Duas páginas do
diário do Arsénio Puim que foi apreendido pelas autoridades militares de Bambadinca, em 17 de maio de 1971 (e que serviria depois para o incriminar). Cortesia de António Marujo / Semanário Expresso, 12/5/2023
Arsénio Chaves Puim, ex-alf graduadocapelão,
CCS/BART 2917 (Bambadinca, maio 1970 / maio 1971)
Foto: © Gualberto Magno Passos Marques (2009). Todos os direitos reservados.
Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].
Transcrição:
"Porto, 19/2/70.
Continuam a perpassar pela minha consciência, espontaneamente, confrontos e problemas relativamente à minha situação de capelão militar.
Não nego, evidentemente, a necessidade de assistência religiosa aos militares como parcela que são, frequentemente muito válida do mundo dos homens e mesmo da Igreja. O problema não é esse, mas simplesmente os moldes atuais em que essa assistência é feita.
Penso e tenho constatado que a incorporação do sacerdote, como tal, no Exército, demais em guerra, com a categoria de oficial, sob as ordens de um comando militar, e a orientação duma cúria castrense, que é uma repartição do Ministério do Exército, escandaliza seriamente muitos homens de hoje, e distorce a sua missão de pregador do Evangelho, e dispensador da graça a todos os homens.
Como ministro de Cristo, que veio dar testemunho da Verdade e morrer por todos, o sacerdote não pode (sem falsear a sua realidade, manietar a palavra de Deus, e dar um antitestemunho de Cristo), estar comprometido, enquant0 tal, com instituições de fins especificamente militares, mormente quando
empenhadas em atividades bélicas partidárias e unilaterais, que a sua presença, além de cooperante, poderia parecer autorizar e sacralizar.
Ou os homens compreendem a missão específica do sacerdote e respeitam-na ou não compreendem e prescindem dela.
Todos estes pontos de vista, tive oportunidade de ver que preocuparam a consciência de muitos sacerdotes que frequentaram este ano a Academia Militar, mas nunca mere- (...)
(Transcrição / revisão / fixação de texto: LG)
1. O jornalista António Marujo (do jornal digital 7Margens) publicou esta semana na Revista do semanário Expresso, edição nº 2673, de 12/5/2023, uma excelente e bem documentada reportagem sobre os capelães militares e a guerra do ultramar / guerra colonial. O destaque é dado à figura do nosso tabanqueiro Arsénio Puim (que acaba de completar, em 8 de maio, os 87 anos).
O título da peça não de deixa de ser apelativo e metafórico: "O caso do capelão expulso por querer descalçar os dois sapatos à guerra".
Neste trabalho de investigação (em que o nosso blogue é citado várias vezes), o autor acabou por descobrir "pelo menos outros 11 padres católicos que se opuseram à guerra colonial e não quiseram ser capelães", para além dos dois que foram expulsos do CTIG e exonerados das suas funções de capelania (Mário de Oliveira, em 1968 e Arsénio Puim, em 1971):
(...) "José
Maria Pacheco Gonçalves, José Alves Rodrigues, Domingos Castro e Sá, Serafim
Ferreira de Ascensão, Manuel Joaquim Ribeiro, António de Sousa Alves, José
Domingos Moreira, José Lopes Baptista, Joaquim Sampaio Ribeiro e Carlos Borges
de Pinho (todos da diocese do Porto) e José Carlos Pinto Matos, da diocese de
Viseu. "
Destes nomes destaque-se o do Carlos Manuel Valente Borges de Pinho, que foi capelão da CCS / BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, 1973/74), no curto período de 16/3 a 16/9/73. (´Foi amigo pessoal do nosso tabanqueiro José Teixeira, que neste momento não sabe do seu paradeiro: para saber mais ler aqui o poste P19055.)O título da reportagem é inspirado na história de dois homens e um par
de sapatos, que o ex-capelão militar Arsénio
Chaves Puim, na Guiné, registou no seu diário, no Dia
de Ano Novo de 1971.
“A guerra não é coisa para ter fim. Qual? Até se lhe acharia a
falta, como aquele homem que, dormindo num andar inferior, estava habituado a
ouvir o vizinho descalçar os sapatos à noite. Um dia este só descalçou um e o
homem não adormeceu.”
Citando o jornalista António Marujo:
(...) A história acabou com uma denúncia — não sabe de quem: poderia ter sido alguém que o ouvira em alguma missa ou outra pessoa que o tivesse escutado numa conversa menos coincidente com as opiniões do regime. Certo é que os comandantes do quartel lhe apareceram no quarto, obedecendo a ordens superiores, “de Bissau”, para revistar tudo. Começaram por exigir os diários: “Tinham ordem judicial, estavam informados de que eu os escrevia. Deram-me duas ou três horas para me preparar, iria depois uma avioneta buscar-me.”
