sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24858: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (20): O calão do Bairro Alto em finais do séc. XIX, algum do qual chegou à nossa caserna...


Capa do livro de Alberto Pimentel (1904), "A triste canção do sul", 
Ilustração: Júlio Leite, 1904.


1.  Ainda a propósito do Bairro Alto, mesmo que já não seja do nosso tempo (estamos a falar de há mais de 100 anos) (*), achámos que pode interessar a alguns leitores, que gostam do fado e da sua história, a reprodução de alguns excertos do livro de Alberto Pimentel (1848 -1925) (curiosamente um homem do Norte, nascido no Porto), que escreveu, em 1904,  "A Triste Canção do Sul". ("Triste", seguramente por contraposição às alegres canções folclóricas do Minho e de Entre Douro e Minho;  acrescente-se que o Alberto Pimentel foi um escritor, jornalista e romancista,  com alguma notoriedade no seu tempo, mas hoje praticamente esquecido,  que escreveu quase tudo sobre quase tudo, incluindo uma primeira biografia de Camilo Castelo Branco, de quem ele se considerava, de resto, se considerava  amigo, admirador e discípulo.)

Tenho uma cópia de "A Triste Canção do Sul", muito desconjuntada, comprada há mais de 50 anos num alfarrabista do Bairro Alto. O livro, que já é do domínio público (isto é, livre de direitos de autor, o Alberto Pimentel já morreu há mais de 70 anos) está felizmente digitalizado pela nossa Biblioteca Nacional  (veja-se cópia em formato pdf aqui.). 

Há um edição mais recente, em papel,  da Dom Quixote, 1989. Da edição de 1904, e sem revisão da ortografia em vigor na época, tomamos a liberdade de reproduzir alguns excertos.

É interessante verificar como algum do calão do "faia do Bairro Alto" dos finais do século XIX chegou até aos nossos dias, e era utilizado por nós na tropa e na guerra; por exemplo: estampa (bofetada), briol (vinho), pinha (cabeça), cebola (relógio),  raspar (fugir), batota (jogo), larica (fome), naifa (faca), butes (pés, bota),  piela (bebedeira), afinfar (bater em), paínço,  milho, graveto (dinheiro). etc. (**).


Cap III - Os assumptos do Fado  (pp. 77, 89-93)

(...) O calão é a linguagem habitual do fadista. Parece un dialecto, sem o ser rigorosamente. Muito pittoresco, não se limita apenas a alterar phoneticamente as palavras como a gíria infantil; além de lhes alterar o som, altera-lhes também  a forma, e muitas vezes lhes desloca a significação, levando-a para outros objectos, n'um sentido tropologico, fundado na relação de semelhança. 

 Assim, a garrafa preta da taberna é viuva; os copos são filhos da viuva: uma viuva e dois filhos quer dizer — uma garrafa e dois copos. Mas se o copo é maior que o da decilitração habitual, chama-se sino grande

 O cigarro é soldado de calça branca; a navalha, sardinha; a faca, sarda; o apito, rouxinol; a quantia que o rufião recebe da amante, queijada; o dinheiro, painço; o café com leite, mulato; a agua com café, meio-caiado; Deus, juiz do Bairro Alto; as pernas, juntas; a barriga, folle das migas; as notas de banco, filhozes; enfiar uma guitarra pela cabeça d'outra pessoa é fazer uma gravata; a bofetada é estampa; a meia-porta dos bordeis do Bairro Alto, avental de madeira, etc. (...)

 Nas outras linguas encontra-se um vocabulário correspondente ao calão dos nossos fadistas: os hespanhoes chamam lhe germania e chamavam lhe antigamente gerigonza; os francezes jargon e argot; os italianos gergo e lingua furbesca; os inglezes cant, etc. (...)

Calão vem de caló, nome que os ciganos dão a si mesmos. (...).

A giria portugueza, isto é, a linguagem especial usada pelas classes vis a fim de que as outras classes sociaes a não entendam, é muito antiga: já no século XVI Jorge Ferreira de Vasconcellos se refere aos que fallavam germania

No século XVII D. Francisco Manuel de Mello empregou alguns termos de giria na Feira dos anexins , que é, como se sabe, uma galante collecção de equívocos e jogos de palavra. 

No século XVIII, o padre Bluteau organizou uma lista d'aquelles termos, que incluiu no seu Vocabulário, e que foi copiada em parte no Compendio de orthographia de Frei Luiz de Monte Garmelo. (...)

No século XIX (...), os Ciganos de Portugal, por Adolpho Coelho (***), abrangendo um importante estudo sobre o calão, e o diccionario de giria ultimamente publicado pelo sr. Alberto Bessa constituem copiosas fontes para o vocabulário do calão portuguez. 

