Guiné > Região do Cacheu > Barro > CCAÇ 3 (1968/69) > Os temíveis "Jagudis", de etnia balanta, nome de guerra do 3º Gr Comb, comandado pelo alf mil A. Marques Lopes.
No dia seguinte peguei no meu grupo de combate e numas viaturas e fui para o COP3. No gabinete do major estava também um tipo à civil. Não o conhecia mas tinha um ar que dizia logo quem era. Do alto das suas botas de cavaleiro, o comandante do COP3 apontou com o pingalim para um mapa que tinha cheio de sinais coloridos. Falou sem rodeios:
– O agente Guerra…
– …tem informações que a população de Sano, da parte do Senegal, anda a fazer plantações de arroz e outros produtos na bolanha que está do nosso lado. Eu quero que você vá lá amanhã confirmar isso.
Apontara para o local que o capitão Olavo já lhe tinha indicado como tendo lá uma base do PAIGC. A conversa do major vinha confirmar que a fronteira era apenas uma linha no papel.
– É natural que façam isso, meu major. Antes da guerra aquilo era tudo terra deles, dum lado ou doutro, viviam em conjunto e exploravam as terras em conjunto. Após começar a guerra é que passaram todos para o outro lado mas continuaram a trabalhar aquelas terras que tinham antes. Além disso, meu major, eu acho que uns reconhecimentos aéreos podiam confirmar isso.
De facto, não percebia porque é que era preciso ir lá para ver se era assim como o pide dizia. Pareceu-me e confirmei depois que o major não tinha gostado desta parte final. O pide sorria.
– Ó nosso alferes, eu sei que você andou no seminário e, portanto, sabe o que quer dizer estar a ensinar o padre nosso ao vigário. Você é um miliciano quase imberbe e acha que me pode estar a dar conselhos a mim? E não sabe que o arroz que eles cultivam é para alimentar os terroristas?
Ele não falara em tom acintoso mas deixou-me enrascado. Não era pelo que ele tinha dito, era um homem corajoso e sensato, já mo tinha demonstrado, até gostava dele. Era mais pelo cabrão do pide que olhava para mim com ar zombeteiro. Não tinha dito a ninguém que tinha estado no seminário e só podia ser ele que tinha essa informação. Tinha cá uma vontade de lhe ir ao focinho…
– Peço desculpa, meu major. Não era minha intenção, de maneira nenhuma.
– Há mais – não me deixou acabar – diga lá, ó Guerra.
O pide endireitou-se na cadeira.
– Tenho também uma informação que estará lá um bigrupo reforçado. Consta que prepara um ataque ao seu quartel, alferes, e aqui ao COP. Mas esta não é uma informação muito segura, precisa de confirmação.
– Este é o outro objectivo da sua ida lá – disse o major.-– É o mais importante. Quero que confirme se está lá, de facto, um bigrupo reforçado.
– Mas, meu major, um bigrupo reforçado é muita gente e, se se preparam para nos atacar, hão-de estar bem armados, com armas melhores e mais poderosas que as nossas. Só tenho três grupos de combate na companhia, tenho de deixar um no quartel e ir lá só com dois.
– Que porra! Lá está você outra vez, homem! Eu sei bem isso.
– Percebeu?
– Percebi, meu major.
Percebia e estava a ver que era pior do que daquela vez em que pusera reticências ao capitão para ir ao corredor perto do Senegal. Estava feito
– Então venha aqui – levou-me para mais perto do mapa. -– Um grupo vai até à bolanha e outro, quero que seja o seu, entra no Senegal e apanha esta picada aqui, está a ver? – Eu disse-lhe que sim senhor - Podem apanhar alguém na bolanha, porque eles vão lá, ou na picada, que é o caminho que fazem. É assim, mais nada.
– Eu tenho de ir porque o major decidiu que sim. Qual de vocês quer ir?
Eles olharam um para o outro e o Salgado decidiu-se primeiro.
– Vou eu.
Preferia que fosse o Rodolfo, mas este não disse nada, ficou calado. Procurei não fazer como o Lindolfo e o Mendonça.
– Então, ó Rodolfo, és tu que ficas a tomar conta disto. Porta-te bem. Salgado, vai falar com os teus furriéis e diz-lhes que têm de ter os homens prontos para sair amanhã logo de manhãzinha, às cinco horas. Eu vou fazer o mesmo com os meus. Diz-lhes o que é que vamos fazer e que tenham cuidadinho com a língua. Os gajos que não falem disto com os soldados, senão toda a tabanca fica a saber e estamos feitos. Quando sairmos, e já fora do quartel, ou vou dizer a todos qual é a missão. Agora vamos aqui ao mapa.
Chegaram-se lá e eu foi apontando.
– Vamos juntos até à ponta da bolanha, esta aqui ao pé do Senegal. Aí separamo-nos, eu vou para o Senegal, por aqui, até esta picada, e tu vais para o corpo principal da bolanha, ficas lá e esperas por mim, até eu regressar - o Salgado percebeu a ideia - Vou ter de levar o Bailo comigo para me indicar o caminho para aquela picada do Senegal. Tu chegas facilmente ao teu local, não é?
– Claro, vou chegar lá nas calmas.
Fomos, então, logo às cinco da manhã..
Às vezes dava-me, esta foi uma das vezes. Ia calmo. Era como assistir ao nascer da vida. Os ainda ténues raios de sol que furavam por entre as folhas da floresta levaram-me a pensar na centelha da vida que Michelangelo representou nos tectos da Capela Sistina. Resquícios da formação religiosa. O pipilar ainda suave dos inúmeros pássaros que habitavam as árvores maravilharam-me como lembranças do despertar dolente e suspiroso da Júlia à minha beira. Mas os grunhidos ruidosos e agudos do macaco-cão eram um despertar, alertavam-me para as passadas que devia dar e o caminho a seguir. Mantinham-me atento no meio das divagações.
Chegámos ao local da separação.
– Tens o mapa da zona? – perguntei ao Salgado.
– Tenho, claro.
– Fica aqui, então, que eu vou atravessar a bolanha um pouco mais abaixo e, se tiver problemas, podes apoiar-me com fogo desse lado. Parece-me que é melhor para eu não ser apanhado entre dois fogos. O que achas?
Era uma precaução para não cair novamente nessa situação. Os meus furriéis e os do Salgado comentaram entre eles e pareciam de acordo.
– Está bem, pá – disse também o Salgado.
– Olha, mantém o teu “banana” sempre atento, eu vou estar com o meu também. É para nos mantermos em contacto e para nos irmos informando do que se passa dum lado e doutro. Além disso, o PCV do major do COP deve estar a aparecer e ele também vai querer conversa.
Separei-me levando o Bailo à frente para me indicar o caminho até à tal picada dentro do Senegal. Vira no mapa que a fronteira ali era uma linha recta entre os marcos 132 e 133. Nem sabia se os marcos ainda existiam, mas, mesmo que existissem, deviam estar totalmente cobertos de vegetação e não adiantavam nada para saber onde acabava a Guiné e começava o Senegal. Em certo momento tanto podíamos estar dum lado como do outro. Por isso é que aquela gente não tinha fronteiras. Era tudo o mesmo.
Estávamos há quase meia hora no meio da mata. O Bailo, por indicação minha, não escolhera carreiros e a progressão não era fácil. Quando se começou a ouvir o ronronar da DO, diz o radiotelegrafista:
– Meu alferes, está aqui o PCV.
Peguei no “banana”.
– É pa, já vi que o Salgado está no local indicado – disse o major. – Mas você ainda não chegou, pá!. Estou a ver daqui o sítio onde devia estar.
O engraçado queria festa. Ia levar.
– Meu major, aqui no meio desta mata cerrada não é tão fácil descortinar o objectivo como aí de cima. Tenho tido dificuldades na progressão, mas o meu guia diz-me que estamos quase a chegar.
Uns segundos de silêncio. Devia ter acusado o toque, mas não se descoseu.
– Quando chegar avise-me que eu vou andando por aqui.
Desligou.
Acabámos por chegar e emboscámo-nos na berma da picada.
– Ninguém dispara nem se mexe, só à minha ordem – disse.
– Bailo, levanta-te e fala com eles.
Sabia que era um tipo expedito, embora às vezes até demais. Ele levantou-se logo e foi para o meio da picada. O jipe aproximou-se e parou. Os seus ocupantes sorriram.
– Bonjour, camarade – disse um deles.
– Quietos! – gritei, apontando-lhes a G3.
– Banderra de Senegal amie de banderra de Portugal.
Disse isto com voz arrastada enquanto o outro abanava a cabeça de assentimento. Achei-lhes piada.
– Deixem-se de merdas! O que é que fazem aqui?
Os sacanas até percebiam português. Ou não, se calhar apenas se apressaram com uma desculpa. Houve uma agitação e vi o Blétche e o Falcão de armas apontadas para a picada do lado da tabanca.
– Ninguém dispara!
O velho, agitado, dizia algumas palavras que não entendia mas que me pareceram crioulo. Disse ao Otcha para saber o que andavam a fazer e para onde iam. O rapazito estava cheio de medo. O cego abria os olhos baços e franzia a boca receosa. Apercebera-se do mal invisível.
– Iam para uma tabanca aqui perto onde têm família. O velho é avô do rapaz e é cego.
Foi a informação do Otcha depois de falar com eles. A DO estava agora por cima de nós. O radiotelegrafista trouxe-me o “banana”.
– O que é que se passa aí em baixo, nosso alferes?
– Meu major, é um jipe com dois gendarmes do Senegal, apareceram aqui. Parece-me que é melhor irmos embora, já não dá para o que viemos fazer.
– Eh, pá! Mande os gajos embora, e sem uma beliscadura. Não podemos arranjar problemas desses. Depois pode retirar.
Virei-me, depois, para os gendarmes.
– Allez-vous en! Levem o cego e o miúdo!
Ficaram encantados, nem se lhes notou qualquer contrariedade por não irem ter com as “femmes amies”. Elas lá estariam à espera para outra altura, certamente.
–Agarrem nos dois e metam-nos no jipe –disse para os que cercavam o avô e o neto.
– Está ali uma mulher! – gritou o Otcha.
Vi que o bambaran se soltara e a criança caíra no chão. A mulher virou-se angustiada a ver a criança a chorar mas olhou com terror para o Clode e o Falcão que corriam para ela e continuou a fugir internando-se na mata.
De repente o silvo de um rocket. Atiráramo-nos todos para o chão. O rocket rebentou perto das palmeiras.
– Clode, Falcão, tragam a criança! Todos para a mata!
O Clode corria com a criança nos braços. Começou o fogachal do lado do Senegal. Já abrigados na orla da clareira, disse para o Bailo:
– Estamos longe do alferes Salgado?
Mandei, depois, o furriel Fernandes ir com a secção dez metros para trás, recomendando-lhe que só disparassem morteiradas. O Lindolfo foi dez metros para a direita. Fiquei com o Aguinaldo Baldé, que tinha o Benhanté com a bazuca. Disse também a três homens da secção dele para irem dez metros para a esquerda. Era uma precaução porque tinha a ideia que eles podiam cercar-nos. Com a bazuca ali podia retê-los até decidir recuar.
– Devíamos ter matado eles.
As bazucadas do Benhanté e os dilagramas do Otcha mantinham-nos em respeito. Disse ao radiotelegrafista para ligar ao alferes Salgado. Quando o fez deu-me o “banana”.
– É, pá, eu já não estou no mesmo sítio. Vou a caminho do quartel.
O Aguinaldo, mesmo no meio do tiroteio, apercebera-se da conversa.
– O que foi, meu alferes?
– O alferes Salgado deixou-nos, foi-se embora.
– O alferes Salgado não é bom.
– É mas é um grande filho da puta – estava mais que furioso.
– Estamos aqui com um problema, meu major.
– Já sei. Estava na pista do quartel e ouvi. É o tal bigrupo?
- Podem não ter querido mostrar. Mas agora não interessa.
– É ótimo, para ver se não vêm atrás de nós. Além disso podem dar cabo de umas plantações de arroz que eles têm na bolanha. Mas isso o meu major já sabe.
– Toca a andar, homem. Eu vou para o quartel e falamos lá.
Não explodia facilmente, era verdade.
Não íamos muito longe quando os T6 apareceram. Despejaram umas tantas e foram-se embora. Mas deu para que os do PAIGC não nos fossem no encalço. Durante o caminho cheguei-me à secção do Fernandes, onde o Clode continuava com a criança ao colo.
– Nomi di bó? – perguntei-lhe.
– É badjudinha – disse o Clode.
-– Tá bem, é rapariga. Ó Fernandes, que dia é hoje?
– É terça-feira.
Último poste da série > 29 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26089: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (14): assim nasceram os Jagudis, nome de guerra do meu grupo de combate, na CCAÇ 3 (Barro, 1968/69)