Queridos amigos,
Antes de entrar no Convento da Cortiça procurei ler ao pormenor o plano de restauros e intervenções de que este magnífico espaço é alvo. O convento viveu um período de abandono que permitiu o vandalismo e alguma pilhagem, a despeito da rusticidade do espaço. A empresa responsável, digo-o com admiração, cuida primorosamente do convento e anexos, há mesmo voluntários a trabalhar nas hortas; desapareceram imagens, a inclemência do tempo e da natureza vão exigir mais restauros, mas não se pode percorrer este lugar sem sentir que houve aqui uma espiritualidade que atraiu homens a uma vida de despojamento e entrega a Deus, orando e subsistindo, seguramente contemplando com êxtase as belezas da serra, construíndo habilidosamente uma harmonia de materiais em que a cortiça, o madeirame e as pedreiras convergiram num diálogo que é impossível não maravilhar quem por aqui passa.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (129):
O Convento dos Capuchos (ou da Cortiça) que começou por ser o Convento de Santa Cruz da Serra de Sintra (2)
Mário Beja Santos
Aqui se conclui a visita ao Convento da Cortiça, promessa concretizada de D. Álvaro de Castro para homenagear a simplicidade cristã, o despojamento, num contexto de ordem freirática e na linha dos ideais de S. Bento, reza e trabalha, vive alheado das vaidades do mundo. O local escolhido para implantar este convento quinhentista é quase um achado, já vimos o uso apurado da pedra em diálogo com a cortiça, seguimos da entrada para a igreja e percorremos até aos dormitórios, mostram-se agora imagens desta austeridade de vida, percorre-se espaços da organização conventual, caso da cozinha e refeitório, a enfermaria, o forno e o celeiro.
Há décadas que este espaço me impressiona, de tal modo que um dia, no mercado de Santa Clara, em plena Feira da Ladra, na loja do meu amigo Eduardo Martinho, um vendedor exigente de livros e de arte, encontrei este quadro a óleo que mostra um dos aspetos mais cativantes daquela vida conventual. Na ausência de um claustro, que seguramente a Ordem não prescrevia, temos belos pontos de ligação à volta de uma fonte. O óleo veio assinado, assinatura não identificada, é de alguém que seguramente cultivava o uso da espátula e das camadas grossas, torcendo e retorcendo para que tudo ficasse bem claro. Quando abro a porta de casa, é sempre um prazer olhar para cima e cumprimentar esta singeleza conventual da serra de Sintra.
Pormenores dos dormitórios, na segunda imagem não terei dificuldade em reconhecer que há um assento para contemplar a paisagem e especulo se o outro cubículo não seria um pobre guarda-roupa dos poucos trastes que os frades possuíam.
As imagens acima têm a ver com a cozinha e o refeitório, áreas funcionais bem demarcadas: o fogão, sob a grande chaminé, e o lavadouro, sob a janela que abre para o Claustro. No dia 3 de maio, dia de Santa Cruz, havia peregrinos que acorriam ao convento, traziam donativos que chegavam a incluir carne, que os frades comiam apenas duas vezes por ano: no Natal e na Páscoa, para cumprirem o ritual cristão. No refeitório, os frades comiam sentados no chão, com o prato sobre os joelhos. Mais tarde, o cardeal D. Henrique ofereceu-lhes uma pedra, mandada arrancar da serra propositadamente para este efeito. Vê-se inicialmente a sala do refeitório, seguem-se imagens com aspetos da cozinha e não resisti a registar o belo teto em cortiça das instalações.
Passei a correr pela Sala do Capítulo, local de reunião da comunidade e também espaço de confissão. Havia ali um nicho com a imagem de Nossa Senhora das Dores. O que mais me chamou a atenção foi esta pia-fonte, seguramente quando estiver bem restaurada maravilhará o mais indiferente dos visitantes.
Estamos agora no Átrio das Enfermarias, quando adoeciam, os frades beneficiavam de maior conforto. Nas enfermarias usavam camas, havia uma botica onde se guardavam medicamentos e roupas de cama e também onde dormia o frade responsável pelos enfermos. Junto a esta, existe um pequeno braseiro para aquecer águas, chás medicinais e queimar ervas aromáticas. Neste espaço havia a cela de penitência, para recolhimento e meditação, era escura, aqui apenas era necessário a luz interior para fazer esplender a fé.
