1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Maio de 2022:
Queridos amigos,
A tradição oral africana é um dos patrimónios culturais mais valiosos deste Continente, tão escasso de documentos escritos, de património edificado, de registos linguísticos, entre outros. Um pouco por toda a parte há a preocupação de se estudar este tesouro, dos mais diferentes ângulos. Tanto no período colonial como após a Independência esta tradição oral tem vindo a ser analisada, basta folhear o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa ou depois da Independência ler os trabalhos de Fernanda Montenegro. Foi uma surpresa encontrar esta dissertação de mestrado na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, a mestranda teve o cuidado de utilizar uma das mais completas antologias existentes, os "Contos Mandingas", de Manuel Belchior, precedendo os seus comentários de pertinentes considerações sobre o valor da tradição oral e como ela carece de estudos, continuamente.
Um abraço do
Mário
Um dos patrimónios mais valiosos da cultura africana:
Como exemplo, um olhar sobre os contos mandingas (1)
Mário Beja Santos
A matéria de análise da tradição oral africana leva-nos a uma fonte histórica suculenta, uma seiva de autenticidade, ocorre-nos prontamente os Griots, os músicos que exaltam heróis e que elevam a sua narrativa dedilhada pelos corredores obscuros do labirinto do tempo. Há uns anos atrás, adquiri um livro sobre a tradição oral com maior incidência no mundo africano, a UNESCO apoiara a criação de um Centro Regional de Documentação para a Tradição Oral, sediado em Niamey, a capital do Níger, aí se reuniram especialistas que entrevistaram Griots, contadores e cantores, letrados muçulmanos e padres, patriarcas e chefes de família, entre outros. Sinteticamente, e em torno de uma consideração consensual, as tradições orais são uma parte essencial do património cultural africano. E fez-se uma apreciação de respetiva tipologia. Quanto à forma, as tradições apresentam-se sob três formas essenciais: prosa, prosa ritmada, prosa cantada ou não, manifestando-se através de uma forma livre ou estereotipada. Estas tradições orais abarcam todos os géneros de expressão literária: história (genealogia, crónica, narrativa histórica), poemas épicos, líricos, pastorais, contos, fábulas, adivinhas, teatro, não faltando as abordagens religiosas e iniciáticas; para além dos conteúdos históricos, as tradições abarcam temas populares ou eruditos. Outro aspeto que esta obra sobre a tradição oral releva são as relações interdisciplinares: a linguística, a etnologia, a arqueologia, a musicologia. Falamos de uma obra que data de 1972 e que envolveu um conjunto de países, dois deles têm fronteiras com a Guiné-Bissau (Senegal e Guiné-Conacri). A descoberta de um livro sobre análise de contos, forneceu munição para falarmos um pouco das tradições orais de uma das etnias mais populosas da Guiné, os Mandingas.
Trata-se de uma dissertação de Mestrado em Literaturas Brasileira e Africana de Expressão Portuguesa apresentada à Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, em 1998, por Hannelore Felizitas Nadolnÿ da Silva, exatamente com o título “Um Olhar Sobre os Contos Mandingas”. A Hannelore diz ter vivido na Guiné-Bissau entre 1959 a 1965 e para o escopo do seu trabalho retirou um conjunto de histórias da 1.ª edição de “Contos Mandingas”, de Manuel Belchior. Antes de se debruçar sobre a análise dos contos tece comentários de índole teórica sobre este património. A oratura abarca a literatura oral, a literatura oral tradicional e a literatura folclórica. Observa que a literatura oral é anónima, a obra escapa ao seu criador para se tornar num bem comum, depende sempre da personalidade do contador, cada intérprete imprime a sua marca, tudo vai da vivacidade e imaginação do Griot (contador ou narrador, e muitas vezes com a capacidade de musicar, é o que se passa com os tocadores de korá). Designa por a palabra a memória viva de África. É nas sociedades orais que a função da memória está mais desenvolvida, a palavra testemunha tudo, é um retrato, a coesão da sociedade assenta sob o valor e o respeito da palavra. O universo visível é concebido e sentido como um signo.
Dado que na sociedade tradicional africana as atividades humanas têm frequentemente um caráter sagrado ou oculto, são particularmente estas que se constituem como vetor da transmissão oral de conhecimento e tradições.