Adolpho Coelho traz o seguinte Fado composto em calão, reproduzido por Alberto Bessa:

Ao fadista chamam faia, 
 Ao agiota intrujão; 
 Ao corcovado golfinho, 
 Ao valente bogalhão. 

Entre o povo portuguez 
Ha calões tão revesados, 
Que deixam muitos pintados 
Por mais de cento e uma vez. 
 Lá vão alguns — trinta e trez 
 (Não sei se n'elles dou raia): 
 A' prata chamam-lhe laia, 
 A's nossas cabeças pinhas
Aos porcos chamam sardinhas
Ao fadista chamam faia

A's nossas mãos chamam batas
Ao génio chamam ralé
A' esperança chamam filé
A's bruxarias bagatas; 
A's velhas chamam cascatas
Ao poupado sovelão
Um gabinardo ao gabão; 
Ao caldo chamam-lhe rola
A um relógio cebola,
Ao agiota intrujão

Ao fugir chamam raspar
Chamam á casa mosqueiro
Ao ébrio chamam-lhe archeiro
Ao comprehender toscar
Ao roubo chamam cortar
A' guitarra pianinho, 
Ao chapéu escovadinho
Ao jogo chamam batota
A uma sardinha aranhota
Ao corcovado golfinho
 
A' fome chamam peneira
Também lhe chamam larica
Chamam á cara botica
A' aguardente piteira
Chamam bico á bebedeira, 
A uma mentira palão
E também é de calão 
Chamar-se ao vinho briol;  
Ao nosso bucho paiol
Ao valente bogalhão
 
In: Alberto Pimentel - A triste canção do sul: subsídios para a história do fado. Lisboa: Livraria Central de Gomes de Carvalho, editot, 1904, pp. 89-93 
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 11 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24840: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (19): O Bairro Alto... de finais do séc. XIX, mal afamado durante muitas décadas, e hoje gentrificado...


(***) Os ciganos de Portugal : com um estudo sobre o calão / F. Adolfo Coelho. - Lisboa : Imp. Nacional, 1892. - [8], 302, [1] p.; 26 cm. Obra também do domínio público, digitalizado pela Biblioteca Nacional (ver aqui cópia em formato pdf).

8 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Há imensos sinónimos para "dinheiro", além de paínço (calão do Bairro Alto), na língua portuguesa (falada em Portugal):

arame; bagalhoça; bago; cacau; carcanhol; caroço; chapa; cheta; grana; granfo; graveto; guita; massa; milho; papel; pasta; pastel; patacão; pilim; prata; taco; tutu; vil metal; verdinha; aquilo com que se compram melões; aquilo que faz cantar o cego...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Usávamos muito palavra "patacão" na Guiné como sinónimo de dinheiro...O que diz o Priberam ?

[Numismática] Moeda de cobre, do tempo de D. João III.

"patacão", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/patac%C3%A3o.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

painço
|pa-ín|
(pa·in·ço)

nome masculino
1. [Agricultura] Designação dada a várias plantas da família das gramíneas, de espigas e grãos semelhantes aos do milho, usadas na alimentação e como forragem. = MILETO, MILHO-MIÚDO

2. [Popular] Dinheiro.

etimologia Origem etimológica:latim panicum, -i.

"painço", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2023, https://dicionario.priberam.org/pain%C3%A7o.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O que diz a Wikipedia sobre Gíria:

https://pt.wikipedia.org/wiki/G%C3%ADria

Gíria ou calão é uma forma de comunicação utilizada em um contexto informal, sendo muito utilizada em conversas do quotidiano.

Contém palavras ou expressões que "fogem" da norma culta, as quais muitas têm origem na cultura de determinado povo ou região específica. O intuito de tais estruturas é substituir termos formais da língua, ou seja, interpretar as palavras com um sentido figurado.(...)

Por serem algo que muitas vezes é exclusivo de um pequeno grupo, é comum que muitas gírias não sejam reconhecidas por outras pessoas, fato esse que fortalece a identidade cultural de grupos sociais.

O termo calão, embora possa ser percebido por vezes como sinónimo de gíria, outras vezes é classificado como uma forma de gíria mais grosseira ou obscena.(...)

As gírias, em sua maioria, pertencem ao vocabulário específico de certos grupos (...)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Também temos no Pequeno Dicionário da Tabanca Grande termos da gíria e do calão militares, usados na Guiné, e alguns "acrioulados"...