Abílio Machado, militar que presenciou a cena, contou, no blogue de Luís Graça: “Fui ver. Encontro o Puim sentado na cama, nervoso mas determinado, olhando uns sujeitos que impiedosamente lhe desmantelavam o quarto descarnado, de asceta, à cata de... Abriam, fechavam gavetas, apressados...”
O resto desta história, acabrunhante, é conhecida dos nossos leitores: o capelão acaba por ser expulso do CTIG, e das suas funções de capelania (tal como tinha acontecido com o Mário de Oliveira, três anos antes, em Mansoa). De "Bissau" (sic) veiouma ordem (que ele nunca leu, nem lha deram a ler), para arrumar a trouxa e preparar-se para embarcar numa DO-27... Foram-lhe confiscados, pelo major que fazia então as funções de comandante do BART 2917, os caderninhos com o seu "diário".
"(...) há vários sublinhados dos censores ou militares que os leram, depois de apreendidos. O autor só os recuperaria depois do 25 de Abril de 1974, depois de um primeiro pedido ter sido recusado, em janeiro de 1972, pelo ministro do Exército." (...).
Em suma, achamos de todo o interesse documental a leitura desta peça jornalística que aborda um tema, se não tabu, pelo menos incómodo (e até comprometedor) para a hierarquia da Igreja Católica de então, nomeadamente para o bispo titular de Madarsuma, António dos Reis Rodrigues (1918-2009), um homem intelectualmente brilhante, professor na Academia Militar, que desempenhou as funções de Pró-Vigário Castrense e Capelão-Mor das Forças Armadas entre 1967 e 1975, ano em que foi nomeado bispo-auxiliar do Patriarcado de Lisboa ( ainda ao tempo do cardeal-patriarca Manuel Gonçalves Cerejeira, 1888-1977).
Não sabemos qual foi o papel, nesta história, do controverso capelão-chefe major Gamboa (de seu completo Pedro Maria da Costa de Sousa Melo de Gamboa Bandeira de Melo, nascido em Castelo Novo, Fundão, em 1919) que vivia no "Vaticano", em Bissau, na altura em que o Puim fui expulso do CTIG.
De qualquer modo, o Puim tinha já razões de sobra para não querer “ser mais capelão militar nesta guerra”, como escreveu numa carta ao vigário-geral castrense, o bispo António dos Reis Rodrigues, pedindo para sair. Mas ainda hoje ele não sabe se a carta chegou a Garcia... Honra lhe seja feita, também fez questão de dizer que "terei pena de abandonar os homens com quem vim [os militares do BART 2917, Bambadinca, 1970/72] e de quem não tenho razões pessoais de queixa.” Dois meses depois vem a ordem de expulsão de Bissau...
2. Num trabalho desta natureza, com recurso a diversas fontes, e nomeadamente orais, há sempre alguns imprecisões, nomeadamente toponímicas, que eu próprio já sinalizei ao autor. É o caso, por exemplo, deste parágrafo:
(...) Algumas
das homilias mais fortes de Puim contra a guerra foram entre abril e maio de
1971. Um grupo de pessoas — incluindo sete mulheres e algumas crianças — tinha
sido detido em Madina do Boé, onde dois anos depois o PAIGC (Partido
Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde) proclamaria a
independência unilateral. A memória é de Luís Graça que viria a ser professor da Escola
Nacional de Saúde Pública, colocado no mesmo batalhão e que hoje é o principal
dinamizador de um blogue que recolhe memórias e testemunhos desse tempo (...) (Negritos nossos, LG).
O jornalista deve trocado, por lapso, Madina / Belel por Madina do Boé. Madina / Belel (temos duas dezenas de referências a este topónimo) era uma península, que ficava a norte do Enxalé, na margem direita do Rio Geba, já no limite do Sector L1 (Região de Bafatá), e que era de difícil acesso a tropas apeadas... As NT iam lá uma vez por ano, no tempo seco...
Madina do Boé, por seu turno, ficava junto à fronteira sul / sudeste com a Guiné-Conacri (Região de Gabu). (Temos mais de 180 referências a este topónimo; por outro lado, é um erro grosseiro dizer que foi em Madina do Boé que o PAIGC proclamou a independência unilateral em 24/9/1973; o nosso blogue já publicou muitos postes a desmontar esse mito da propaganda do PAIGC.)
Por outro lado, eu preciso de confirmar mas os referidos prisioneiros não terão sido feitos pela 1ª CCmds (que já estava a atuar no setor L1 nessa altura, no nordeste da Guiné) mas sim pela CCAÇ 12, companhia de recrutamemtp local (a que eu pertenci desde a sua formação, em junho de 1969 até ao fim da minha comissão, em março de 1971).
Tirando estes "pequenos lapsos" (frequentes quando se fala com os jornalistas ao telefone e não há muito tempo nem espaço para explicar e registar o contexto em que as histórias acontecem, para mais num território como a Guiné de geografia e etnografia complexas e exóticas...), o trabalho do António Marujo merece ser lido. (Ele disse-me que vai também publicar uma versão corrigida, no seu jornal digital 7Margens). ____________
Nota do editor: