulo, tema que merece a António Carreira uma posição um tanto controversa, outros contestam a sua tese.
O povoamento era feito com brancos, nobres e plebeus, degredados e escravos. Ainda no século XV vieram casais do Algarve em companhia de António de Nola. As áreas foram divididas em donatarias e começou o povoamento de Santiago e Fogo, a mestiçagem ia-se processando e dando frutos. O número de brancos nunca foi grande. Carreira observa que a imigração branca (forçada) tomou maior vulto no século XIX. “De 1802 a 1882 (nem em todos os anos) foram mandados para as ilhas 2433 degredados, uma média de 38 indivíduos por ano. O comportamento destes delinquentes, alguns autênticos facínoras, mostrou-se pernicioso e influiu bastante no dos escravos e no dos homens livres – pretos e mestiços. De modo geral, os degredados foram distribuídos pelas várias ilhas, embora em Santiago tivesse ficado o maior número. Adaptaram-se com facilidade e as relações com pretos e pardos seguiram o seu curso.”
É evidente que havia discriminação baseada na chamada “diferença de sangue” (cristãos e judeus). No decurso do tempo, Carreira anota três fases distintas da composição da sociedade cabo-verdiana: diminuto número de europeus e apreciável quantidade de escravos da costa da Guiné; poucos europeus e um pequeno número de estrangeiros, brancos naturais das ilhas, mulatos, escravos nascidos nas ilhas ou trazidos dos Rios de Guiné; reduzido número de europeus, brancos nascidos nas ilhas, um número crescente de mulatos e pretos nascidos e de libertos, uns e outros já nados aqui. De onde vieram esses escravos? Fundamentalmente, da Senegâmbia, os estudiosos, a própria literatura de viagens põe ênfase na Gâmbia, nos Jalofos, nos Rios da Guiné, mas também no rio Senegal e por extensão até à Serra Leoa. A questão é mais importante do que se pensa, chega em entroncar no dado ideológico da unidade Guiné-Cabo Verde, seriam povos irmãos, os contestatários da argumentação de Amílcar Cabral negam que a História seja comum, quer pela formação da sociedade escravocrata e proveniência dos escravos, quer pela língua e o substrato cultural. Nem tudo ficou resolvido com a separação efetiva dos dois países, a discussão ideológica subsiste, mas perdeu o calor que teve nos anos 1980. Agora o crioulo.
“Só as relações mantidas nas ilhas de forma contínua, assídua, pacífica e prolongada dos brancos com os escravos, nas casas-grandes e nas plantações, podia levar à formação de um meio eficiente de comunicação pela palavra falada. Contrariamente, a permanência do branco nos portos fluviais da costa africana foi durante largo tempo precária, sem estabilidade nem continuidade que pudesse permitir relações suscetíveis de dar lugar à formação de uma língua. Em nosso entender, o crioulo foi criado nas ilhas de Cabo Verde e, posteriormente, levado para os portos fluviais do continente, da chamada costa da Guiné, pelos mulatos e pretos-forros, quando os brancos os utilizaram como elo de ligação com os negros não aculturados, e com a finalidade de assegurar as relações comerciais. Mulatos e pretos-forros, todos eles crioulos na língua, com robustez física para suportar os rigores do clima, viraram lançados e, desse modo, tornaram-se os grandes agentes da propagação do crioulo naquele setor da costa.”
E Carreira socorre-se da opinião de Baltasar Lopes: “Suponho que o crioulo falado na Guiné é, não uma criação resultante diretamente do contacto do indígena com o português, mas sim o crioulo cabo-verdiano de Sotavento levado pelos colonos idos do arquipélago.” E Carreira também observa: “O crioulo falado na área Senegal-Gâmbia-Rio Nuno é um tanto diferente de o das ilhas. Não se deve estranhar que assim seja. Mesmo em Cabo Verde o crioulo de Santiago, mais aproximado do do Maio, é foneticamente diferente do do Fogo.” Fiquemos por aqui, a tese é polémica e contestada, basta pensar nos trabalhos de Benjamim Pinto Bull sobre o crioulo da Guiné-Bissau.