Por exemplo, água de Lisboa, apanhado, bioxene, bunda, capim (dinheiro), catota, cabeça grande, cães grandes, embrulhar, estilhaço de frango, ferrugem, gaita à bandoleira (Andar de), lava-tudo, lerpar, levar coms os patins, manga, mato, mudar o óleo, nharro, parte catota, parte punho, pira, piurso, rabecada, piçada, supositório, tuga, turra, Vè-Cê-Cê (Velhinho Como o C....)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2020/03/guine-6174-p20726-pequeno-dicionario-da.html

Valdemar Silva disse...

Fazer ou não fazer batota deu para toda a gente que já nem calão é considerado.
Em todas as palavras calão é anotado como de origem desconhecida, mas deve haver alguma explicação de como teriam aparecido.
p.ex. dar de frosques não aparece neste calão do Bairro Alto, mas é muito utilizado com o significado de ir-se embora, sair, quer dizer que será um calão recente ou utilizado em determinada região que depois se generalizou. Já o vai-te quilhar, causar prejuízo, parece ser bem nortenho.

Valdemar Queiroz

Fernando Ribeiro disse...

Uma noite, na Rua 31 de Janeiro, na Baixa do Porto, apareceu uma montra partida. Juntou-se um pequeno grupo de pessoas, tentando adivinhar qual teria sido o artigo roubado daquela montra. Entretanto chegaram dois rapazes, com aspeto de serem da Ribeira ou do bairro da Sé, atraídos pela curiosidade de saberem a razão de um tal ajuntamento. Vendo que era uma montra partida, disse um dos rapazes para o outro: «Oh, pá, vamos embora, vamos embora, porque não tarda nada chega aí a bófia e tira-nos os pneus aos gadanhos.» Queria ele dizer que a polícia lhes tiraria as impressões digitais.

Um caso curiosíssimo de um calão que passou a ser considerado uma espécie de dialeto do português, é o da «piação dos charales do Ninhou», isto é, a fala dos naturais de Minde, ou minderico.

Minde é uma pequena vila situada na Serra de Aire e pertencente ao concelho de Alcanena, distrito de Santarém. A auto-estrada A1, que liga Lisboa ao Porto, passa-lhe ao lado, embora a uma cota bastante mais elevada. Quem passa pela auto-estrada a grande velocidade nem sonha no que existe ali em baixo.

Minde foi uma vila famosa pelas mantas que fabricava, mas parece-me que já não as fabrica mais. Onde ainda se devem fabricar mantas deve ser Mira de Aire, situada a escassos 3 ou 4 km de Minde. Ora o segredo é a alma do negócio, como diz o provérbio, e os comerciantes de mantas de Minde criaram uma gíria que lhes permitia entender-se entre si, sem que qualquer estranho compreendesse as suas combinações. Nasceu assim o minderico, que até já foi reconhecido pela UNESCO como Património Imaterial da Humanidade.

https://www.youtube.com/watch?v=fpQU21M7sKg

https://pt.wikipedia.org/wiki/Minderico

Tabanca Grande Luís Graça disse...

"
Obrigado, Fernando, o centenário minderico está em vias de extinção...Havia até há pouco tempo apenas 24 falantes... As línguas nascem e morrem... Julgo que hoje já ninguém fala como o faia do Alto Bairro, que era um marginal, "rufia", larápio e chupo (ou "azeiteiro", como ainda se dz no Porto)... Mas há novos grupos, nais ou menos marginais, que têm códigos sociolinguísticos próprios, urbanos suburbanos : por certo, os traficantes e consumidores de droga, os grafiteiros, etc.

"A gíria portuguesa: esboço de dicionário do 'calão', de Alberto Bessa (1901), citado por Alberto Pimentel (1904)...Há uma edição, recente, da Húmus (2022, 248 pp; coleção AIha; preço de capa: 4 euros.)

https://edicoeshumus.pt/index.php?route=product/product&product_id=1494


“Linguagem de marotos”, como o definiu o Padre Rafael Bluteau no século XVIII, o calão pode expressar preconceitos e juízos de valor, mas, pela sua dimensão criativa, é sobretudo um desafio a convenções e tabus.
Com mais de cinco mil entradas, o dicionário de Alberto Bessa foi, à data da sua publicação [1901], a mais completa recolha de termos de calão, quer em Portugal, quer no Brasil.
Volvidos 121 anos, o leitor de hoje pode (re)descobrir termos e expressões como banazola, chelipe, embizugar, juiz do bairro alto, roupa de franceses, troses, viajante…

Livros cosidos, com folhas não aparadas, à semelhança do que se fazia no passado. A editora liga assim a coleção à História do Livro e associa-lhe uma vantagem ecológica, evitando o desperdício de papel.