1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Julho de 2019:
Queridos amigos,
Para quem pretende estudar ou aprofundar conhecimentos sobre o pensamento, a ideologia, as qualidades de liderança de Amílcar Cabral, este punhado de intervenções feitas num Seminário de Quadros, que decorreu em Conacri, de 19 a 24 de novembro de 1969, é uma excelente oportunidade até pelo leque de temas contemplados. Revela-se um comunicador de primeiríssima água, não se desvia dos temas mais polémicos como a unidade e luta, trata-o como vital para pôr termo ao colonialismo na Guiné e Cabo Verde, não ilude igualmente a base leninista que orienta a sua ideia de Partido, democracia revolucionária sim mas de acordo com a fidelidade aos princípios do Partido que ele consagrou com um grupo de fiéis, que igualmente não o contestam. Em poucos dias, e com vigor notável, desfia temas, conta histórias, motiva, insiste na tecla do combate ao oportunismo e aos corruptos. Quando se lê e relê esta sua obra é mesmo de questionar se para além dos estudiosos não devia ser tratado como um manual político indispensável pelo PAIGC atual.
Um abraço do
Mário
Um guia prático para conhecer o pensamento do revolucionário Amílcar Cabral (2/5)
Beja Santos
A obra intitula-se “Pensar para Melhor Agir”, comporta o teor integral das intervenções de Amílcar Cabral do Seminário de Quadros do PAIGC, que se realizou em Conacri, de 19 a 24 de novembro de 1969. A edição é da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 e tem organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins.
De há muito que só é possível ler Amílcar Cabral entre nós nas bibliotecas ou adquirir as suas obras em alfarrabistas. As intervenções do líder do PAIGC foram revistas a partir das bobinas que então recolheram integralmente a sua comunicação, mais uma razão para encarar este trabalho como uma boa oportunidade de revisitar a essência do seu pensamento.
Após a calorosa saudação proferida e analisada a situação da luta ao tempo, fez questão de, nem sempre com uma inteira frontalidade, de ir direito ao tema polémico da unidade e luta. Paulatinamente, começa por discretear sobre o conceito de unidade e de luta, observa os termos da distinção da divisão em Cabo Verde e na Guiné, filosofa dizendo que a luta é uma condição normal de todos os seres do mundo, bem conhecedor de que não podia falar de idênticos parâmetros de colonialismo para a Guiné e para Cabo Verde, enunciou a fragmentação étnica guineense, a natureza da propriedade em Cabo Verde e disse que nenhum movimento que se tenha afirmado só a favor da Guiné ou só a favor de Cabo Verde tinha progredido. Deu o exemplo de um caso de unidade africana, a Tanzânia, resultado da união da Tanganica com o Zanzibar, mas não aludiu a todas as tentativas de unidade até então falhadas.
E então declarou:
“Não existe um problema verdadeiro de lutar pela unidade da Guiné e Cabo Verde, porque, por natureza, por história, por geografia, por tendência económica, por tudo, até por sangue, a Guiné e Cabo Verde são um só. Só quem for ignorante é que não sabe isso”.
E como fosse necessário um exemplo bem-sucedido do valor da unidade, referiu que na primeira fornada de gente que fora para a cadeia havia guineenses e cabo-verdianos juntos. Adiantou que o PAIGC não podia aceitar a independência da Guiné sem Cabo Verde. E a questão de unidade e luta ficou arrumada.
Debruçou-se seguidamente sobre os problemas de organização, recordou os dados da realidade geográfica, da realidade económica, social e cultural. Relendo estes textos décadas depois de que foram proferidas, é extremamente difícil acreditar que a plateia assimilasse os conceitos que iam exclusivamente na cabeça do líder, era ciência infusa, aquela plateia era constituída por jovens que não ignoravam o passado, o peso das hierarquias, a natureza do colonialismo com a sua ponta de lança de quadros cabo-verdianos, por vezes muito mais cruéis e incontestavelmente racistas comparativamente com o branco.
Mas Cabral urdira estes tópicos com engenho e arte, de forma abreviada, tinha um discurso exaltador na manga que veio imediatamente, dirigiu-se aos melhores filhos do povo, à honestidade, à verdade, à responsabilidade, pontuando de vez em quando com “os melhores filhos da nossa terra é que devem dirigir o nosso partido e o nosso povo”.