A obra de Carreira muda de rumo, fala-nos dos assaltos dos corsários, na situação social na época que antecedeu a abolição da escravatura, como esta ocorreu, e a importância que tiveram os tratados assinados entre Portugal e Inglaterra. Procurando sintetizar o que de mais essencial há neste trabalho de indiscutível envergadura, destaca-se: o período de formação da sociedade cabo-verdiana nas ilhas de Santiago e Fogo (séculos XV e XVI); período de transição para o aparecimento de uma pequena burguesia local (século XVII); o tempo de uma sociedade semilivre e decorrente da abolição da escravatura (inicia-se com a emergência de grupos multirraciais, marcados por estatuto social até ao virar do século XIX, em que se consolidou um classe dominante composta por reinóis, brancos da terra e alguns pretos – é este grupo que possui as melhores terras e controla o sistema económico, tem perto de si a classe intermédia que possuiu uma grande amplitude em Barlavento e reduzido número em Sotavento, na base da pirâmide o campesinato, trabalhadores indiferenciados e escravos ainda não completamente libertos.
O trabalho de Carreira não esquece a emigração, mas também o regresso à terra de origem, pautado pela vontade de quem triunfou lá fora se colocar ao lado dos brancos da terra. Deram-se profundos arranjos e disposições no edifício social, ao longo do século XIX, foi o tempo de um povoamento como jamais acontecera. Carreira também enfatiza a importância do papel do clero. Importa não esquecer que a difusão do ensino nas ilhas ocorreu logo nos primórdios do povoamento, o bispado de Cabo Verde surgiu em 1532 e é tido como primeiro do género em toda a África. Em meados do século, os dignatários desse cabido eram já cerca de três dezenas, abrangiam mestres-escola e mestres de gramática. Moldou-se, assim, um substrato cultural, a par do enraizamento de valores e crenças tradicionais, e o cristianismo conseguiu cobrir o vazio espiritual de populações arrancadas do continente. Este clero contribuiu para uma postura multirracial, que gerou uma dimensão ímpar na identidade cabo-verdiana (e diga-se sem hesitação até hoje).
Igreja da Nossa Senhora do Rosário, Cidade Velha, Cabo Verde, Património Mundial
Ruínas da antiga Sé Catedral da Cidade Velha, retirado do blogue Alma do Viajante, com a devida vénia
____________Nota do editor
Último poste da série de 8 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24831: Historiografia da presença portuguesa em África (393): "Cabo Verde, Formação e Extinção de Uma Sociedade Escravocrata (1460-1878)"; Obra de referência para a História de Cabo Verde e da Guiné, Porventura a investigação de maior envergadura de António Carreira (1) (Mário Beja Santos)
3 comentários:
Pelo que tenho lido e observado, pelas opiniões colhidas em cabo-verdianos, sou levado a admitir que não fora a ideologia e ligação dos dirigentes do PAIGC à União Soviética, os seus compromissos na facilitação da sua influência política e posição estratégica na Costa Ocidental de África, o Arquipélago de Cabo Verde, estaria hoje, na sua autonomia, como o Arquipélago das Canárias está para Espanha. Claro que a senda descolonizadora do MFA também ajudou.
E não sei se os Cabo-verdianos não estariam melhor.
Também na Madeira e nos Açores, nos alvores da democracia, se levantaram as bandeiras independentistas (ou de pressão reivindicativa). Hoje, é reconhecido que muito têm beneficiado por terem mantido a ligação umbilical com a metrópole, Portugal, num regime de Regiões Autónomas.
Joaquim, também partilho das tuas dúvidas... Tenho amigos em Cabo Verde que também estão divididos sobre o processo de descolonização... Felizmente que Cabo Verde lá vai singrando e seguindo o seu caminho, com indicadores de desenvolvimento humano, social e económico que nos apraz registar, com esperança...
PS - Sobre o tráfico de escravos, temos que fazer muito mais leituras... Diabolizar as nossas gentes de quinhentos, seiscentos, oitocentos, novecentos, etc., não serve de nada. Depois da conquista do Mediterrâneo pelos árabes, no séc. VIII, cristáos e muçulmanos nunca tiveram pejo em traficar: cristãos e muçulmanos traficavam ooutros seres humanos, independentemente da religião e da cor da pele... Há um "antes" do esclavagismo transatlântico, muito mal conhecido e falado...
Caro Luís Graça, a minha opinião sobre o tráfico de escravos desses tempos, (coisa que a nossa sensibilidade condena, mesmo assistindo passivamente, nos nossos dias, no mundo, a relações de exploração humana e maus tratos, que em alguns casos se aproximam da escravatura) é que não podemos aceitar que se façam juízos de valor, de alcance ético e jurídico, à luz das normas atuais.
Os tempos eram outros e outro o entendimento antropológico e moral. As leituras do passado têm que ser relativizadas à moral da época e às leis que a enformavam.
Mas o mal e a crueldade de outrora, assim como o bem e a benevolência, são no passado e no presente, realidades da mesma natureza humana.
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