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quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23577: Notas de leitura (1486): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte VI: "Cercados de guerrilheiros por todos os lados", diz o alf mil Ribeiro, no "briefing" da praxe...

 

Croquis, basedo na carta de Bedanda (escala 1/50 mil), abrangendo os subsectores de Bedanda e Cufar... O rio principal era o Cumbijã, de que o rio Ungarinol era afluente (aqui se situava  o porto interior de Bedanda). Em 1965/67, as "barracas" do PAIGC e outros pontos logísticos (com população) vão assinaldos a vermelho... A 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, com sede em Bedanda, ao tempo do cap inf Aurélio Manuel Trindade, "partiu mantenhas" com a gente do mato que vivia por aqui... Em Cufar, estava  a CCAÇ 763 (1965/66), do nosso amigo e camarada Mário Fitas, ex-fur mil oo esp. E mais abaixo, a sede de batalhão, em Catió, sector S3: primeiro o BCAÇ 619 (jan 1964 / jan 1966),e  depois o BCAÇ 1858 (jan 1966 / mai 1967).

Infografia: Aurélio Manuel Trindade / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)










Anúncios de casas comerciais que, em meados dos anos 50, operavam no sul da Guiné, na região de Tombali, na altura o celeiro da província... Fonte:Turismo - Revista de Arte, Paisagem e Costumes Portugueses, jan/fev 1956, ano XVIII, 2ª série, nº 2. (Recolha do nosso camarada Mário Vasconcelos, 1945-2017)



1. Continuação da leitura do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2020] , 445 pp. , il. [ Manuel Andrezo é o pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade, ex-cap inf, 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, Bedanda, jul 1965/jul 67, exemplar gentilmente facultado, a título de empréstimo, pelo cor inf ref Mário Arada Pinheiro, com dedicatória autografada do Aurélio Trindade, datada de 13/12/2020] (*).


Mas a patir de agora, tomamos como referência a edição de autor, de 2010 , de 399 pp., il.,, disponível em formato pdf,  na Biblioteca Digital do Exército (Panteras_a_Solta (PDF, 6 MBlink para descarregar o ficheiro em pdf, cortesia do autor e da Biblioteca Digital do Exército).

O cap Cristo ("alter ego do cmdt da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, no período que vai de meados de 1965 a meados de 1967)  não nos explica  por que razão Bedanda  estava em decadência, e isolada do resto do território, com a população dependente do exterior para se alimentar, quando uma dezena de anos antes fazia parte, com Catió e Cacine, do grande celeiro da província (**)...

A Guiné que exportava arroz, teve que começar a importá-lo. A explicação era, naturalmente, a guerra, com a consequente destruição do tecido económico e social do território. Na aregião de Tombali, no sul, a população balanta caiu sob o controlo do PAIGC e os fulas refugiaram-se em Bedanda, A admitraçao civil era totamente inoperante. Como dizia o seu responsável, Fernandes, cabo-verdiano, ao capitão Cristo, no dia em este o foi cumprimentar: (...) "Sou o administrador mas quem manda é a tropa, porque eu estou limitado a ir do posto para casa e de casa para o posto. É uma dura rotina." (... )pág. 19),

Leia-se o, entretanto,  o que o autor escreveu no início do capítulo intitulado "Reforma Agrária" (pp. 76-82):

(...) Em tempos, um outro capitão tentou levar os nativos da povoação a cultivar as ricas bolanhas de Bedanda. Era uma pena ver estas terras que antes da guerra roduziam muito arroz quando trabalhadas por balantas, agora cheias de mato. A população de Bedanda é hoje predominantemente fula, quando a região foi sempre, ao longo dos anos, chão balanta. O fula é fundamentalmente negociante e não gosta muito de lavrar a terra. No entanto, todos nós militares víamos que a actual situação não se podia manter. A população não produzia nem para comer. Vivia, por um lado, do trabalho de guia e da milícia, isto os homens, e por outro, de relações com os militares, as mulheres.(...) 