Nas sociedades tradicionais crê-se que os atos mais importantes da vida quotidiana já foram realizados num tempo primordial, operados por deuses ou heróis, de modo que os homens nada mais fazem do que repetir esse comportamento enquanto arquétipo e modelo. A literatura oral nasce em sociedades onde o trabalho humano não é fragmentário, ou seja, onde não há uma separação radical entre o trabalho quotidiano e a criação artística. A função do narrador é de procurar transmitir um melhor conhecimento e adaptação aos fenómenos da vida e espaço, unificando-os, relacionando-os, numa linguagem simples com larga margem de variações, obedecendo a uma coesão de fundo.
Feitos estes comentários, a autora refere a problemática do conto africano, apresenta alguns dados históricos sobre os Mandingas e disseca a estrutura do conto. Diz-nos que geralmente os brancos tendem a talhar os africanos à medida do seu logos grego e da ratio romana, ou seja, à sua imagem e semelhança. Os povos africanos elaboram no tempo e no espaço as suas visões do Homem e do mundo; criaram os seus valores, hierarquizaram-nos de acordo com a sua filosofia, tanto no domínio do sagrado como no profano. O conto está sempre integrado nos diferentes aspetos da vida social; assegura as múltiplas funções de memorização, de código ético, de expressão estética. Os contos tecem-se não para convencer estranhos, mas para construírem o depósito de uma crença.
Dá-nos seguidamente um histórico sobre os Mandingas, a partir do Império de Mandé, recorda o que os primeiros autores da literatura de viagens sobre eles escreveram: Valentim Fernandes, Duarte Pacheco Pereira, André Álvares de Almada (século XVI), André Gonelha e Francisco de Lemos Coelho (século XVIII). Iniciando a sua proposta de análise, fala-nos na classificação feita pelos Mandingas sobre esta importante vertente da tradição oral: histórias verdadeiras (mas que incluem mitos, lendas históricas e contos exemplares ou edificantes) e contos mentirosos (os humorísticos e fábulas de animais). Segundo o inventário da autora, os temas dos contos são: religiosos, didáticos, iniciáticos, históricos, humorísticos e fábulas de animais. E insiste que a palabra tem um poder incomensurável, constituem um suporte cultural iniciático, na medida em que exprime o património tradicional e tece uma linha de continuidade entre gerações passadas e presentes. E temos como ponto de partida um conto religioso intitulado “Por que razão Deus não tem filhos?”. Moisés depois de alguns encontros com Alá no Monte Sinai, disse ao Criador: “Senhor, oiço a Tua voz, mas não Te vejo, e arde em mim a curiosidade de conhecer o Teu rosto, a Tua forma, o Teu aspeto, de conhecer, enfim, qualquer coisa de Ti. Deixa que o Teu servo Te veja, Senhor!” Deus respondeu-lhe que aquele pedido era impossível de satisfazer, Moisés insistia, queria saber se Ele era branco ou preto, homem ou mulher, a resposta veio breve, não era homem nem mulher nem branco nem preto e não tinha filhos.
Moisés estava confuso, mesmo dececionado. Então Alá deu ao Moisés três ovos e mandou a Moisés que regressasse para junto do seu povo e que mais tarde lhe daria a explicação daquilo que tanto o surpreendera. Moisés regressou à sua gente, um dos filhos quis brincar com um dos ovos, este partiu-se, tanto chorou que acabou por receber o segundo, e depois o terceiro, ambos se partiram. Quando Moisés voltou ao Monte Sinai e perguntado sobre o destino que dera aos ovos, lamentou-se, todos tinham sido partidos pelo mais novos dos seus filhos. “Ora aí tens, Moisés, admiraste-te por Eu não ter filhos e agora já te posso explicar a razão de não os ter. Se tu consentiste aos teus filhos que partissem os ovos que te dei, bem poderia aconteceu que Eu deixasse aos meus, se os tivesse, que partissem a abóboda do Céu. Não, Moisés, não tenho filhos à maneira dos homens, mas são meus filhos todos os seres que Eu criei”.