Pormenor de um corredor com luz para o exterior
Cela do doente
Mais um pormenor de quarto de enfermaria com a natureza ao fundo
Pormenor de janela com a serra de Sintra à espreita
Claustro do Convento da Cortiça já intervencionado na nova etapa de restauros, fechei os olhos para recordar o quadro que guardo em casa que usa uma técnica expressionista que não deslustra o que estou a ver, antes de descer para as hortas e dar por finda esta inesquecível visita.Pormenor da azulejaria da capela
Teto do celeiro
Antigo Forno
Caminho na mata da cerca do convento, sigo agora para as hortas e desejo a todos os futuros visitantes do Convento da Cortiça que aufiram da mesma alegria que eu aqui tive.____________
Nota do editor
Último poste da série de 11 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24841: Os nossos seres, saberes e lazeres (600): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (128): O Convento dos Capuchos (ou da Cortiça) que começou por ser o Convento de Santa Cruz da Serra de Sintra (1) (Mário Beja Santos)
5 comentários:
Esta viagem fotográfica que nos é oferecida pela sensibilidade e gentileza do camarada Beja Santos, sensibiliza-me.
Já disse em comentário ao Post anterior sobre este tema, que o mesmo me remete para o livro de Fernando Faria, "O NOVIÇO do Paço de Azeitão ao Convento dos Capuchos.
Melhor seria ir até à Serra de Sintra e contemplar nesses lugares, com os olhos e o coração, tudo o que resta desses tempos, que a erosão do tempo e a incúria dos homens não apagaram, do património e valores, que também modelaram alguns aspetos do ser português.
Perante a imediata impossibilidade dessa viagem real, irei viajar relendo o livro supra citado.
Na apresentação do livro na contra-capa leio:
"No dia 3 de Maio de 1560, perante uma pequena multidão de fiéis e com a assistência das mais altas figuras da realeza, foi inaugurado na Serra de Sintra, numa cerimónia de comedida solenidade, o convento arrábido de Santa Cruz ou da Cortiça.
Entre a meia-dúzia de futuros ocupantes do novo ermitério, edificado por entre enormes fragas no coração daquele que é conhecido desde a antiguidade como o Monte da Lua, achava-se um jovem poeta, de auspicioso futuro: chamava-se Agostinho Pimenta, fora educado para fidalgo e ficaria na História como Frei Agostinho da Cruz."
Impressionante a simplicidade e o despojamento dos espaços. Que frio haveria naqueles interiores durante os invernos na Serra.
Julga-se que a intenção da utilização da cortiça para forrar as paredes e tectos se deve ao facto de haver extrema humidade por o Convento estar virado a norte.
Valdemar Queiroz
Para que conste, devo adiantar que a construção do Convento de Santa Cruz na Serra de Sintra, por D.Álvaro de Castro, foi o cumprimento de uma promessa de seu pai, D.João de Castro, que em 1948, com 48 anos, sucumbira em Goa, a grave e súbita doença, pouco tempo após ter recebido do rei D. João III, o título de Vice-rei da Índia, em Outubro de 1947.
Penso ser interessante mencionar também, que entre as mais altas figuras da realeza, presentes no ato de inauguração deste convento, esteve o herdeiro ao trono real, D.Sebastião, "O Desejado", com apenas 6 anos, na companhia de sua avó e regente do Reino, D. Catarina de Áustria, viúva de D. João III. Do séquito real fazia também parte, o poderoso cardeal- Infante D. Henrique.
Outra notável figura que terá presenciado o ato solene e nele participado sem convite, terá sido o humanista Damião de Góis.
E o que estes dados têm a ver com os camaradas da Guiné? Lembremos a morte de Dom Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir e de D,João de Castro em Goa. Foi a expansão de Portugal pelo Mundo que os levou a África e à Índia, onde morreram. Nesta epopeia grandiosa quantos milhares de valentes terão morrido? Nós que por lá também andámos e algumas vezes corremos perigo, ainda aqui estamos vivos. Que saibamos aproveitar bem a vida que nos resta,
É meu dever corrigir o erro de 2 datas do comentário anterior: no primeiro parágrafo onde se lê as datas de 1948 e 1947 deve ler-se 1548 e 1547.
As minhas desculpas.
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