Veja-se também este diálogo entre o capitão e o régulo Samba Baldé (pág. 77/78)  

(...) "─ As pessoas não têm o que comer, passam muita fome e eu não quero que vivam pior que a gente do mato. Samba, tu és o homem grande e eu preciso de saber o que devemos fazer.
─ Nosso capitão, não há trabalho em Bedanda, apenas na milícia. Mulher é lavadeira da tropa e mais nada. O dinheiro é pouco, não dá para comprar arroz, peixe e óleo. Nosso capitão tem razão. A gente passa fome.
─ Samba, eu não compreendo a tua passividade. É preciso arranjar maneira de toda a população ter comida. Está na altura de preparar a bolanha para semear o arroz. emos muito boa bolanha em Bedanda. Toda a gente vai cultivar arroz. Tu divides a bolanha por todos e verás que ainda sobra bolanha.
─ Nosso capitão não pode ser, fula não cultiva arroz. Fula é comerciante e no seu chão faz arroz de sequeiro, não de bolanha. Fula da população não sabe cultivar arroz.
─ Samba, ouve bem o que eu te digo. Eu sou filho de pessoas que cultivam a terra lá no puto. Eu cultivei a terra. Já aprendi com o senhor Aniceto a cultivar arroz e já andei pela bolanha a ver as terras. Há terras livres para toda a gente. E vamos cultivar rroz porque eu não quero que as pessoas passem fome. Quero que cultivem arroz para comer e para vender. A bem ou a mal vamos cultivar arroz. (...)

O sucesso da sua  "reforma agrária" deve ter sido motivo de orgulho para o cap inf Aurélio Manuel Trindade. Naturalmente, não temos  acesso a outras fontes para comprovar a eficácia e a eficiência das medidas então tomadas pelo capitão. Confiamos no seu testemunho (Ou nas suas memórias passadas ao papel meio século depois).

Para o novo comandante da 4ª CCAÇ, Bedanda é uma ilha, fisica e metaforicamente falando

(...) "─ Ilha,  não digo, ─ diz o Dino [antigo tropa, agora pequeno conerciante]   ─ pois Bedanda é mais uma península cercada de água por todos os lados menos por um que é Guilleje.
─ Sabe Dino, ─ esclarece Cristo ─ eu falava de ilha em sentido figurado, eu não queria dizer cercada de água mas de guerrilheiros, que estão por todo o lado, e Bedanda é de facto uma ilha nesse sentido". (...)  (pág, 22).

E a verdade é que o croquis que publicamos acima, não enganava... Tirando Bedanda e Cufar, a guerrilha parecia estar por todo o lado... Era o "reino do ino" (pp. 354-365): Comumba, Bobedê/Melinde, Cabolol,Incala, Salancaur (já no corredor de Guile), Chugué, Cabedú, Nhai,Buchenon, etc., são topónimos de guerra... E sobre todos eles há histórias que ficaram para sempre gravadas na memória dos bravos de Bedanda e, naturalmente, do capitão Cristo que as viveu e escreveu, com paixão, coragem, inteligência e desassombro...

(...) "Em zonas mais afastadas como Salancaur, Nhai, Caboxanque e Cabolol, só duas companhias dão garantia de sucesso da operação. " (...) (pág. 101). Por sua vez, "Bobedê era considerada uma área onde só se ia com três pelotões" (pág. 107). E estamos a falar de uma companhia que era não de intervemnção mas de quadrícula, da guarnição normal, incialmente constitu+ida por "matrapilhas" (com a velha farda do caqui amarelo, esfarrapada, equipada com a velha Mauser, bebendo o café por latas de salsichas, sem roupa de cama, nem mosquiteiros)...Mas que, quando vai para o mato com o cap Critso,  não vai me "traje de passeio:

(...) "O Antunes prepara fogos de artilharia, a executar à ordem, sobre Samenhite. Levamos rações de combate para um dia, 200 cartuchos por homem, 2 granadas ofensivas por militar, 4 granadas de morteiro 60 por cada morteiro e 3 de lança-granadas por pelotão. Não se esqueçam de verificar se os homens levam água. A água que vamos encontrar é salgada" (...= (pp- 107/108)-

2. Quantos militares estavam aquarelados então em Bedanda, incluindo um pelotão de milícias (40 homens), e eçotão de artilharia, com duas bocas de 8.8  ? 

(...) A companhia tem cerca de duzentos e cinquenta homens na sua maioria negros. Quando na companhia houve uma tentativa de revolta, o Comando do Batalhão fez deslocar para Bedanda duas secções de brancos de outras duas companhias do batalhão. Essas secções ainda permanecem em Bedanda. Deve haver cerca de quarenta brancos, entre oficiais, sargentos e praças, para duzentos e dez negros. No sul da Guiné, em que a maior parte do território está controlado pelos guerrilheiros, existe uma companhia de nativos que soma êxitos sobre êxitos nas operações contra eles." (...)  (pág. 103). 


Embora extenso (pp. 26/27), vale a pena repoduzir a seguir o "briefing",  feito a sério e a brincar (também fazia parte da "praxe" aos "maçaricos", como então se dizia),  ao capitão Cristo, pelo  alf mil Ribeiro, o mais velho e o melhor operacional dos oficais milicianos da 4ª CCAÇ. (Vd. foto à esquerda, fonte: "Panetras à Solta", ed. autor, 2010, pág. 395; descobrimos que se trata de José Augusto Nogueira Ribeiro, natural de Fafe, 1940 - 2017, cor inf ref, condecorado com a "Torre e Espada" por feitos nos TO da Guiné Moçambique, vd. aqui no portal UTW . Ultramar Terra Web, Dos Veteranos da Guerra do Ultramar.)

(...) "─ Meu capitão, estamos na cantina, no ponto mais alto da Companhia. À nossa frente temos um rio navegável que separa, a norte, a área controlada pelos guerrilheiros, é o rio Ungauriuol. Este rio nasce a leste e corre para oeste, indo desaguar no rio Cumbijã que contorna a área da Companhia a oeste. A norte do Ungarinol, começando junto à sua foz, temos uma mata muito densa, mais ou menos paralela ao rio e que serve de esconderijo a vários acampamentos de guerrilheiros de efectivos variáveis mas com capacidade para se apoiarem uns aos outros quando atacados. 

Aoeste e a norte do rio Ungarinol, na mata referida, temos primeiro Incala, um dos pontos fortes dos guerrilheiros donde controlam a navegação não só do rio Cumbijã mas também do Ungarinol. A sudoeste de Incala o rio faz uma curva muito acentuada que é conhecida como a curva da morte. A última vez que a tropa tentou trazer um barco até ao porto interior de Bedanda, o barco foi fortemente atacado nesse local tendo morrido ou ficado feridos vários militares.  partir desse dia a Marinha recusou se a navegar no rio Ungarinol por falta de segurança. 

Desviando a nossa vista mais para leste encontramos primeiro Contumbum e depois Samenhite. Sabe-se que há um acampamento de guerrilha entre estas duas localidades que nunca conseguimos referenciar ou localizar em patrulhas pela zona. A seguir temos Bobedê, um dos pontos fortes dos guerrilheiros para evitar a passagem do rio Ungauriuol pelas nossas tropas. Já ali demos e levámos muita porrada.

 Mais para norte e na outra extremidade da mata fica Nhai e depois Salancaur, esta já no conhecido corredor de Guileje por onde passam os reabastecimentos dos guerrilheiros provenientes da Guiné-Conacri. Salancaur é mais um dos pontos fortes e mais ainda por ser um ponto de passagem, de concentração e descanso antes das colunas aí se dividirem em duas, uma seguindo para sul, para a mata do Cantanhez, onde está o Nino, o comandante guerrilheiro de todo o sul da Guiné, e a outra, atravessando o rio Cumbijã, vai com destino à base de Cansalá que fica para os lados do nosso Comando do Batalhão sediado em Catió

De novo para leste encontramos uma densa mata, já dentro dos limites do Cantanhez, que
é atravessada pela estrada que, vinda de Salancaur, segue depois até Cabedú, a sul dos
limites do Cantanhez, onde está estacionada uma companhia do nosso Batalhão. Não
há ligação entre a nossa Companhia e a de Cabedú. É uma zona completamente dominada pelos guerrilheiros. 

Partindo daqui para leste para alcançar Bedanda, encontramos outra estrada que se embrenha na mata. Esta estrada conduz até à fronteira da Guiné-Conacri, encontra-se cheia de abatizes5, de minas e de armadilhas,  e a primeira tropa que se encontra nessa direcção é um pelotão estacionado no Mejo, já pertencente à companhia de Guileje. Houve em tempos uma ligação terrestre entre Bedanda e Mejo, mas actualmente não conseguimos sequer chegar ao cruzamento para Salancaur. Sempre que tentámos chegar ao cruzamento fomos emboscados e retirámos com mortos e feridos. É uma zona dos diabos que os guerrilheiros querem controlar a todo o custo para garantirem o reabastecimento do Cantanhez. 

Voltando-nos agora para sul, vemos outra mata que, começando nas imediações de Bedanda, termina no rio Cafunebom, afluente do Cumbijã. O Cafunebom pode ser atravessado a vau. Antes de alcançarmos esse o rio, encontramos duas povoações, Cura e Braia. Estão na orla da mata, uma na margem do Cumbijã, a outra voltada para as tabancas de Flanque Injã e Caboxanque. São zonas onde se pode ir com um grupo de combate com muito cuidado pois é possível ter encontros com patrulhas dos guerrilheiros. Cura e Braia estão destruídas e desabitadas. 

Ainda mais a sul, já para lá do rio Bixanque, fica o coração do Cantanhez onde está o Nino, ocupando fortemente vários pontos da mata em que os mais conhecidos são Cadique e Cafal. A sul do Bixanque é já zona de acção da companhia de Cabedú. Para oeste, a nossa zona de acção termina no Cumbijã, via fluvial que é preciso manter a todo o custo pois é por ela que, uma vez por mês, nos chegam os reabastecimentos. É neste rio que fica o porto exterior de Bedanda. 

Este porto, onde já estivemos no outro dia quando da primeira saída do meu capitão, fica a
4 kms de Bedanda, em frente a Cobumba que já pertence à zona da acção da companhia de Cufar. Ponto muito forte dos guerrilheiros que dele precisam para garantirem a passagem e o reabastecimento dos seus acampamentos de Cabolol.

Cobumba é atravessada pela estrada que a cerca de 8 kms cruza com a que vem de Catió. Esta estrada segue depois para Cufar onde está mais uma companhia do nosso
batalhão. Seguindo para norte, até Empada, aí fica ainda mais outra companhia do batalhão. 

Na mata a sul de Cobumba ficam as tabancas de Cabolol e Cantumane, onde é muito difícil entrar. A norte de Cobumba fica Chugué, dominado pelos guerrilheiros, onde em tempos esteve destacado um pelotão da companhia. Uma noite, o pelotão foi atacado, arrasaram tudo e nunca mais lá conseguimos ir. Os sobreviventes do ataque retiraram para o quartel destroçados tanto física como moralmente. Aconteceu o mesmo em Salancaur onde no início existia uma secção destacada. Uma noite a secção foi atacada e só dois soldados conseguiram chegar à companhia. Dos outros elementos ainda nada se sabe, se terão sido mortos ou raptados. 

Resumindo, eu diria que estamos cercados de guerrilheiros por todos os lados e que sempre que saímos do quartel e nos afastamos mais de 4 kms, acabamos a tomar banho nas bolanhas ou nos rios e tiroteio também não nos deve faltar. Terminei a minha exposição. Espero ter sido explícito e desejo que tenha sido útil para o meu capitão poder ficar com uma ideia da área onde veio cair. Nenhuma das companhias mais próximas de Bedanda pode vir em nosso auxílio, em tempo útil se formos atacados. " (...)