E lançou alguns tópicos de modernidade para a força revolucionária de que ele era mentor:
“Há alguns camaradas homens que não querem entender que a liberdade para o nosso povo quer dizer liberdade também para as mulheres, que soberania para o nosso povo quer dizer que as mulheres também devem participar nisso e que a força do nosso Partido vale mais na medida em que as nossas mulheres se empenharem para o dirigirem também”.
Também criticou a mentalidade daqueles que não davam oportunidades aos jovens para assumirem mais responsabilidade, e uma vez mais advertiu que o oportunismo era uma séria ameaça para a vida do PAIGC:
“No nosso meio, há também oportunistas que, sabendo que a nossa direção exige, para dirigir, os melhores filhos da nossa terra, podem fingir ser dos melhores, ou então procurar satisfazer ao máximo os seus responsáveis, para estes os proporem como dirigentes ou como responsáveis. Temos de ter cuidado com isso, temos de os desmascarar, de os combater”.
Era o sinal de que estava aberta a guerra ao carreirismo, aos ambiciosos, à gente mesquinha, à bajulice.E espantoso comunicador como sempre se mostrou, foi buscar uma história para rematar o tema que versava:
“Há um filme de que nunca me esqueço, porque foi uma grande lição para mim. Era a respeito de um rapazinho que foi educado num colégio de padres e que acreditava muito em milagres. Não conhecia nada da vida, porque fizera a sua vida no colégio e saiu de lá homem, com vinte e um anos. Todas as injustiças que ele verificava eram um mal; não entendia que, de um lado havia a miséria, gente que sofre, do outro, os ricos.
Mas ele conseguiu encontrar uma pomba que fazia milagres. E então, porque o seu pensamento estava ligado ao sofrimento dos outros, resolveu fazer tudo para ajudar os outros, para não haver fome, nem frio, para todos terem casas para morar, e cada um realizar os seus desejos; ele não pensava em si mesmo, mas pedia à pomba para fazer milagres para os outros. A pomba aparecia-lhe e sentava-se na sua mão. Ele dizia ‘Pomba, dá casas para aqueles pobres’, e apareciam as casas com tudo dentro. ‘Dá comida àqueles famintos’, e aparecia a comida, boa comida. Chegava mesmo a chamar as pessoas para perguntar o que é que queriam e pedia à pomba para lhes dar.
Até que, um dia, arranjou uma namorada e sentou-se com ela. A namorada pedia-lhe uma coisa e ele dava. Outras pessoas também pediam, mas ele já não tinha tempo, agora era tudo para a namorada.
Repentinamente, a pomba voou e foi-se embora. Acabaram-se os milagres e tudo o que ele tinha feito como milagre tornou a desaparecer. Mesmo com a pomba na mão, os milagres acabaram. Ele já não podia fazer nada pelos outros, porque só pensava na sua ‘badjuda’, na sua barriga.
Esta é uma grande lição.
Na medida em que formos capazes de pensar nos nossos problemas comuns, nos problemas do nosso povo, da nossa gente, pondo no devido nível e, se necessário, sacrificando os nossos interesses pessoais, seremos capazes de fazer milagres.
Assim devem ser todos os dirigentes responsáveis e militantes do nosso Partido, ao serviço da liberdade, e do progresso do nosso povo”.
E mudou de azimute, perguntando: contra quem está o nosso povo a lutar, para responder que os filhos do mato e agora combatentes não deviam esquecer, por um momento que fosse, o maior respeito e a maior dedicação pelas populações, a começar pelas áreas libertadas.
“Tudo quanto se possa fazer para tirar a confiança da população em nós, castigando a população, mostrando falta de consideração por ela, roubando os seus bens, abusando dos seus filhos, constitui o maior crime que um camarada combatente ou responsável pode fazer, prejudicando o nosso Partido, prejudicando o futuro e o presente da nossa terra. É melhor sermos poucos, mas incapazes de fazer qualquer mal que seja à população da nossa terra, do que sermos muitos, mas com gente capaz de fazer mal”.
E deixou bem sublinhado que a luta era contra o imperialismo e os seus agentes e as forças materiais ou ideias que pudessem levantar-se no caminho da liberdade, caso dos procedimentos que pudessem prejudicar a imagem de verdade e rigor do PAIGC.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 7 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23055: Notas de leitura (1426): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (1) (Mário Beja Santos)