(continua)
Capa do livro Contos Mandingas, por Manuel Belchior
Mestre Braima Galissá, o Korá e a narrativa mandinga
Imagens de Griots, expoentes da narrativa oral africana
____________Nota do editor
Último poste da série de 13 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24847: Notas de leitura (1633): “A Guerra Que a História Quer Esquecer”, por Elidérico Viegas; Arandis Editora, Outubro de 2023 (Mário Beja Santos)
3 comentários:
Caros amigos,
Duas notas sobre o tema do Poste:
1_"A oratura abarca a literatura oral, a literatura oral tradicional e a literatura folclórica. Observa que a literatura oral é anónima, a obra escapa ao seu criador para se tornar num bem comum, depende sempre da personalidade do contador, cada intérprete imprime a sua marca, tudo vai da vivacidade e imaginação do Griot (contador ou narrador, e muitas vezes com a capacidade de musicar, é o que se passa com os tocadores de korá)."
No paragrafo acima esta dito claramente que a literatura oral (africana) é anonima, a obra escapa ao criador para se tornar numbem comum. Dito isto, o bom senso nos aconselha a olhar com muitas reservas as tentativas de apropriaçao deste patrimonio comum, que a cultura africana sempre rejeitou, ao atribui-lo a uma determinada etnia.
No espaço geografico da africa do Oeste, nomeadamente na antiga senegambia, coexistiam numerosas etnias que, na sua interaçao e competiçao politica, economica e socio-cultural certamente, terao contribuido para a criaçao do patrimonio cultural comum que nenhuma etnia deveria se apropriar como sendo sua de forma exclusiva.
Uma coisa curiosa que que nos deve interpelar, é o facto de que, da mesma forma que os portugueses, durante a fase da colonizaçao, quiseram implantar uma politica de assimilaçao cultural com o objectivo de fazer perdurar o seu dominio, os mandingas e também os fulas em certa medida (grupos predominantes na sub-regiao), ja o faziam havia muitos séculos atras, factos que justificam a existencia de grupos assimiliados em fase de transiçao como os biafadas, balanta-manés e mansoancas e ainda o facto de que a elite mandinga do império de Gabu (Kaabu) tenha apelidos (patronimicos) que sao de origem nao mandinga, mas de cuja origem muito pouco se fala, o que nao deixa de ser estranho num grupo onde proliferam os 'Djidius'. Os apelidos Sané, Mané, Sanha, Biai, Djassi etc...considerados da nobreza e que estiveram sempre ligados ao poder pertencem ou pertenciam a grupos integrados no grupo mandinga seja por integraçao seja por assimilaçao ou ainda extintos e sobre os quais muito pouco se sabe como os banhuns, pajadincas, cocolis, bajaris etc.
2_ E um pouco estranho iniciar a explanaçao sobre a literatura oral africana com um facto historico nao africano ou seja o mito biblico de Moisés durante a fuga do Egipto transcrito no texto do Alcorao que, mais uma vez, nao passa de uma apropriaçao de um facto mitico religioso de origens obscuras e com raizes, provavelmente, de povos do oriente.
Na verdade, os contos e toda a panoplia do que se pode considerar a literatura africana nao pertence a um determinado grupo étnico, pois em cada um deles contam-se os mesmos contos, com algumas variaçoes na forma e conteudo. A facilidade e a vantagem de apropriaçao dos mandingas resultou principalmente da sua posiçao dominante num determinado periodo historico no espaço geografico em questao ou seja do séc. XIII ao séc.XIX.
Com um abraço amigo
Olá Camaradas
Li e ainda tenho os Contos Mandingas do "colonialista, salazarista, imperialista" Manuel Belchior, em 1969 após a 1.ª Comissão. Era uma maneira de conhecer a Guiné que eu tinha acabado de deixar. Depois... nunca mais li nem comprei nada sobre o tema. Aliás parece que há pouco sobre o tema. Não há quem investigue e escreva.
Se calhar era boa ideia reeditar na Guiné, mas não creio que tivesse grande saída...
Mas isto sou eu a pensar.
Um Ab e bom FdS
António J. P. Costa
A Guiné tem uma mistura de culturas metade subsariana e a outra metade norte sariana.
E como com tanta misturas étnicas e religiosas, até que os guineenses se entendem entre si muito bem.
Agora tanto os Manes como Sanes há muitos que já passaram ou pelo Sporting ou Benfica e já se espalharam a jogar à bola por toda a Europa.
Na África subsariana pura, aquela que também se diz África negra, ainda havia há 50 anos, aldeias de certas tribos sem qualquer influência cultural e religiosa quer de europeus quer de árabes.
Nem sabiam falar português nem linguas das tribos vizinhas.
E viviam!
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